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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DAEDigÁOON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
ÍL vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
SETEMBRO
1958

ERGUNTE

esponderemos

ANO /
ÍNDICE

Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Como conciliar a don trina da Biblia .sobre a origem do


mundo e do homeut eom a teoría do Pe. Teilliard do Chardin S. J.1
Como é que a I {/reja ve ésse autor e sitas obran ?" 351

2) "Que c ti Logosofia ? Quais as anas principáis linhas dou-


trinárias ?" 357

II. «AGUADA ESCRITURA

3$ "Quais os fundamentos bíblicos da fé na real presenga de


Cristo na Eucaristía ?" 35S

4) "Admitida a real presenta, Jesús terá comungado do seu


próprio corpo na última ceia ?" S68

III. DOGMÁTICA

5) "Como se ¡toderia tornar ncessível A rosno o dogma da real


presenca de Cristo na Eucaristía ? A transubñtanciacüo, de que fa-
lam, os teólogo*, n'to .será dependente de prensupostos medievaix,
já uño xttHleiilúvf'n it luz tln Fixicu mndvrnu ?" -fus

G) "Porque é que a Igrejn nao dá aos fiéis a comunhSo do


cálice consagrado? Nao inandou Jesús que todos coniessem da sua
carne e bebesxcm do sen sangue (cf. Jo 0,54s)?" 373

IV. MORAL

7) "Que tfízcr ilo inoríincnto chamado 'Rearmumento Moral'?" -175

S) "O />■■',' : crá ::i':'i-iitit'o (fu: católicos? AintUi tein valor


certas proibt$vex dos nr.tif/oi: enm referencia ao assunlo ou já fi-
serant seu tempo ?" 879

V. HISTORIA

0) "Que c a Maconaria? Quais as sitas relajóos com as esco


las de sabedo:ia an'¡¡/a:¡? Poderá tim católico ser magonV 383

CORRESPONDENCIA MIÜDA (Celibato do clero ; partici-


pc'io do" crüóliros r;;i obrui c ritos náo-católicos) 390

CO?.I AI'ROVAC-'O ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano 1 — N' 9 — Setembro de 1958

I. CIENCIA E RELIGIAO

ZAQUEU (Rio de Janeiro):

1) «Como conciliar a doutrina da Biblia sobre a origem


do mundo e do homem com a teoría do Pe. Teilhard de Char-
din S. J. ?
Como é que a Igreja vé esse autor e suas obras ?»

Em prímeiro lugar, exporemos as principáis idéias do Pe.


Teilhard de Chardin, a fim de poder proferir um juízo sereno
sobre as mesmas.

1. Vida e doutrina de Teilhard de Chardin

1. Pedro Teilhard de Chardin nasceu em 1881 em Orcine


(Franga). Entrou na Companhia de Jesús, onde foi ordenado
sacerdote. Manifestando sempre grande pendáo para as ciencias
naturais, dedicou-se á Mineralogía, á Geología e ao estudo dos
fósseis, em vista do que viajou pelo Egito e a Inglaterra entre
1901 e 1912. De 1912 a 1923 entregou-se em París a pesquisas
de Zoología e Paleontología. A mor parte dos seus trinta anos
subseqüentes, o Pe. Teilhard a passou no Extremo-Oriente, prin
cipalmente na China, tendo sido de 1929 a 1937 o diretor das
buscas que levaram á descoberta do famoso fóssil Sinántropo
em Choukoutíen, perto de Pequim; foi éste o mais vultuoso titulo
de gloria na carreira de Teilhard de Chardin.
Dotado de reconhecida competencia, o sabio sacerdote foi
sucesivamente nomeado Presidente da Segáo de Geologia do
Instituto Católico de París, Conselheiro do Servico Nacional de
Geología da China, Diretor do Laboratorio de Geologia aplicada
ao homem e da Escola prática «des Hautes-Études» de París,
Diretor do Instituto de Pesquisa Nacional Científica e membro
do Instituto de Franga a titulo de académico cientista. Terminou
repentinamente sua carreira terrestre em Nova Iorque aos 10 de
abril de 1955.
O Pe. Teilhard de Chardin foi Religioso fiel á sua vocacáo;
teve urna alma profundamente sacerdotal, como atestam as
suas notas íntimas. Contudo o seu nome de cientista e pensador
é controvertido, dada a índole muito pessoal de seu espirito, que,
fazendo uso de particular dom de perspicacia, sempre procurou
visees grandiosas e horizontes largos; neste afá chegou por vézes

— 351 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 1

á perder o contato com ensinamentos comprovados, arvorando


teorías de certo modo ¡novadoras. Tal trabalho valeu ao sabio
Religioso a admiracáo de muitos, a quem Teilhard de Chardin
aparece como auténtico elo entre a Ciencia e a Fé, ao passo que
outros o tém na conta de suspeito. Fato digno de nota, nessa
controversia, é que Chardin nunca mandou imprimir seus escri
tos, mas apenas os distribuiu mimeografados — o que é possível
indicio da consciéncia que terá tido, de aínda nao haver chegado
(mesmo nos seus últimos dias) a plena maturidade de suas re-
flexóes.

O livro mais famoso do cienlista foi publicado por urna dupla comis-
sao de seus amigos da Europa e da América, após a morte de Teilhard de
Chardin, com o título «Le Phénoméne Humain», Paris, Ed. du Seuil
1955. A mor parte da obra foi escrita em Pequim de 1928 a 1940; as últi
mas páginas, porém, trazem a data de 28 de outubro de 1948 em Roma.
Pergunta-se se o Rev. Padre teria publicado o livro tal como hoje se
acha . Há quem diga que nao e que Chardin, guardando-a, inédito du
rante oito anos, se aprestava a complctá-lo mitigando, algumas de suas
aíirmacóes mais avancadas. O fato é que a obra fez sucesso extraordi
nario, atingindo em poucos meses a venda de vinte mil exemplares.
O seu estilo se desdobra por vézes belo e grandioso, dilatando a visáo
do leitor; tem algo de poético ou de «profético»; a leitura, porém, nao é
sempre fácil, pois o autor emprega vocabulario muito pessoal, criando
seus neologismos («cerebralizagáo, cofalizagáo, hominizacáo, graos de
consciéncia ou de pensamento»).

2. Qual seria, pois, a ideología de Teilhard de Chardin?


O escritor parte de um principio básico : a evolucáo é um
fato universal, ao qual nenhum ser criado escapa; ela tem inicio
na materia corpuscular, atinge o homem e passa além...
Aqui seria importante observar que a doutrina católica nao
se opóe ao evolucionismo, contanto que éste admita duas acóes
de Deus criadoras : a primeira, para produzir a materia inicial,
em estado talvez caótico, dotada, porém, das leis de sua evolugáo
futura; a segunda se terá dado quando a materia, desenvolven-
do-se paulatinamente, atingiu o grau de complexidade de um cor-
po humano; terá sido entáo que o Criador tirou do nada e infun-
diu á materia a alma humana, espiritual; esta nao se origina por
evolugáo, mas por direta criacáo de Deus. Feitas estas duas res-
salvas, a fé crista nada tem que objetar ao evolucionismo (cf.
«Pergunte e Responderemos» 4/1957, qu. 1; 7/1958, qu. 1).
Ora o Pe. de Chardin, pressupondo dois elementos funda
mentáis (a materia corpuscular e a energía), foi acompanhando
a ascensáo dos mesmos na escala dos seres, ascensáo que,
conforme Chardin, se faz mediante a tomada de estruturas
cada vez mais complexas. O autor dá a essa evolugáo os nomes
de «cefalizaQáo» e «cerebralizagáo», pois, na verdade, quanto

— 352 —
TEILHARP DE CHARDIN E EVOLUCAO

maiá complexos sao o sistema nervoso e o cerebro de um ser


vivo, tanto mais perfeito e elevado ele é na escala dos viventes.
Tal terminología pressupóe que nao há hiato entre os seres ina
nimados e os animados, mas que a materia anorgánica já con-
tém em germen a vida (Chardiri diría mesmo : contém a cons-
ciéncia), a qual, para se manifestar, só espera que seu sujeito
adquira estrutura mais rica e complexa : «Na superficie há
fibras e ganglios; na profundidad? há a consciéncia» (Phéno-
méne, pág. 159). É, pois, o agrupamento de elementos cada vez
mais numerosos e organizados que produz a passagem do átomo
ao estado de molécula inanimada, de célula viva, de cerebro do
irracional e de cerebro humano. Surgem assim sucessivamente
a Gcosfera, a Biosfera e a Antroposfera, grau de evolugáo, éste
último, em que ora nos achamos. Eis, porém, que neste ponto
o Fe. Teilhard ousa propor urna visáo profética do futuro: a
evolucáo continuará, pois também os cerebros humanos tendem
a se coordenar entre si «numa coletividade harmonizada de cons-
ciéncias equivalente a urna especie de Super-consciéncia. A Térra
nao somente se recobrirá de miriades de graos de pensamento,
mas também se envolverá num só grande envoltorio pensante,
até nao formar funcionalmente senáo um só vasto Grao de Pen
samento, na escala sideral. A pluralidade das reflexóes indivi
duáis se agrupará e se reforgará no ato de urna só Reflexáo
unánime» (Phénoméne, pág. 179). Chegaremos destarte á Noos-
fera ou S. esfera do Espirito.
Por conseguinte, o universo procede de um ponto de par
tida único, o qual se ramifica em diversos raios de seres; estes,
porém, á semelhanga dos meridianos de urna esfera, tendem
para um ponto supremo de convergencia, que Chardin chama
«o ponto ómega, o Polo do Universo»; nesse ponto se encontra
Deus, centro universal de unificacáo, no qual cada espirito re-
pousa. Éste Centro Supremo é, e conserva-se, distinto1 dos indi
viduos humanos que para ele confluem, nao lhes absorvendo a
personalidade. Ao contrario, quanto mais cada consciéncia indi
vidual se coaduna com as demais no ponto ómega, tanto mais
também encontra a si mesma com a sua face própria, passando
por urna especie de super-personalizagáo. Com esta observagáo,
quer o autor diferenciar-se de qualquer tipo de pensamento pan-
teísta, que afirme o culto de um Grande Todo no qual os indivi
duos se perderáo como urna gota de agua no océano. — Nao
seria fácil dizer o que exatamente entendía o Pe. Teilhard de
Chardin nessá sua visáo profética.
Eis como a comenta J. Piveteau, Professor da Sorbona de París:
«Na noosfera o imenso esíórco de cerebralizacáo, que comecou
quando a térra era juvenil, vai consumar-se em demanda da organiza-
Cao coletiva ou socializagao. Nao há dúvida, nesta última parte de sua

— 353 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, gu. 1

obra o Pe. Teilhard de Chardin parece cumprir a tarefa de um filósofo


mais que a de um homem de ciencia; muitos dos que admiraram o pa-
Ieontologista na sua interpretac.áo do mundo dos viventes, terao diíicul-
dade para seguir o autor ñas suas descrigóes do porvir» (Prefacio a
obra de Teilhard de Chardin, Le groupe zoologique humain).

Para concluir a sua síntese, o autor menciona também a


Encarnacáo do Verbo no movimento geral da evolugáo: para
atrair a humanidade a divinizagáo, Deus se imergiu parcialmente
ñas coisas diste mundo, tomando a chefia da evolugáo humana.
É em fungáo de Cristo, o Verbo Encarnado, que tudo e todos se
desenvolvem; é em Cristo que a evolugáo encontra acabamento
perfeito, de modo que o fenómeno humano é também o fenó
meno crista» (título éste dado ao epílogo do livro «Le Phéno-
méne humain»). Todavía á intervencáo de Cristo no mundo,
conforme Chardin, parece tocar apenas o papel de animar com
novo impulso a ascensáo das consciéncias; o autor nao fala da
missáo de Redentor, Restaurador, que coube a Jesús pelo derra-
mamento de seu sangue (embora nao a tenha negado em abso
luto).
Eis, compendiosamente exposta, a concepgáo evolucionista
do Pe. Teilhard de Chardin. Procuremos agora formular

2. Um juízo sobre o assunto

Nao se pode negar que a teoría ácima seja apta a empol-


gar pela visáo grandiosa do mundo e do homem que ela apre-
senta. Constitui ampia tentativa de reunir os mais diversos
dados da ciencia e da filosofía num panorama único. O sabio
francés comunicou ao seu evolucionismo um cunho estritamente
finalista, fazendo da teoría táo explorada por Haeckel e outros
materialistas um veículo que conduza ao espirito e a Deus. É
éste, sem dúvida, um dos motivos por que a obra do Pe. Teilhard
tanto tem despertado atengáo e simpatía; estabelecido sobre
abundantes dados científicos, o evolucionismo de Chardin a uns
parece ser urna solugáo, a outros urna apología de Deus e de
Cristo...
Contudo nao se poderiam silenciar críticas a tal teoría.
Ei-las resumidas em quatro pontos :
1) O erudito francés professa continuidade tal entre ma
teria inanimada, materia animada e vida intelectiva ou pensa-
mento que sua terminología, tomada ao pé da letra, leva ao
panpsiquismo, ísto é, a admitir a existencia de alma e cons-
ciéncia no átomo, na molécula, na célula, assim como no con
junto do género humano; parece extinguir a diferenga de natu-
reza entre a materia e o espirito, contradizendo assim tanto á sá
filosofía como á fé.

— 354 —
TEILHARD DE CHARDIN E EVOLUCAO

Na verdade, nao é necessário estabelecer-se um hiato in-


transponível entre a materia inanimada e a materia animada
por vida vegetativa e sensitiva; o principio vital das plantas e o
dos animáis irracionais sao meramente materiais; por isto
pode-se admitir, á luz tanto da razáo como da Revelagáo sobre
natural, que a materia inanimada tenha evoluido, sem inter-
vengáo extraordinaria do Criador, até o grau da vida sensitiva.
O hiato intransponível, porém, se coloca entre a vida sensitiva
e a vida intelectiva ou racional, típicamente humana (com a
qual está associada a consciéncia própriamente dita); com efeito,
a vida intelectiva depende de um principio vital espiritual, que
nao pode ser mero produto da materia em evoluqáo, mas neces-
sariamcntc se origina por um ato criador de Deus (cf. «Pergunte
e Responderemos» 7/1958, qu. 1).
Verdade é que o Pe. de Chardin nao quer negar em abso
luto ter sido a alma humana diretamente criada por Deus —
o que pressupóe nítidamente a distingáo entre materia e espirito
(cf. Phénoméne, pág. 186 n. 1). Todavía concatena as suas idéias
de modo que se diria ser dispensável ou inútil tal intervengáo
criadora de Deus no curso da evolugáo.

2) A visáo do Pe. Teilhard parece nao contar com o «mis


terio da iniqüidade» ou com o pecado, e em absoluto silencia as
nogóes de salvagáo e redengáo do género humano. Apenas no
fim do volume «Le Phénoméne humain», em apéndice redigido
em 1948, o autor tenta justificar ésse silencio, declarando que
intencionou descrever únicamente o aspecto positivo do processo
de «hominizagáo», sem «chamar a atengáo para as sombras da
paisagem» (cf. pág. 345). Chardin reconhece a existencia do mal
no mundo, enumerando, por exemplo, o mal da desordem, do
insucesso da evolugáo, o mal da decomposigáo, o mal da solidáo
e da angustia... Trata-se, porém, do mal físico, inerente ao pro
cesso da evolugáo; em parte alguma da obra é focalizado o mal
moral, violagáo de um preceito divino, ofensa do homem a Deus.
O pecado original é mencionado rápida e hipotéticamente, como
«efeito extraordinario de alguma catástrofe ou desvio primor
dial» (pág. 347).
Ora a existencia do pecado é elemento capital para urna
auténtica concepgáo do mundo e do homem; o mesmo se diga
da obra da Redengáo; a libertagáo e a grandeza do género hu
mano nao sao meros produtos do processo natural de evolugáo,
como pode dar a entender a síntese proposta. Esta ó tal que a
Moral, com suas categorías de virtude e vicio, livre arbitrio do
homem que obedece ou desobedece a Deus, pode ser simples-
mente silenciada.

— 355 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 1

3) Na explanagáo do Pe. Teilhard de Chardin, tem-se


a impressáo de que o género humano é oriundo de urna única
populagáo ou um único tronco (monofiletismo), mas de muitos
casáis a constituir ésse único tronco. O autor justifica essa insi-
nuagáo, lembrando que deseja apenas fazer o papel de cientista
e que ao cientista escapam os primeiros inicios das especies; ele
só apreende a estas após certo grau de evolugáo (Chardin deixa,
portante, a porta aberta para que o teólogo, focalizando a pri-
meira hora da historia humana, introduza o monogenismo na
sua síntese). O leitor, porém, que nao conhega a distingáo entre
cientista e teólogo sobre a qual se apoia o Pe. Teilhard, é fácil
mente induzido a concluir que de fato muitos casáis simultánea
mente deram origcm ao género humano, lslo ó contrario á
doutrina crista ou á verdade, que, entre as suas proposigóes mais
importantes, enumera o monogenismo (origem do género hu
mano a partir de um só casal: Adáo e Eva). Alias, monogenismo
e pecado original sao dois pontos intimamente associados entre si
na concepgáo crista do mundo.
4) O Pe. Teilhard refere explícitamente (embora em ter
mos estranhos) a Deus e a Cristo no ponto Ómega ou no final
da evolugáo. Nao menciona, porém, um Criador no ponto Alfa
ou inicial da historia. Eis outro capítulo de importancia prima
cial, que em urna visáo completa do mundo nao se pode deixar
de elucidar sob pena de acarretar mal-entendidos perniciosos. A
materia nao é eterna, nem se origina por emanagáo a partir de
urna substancia superior, mas do nada é criada por Deus, único
Ser Eterno.
As quatro lacunas ácima apontadas nao deixam de ser gra
ves. Nao equivalem a negagóes, pois o Pe. Teilhard deu provas
de que jamáis intencionou abandonar a concepgáo genuinamente
crista do universo. Ele mesmo dizia no seu prólogo a «Le Phéno-
méne Humain» — e seus amigos o sublinham bem — que apenas
quería descrever o «fenómeno», sem entrar em consideragóes
metafísicas e teológicas; désejava manter-se únicamente no do
minio das aparéncias sensiveis. O fato, porém, é que toda visáo
de súrtese das aparéncias sensiveis, como a de Chardin, exige
interpretagáo de dados, nao podendo deixar de recorrer a certas
categorías filosóficas. Apesar do seu propósito, Teilhard nao se
pode furtar ao dever de filosofar. Em conseqüéncia, é de lamen
tar que tenha feito abstragáo de dados capitais da Revelagáo
crista — dados que nao constituem mero complemento, mas, sim,
linhas estruturais de urna genuína concepgáo do mundo e do
homem.
É bem possivel que o Pe. Teilhard tenha sido levado a tais omissóes
por urna intengáo apologética (em si mesma louvável), isto é, pelo

— 356 —
LOGOSOFIA

desejo de íazer chegar os dentistas a Deus e a Cristo seguindo única


mente o roteiro do evolucionismo, roteiro táo profanado pelos negadores
de Deus; daí as reticencias acerca de tudo aquilo que ao autor nao pa
recía decorrer necessáriamente da tese da evolucáo universal. Será
mister, porém, reconhecer que o Pe. Teilhard, em suas explanacóes,
ultrapassou os limites tanto da Apologética como da ciencia pura, para
de certo modo se entregar á poesia... poesía genial talvez, mas muito
pessoal e muito sujeita a ser mal interpretada...

Ponderando tudo aquilo que há em abono e em desabono


do «tcíilhardismo», as autoridades da Igreja nao condenaram
formalmente a obra do Pe. de Chardin. Será preciso, porém, que
os continuadores de Teilhard tomem o cuidado de nao ser infléis
ao scu próprio mostró, o qual nao quis ser infiel '<i doutrina crista
ou á Revelagáo sobrenatural. O pensamento do sabio sacerdote
nao parece ter chegado ao seu ponto de cristalizagáo definitivo; é
de crer que, se tivesse vivido na térra além dos seus 74 anos de
idade, o autor ainda tena burilado algumas de suas afirmagóes,
consoante o que vinha continuamente fazendo no decorrer de
sua carreira de dentista.

Nao se poderia deixar de mencionar aquí o significativo fato de que


a Santa Sé mandou retirar as obras do Pe. Teilhard das bibliotecas de
uso dos Seminaristas.
Faz-se mister acrescenlac que, aos 30 de junho do 1962, a Sta. Sé
publicou nova admoestacüo contra os erros e perigos dos escritos de
Teilhard de Chardin.

W. c B. (Bclo Horizonte) :

2) «Que é a Logosofia? Quais as suas principáis linhas


doutrinárias?»

A Logosofia (em grego, Sabedoria da Inteligencia) é por


seus adeptos apresentada como o sistema mais moderno e eficaz
para promover o aperfeigoamento ético do individuo e da so-
ciedade.
1. Como nasceu?
«Sua origem é genuinamente argentina, porém sua grande
caudal humanitaria tem um só destino : a humanidade» (Pe-
cotche. O Mecanismo da vida consciente, trad. port. Rio de
Janeiro 1957,127).
O fundador da escola é Carlos Bernardo González Pecotche
(Raumsol), nascido em Buenos Aires no dia 11 de agosto de
1901. Desde cedo enveredou por estudos de Psicología e Ética,
julgando em dado momento haver chegado a conclusóes novas
nesses setores. Fundou entáo a «Escola de logosofia» no ano
de 1930, com sede em Córdoba. Transferiu-se em breve para
Rosario, onde permaneceu sete anos, indo finalmente estabele-
cer-se em Buenos Aires no ano de 1939. Da Argentina, a Logo-

— 357 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 2

sofia passou recentemente para o Brasil, onde canta quatro


sedes, com o nome oficial de «Fundacáo Logosófica».

2. Pecotche anuncia ensinamentos que ele julga muito


aptos a transformar o género humano em «nova fratemidade
universal».
O seu panto de partida é o monismo ou panteísmo. O que
quer dizer : professa haver urna só substancia chamada «a Mente
Universal» ou «a Vontade Cósmica», «da qual a mente humana
é um fragmento» (ob. cit. pág. 40). Essa única substancia total
— que tambóm tem o nomo de «Dcus» — está em continua evo-
lugao no mundo, pois Evolucáo, Movimenlo, TrunsCunnacüo,
Adaptagáo sao «Leis Universais que regulam e regem tanto a
vida humana como a cósmica» (ib 42). Daí se segué que é a Di
vindade que vai tomando consciéncia de si mesma, até atingir a
sua consumagáo, em cada individuo humano que se procure aper-
feicoar éticamente. O logósofo, que tem conhecimento disto, con
centra conseqüentemente toda a sua atencáo no seu mundo inte
rior; procura ser cada vez mais consciente de si, pois é assim que
ele há de conseguir identificar-se cada vez mais com Deus.

Em urna palavra : a Logosofia c um apelo á reflexáo do


homem sobre si mesmo, mediante a qual a Divindade (grosseira-
mente identificada com a substancia do mundo e com o próprio
homem) aflora á consciéncia de cada individuo.
Á luz destas idéias, continua o ensinamento logosófico, vé-se
que é o próprio homem quem forja o seu destino e se redime
de suas falhas. Nao espere que um Deus pessoal e transcendente
lhe venha em auxilio, conferindo-lhe a graca sobrenatural; éste
dom nao lhe é necessário, pois o individuo mesmo se pode salvar,
«reformando a sua vida e encaminhando-se definitivamente pela
senda da evolucáo consciente, que nao admite descuidos reitera
dos e que reflete, em todos os atos, a positiva decisáo de cumprir
o supremo mandato do aperfeigoamento» (cf. ib. pág. 123).

3. Estes traeos já caracterizan! suficientemente a Logoso


fia, evidenciando sua discrepancia radical em relacáo ao Cristia-
jiismo. Enquanto éste ensina a salvacáo do homem por dom
benévolo de Deus, a nova escola inculca que o homem basta a
si e nada tem que esperar de um Ser sobrenatural. Tal posicáo
doutrinária é evidentemente errónea; faz do individuo humano,
em última análise, o seu próprio criador e legislador autónomo,
pois o nome de Deus dentro dessa ideología se torna palavra vá.
Querer identificar Deus, o Absoluto e Eterno por definigáo, com
urna parcela, pequeña que seja, do mundo e do homem contin-

— 358 —
A REAL PRESENCA DE CRISTO NA EUCARISTÍA

gentes e volúveis, vem a ser o mesmo que negar a Deus. Conse-


qüentemente as conclusóes psicológicas e éticas da Logosofia
nao podem deixar de se ressentir do erro inicial dessa escola.
A Logosofia, como qualquer forma de panteísmo, pode
seduzir a muitos pelo seu aspecto de sistema místico; na ver-
dade, porém, ela desvirtúa toda a mística, fazendo do individuo
humano o centro ou o Alfa e Ómega da concepgáo da vida.
Reconheceremos a Pecotche o mérito de haver chamado a aten-
gáo do homem para as riquezas da vida interior; a sua escola
(que, em materia de novidade, só pode talvez apresentar o
nome de «Logosofia», pois é afim á Teosofía e 'á Antroposofia,
nutras tantas modalidades do panteísmo moderno) constituí
mais uma afirmagáo pujante da alma religiosa do homem con
temporáneo. Éste procura inelutavelmente a Deus; procura-O,
porém, mal orientado pelo racionalismo e o egocentrismo que
envenenam o pensamento filosófico a partir do séc. XVI.

n. SAGRABA ESCRITURA

MONTENEGRO (Rio de Janeiro):

3) «Quais os fundamentos bíblicos da fé na real presenta


de Cristo na Eucaristía?»

A Sagrada Escritura apresen ta textos concernentes 1) á


promessa, 2) á instituicáo e 3) á eclebracáo da Sagrada Euca
ristía, textos que dáo claro testemunho da real presenca do
Senhor no sacramento do altar.
Percorramos as principáis dessas passagens.

1. A promessa da S. Eucaristía

A promessa se acha consignada em Jo 6. O quarto Evan


gelista, escrevendo mais de trinta anos após os demais, ou seja,
por volla do ano 100, nao quis reiterar a narrativa da instituicáo
da Eucaristía já apresentada por S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas
e S. Paulo (1 Cor 11); procurou, antes, desenvolver o profundo
significado doutrinário do gesto de Jesús, referindo a promessa
que o Senhor fizera do Pao da Vida.
Qual seria entáo o conteúdo de Jo 6?
Reúne tres episodios harmoniosamente concatenados a fim
de incutir uma grande tese ou o misterio da Eucaristía : a mul-
tiplicacáo milagrosa dos páes (vv. 1-15) significa o poder de
Jesús sobre o pao; o caminhar sobre as aguas (vv. 16-21) incute
o poder do Senhor sobre o seu corpo e os elementos da natureza;
por fim, o sermáo sobre o Pao da vida (w. 22-71), utilizando os

— 359 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 3

ensinamentos dos dois quadros anteriores, anuncia um pao que


será o próprio corpo de Cristo.
Nesse sermáo, que nos interessa de modo particular, Jesús
se propóe diretamente como o pao que dá a vida verdadeira,
imortal. Alguns exegetas julgam que na primeira parte do dis
curso (w. 22-50) o Senhor tem em vista o consumo meramente
espiritual, que se dá mediante a fé: quem eré, come... Tal
interpretacáo é aceitável; nao se poderia, porém, estender á
segunda parte do sermáo (vv. 51-71), a qual visa claramente o
consumo sensível de um pao que é a verdadeira carne de Cristo;
tenham-sc em vista, por cxemplo, as expressóes muito vivas c
concretas do trecho 6,51-56 :

51 «'Eu sou o pao vivo que desceu do céu; se alguém comer déste
pao, vivera eternamente!
O pao que eu darei é a minha carne, entregue para a vida do mundo'.
52 Puseram-se, entáo, os judeus a disputar entre si: 'Como pode
ésse dar-nos a comer (phageln) a sua carne?"
53 Retornou Jesús : 'Em verdade, em verdade vos digo : Se nao co-
merdes a carne do Filho do Homem e nao beberdes o seu sangue, nao
tereis vida em vos.
54 Quem come (ho trotón) minha carne e bebe meu sangue, tem a
vida eterna e eu o rcssuscitarci no último dia.
55 Porque minha carne é verdadeira comida e meu sangue é ver
dadeira bebida.
56 Quem come a minha carne e bobo o meu sanguc, permanece em
mim, e eu néle*.

A clareza e a insistencia destas palavras exigem sejam


entendidas em seu pleno realismo. Note-se que no v. 52 os
judeus perguntavam como Jesús Ihes poderia dar a sua carne
a comer (phagein, em grego); entáo, visando esclarecé-los,
Cristo, longe de enveredar por urna explicagáo alegorista, rea-
firmou o sentido literal das suas palavras, utilizando no v. 54
expressáo aínda mais forte, isto é, o verbo trogo, que significa
«mastigar, dilacerar com os dentes», sem sentido pejorativo, mas
num realismo extremo.
Quem quisesse interpretar metafóricamente os dizeres do
Mestre, deveria comprovar explícitamente a sua tese — o que
seria difícil ou impossível, pois o sentido metafórico que as ex
pressóes de Jesús podiam ter em linguagem semita é inadmissí-
vel no contexto de Jo 6 : «comer a carne de alguém» significaría
metafóricamente «ofender essa pessoa, persegui-la até a morte»
(cf. SI 26,2); «beber o sangue de alguém» equivaleria a «arder
de odio para com tal pessoa». Ora está claro que Jesús, em
Jo 6,54, nao podía convidar os seus ouvintes ao odio para com o
Divino Mestre, prometendo-lhes em troca a vida eterna.

— 360 —
A REAL PRESENCA DE CRISTO NA EUCARISTÍA

Os ouvintes de Cristo entenderam naturalmente as palavras


do Senhor em sentido literal, perguntando conseqüentemente,
cheios de admiragáo : «Como nos pode dar a comer a sua carne?»
(v. 52). Ora acontecía que, quando os discípulos se enganavam
a respeito das afirmagóes do Divino Mestre, tomando ao pé da
letra expressóes que deviam ser entendidas metafóricamente, o
Senhor tratava de desfazer o equívoco (cf. Jo 3,3-8; 4,32-34;
11,11; Mt 16,6-8); no caso, porém, de Jo 6, Jesús, visando escla
recer seus ouvintes surpresos, nao sómente nao atenuou o rea
lismo de suas palavras, mas, ao contrario, o acentuou : nos w.
53 e 54 acrcscentou, em sua resposta, a menguo de «beber o
sangue do Filho do Homem» e de «mastigar, dilacerar com os
dentes a sua carne». O Senhor manteve destarte a sua posicáo,
muito embora soubesse que, em conseqüéncia, varios dos seus
ouvintes haveriam de O abandonar (cf. v. 66); Cristo nao hesitou
mesmo em intimar os doze discípulos a definir a sua atitude com
toda a clareza : ou crer no realismo das palavras anteriormente
proferidas pelo Senhor e, conseqüentemente, acompanhá-Lo, ou
negar fé e, conseqüentemente, afastar-se (cf. v. 67).
Eis, porém, que o v. 63 tem causado dificuldades exegéticas :
«É o espirito que vivifica; a carne para nada serve. As palavras
que Eu vos disse, sao espirito e vida». Que tinha em vista o
Senhor com esta advertencia?
Jesús apenas visava remover um entendimento grosseiro de
suas alirmagóes, o entendimento chamado «cafarnaitico» (por
que característico dos ouvintes de Cafarnaum, onde Jesús fa-
lava) : nao se tratava de comer carne enquanto tal (está claro
que esta por si só nao santifica o homem) nem de comer a carne
do Senhor em suas condigóes terrestres (como se come a carne
do agougue), mas, sim, de receber a carne de Cristo glorificada
e elevada aos céus, emancipada das leis do espago e do tempo.
É a carne nessas circunstancias novas que Jesús chama «espi
rito»; é espirito, porque está toda penetrada pela Divindade (na
verdade, é a Divindade de Cristo que, mediante a carne, vivifica
os fiéis na Eucaristía).
Acrescentou o Senhor que as suas palavras sao espirito,
nao como se tivessem de ser entendidas em sentido figurado,
mas pelo fato de terem um alcance espiritual e de exigirem uní
entendimento sobrenatural (na fé); sao vida também, porque
nos revelam o meio de termos a vida em nos.

S. Agostinho (t 430), táo explorado pelos simbolistas, propóe de ma


neira admirável a exegese de Jo 6,63 :

«A carne para nada serve, se ela está. só. Que o Espirito ( = a Divin
dade) se junte a ela, como a caridade se pode juntar a, ciencia, e entáo
ela servirá muito. Pois, se a carne para nada servisse, o Verbo nao se

— 361 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 3

teria feito carne para habitar entre nos. Se Cristo muito nos valeu en-
carnando-se, como é que a carne para nada serve? Eis contado que o
Espirito se empenhou em nossa salvacáo mediante a carne. A carne foi
o receptáculo : considera o que ela continha, nao o que ela era... O Es
pirito é que vivifica, a carne para nada serve: minha carne, que dou
a comer, nao é a carne tal como éles a concebiam (=como carne de
a?ougue)»' (In lo tr. 27,5).

Sao Joüo Crisóstomo (t 407) diz o mesmo sob nova forma :

«Se aquéle que nao come a carne de Jesús e nao bebe o seu sangue,
nao tem a vida em si, como seria verdade que essa carne, sem a qual
ninguóm possui a vda, para nada serve? Vés, por conseguinte, que a
írase 'A carne para nada serve' significa nüo a carne* do Jesús, mas o
modo carnal como éles escutavam» (In lo 6,30 hom. 47, el Migne gr.
LIX 265).

De resto, o sentido realista de Jo 6 é reconhecido por nao


poucos autores liberáis e até protestantes (Zahn, Schanz, Bauer,
Loisy).
É á luz de Jo 6 que se háo de entender os episodios abaixo
referidos.

Z. As narrativas da instituigáo

As narrativas da instituigáo durante a última ceia do Senhor


empregam, por sua vez, palavras muito claras : «Isto é meu
corpo... Isto é meu sangue».
Jesús naquela ocasiáo, ao deixar as derradeiras instrugóes
aos discípulos, terá evitado qualquer termo de sentido ambiguo
(ñas horas supremas e decisivas os homens costumam recorrer
a Iinguagem precisa). Cristo, assentado á mesa com os Apostó
los, tinha diante dos olhos todas as geragóes cristas através
da historia; sabia previamente que de maneira geral, durante
séculos e sáculos, os seus discípulos haviam de interpretar os
seus dizeres em sentido realista, prestando, adoragáo ao SSmo.
Sacramento. Nao obstante, segundo as hipóteses racionalistas,
Cristo, «que nao quería ensinar a real presenga na Eucaristía»,
teria usado termos ambiguos, induzindo em erro seus primeiros
discípulos, homens simples e rudes, e, depois déles, u'a multidáo
de fiéis cristáosí Diga-se mais : Cristo teria usado termos apa
rentemente claros para ocultar um simbolismo assaz difícil de
se apreender; com efeito, é arduo definir qual o significado meta
fórico que Jesús possa ter tido em mira ao proferir as suas pala
vras simples sobre o pao e o vinho; em 1577, sessenta anos após
o surto do luteranismo, Sao Roberto Belarmino dizia ter apare
cido havia pouco um livrinho que apresentava duzentas interpre-
tacóes dos protestantes para as palavras : «Isto é meu corpo»!

_ 362 —
A REAL PRESENCA DE CRISTO NA EUCARISTÍA

Contra a perspectiva de um Jesús a induzir em erro os


seus discípulos, insurgia-se em 1529 o humanista, critico irónico,
Erasmo de Rotterdam, que escrevia a Bero a propósito das di
versas sentencas «eucarísticas» dos Reformadores (Lutero,
Zwingli) :
«Jamáis me pude persuadir de que Jesús, a Verdade e a Bondade
mesmas, tenha permitido que por tantos séculos a sua Esposa, a Igreja,
haja prestado adoracao a um pedaeo de pao em lugar de adorar a Jesús
mesmo».

Ademáis a fórmula de consagragáo do vinho soa, segundo


MI: o Me : «Tsto c o meu sangue, o sangue da Alianga que será
derramado por muitos» (Mt 26,28; cf. Me 14,24), frase que faz
eco as palavras de Moisés : «Éste é o sangue da Aliariga...»
(Éx 24,8). Ora nao há dúvida de que o Legislador do Antigo
Testamento, ao falar assim, tinha diante dos olhos o sangue
de urna vítima a selar a Alianga sinaítica. Donde se pode concluir
que Jesús, ao falar na última ceia, tinha em vista verdadeiro san
gue, o seu próprio sangue.
Contudo costumam-se propor objecóes á interpretagáo obvia
das palavras de Jesús. Assim :
a) varios sao os textos da Sagrada Escritura em que
Cristo ou os Apostólos empregam o verbo «ser» no sentido de
«significar, simbolizar». Sirvam de exemplo
Jo 14,6 : «Eu sou o caminho, a verdade e a vida»;
Jo 15,1 : «Eu sou a verdadeira videira, e meu Pai o'
vinhateiro»;
1 Cor 10,4 : «A pedra era o Cristo» (texto particularmente
utilizado pela exegese protestante).

Em resposta, far-se-á observar que o contexto de tais versí


culos indica suficientemente tratar-se de alegoría ou locugáo
figurada, donde natural e evidentemente decorre o sentido sim
bolista do verbo ser nessas passagens. No contexto, porém, da
última ceia, falta todo indicio de simbolismo; arbitrario, por-
tanto, e avésso aos principios básicos da interpretagáo de qual-
quer trecho literario seria, na exegese de tais episodios, fugir ao
sentido obvio e literal do verbo ser.
Além disto, verifica-se que ñas frases citadas o sujeito é um
pronome pessoal ou um substantivo, sujeito bem determinado e
por si mesmo diverso do respectivo predicado; a aproximagao
entre sujeito e predicado em tais sentengas só pode ser figu
rada ou metafórica. Ao contrario, ñas frases da consagragáo
eucarística o sujeito é um pronome demonstrativo, pronome que
por si mesmo é indeterminado e vai receber sua determinagáo do
substantivo com o qual ele ; relacionado, podando mesmo identi-

— 363 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, gu. 3

ficar-se com o significado déste substantivo. Na frase de Cristo,


portanto, o pronome demonstrativo touto (em grego), isto ou
éste, relacionado com corpo, nao sómente nao se opóe ja identifi-
cacáo com corpo, mas exige-a, de tal modo é simples e clara a
cópula é. Em outros termos : na afirmagáo do Senhor, o pro
nome «isto» (touto) designa urna substancia existente sob as
aparéncias externas do pao, substancia cuja natureza é enun
ciada pelo predicado «meu corpo». De resto, nota-se que «isto
(ou éste) é meu corpo» equivale a «Eis aquí meu corpo», como
incute a comparagáo de Éx, 24,8 com Hebr 9,20 (a fórmula
«Éste é o sangue» de Éx reaparece em Hebr como «Eis o
sangue»).
No tocante a 1 Cor 10,4, onde Sao Paulo aplica a metá
fora do Rochedo a Cristo, note-se que éste texto nao pode ser
vir para ilustrar a fórmula da consagragáo eucaristica, pois
o Apostólo em 1 Cor 10 exprime formalmente sua intengáo de re
correr a u'a metáfora: «Nossos pais todos beberam do mesmo
alimento espiritual; bebiam, com efeito, de um Rochedo espiri
tual que os acompanhava; e o Rochedo era o Cristo». O adjetivo
«espiritual», duas vézes ocorrente nestes dizeres e diretamente
associado a «Rochedo», indica bem que o hagiógrafo quer em-
pregar urna figura de linguagem. Sao Paulo mesmo, sem negar
a realidade da historia do éxodo, declarou explícitamente que
ele a considerava em 1 Cor 10 como figura do que se dá com os
cristáos do Novo Testamento (cf. v. 10). — Na fórmula de con
sagragáo eucaristica, ao contrario, falta todo e qualquer indicio
de uso metafórico das palavras.

b) No Inicio do século passado, os autores liberáis apoia-


vam a sua interpretagáo simbolista na tese de que a lingua ara-
maica, em que Jesús falou, tinha um só verbo para exprimir a
identidade real e a representagáo simbólica.
Em 1¿28, porém, N. Wiseman publicou o estudo «Horae
syriacae», em que enumerava mais de quarenta verbos aramai-
cos capazes de exprimir a nogáo de «significar». Além disto,
sabe-se que os Evangelistas e Sao Paulo escreveram em grego,
usando a forma verbal esti (= ), e nao semanei (= significa);
assim fazendo, transmitiram-nos a interpretagáo auténtica das
palavras de Jesús.

c) O Senhor mandoji repetir a ceia sagrada em sua me


moria (cf. 1 Cor ll,24s). Ora, dizem, o memorial só se pode
referir a pessoa ausente, nao a presente. Cristo, por conseguinte,
nao está presente sob os véus eucarísticos.
Responder-se-á que nao é absurdo falar do memorial de um
ser presente, desde que éste nao aparega aos sentidos; com

— 364 —
A REAL PRESENCA DE CRISTO NA EUCARISTÍA

efeito, dizemos que nos lembramos de Deus, embora Deus nos


esteja sempre presente (cf. SI 76, 3 na Vulgata e na trad. de
Almeida); análogamente fazemos o memorial de Cristo, que de
maneira invisível, mas bem real, se acha no sacramento da
Eucaristía.
d) Conforme Paulo e Lucas, Jesús disse : «Éste cálice é a
nova Alianga em meu sangue, que será derramado» (Le 22,20;
cf. 1 Cor 11,25). Ora, assim como o cálice continuou a ser cálice
após estas palavras, dir-se-á que também pao e vinho nao dei-
xaram de ser pao e vinho após os dizeres que, conforme Mt e
Me, Jesús proferiu sobre éles. Que replicar a isso ?
Na realidade a fórmula de Pl e Le coincide eom a de Mt e Me
quanto ao sentido doutrinário, incutindo ambas a real presenga;
apenas se diferenciam no plano filológico ou estilístico. Ao passo
que Mt e Me empregam urna construcáo de frase muito lisa e
clara, a tradigáo de Paulo e Lucas recorre a dois artificios
de redagáo, mencionando sucessivamente o recipiente em lugar
do respectivo conteúdo (o cálice em lugar da substancia do vinho
que ele continha) no sujeito da frase, e o efeito em lugar da
causa (a Nova Alianca em lugar do sangue que a tonnou pos-
sível e a selou) no predicado da mesma frase; por conseguinte,
se quisessemos fazer abstracáo dos artificios cíe estilo, teríamos
em Pl e Le a construgáo : «Isto (ou esta substancia que se acha
contida no cálice) é o mcu sangue, o sangue que acarreta e san
ciona a Nova Alia.nga entre Deus c os homens». A construcáo
artificiosa de Sao Paulo e Sao Lucas serve para exaltar a rea
lidade da Alianga selada pelo corpo e o sangue de Cristo imo-
lados, enquanto a formulagáo simples de Sao Mateus e Sao Mar
cos realga principalmente a realidade da presenga do corpo e do
sangue do Senhor que selara essa Alianga.
e) Em 1 Cor 11,26 lé-se : «Todas as vézes que coméis désse
pao e bebéis désse cálice, anunciáis (katangéllete) a morte do
Senhor até que Ele venha». Nao quer isto dizer que xiáo está
presente na ceia eucaristica Aquéle cuja vinda aínda se espera
no porvir?
No texto ácima, Sao Paulo recorda o intimo nexo que liga
a ceia sagrada com a morte do Senhor (o verbo katangéllete
no indicativo presente, conforme o autor protestante J. Weiss,
implica mesmo a idéia de realizagáo). A seguir, diz-nos o Apos
tólo que ésse «anuncio» sacramental da imolagáo do Senhor é
permanente ou se efetua todas as vézes que se celebra a ceia eu
caristica, até que o Senhor Jesús haja por bem encerrar o atual
regime da fé e dos sacramentos, tornando-se presente de maneira
visivel entre nos. Como se vé, o Apostólo estabelece distingáo
entre «presenga de Cristo glorioso, manifestó», tal como é aguar-

— 365 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 3

dada urna vez para o fim dos tempos, e «presenga do Senhor


sacramental, velada» (mas bem real, como se deduz do contexto
já analisado), tal como a temos na Eucaristía «todas as vézes»,
isto é, todos os dias. Nao é o binomio «presenca-auséncia» que o
hagiógrafo quer focalizar, mas, sim, a distingáo entre «presenga
visivel (a ser obtida urna vez)» e «presenga invisível (que se
verifica muitas vézes, permanentemente)».

3. A cclebracao da S. Eucaristía

Ha urna passngom principal que, atestando a celebragáo da


Eucaristía na lgreja nascenle, dá claro testemunho da fe na pre
senga real do Senhor:
«Todo aquéle que comer désse pao e beber do cálice do Senhor in
dignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor. Por conseguinte,
examine-se cada üm e entáo coma désse pao e beba do cálice. Pois todo
aquéle que come e bebe indignamente, come e bebe a própria conde-
nagáo, por nao discernir o corpo e o sangue do Senhor. É por isso que
há muitos doentes e enfermos entre vos e muitos já morreram» (1 Cor
11,27-30).

Neste texto o Apostólo deduz conseqüéncias gravíssimas


da profanagáo do pao e do vinho eucarísticos; a razáo de tais
penas é o fato de que se toma profanador do corpo mesmo c
do sangro do Senhor quem viola o sacramento; a malicia de
tal pecado e a condenac/io á morte, tanto temporal como eterna,
de que fala Sao Paulo, nao se entenderiam se a Eucaristía fósse
mero símbolo do corpo e do sangue de Cristo. Donde concluí
Goguel (o qual, nao obstante, é adversario da presenca real,
por ter Sao Paulo na conta de grande ¡novador dentro do Cris
tianismo primitivo) :
«Bachmann: observa com razáo que, se o Apostólo diz 'réu do corpo
e do sangue do Senhor', e nao apenas 'réu perante o Senhor', isto se
deve ao fato de que, para Paulo, o páo-corpo c o cálico-sangue sao real
mente o Senhor, e nao (meros) símbolos. O caráter realista da concep-
gao paulina explica também as conseqüéncias que, aos olhos do Apos
tólo, tem a comunháo indigna» (L'Eucharistie des origines á Justin
rnartyr. Paris 1910, 178).

Eis, porém, que contra a interpretacáo ácima parece levan-


tar-se urna objegáo por parte de 1 Cor 10, 16-21. Nesta passa-
gem Sao Paulo confronta a Eucaristía com os sacrificios
náo-cristáos, sacrificios em que certamente .nao se admitía a real
presenga da Divindade sob os véus das carnes imoladas. Eis as
palavras do Apostólo :

«Porventura o cálice de béngáo que abencoamos, nao é a comunháo


do sangue de Cristo? O pao que partimos, nao é porventura a comunháo
do corpo de Cristo? Já que há um só pao, nos todos, sendo muitos, cons-

— 366 —
A REAL PRESENCA DE CRISTO NA EUCARISTÍA

tituímos ura so corpo, porque todos participamos do mesmo pao. Consi-


derai Israel segundo a carne : os que comem das vítimas nao estáo em
comunháo com o altar? Mas que digo? Que a carne sacrificada aos
Ídolos é alguma coisa? Ou que o idolo é alguma coisa?... Mas o que se
sacrifica, aos demonios é sacrificado e nao a Deus. Ora nao quero que
entréis em comunháo com os demonios. Nao podéis beber do cálice do
Senhor e do cálice dos demonios; nao podéis participar da mesa do
Senhor e da mesa dos demonios».

Que quer esta passagem dizer?


Sao Paulo intenciona proibir formalmente aos seus fiéis
a participagáo nos banquetes rituais em que se comiam carnes
imoladas aos ídolos. Em vista disto, alude a urna crenga comu-
mente professada ñas antigás religióes : toda ceia ritual produz
a uniáo dos convivas entre si e com a Divindade, Divindade que
os convivas julgavam estar presente em meio a éles (admitir
alguém a sua mesa é um dos sinais mais eloqüentes de amizade).
Ora, diz o Apostólo, tal comunháo com o Invisível se dá de fato
nos banquetes religiosos pagaos, apenas com a ressalva de que,
os ídolos e deuses do politeísmo nao tendo realidade .alguma, é
com os demonios ou espirites maus que os pagaos contraem
alianga, pois sao os demonios que inspiram a idolatría (cf. Dt
32,17; Bar 4,7; SI 95,5). A comunháo se dá também nos sacri
ficios judaicos, reconhece Sao Paulo, pois os israelitas, comendo
parte das vítimas imoladas a Javé, entram no ámbito das coisas
consagradas ao Senhor (Cf. Dt 12,lls; 18,1-4; Hebr 13,10). Pois
bem; a mesma concepeáo, o Apostólo transpóe-na para a ceia
dos cristáos ou a Eucaristía : a comunháo eucarística dá uniáo
com Cristo. Esta expressáo, porém, nao lhe parece suficiente
para traduzir todo o misterio da Eucaristía, que, segundo se
depreende, ultrapassa a realidade de qualquer rito náo-cristáo :
é, em termos precisos, com o corpo e o sangue de Cristo que os
fiéis entram em contato (comunháo) quando recebem respecti
vamente o pao e o vinho eucarísticos. Trata-se, pois, de uniáo
com a Divindade nao meramente espiritual ou mística (como ela
se dá nos cultos náo-cristáos), mas física, adquirida precisa
mente mediante o corpo e o sangue do Senhor recebidos como
alimento. Nesse contexto parece merecer atengáo especial o fato
de que o Apostólo afirma que o pao é a comunháo com o corpo
de Cristo (nao apenas a dá ou a representa) e, paralelamente,
que o cálice é a comunháo... (nao simplesmente a proporciona
ou simboliza).

Quanto ao fato de que o Apostólo em 1 Cor 11,23-28 fala


repetidamente de pao, referindo-se á Eucaristía, nao quer dizer
que negué a real presenga do Senhor: embora as aparéncias
de pao permanegam as mesmas depois de proferidas as palavras
da consagragáo (permanencia que nos habilita a falar sempre

— 367 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 4 e 5

de pao), Sao Paulo muito recomendava aos seus ñéis que dis-
cernissem do pao comum ésse «pao» que é o Corpo (cf. 1
Cor 11,29).

Em conclusáo, verifica-se que a real presenga de Cristo na


S. Eucaristía constituí urna proposigáo de fé freqüeníemente
atestada pela Sagrada Escritura. A Tradicáo crista, inihterrup-
tamente desde a era dos Apostólos, ensinou ésse dogma e déle até
hoje recebe sua vitalidade.

ANTONIO (Sao Paulo):

4) «Admitida a real presenca, Jesús terá coraungado do


seu próprío corpo na última ceia?»

O texto do S. Evangelho nao nos fornece dados suficiente


mente claros para resolver a questáo. Nao faltaram Padres e
teólogos que lhe deram resposta afirmativa (entre os quais
Sao Tomaz mesmo, na Suma Teológica IH q. 81, a.l); nao
sómente nao viam nisso absurdo algum, mas julgavam conve
niente que Cristo nos tivesse precedido no uso de consumir o pao
e o vinho eucarísticos. Tal razáo, porém, nao é estritamente
exegética; deve ceder á análise direta do texto sagrado. Ora
bons exegetas contemporáneos, baseando-se própriamente no
texto bíblico, julgam que Jesús nao comungou na quinta-feira
santa. Tal scnlcnca c sugerida pelos imperativos dirigidos pelo
Senhor a seus discípulos : «Tomai e comei,... bebei...». Num
ritual comum de ceia judaica, dizem-nos, o pai de familia se
dispensava de dar tais ordens, pois o seu exemplo mesmo era
exortacáo a que os convivas comessem e bebessem do alimento
sobre o qual ele proferia a oragáo. Ademáis, note-se que toda
comunháo sup5e sempre distingáo das pessoas que se unem; nin-
guém adquire própriamente comunháo consigo.
A resposta negativa ácima estruturada parece merecer a
preferencia.

III. DOGMÁTICA

E. S. E. (Rio de Janeiro) :

5) «Como se poderia tornar acessível a razáo o dogma


da presenga real de Cristo na Eucaristía? A 'transubstanciasáo'
de que falam os teólogos, nao será dependente de pressupostos
medievais, ja nao sustentáveis a luz da Física moderna?»

Ao tratar da Eucaristía, convém se lembre o estudioso de


que está diante de um «misterio da fé» (por definigáo), misterio

_ 368 —
O SIGNIFICADO DA TRANSUBSTANCIACAO

que nao se pode pretender provar, mas no qual se pode mostrar


nao haver contradigáo. Supondo a Revelagáo sobrenatural, o
católico entende únicamente evidenciar que o prodigio eucaris-
tico é perfeitamente realizável pelo infinito poder de Deus.

1. O significado do conceito de «transubstanciacao»

A presenga real do Senhor na Eucaristía é professada como


conseqüéncia da transubstanciacao do pao e do vinho, ou seja,
conseqüéncia da conversáo da substancia do pao e do vinho no
corpo e no sangue de Cristo.
O termo transubstanciacao, na linguagem teológica, só se
tornou corrente a partir do scc. XII, embora a realidade por ele
expressa já fósse professada pela S. Escritura e pelas subseqüen-
tes geragóes cristas. Ésse vocábulo representa todo o esfórgo da
inteligencia crista que, procurando no decorrer dos tempos urna
ilustragáo racional do depósito revelado ou do misterio da fé,
finalmente a encontrou, e encontrou muito profunda e harmo-
niosa.

Pergunta-se entáo : quais as idéias que se prendem ao termo


transubstanciacao?
Partamos das nogóes de substancia e acidentcs tais como
o bom senso no-las sugere. Em todo ser há fundamento para
distinguir entre um conjunto de notas contingentes, mutáveis,
tais como o tamanho, a cor, o peso, o sabor, etc., e um substrato
permanente que, conservando-se sempre o mesmo, dá unidade
e coesáo ao sujeito manifestado por suas notas sucessivas e va
riadas, ou seja, por seus acidentes. Ésse substrato é, em Filosofía,
chamado substancia (= o que sub-está, o que suporta). Em
qualquer pedago de pao, por conseguinte, há um conjunto de
notas acidentais, como a cor, as dimensóes, o sabor, a posigáo
no espago, notas que podem sobrevir, mudar-se e desaparecer
numa substancia que as sustenta; esta substancia, ninguém a
vé como tal, pois só pode ser apreendida através das notas aci
dentais que dáo a configuragáo externa a tal pedago de pao; a
substancia, porém, é urna realidade cuja existencia se impóe ao
raciocinio.
Pois bem; a fé ensina que, quando as palavras da consa-
gragáo sao pronunciadas sobre o pao, a substancia déste se
muda ou converte totalmente em substancia do corpo humano
de Jesús (donde o nome «transubstanciagáo»), ficando, porém,
os acidentes ou as notas externas do pao; sendo assim, sem
mudar de aparéncia, o pao consagrado já nao é pao, mas é
substancialmente o corpo de Cristo. Análogo fenómeno se dá
com o vinho ao serem pronunciadas sobre ele as palavras da

_ 369 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 9/1958, qu. 5

consagragáo; sua substancia se converte na do sangue do Senhor.


— Nao há dúvida, é éste um caso de intervengáo da Onipoténcia
divina que nao tem par em toda a ordem da natureza. Vé-se,
porém, que, embora único, o fenómeno da transubstanciagáo nao
é absurdo; antes, tem seus pontos de contato com as categorías
da filosofía e da inteligencia humanas.

A concepgáo ácima explica muito bem como o corpo de


Cristo possa simultáneamente estar presente em diversas hos
tias consagradas e em regióes múltiplas. Gom efeito, Jesús
nao está presente na Eucaristía segundo as suas notas acidentais
(entre as quais se enumera o ubi ou a localizac.no no espago);
o ubi do corpo eucaristico de Cristo é-lhe dado pelo pao (isto ó,
pelo acídente ubi do pao). Ora, já que os fragmentos de pao se
multiplicam com o seu ubi ou a sua localizagáo própria no espago,
vé-se que onde quer que naja um pedago de pao consagrado, ai
pode estar, e de fato está, o corpo eucaristico de Cristo.

Em Iinguagem precisa, dir-se-á : a presenga de Cristo euca


ristico é presenga no espado, mas nao é presenga espacial ou
local:

é presenca no espaco, porque, nao há dúvida, o Cristo euca


ristico entra nos nossos espagos, mas mediatamente, isto é, me
diante o espago que o pao ocupa;
nao é presenca espacial ou local, porque Cristo na Euca
ristía só existe como substancia, substancia da qual os aciden-
tes «quantidade» e «localizagáo no espago», por disposigáo da
Onipoténcia divina, nao exercem seu efeito próprio. A subs
tancia, enquanto substancia, é um puro principio de ser; como
tal, lela nao implica localizagáo; ela só entra em relagáo com
o lugar ou o espago mediante o acídente chamado «quantidade»,
que Ihe dá sua extensáo e as suas dimensóes próprias.
Isto faz que a presenga do Cristo eucaristico se possa mul
tiplicar (sem que o corpo de Cristo se multiplique), desde que
se multipliquen! os fragmentos de pao consagrados ñas mais di
versas térras do globo. Nao há bilocacao nem multilocacao do
corpo de Cristo, porque simplesmente nao há locagáo do mesmo,
mas apenas locagáo e multüocacáo do pao consagrado.

As idéias ácima também explicam que o corpo de Cristo


nao se parta nem se divida quando se divide a hostia consagrada.
O corpo de Cristo sob os acidentes do pao nem tem estensáo
nem quantidade próprias; por conseguinte, nao se pode dizer que
a tal fragmento da hostia corresponda tal parte do corpo de
Cristo (é obvio que as dimensóes de uma hostia pequenina nao

— 370 —
O SIGNIFICADO DA TRANSUBSTANCIAgAO

seriam comensuráveis com as do corpo do Senhor). Por conse-


guinte, quando o pao consagrado é partido, só se parte a quanti-
dade do pao, nao o corpo mesmo de Jesús.

Assim muitas hostias e muitos fragmentos de hostia nao


constituem muitos Cristos — o que seria absurdo —, mas muitas
«presengas» de um só e mesmo Cristo. Análogamente a multipli-
cagáo dos espelhos nao multiplica o objeto original, mas multi
plica a presenga désse objeto; também a multiplicagáo dos ouvin-
tes de urna sinfonía nao multiplica essa sinfonia, mas apenas a
presenga da mesma.

A luz de quanto acaba de ser dito, entcnde-se oulrossim


que, quando se deteriora o pao eucarístico por efeito do tempo,
dos sucos digestivos ou de um agente corruptor, o que se estraga
sao apenas os acidentes do pao : quantidade, cor, figura...
(estes acidentes é que evidentemente sao atingidos pela dete-
rioragáo); quanto ao corpo de Cristo, simplesmente deixa de
estar presente sob os véus eucaristicos desde que estes sofram
alteragáo tal que, segundo o bom senso, nao possam mais ser
identificados como tais; foi ás especies ou as aparéncias de
pao e vinho, nao ás de algum outro corpo, que Cristo quis asse-
gurar a sua presenga sacramental.

2. Transubstanciacao e Física moderna

A doutrina exposta nao sofre contestagáo por parte da


Física moderna.

Na verdade, a linguagem e a conceituagáo desta .nao inter-


ferem na linguagem e na conceituagáo da Filosofía e da Teolo
gía. Ao falar de substancia e materia, por exemplo, o físico nao
tem em mira a mesma realidade que o filósofo e o teólogo. O fí
sico descreve substancia, materia e, em geral, os corpos (a
massa) de acordó com as reagóes dos mesmos ou os fenómenos
que ele pode observar com os sentidos. O filósofo, ao contrario,
entende por substancia das coisas materiais urna entidade muito
real, mas só perceptível pela inteligencia. Os fenómenos, objeto
único de que se ocupa o físico, sao, para o filósofo, acidentes da
substancia; por conseguinte, as teorías da Física moderna, com
as suas grandes inovagóes, se referem áquilo que em Filosofía
se chama «acidentes», ao passo que a doutrina eucarística tem
por objeto a substancia, elemento de que as ciencias naturais nao
tratam, porque nao é objeto imediato de observagáo empírica.

Note-se, porém, que o magisterio da Igreja, professando


repetidamente a doutrina da transubstanciagáo (cf. Denzinger,.

— 371 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, gu. 5

Enchiridion 355. 430. 465. 581. 698. 884), de modo nenhum


associou o dogma a determinada escola filosófica. Embora os
conceitos de substancia e acídente tenham sido filosóficamente
elaborados pelo Aristotelismo, é no seu sentido obvio, acessí-
vel ao senso comum, que a Igreja entende estes dois vocábulos.
Com efeito, mesmo a gente simples apreende o que é urna subs
tancia : a realidade que faz que um corpo sepa e permanega tal
sob as mudangas de superficie (ou acidentais) que lhe possam
ocorrer. Assim como o comum dos homens compreende o que se
quer dizer quando se afirma que um corpo permanece substan-
cialmente o mesmo sob as variacóes acidentais que se lhe possam
infligir, assim entende tambcm o que se quer asseverar quando
se diz que, na Eucaristía, há mudanga de substancia, enquanto
as aparéncias acidentais permanecem invariadas.

3. Ainda uma dúvida

Mas ainda resta uma dificuldade : se há, de fato, transubs-


tanciagáo, tem-se um milagre em cada consagragáo eucaristíca.
Todavía consta da S. Escritura que os milágres realizados por
„ Cristo sempre foram evidentes, impressionando os sentidos (em
particular, a visáo e a audigáo) dos que os presenciavam. Por
conseguinte, caso se desse realmente o milagre da transubstan-
ciagáo, ele deveria chamar a atengáo dos homens, deixando o
pao de parecer pao e o vinho de parecer vinho.

, Responderemos que a Onipoténcia Divina é livre e soberana


na distribuigáo de seus dons; pode outorgar beneficios las cria
turas, ferindo os sentidos e impondo sua agáo pela evidencia,
sem exigir explícito ato de fé. Mas Ela também pode produzir
sua agáo sem chamar a atengáo da nossa sensibilidade, pedindo
fé da nossa parte. Acaso estaría Deus obligado a dispensar-nos
as'fsuas; gracas, fazendo^hos notar de cada vez por sinais ex
traordinarios 5 intervengáo de sua Bondade? Seria temerario
pretender isto. — Sao Paulo mesmo nos ensina que a glossolalia
(o falar línguas estranhas) é prodigio que Deus concede «nao
em favor daqueles que tém fé, mas em vista dos que nao tém
fé» (1 Cor 14,22); o que quer dizer que os portentos aptos a im-
pressionar os sentidos nao pertencem ao regime normal das rela-
góes de Deus com os seus fiéis.
Voltándo agora ao tema eucarístico, verificamos que a
S. Escritura atesta sobejamente que o Senhor quis fazer do
páp o seu corpo e do vinho o seu sangue (cf. textos ácima cita
dos, qu. 3); ousaremos replicar-Lhe que Ele nao tinha o direito
de o fazer sem nos dar um sinal externo dessa mudanga? Impo-
remos a Deus os moldes de suas gracas?

— 372 —
A COMUNHAO DO CÁLICE

Se, porém, alguém nao queira chamar a transubstanciagáo


«milagre», porque nao impressiona os sentidos corpóreos, nao
a chame tal; está livre de se abster déste vocábulo; nao queira,
porém, negar a realidade da presenca do Senhor por causa de
um jógo de palavras!

TITUBEANTE (Sao Paulo) :

6) «Porque é que a Igreja nao da aos fiéis a comunhao


do cálice consagrado? Nao mandón Jesús que todos comessem
da stia carne e bebessem do seu sangue (cf. Jo 6,54s)?»

A S. Comunhao foi distribuida aos fiéis sob as especies do


pao e do vinho até o séc. XH no Ocidente cristáo. No Oriente,
nao sómente entre os cristáos cismáticos, mas também em comu
nidades unidas a Roma continua-se até hoje a tradigáo de dar a
beber a todos do cálice, consagrado.
Desde o inicio, porém, da celebragáo da Eucaristía, os mi
nistros do altar muito se empenharam por evitar qualquer der-
ramamento ou perda das especies do vinho ou da preciosissimo
sangue.
Fazia-se passar geralmente um só cálice por todos os
comungantes : ou o cálice mesmo de que bebia o celebrante, ou
um cálice consagrado especialmente para a comunhao dos fiéis
e chamado em Roma «calix ministerialis» (caso fóssem muito
numerosos os comungantes, podiam-se usar varios déstes cáli
ces). Aos poucos, o costume de recorrer a um cálice próprio
para a comunhao dos fiéis parece ter sugerido um rito novo,
que visava diminuir o perigo de profanacáo da sagrada especie :
a taga dada aos leigos cóntinha vinho nao consagrado misturado
com algo do preciosissimo sangue. Éste uso parece ter entrado
em vigor no Oriente, desde época muito remota; a ele talvez
aluda o concilio de Laodicéia (cérea de 380) no seu can. 25,
cujo conteúdo nao é muito claro. No Ocidente o costume é ates
tado a partir do séc. XII pelos «Ordines Romani»; segundo éste
documento, os acólitos (clérigos), após a comunhao do cele
brante, apresentavam a éste alguns vasos com vinho, dentro dos
quais o oficiante langava parte do preciosissimo sangue contido
no único cálice consagrado durante a Missa.
Outro expediente utilizado para evitar profanagáo foi o
de se fazer que os fiéis bebessem do cálice nao diretamente,
mas mediante pequeño canudo («pugillaris, calamus, fístula»);
parece que até os clérigos usavam de tal recurso; podia haver
grande número désses tubozinhos.
Fora de Roma ainda outro rito foi adotado visando a mesma
finalidade que os dois anteriores : distribuia-se aos fiéis a sa
grada partícula de pao previamente mergulhada no preciosís-

— 373 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 6

simo sangue, evitando-se destarte que o cálice passasse de pessoa


a pessoa. Éste costume é mencionado pela primeira vez no 3' sí
nodo de Braga (675); deve-se ter tornado muito comum no
Norte da Europa. Na administracáo da S. Eucaristía aos doentes,
éste era por vézes o único rito exeqüível para se dar as duas
especies consagradas aos enfermos. Entre os orientáis, mesmo
entre os que estáo unidos a Roma, a praxe continua em vigor.

A partir do séc. XII, porém, foi declinando na Liturgia


latina o costume de se dar o vinho consagrado a todos os fiéis,
pois nao se conseguiam evitar pequeños incidentes na distribui-
c.áo da S. Comunháo; foi, portanto, um motivo de reverencia
ao SSmo. Sacramento que levou as autoridades da Igreja a dar
lentamente tal passo; o motivo ainda hoje é imperioso, princi
palmente ñas paróquias onde grande é o afluxo dos fiéis que
muito louvávelmente querem comungar durante a Missa.

Quanto ao. mandamento de «comer da carne e beber do


sangue do Senhor», consignado em Jo 6,54s, nao sofre derroga-
cáo alguma pela supressáo do «cálice dos leigos». Com efeito,
sob qualquer das duas especies consagradas, se acham presentes
o corpo, o sangue, a alma a a Divindade de Jesús Cristo. Ver-
dade é que as palavras da consagracáo do pao indicam apenas
a presenga do corpo, e as do vinho únicamente a presenga do
preciosíssimo sangue do Senhor; acontece, porém, que o corpo
de Cristo nao existe atualmente separado do seu sangue, mas a
éste reunido, assim como á sua alma e á Divindade, no céu; ora
Cristo se torna presente na S. Eucaristía tal como Ele se acha
na gloria; coma se sabe, o mesmo Jesús, presente no santuario
celeste por sua presenga natural, se torna presente no SSmo. Sa
cramento á guisa de substancia ou segundo a modalidade própria
que chamamos «sacramental» (cf. resposta á questáo anterior).
Em conseqüéncia, os fiéis que comungam apenas do pao consa
grado, nao deixam de receber o sangue de Cristo juntamente com
o seu corpo santíssimo. Sómente se na realidade natural, como
aconteceu durante a estada de Cristo no sepulcro, o corpo e o
sangue do Senhor estivessem separados, é que na Eucaristía as
palavras de consagracáo do pao nos dariam apenas a presenga
do corpo, e as de consagragáo do vinho únicamente a presenga
do sangue de Jesús.

De resto, enganar-se-ia quem julgasse que nos primeiros


sáculos nao se distribuía a S. Comunháo sob urna especie ape
nas : tal era, sem dúvida, a praxe adotada quando, logo após o
batismo, se administrava o SSmo. Sacramento las criancinhas;
dava-se-lhes sómente o vinho consagrado. O mesmo acontecia
na comunháo distribuida aos moribundos. Também é claro que,

— 374 —
O «REARMAMENTO MORAL»

quando os fiéis em dias de semana comungavam em casa toman


do as sagradas especies que haviam trazido da igreja no do
mingo anterior (caso nao raro nos dois primeiros sáculos),
comungavam apenas sob as especies do pao (pois sómente estas
se podiam guardar fácilmente em domicilio).
Embora fósse declinando, o costume de dar a S. Comunháo
sob as duas especies manteve-se em algumas paróquias até o
séc. XIV; conservou-se aínda por mais tempo na cerimónia de
coroagáo de um rei ou imperador e na Missa que o Sumo Pon
tífice celebrava todos os anos no domingo da Ressurreigáo. Em
alguns mosteiros de Ordens mais antigás o rilo protraiu-se até
os inicios da Tdadc Moderna. No sóc. XV um grupo de herejes
I-íussitas da Boémia (Europa Central) fez do «cálice dos leigos»,
que já caira em desuso, urna de suas reivindicagóes mais aca
loradas; a Santa Igreja concedeu entáo a S. Comunháo sob
ambas as especies para a Boémia no ano de 1433. Mais tarde
em 1564 o Papa Paulo IV, atendendo as instancias do Imperador
Ferdinando I e do Grao-Duque Albrecht da Baviera, outorgou,
sob certas condicóes, a mesma faculdade a algumas dioceses
do territorio germánico. As experiencias, porém, nao foram
satisfatórias, de sorte que o privilegio foi definitivamente re-
vogado na Baviera em 1571; na Austria em 1584; e na Boémia,
assim como no restante do orbe católico, em 1621.
A ab-rogacáo do «cálice dos leigos» nao prejudica em abso
luto os fiéis que recebem a S. Eucaristía; vem a ser exigencia
imposta pelo curso mesmo dos ncontccimcntos a piedade dos
cristaos, que cortamente nao desejariam ver exposto á profa-
nagáo o sacramento do corpo e do sangue do S&nhor!

IV. MORAL

AGOSHNHO (Barra do Piraí):

7) «Que dizer do movimento chamado 'líearmameiito


Moral'?»

Para poder apreciar devidamente esta instituigáo, propo-


remos, antes do mais, um esbógo biográfico e as principáis dou-
trinas do seu fundador.

1. O fundador e a ideología do Rearmamento Moral

O Rearmamento Moral deve sua origem ao pastor luterano


Frariz Nathan Daniel Buchman.
Buchman nasceu em 1878 na Pensilvánia (U.S.A.), de
familia oriunda da Suíga. Féz-se pastor luterano em 1902,

V7K
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS.* 9/1958, qu. 7

passando a dirigir pequeña igreja de seu credo. Após um inci


dente, viajou para a Inglaterra, onde concebeu a intuigáo muito
.nítida da utilidade de que cada homem conhega os próprios
pecados, os confesse a outrem, confie em Deus e atenda as ins-
piragóes do Espirito Santo. Voltou á patria, visitou o Oriente,
até finalmente estabilizar-se em Oxford, na Inglaterra, onde pas-
sou a viver com um grupo de estudantes, discípulos seus, que se
tornaram ardorosos pioneiros de novo Movimento.
Buchman ensinava um método de vida baseado sobre quatro
grandes valores («standarts of Life»): honestidade absoluta
(nos negocios), pureza absoluta (nos costumes), altruismo abso
luto, amor absoluto
... e sobre quatro práticas essenciais :
Sharing, que consiste em que cada individuo comunique aos
outros as próprias experiencias religiosas, confessando os peca
dos, as tentagóes, etc. (consoante Tg 5,16; Ef 4,25);
Surrender : abandono total á guia de Deus;
Restitution : reparagáo do mal cometido;
Listening to God's Guidance : docilidade, para que todos es-
cutem e sigam a diregáo do Espirito Santo. Para se poder
preencher éste quarto requisito, Buchman preconiza o Quict
time, ou seja, quinze minutos de recolhimento diario, a fim «de
se escutar calmamente no silencio a voz esquecida da conscién-
cia e obedecer-lhe», ou ainda a fim de que cada cidadáo «situé a
sua existencia pessoal num universo que já nao é apenas o do
espago e o do tempo, mas um mundo espiritual, que comporta
perspectivas totalmente novas».
Com ésses elementos Buchman visava restaurar entre os
seus discípulos o Cristianismo primitivo e renovar o mundo,
renovando as idéias, os homens e as nagóes.
O movimento buchmaniano tomou sucessivamente as de-
signagóes de «Group Movement», «Oxford Group Movemenb>,
por se ter propagado inicialmente entre os estudantes de Oxford,
e, a partir de 1939, «Moral Re-Armament»; donde a abrevia
tura M. R. A.
A data oficial de fundagáo do Rearmamento Moral é o dia 4
de junho de 1938. Famosa se tornou a grande assembléia rear
mamentista realizada em Holywood aos 19 de julho de 1939, á
qual compareceram 30.000 pessoas a representar trinta nagóes
congregadas sob o dístico : «Novos homens, novas nagóes, novo
mundo». Cada membro do grupo é essencialmente um Life-chan-
ger, ou seja, um missionário ardoroso, ávido de converter ou
transformar, quanto antes, a vida dos individuos e dos povos.
Éste grande anseio, expresso em discursos por meio de calo
rosos apelos e descrigóes ideáis de um futuro mundo mer-

— 376 —
O «REARMAMENTO MORAL»

gulhado na paz e na prosperidade, explica a vultuosa expansáo


do Movimento, que em breve se estendeu das Ilhas Británicas á
Escandinávia, á América do Norte, á Australia e á Nova Zelan
dia. Em 1945, após a segunda guerra mundial, retomou, de ma-
neira fulminante e com notável éxito, as suas atividades, forgo-
samente detidas pela catástrofe internacional. Hoje em día o
Rearmamento Moral conta um centro de difusáo em Mackinac
(Michigan) nos Estados Unidos, e outro em Caux-sur-Montreux
na Suíga, achando-se, de resto, implantado em quase todos os
países do mundo. O Movimento oficialmente declara nao ter
caráter religioso, isto é, nño professar dogma nem credo parli-
culai1; aceita, por conscguinlc, fiéis de todas as confissóes, os
quais poderáo, como dizem os rearmamentistas, tomar conscién-
cia mais viva de sua ideología religiosa própria.

2. Rearmamento Moral e Moral Católica

Os aráutos do novo Movimento enunciam notáveis resul


tados obtidos na pacificagáo de conflitos sociais, com satisfagáo
para as partes contendentes. Citam os nomes de chefes comu
nistas que abandonaram o marxismo para aderir a ideologia
rearmamentista, que seria a genuína chave para os problemas
sociais.
Na verdade, o Rearmamento Moral pode ter concorrido de
cisivamente para despertar a consciéncia de muitos homens
indiferentes ou imbuidos de puro materialismo. Isto, porém, nao
basta para que merega aprovagáo e seja tido como solucáo dos
males contemporáneos. Justamente por distinguir entre Moral
e Religiáo (daí chamar-se «Rearmamento Moral», sem explícita
crenga religiosa), por querer reerguer o homem no plano da
moralidade, fazendo abstragáo de qualquer confissáo precisa de
Deus, o Rearmamento toma posigáo falsa, embora aparente
mente honesta. Deus — e, note-se bem, o Deus único, que se
revelou por Crislo e pela lgruja — nao é mero complemento,
de caráter particular, que se possa dar a um programa huma
nitario concebido independentemente de Cristo e da Igreja.
Qualquer tentativa auténtica de reerguimento da sociedade tem
que ser iluminada desde o inicio nao sómente pela idéia de Deus,
mas também pela realidade de Cristo e da Igreja, que é insepará-
vel daquela idéia. Em caso contrario, o homem de certo modo
se opóe aos designios de Deus : «Quem nao é por Mim, é contra
Mim, e quem nao recolhe comigo, dispersa» (Le 11,23).
Além disto, apontam-se no Rearmamento Moral falhas par
ticulares, como sejam a comunicagáo (Sharing) de experiencias
interiores, abertura de consciéncia feita a qualquer pessoa,
mesmo entre rapazes e mogas; o perigo de se tomarem por ins-

— 377 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 7

piragóes do Espirito Santo as manifestagóes da fantasía ou das


inclinagóes pessoais concebidas durante o Quiet time, tempo coti
diano em que «se escuta a palavra de Deus». Em suma, o subje
tivismo impregna profundamente as práticas do Rearmamento.

Durante anos as autoridades da Igreja nao tomaram posigáo


definida perante o Rearmamento Moral; a muitos católicos sedu-
ziam os termos nobres do respectivo programa... Aos poucos,
porém, foi-se verificando que o Movimento nao pode deixar de
insuflar certo relativismo e indiferenca em materia de religiáo;
como liñ rearma mentistns que conscientemente se quercm imu-
niznr contra osle mal, ha tambóm muitos que se lornam víümas
dessa mentalidade. Em conseqüéncia, a Santa Sé houve por beni
baixar normas restritivas ao Rearmamento Moral.

Tal é a instrugáo do Santo Oficio publicada em 1955 :


«O Santo Oficio se admira por ver. católicos e mesmo eclesiásticos
procurarem a obtencao de íins moráis e sociais, ainda que louváveis,
no seio de um movimento que está bem longe de possuir o patrimonio
de doutrina, de vida espiritual e de meios sobrenaturais de graca pró-
prio da Igreja Católica. Notou-se ainda, com o maior assombro, o modo
como certos individuos, defendendo com entusiasmo exagerado os mé
todos e os meios propostos pelo Rearmamento Moral, parecem pensar
— conforme a impressáo que fazem — que estes sao mais eíicazes no
seio daquele movimento do que no seio da própria Igreja Católica.
Além disto, muitos véom no Rearmamento Moral um perigo de sincre
tismo e indiferentismo religioso. Por éste motivo o Santo Oficio repete
as diretivas seguintes :

1") Nao é conveniente que sacerdotes seculares ou Religiosos, e


muito menos Religiosas, participem dos encontros do Rearmamento
Moral.

2") Se em casos ou circunstancias excepcionais se torne oportuna


urna tal participacSo, a permissáo do Santo Oficio deve ser pedida ante-
cipadamente. Esta permissáo nao será concedida senáo a sacerdotes
doutos e particularmente prudentes, especialmente do ponto de vista
doutrinal e teológico.

3') Enfim nao é conveniente que leigos católicos aceitem postos


de diregáo no Rearmamento Moral.»

Em 1957 o «Osservatore Romano» lembrava que permane-


ciam válidas as normas ácima : aos sacerdotes nao explícita
mente autorizados pela Sta. Sé fica proibida a participagáo
ñas reunióes do Rearmamento Moral; quanto aos fiéis leigos,
nao lhes é lícito aceitar fungóes e cargos dentro désse Movi
mento. Justificando a admoestagáo, o jornal observava que o
Rearmamento «de tal modo obscureceu os principios elemen
tares da Religiáo que tornou manifestos e serios os perigos da
indiferenga» em materia religiosa.

— 378 —
A LICEIDADE MORAL DOS BAILES

Sobre o humanitarismo Ieigo, cf. «P. R.» 7/1957, qu. 16;


sobre a Moral leiga, cf. «P. R.» 7/1958, qu. 5.

PIEDADE (Curitiba) :

8) «O baile será permitido aos católicos? Ainda tém valor


certas proibicóes dos antigos com referencia ao assunto ou já
fizeram seu tempo?»

Um breve histórico do significado da danga em geral


ajudar-nos-á a avaliar os bailes.

1. Um esbozo histórico

Por «danga» entendemos urna sucessáo de movimentos do


corpo, principalmente dos pés, ritmados de acordó com um
tempo musical sugerido por canto ou por instrumentos aptos.
1. Tal exercício já estava em uso entre os povos primitivos,
inspirado geralmente por um motivo religioso. Como se entende,
nao raro conceitos supersticiosos e aberrantes davam ocasiáo á
execucáo das mais estranhas dangas.
Assim entre certas tribos da Australia, a danca tinha (e ainda tem)
por finalidade produzir urna especie de éxtase ou alta excitado psíquica
semelhantc á da embriaguez, durante a qual o dancarino se torna capaz
de realizar o que normalmente nao íaria, ou seja, perceber segundo
nova sensibilidade ou a distancia, proferir oráculos em nome da Divin-
dadc, «profetizar», etc.;
as dancas de guerra, em suas diversas modalidades, desempenha-
vam semelhante papel, visando despertar o entusiasmo (palavra deri
vada, em grego, de en + titeos, para significar endeusamento ou posses-
sáo do individuo humano por parte da Divindade); excitado pela danca,
o iniciado se tornava corajoso e empreendia urna especie de com'aate
simbólico contra poderes superiores, que ele julgava estarem tentando
a sua ruina;
as dancas agrícolas visavam provocar a descida dos espíritos bons,
que fomentariam o desenvolvimento e a frutiíicacáo das sementeiras;
as dancas ntógiens, em Reral, propunham-so, por meio de atos sim
bólicos, atrair do céu efcitos benéficos (como, por cxemplo, a chuva);
as dancas de iniciadlo representavam místicamente a morte e o re-
nascimento espirituais de um candidato as religióes orientáis «de miste
rios» ;
as dancas de amor, usuais ñas festas de noivado e casamento,
tinham muitas vézes por fim significar a fecundidade da mulher.

Embora inicialmente inspiradas por nobres sentimentos,


as dangas tendiam freqüentemente a degenerar em expressóes
de afetos desordenados. É o que bem se entende, se se considera
que os deuses celebrados pelos rituais pagaos nao davam aos
homens o exemplo de vida digna; conseqüentemente o culto a
éles prestado fácilmente se tornava ocasiáo para a afirmagáo
das paixóes de seus cultores. Os próprios escritores pagaos reco-

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 8

nheciam por vézes que as dangas populares nao eram senáo re-
presentagoes de revoltante lascivia (cf., por exemplo, Amiano
Marcelino, f 400, XIV 5,6). Tenha-se em vista o que foi dito
sobre as origens do Carnaval em «P. R.» 5/1958, qu. 9.

2. No povo de Israel, as dangas nao eram estranhas, como


bem atesta a Sagrada Escritura. Como é de esperar, tinham fre-
qüentemente caráter religioso (o sentimento religioso é dos que
mais movem o homem), servindo para expandir na presenca de
Deus veementes estados de alma : agradecimentos, adoragáo,
louvor...

Basta recordar os episodios scguintcs :

Maria, irma de Moisés, acompanhada por um coro de mulheres,


pós-se a tocar, cantar e dancar para exaltar o poder do Senhor, que
libertara da térra da idolatría o seu povo (cf. Éx 15,20s);
após a vitória de Davi sobre o íilisteu Golias — facanha teocrá
tica —, as mulheres de Israel de novo se reuniram em coro para cantar
e dangar (cf. 1 Sam 18,6s);
foi dancando e tocando tamboril que a filha de Jefté recebeu seu
pai que regressava de urna batalha, na qual o Todo-Poderoso interviera
vislvelmente (cf. 3% 11,3);
tornou-se famosa a figura de Davi a dancar, movido por santo entu
siasmo, por ocasiáo da transferencia da arca do Senhor para Jerusalóm
(cí. 2Sam6,14s);
os salmos 67,26; 149,3 falam igualmente das dancas rituais de
Israel;
diante do vitelo de ouro, falsamente cultuado, o povo nao hesitava
em cantar e dancar (cf. Éx 32,19).

Além disto, os judeus conheciam suas dancas ocasionadas por festas


familiares ou nacionais (cf. Jz 21,21).

3. Foi nesse mundo judaico-romano que se originou o Cris


tianismo. Éste nao se mostrou, em tese, avésso á danga.
É verdade que os antigos Padres da Igreja tiveram que recri
minar muitas vézes a tendencia de grupos de fiéis a imitar
os orgiásticos festejos dos pagaos; assim fizeram Sao Pedro
Crisólogo, Sto. Ambrosio, Sao Jerónimo, no séc. IV. Havia,
porém, dangas populares reconhecidas pelas autoridades ecle
siásticas como manifestagóes de sadia alegría por ocasiáo de
celebragóes profanas e até mesmo religiosas; Eusébio, bispo
de Cesaréia (f 339), por exemplo, refere como os cristáos dos
campos e das cidades acolheram com júbilo e danga a noticia
da liberdade religiosa finalmente outorgada por Constantino
em 313. Contra certos rigoristas, que tinham em mira o abuso
das dangas tal como se verificava no paganismo, alguns pre-
gadores cristáos observavam que a danga, executada com temor
de Deus (como fizera Davi), se podia tornar a expressáo da
graga divina existente na alma do cristáo. Comprovavam a licei-

— 380 —
A LICEIDADE MORAL DOS BAILES

dade das da«gas apelando para precedentes do Antigo Testa


mento : Is 5,1; Dan 3,24; Ez 6,11; SI 46, além dos já citados.
Em certas seitas gnósticas e heréticas da Antigüidade a
danca foi diretamente introduzida no culto sagrado e nos cemi-
térios; era a expressáo de um ardor fanático, contra o qual os
bispos e escritores cristáos tinham constantemente que admoes-
tar os fiéis.
Na Idade Media, a alma popular recorreu abundantemente
á danga e ás representares cénicas em geral, para externar
seu afeto religioso, tanto ñas ocasióes de alegría como ñas de
luto. Algumns dessas manifoslacóes foram nfirmacóo.s sadias do
um fervor que nao se contentava com as formas hieráticas da
Liturgia, mas fora dos templos sagrados criava «paraliturgias»,
autos e misterios, para continuar a se afirmar. Outras manifes-
tagóes que recorriam ao palco ou á danga, deixavam de ser lou-
váveis, chegando mesmo á tomar o aspecto de abusos irreveren
tes (talvez, porém, fóssem menos graves aos olhos dos medievais
do que aos do homem moderno, que tem o espirito critico muito
mais agugado) : tais eram a festa dos Loucos ou dos Asnos (no
dia dos SS. Inocentes), a festa da Pelota, a da «Bergerette», etc.
— A dor e a penitencia prorrompiam ñas procissóes de Flage
lantes, que, aplicando a si mesmos o agoite, désfilavam pelas
regióes da Europa por ocasiáo das calamidades públicas,... ñas
dangas epidémicas, fenómeno mórbido de pessoas que, repenti
namente tomadas pela furia de dangar, contagiavam outras...
A partir da época do Humanismo (séc. XV/XVI), que ins-
pirou a laicizagáo do homem e de suas atividades, a danga foi
perdendo o seu primitivo cunho religioso, para mais e mais se
tornar expressáo de sentimentos profanos, nao raro lascivos :
passou a se executar principalmente nos grandes bailes dos
salóes nobres e regios, nao tanto por grupos e coros como por
pares de um cavaleiro e urna dama; a principio aquéle tocava
apenas a máo desta; aos poucos, porém, tornou-se usual o abrago.
Além disto, as tradigóes folclóricas européias foram sendo aban
donadas, para se adotarem cerimónias e dangas dos indios ou
dos selyagens das térras recém-descobertas. Essas inovagóes, que
até hoje se vém multiplicando, acarretaram certa revolucáo na
moralidade da danga. Em conseqüéncia, as autoridades eclesiás
ticas tém considerado o baile como um problema de consciéncia,
sobre o qual se pronunciaran! nos últimos decenios a Santa Sé e
os bispos.

2. Unía aprecia£áo crista

Por si mesmo o baile nao é instituicáo ilícita ou intrinse-

— 381 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 8

camente má. Pode ser concebido qual manifestagáo de ánimo


nobre e artístico.

Contingentemente, porém, o baile pode tomar aspecto con


trario ao senso cristáo. É o que se tem dado nos últimos tempos,
quando industriosamente se estudam modalidades de danga
(gestos, movimentos, atitudes), vestiarios e música aptas a
excitar e entreter a lascivia, tornando quase impossível evitar-se
o pecado. A danga, de rito religioso que era nos seus primordios,
tornou-se rito irreligioso.

Sendo assim,

a) a Moral crista ainda reconhece a liceidade dos bailes


em que se observa o devido recato entre os participantes. Isto
na prática nao se verifica muitas vézes; ocorre mais fácilmente
em casas de familia ou em ambientes reservados do que nos
salóes franqueados a todo o público. O católico pode freqüentar
tais festas, desde que tenha a intengáo de se recrear (Deus e a
salvagáo eterna pairam ácima de um divertimento momentáneo).

b) A Moral crista condena os bailes abertamente liberti


nos,, em que sao de praxe vestes e atitudes impúdicas. A um
católico nao será licito freqüentá-los, a menos que a isto se veja
coagido por motivos imperiosos. Nao se poderiam justifica!" tais
bailes, dizendo-se que a consciéncia da sociedade moderna está
cauterizada e já nao considera malicioso o que outrora era tido
como tal; o cristáo sabe que o bem e o mal moral nao dependem
da apreciacáo dos homens nem da moda de um século, mas que
tém seu fundamento na Lei eterna de Deus manifestada pela lei
natural; por conseguinte, todo e qualquer divertimento que ex
cite a concupiscencia e as fungóes sexuais fora de tempo e opor-
tunidade é tido como um atentado contra a natureza ou contra a
instituigáo do Criador. Será, em qualquer época, condenável.

c) Há, por fim, bailes em que a licenciosidade, embora


nao seja de todo banida, é mais ou menos sujeita a controle
público, nao oferecendo senáo ocasiáo remota de pecado. — O
católico nao os freqüentará sem motivo especial; caso, porém,
haja causa justa, poderá déles participar, precavendo-se de ante-
máo contra os perigos que o possam assaltar. Essa causa justa
será, segundo os moralistas, a procura de urna ocasiáo de casa
mento, o desejo de evitar discordias graves entre esposos ou
familiares, ou a obrigagáo imposta pelos pais a filhos meno
res. ..

— 382 —
QUE É A MACONARIA ?

Os criterios para se definir se a ocasiáo de pecar é próxima


ou remota nao podem ser indicados de maneira geral e peremptó-
ria; toca em parte á consciéncia do individuo ou ao respectivo
coín'fessor avaliar o perigo, na base da sensibilidade e das expe
riencias da pessoa interessada. Em qualquer caso, nunca será
licito a um cristáo entregar-se conscientemente e sem motivo
serio a urna ocasiáo que para ele pessoalmente seja perigosa,
embora para outros nao se aprésente igualmente grave.
Os moralistas lembram nao convir aos sacerdotes e as ins-
tituigóes católicas promover bailes, ainda que sejam decentes e
destinados a um fim de beneficencia. As autoridades eclesiás
ticas proibiram formalmente tal praxe nos Estados Unidos e no
Canadá, onde ela havia entrado em vigor (vedando mesmo aos
clérigos comparecer a tais bailes promovidos por leigos); veja-se
o can. 290 do m concilio plenário de Baltimore (1886), canon
que foi de novo inculcado pela S. Congregagáo Consistorial em
31 de margo de 1916 e 10 de dezembro de 1917 (cf. «Acta Apos-
tolicae Sedis» 9 [1916] 147; 11 £1918] 17).

V. HISTORIA

HELENO (Maringá):

9) «Que é a Maconaria? Quais as suas relagoes com as


escolas de sabedoria antigás? Poderá um católico ser macón?»
A Maconaria vem a ser urna sociedade secreta, de caráter
internacional, que visa remodelar a vida dos povos dentro de
moldes estritamente humanitarios e leigos. Exporemos sucessi-
vamente as origens da Magonaria hoje existente, as principáis
teses doutrinárias que a orientam e, por fim, a atitude que pe-
rante ela compete ao católico.

1. Os inicios da Maconaria

A Magonaria, tal como hoje em dia existe, recebeu sua


organizagáo no séc. XVTIL A historia de sua origem, porém,
se prende á Idade Media. . .
Com efeito, nos séc. XI/XII registrou-se extraordinaria
atividade de construgáo (catedrais, mosteiros, escolas, casas de
beneficencia, pontes, etc.), de sorte que as corporagóes de pe
dreiros entáo existentes foram tomando importancia especial;
os bons arquitetos e pedreiros eram procurados por toda a parte
e dotados de privilegios, que por vézes tinham vigor internacio
nal; tanto os Papas (Nicolau m, 1277; Bento XII, 1334) como
os príncipes seculares favoreciam os construtores. Em conse-

— 383 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 9

qüéncia, estes adotaram o atributo de livres (— privilegiados)


ou franc-macons, e passaram a designar seu oficio como «arte
regia».
As corporagóes de pedreiros distinguiam tres graus de
membros : aprendizes, companheiros e mestres, que cosluma-
vam ser recebidos segundo ritual muito solene, no qual figura-
vam os símbolos distintivos da arte (compasso, esquadro, aven-
tai, etc.); juravam observar o segrédo profissional e eram ini
ciados nos sinais de reconhecimento mediante os quais se pode-
riam identificar entre si e, em conseqüéncia, proveí* em toda a
parte ao auxilio mutuo.
Eram severas as exigencias impostas a quem quisesse
entrar em tais corporagóes; pedia-se nao sómente idoneidade
profissional e moral, mas também fidelidade a Deus e á Santa
Igreja, de sorte que o bom «macan» ou pedreiro medieval era
simultáneamente um bom cristáo. Tal é o tipo da Magonaria
que se costuma chamar Maconaria operativa ou prática da
Idade Media.
No séc. XVI a ps.-Reforma protestante fez que perdesse
um tanto da sua voga a arquitetura religiosa; verificaram-se
também discordias internas ñas corporagóes, as quais natural
mente entraram em decadencia. Entáo, para restaurar o seu
prestigio, os grupos de pedreiros comegaram a admitir membros
honorarios influentes, pertencentes a altas carnadas da socie-
dade; na Inglaterra do sor. XVII era tidn como elegante entre
os nobres a moda de se inscreverem em um corpo de pedreiros.
Assim nesses grupos foi prevalecendo o elemento aristocrá
tico e intelectual, que havia de dar orientagáa totalmente nova
á antiga Magonaria. Esta, com efeito, deixou de ser própria-
mente técnica, para se tornar filosófica ou especulativa.
A evolugáo tomou sua face definitiva aos 24 de junho de
1717, quando tjuatro lojas magónicas de Londres, por inspiragáo
de um protestante francés, Teófilo Désaguliers, se coligaram
para formar a Grande Loja da Inglaterra, que atribuiu a si urna
fungáo primariamente filosófica ou doutrinária. — Foi encarre-
gado de redigir os Estatutos respectivos o pastor protestante-
Jaime Anderson, que em 1723 apresentou a primeira Constitui-
gáo da nova Magonaria, Constituigáo retocada pelo mesmo autor
em 1738. Esta Magna Carta é expressáo característica da menta-
lidade da época : procura estabelecer pacífica convivencia entre
os homens na base da «neutralidade» religiosa.

É muito interessante comparar o parágrafo intitulado «Deveres'


para com Deus e a Rcligiáo» da Constituicáo de pedreiros medievais.
com o inciso correspondente da Constituiciio de 1738.

— 384 —
QUE É A MACONARIA ?

No primeiro lé-sc :
«Teu dever primordial, como magon, consiste em seres fiel a Deus e
a Igreja e em te preservares dos erros e da heresia*.

O segundo reza :
«O macón, por sua profissáo, está obrigado a obedecer á Iei moral
e, se conhecer bem a sua arte, nao será nem um ateu estúpido nem um
libertino religioso. Mas, embora nos antigos tempos os macons fóssem
obrigados em cada país a pertencer á religiáo désse país ou dessa nacáo
qualquer que íósse ela, agora julgamos mals conveniente nao mais os
obrigar senáo á religiao na qual todos os liomcns concordan! entre si
deixando a cada um as suas opinióes particulares. Isto quer dizer que os
magons devem ser homens bons e verídicos ou homens de honra e pro-
bidade, embora diferenciados entre si por conviccoes c denominagóes
varias. Dosta forma a Maconaria w lomará o eenlro de uniáo c o mcio
de constituir urna verdadoira ami/.ade entro pcssoa.s que, rio oulio modo
ficariam foreosamento em perpetuo afaslamento urnas das outras¿.

A Grande Loja da Inglaterra fundada em 1717 se propa-


gou rápidamente, dado o prestigio político e internacional de
que gozava aquela nacáo do séc. XVIII: em meados déste a
Magonaria já havia penetrado em todos os principáis países da
Europa.
Como se vé, é vá qualquer teoría que pretenda atribuir
origem pré-cris.tá ou oriental ou existencia milenaria á Maco
naria : nem Lameque, nem Salomáo, o monarca construtor
israelita, nem o romano Numa Pompílio nem algum dos grandes
personagens da Idade Media pode ser tido como iniciador do
movimento, apesar do que se lé em alguns livros, que, fazendo
recuar as origens dn Maconaria, lhc querem granjear maior ve-
ncrabilidado e autoridade. — Tao pouco se poderia dizer que a
Maconaria é um instrumento criado pelo judaismo para destruir
a civilizagáo crista, embora parega inegável que os judeus, após
a Revolugáo francesa de 1789, lograram exercer grande influen
cia ñas lojas magónicas; estas, por sua vez, adotaram em larga
escala idéias, vocábulos e símbolos da Cabala, ou da mística
judaica panteista.

2. A ideología masónica

1. Na sua Filosofía especulativa a Magonaria professa a


autonomía da razáo humana. Por conseguinte, o racionalismo e
o naturalismo estáo na base do sistema.
Os textos oficiáis das Lojas aceitam a existencia de um
Deus (geralmente chamado «O Grande Arquiteto do Universo»),
pois éste fato se pode apreender pela razáo. Está claro, porém,
que nao reconhecem revelapáo sobrenatural; os dogmas, que
exigem fé, assim como os milagres, sao tidos como produtos da
imaginacáo humana : 'Nao ficaras sabendo na Maconaria senáo

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 9

aquilo que tu mesmo tiveres encontrado', promete um «Livro


do Aprendiz» macónico, resumindo bem o adogmatismo da seita.

O Deus professado pela Magonaria é o Deus dos filósofos


ditos «deístas» (Voltaire, Diderot, D'Alembert, principalmente):
no séc. XVIII uma corrente ideológica espalhou-se pela Ingla
terra, a Franca e a Alemanha, a qual reconhecia a existencia
de um Ser Supremo, mas afirmava pouco ou nada saber a seu
respeito, pois (como diziam os deístas) Deus nao se revelara.
Uma conseqüencia muito «cómoda» dessa atitude filosófica era
que o homem, na sua conduta de vida moral, embora nao se pro-
fcssasse atou, podía agir autónomamente, pois o Ser Supremo
práticamente nao interfería no curso déste mundo (1). Ora a
Magonaria adotou tal posigáo filosófica; práticamente essa ideo-
logia redunda em ateísmo, como comprovou a experiencia : em
muitas Lojas contemporáneas o título «Grande Arquiteto do
Universo» caiu em desuso ou é simples fórmula destituida de
significado real. Cada magon pode interpretá-la a seu bel-prazer,
identificando-a, por exemplo, com uma nogáo um tanto vaga de
Verdade, de Bem, de Belo ou com o ideal da Civilizagáo a ser
implantada neste mundo segundo os métodos magónicos. — As-
sim a Magonaria cultua, em última análise, a Humanidade apre-
goada como um grande Todo, um Absoluto, a servigo do qual se
deve colocar todo cidadáo. Tal culto é a religiáo universal e
superior que se imporá de maneira inelutável na era futura; para
essa religiáo superior é que convergem agora todos os homens
(teístas, panteístas, politeístas) que se queiram emancipar de
seus hereditarios «conceitos infantis» em demanda de um pro-
gresso cuja divisa soa : «Nem Deus nem mestre».
Está claro que, á luz desta ideologia, as nocóes de imorta-
lidade da alma, vida futura e sancáo postuma se tornam muito
pálidas ou mesmo nulas.

2. A Moral masónica prega a filantropía e a beneficencia


ou tolerancia para com todos. Na realidade, porém, a seila nao
rejeita o recurso ao furto, á conspiragáo dissimulada e ao as-
sassínio, desde que convenham aos planos macónicos. A Mago
naria auxilia eficazmente os seus membros, constituindo uma
rede de protegáo que, defendendo os interésses de uns, pode
ser extremamente nociva aos de outros cidadáos (totalmente
inculpados). Os historiadores, inclusive os magons, reconhecem
em geral que as grandes campanhas contra as instituigóes cristas

(1) Em llnRunKcm filosófica dlstlnguc-.se entro Trtsim» c Ooismn. AquOle


admite a ordem sobrenatural e a fé em verdades reveladas por Deu.», ao passo
que o Delsmj nada reeonhece alím do que a razao humana pode apreender.

— 386 —
QUE É A MACONARIA ?

e o clero tém sido freqüentemente fomentadas pela Magonaria :


assim a supressáo de Ordens Religiosas, de escolas católicas, a
confíscagáo dos bens da Igreja, os movimentos pró-divórcio,
pró-laicizagáo do ensino, dos hospitais, dos quarteis, a campa-
nha em favor da cremagáo de cadáveres, etc. Na segunda metade
do séc. XIX as Lojas travaram urna luta cerrada contra a Igreja,
principalmente nos países de civilizacáo latina (Franga, Bélgica,
Italia, Portugal, América Central e Meridional).

3. Nao obstante o seu racionalismo, a Magonaria apresenta


(quase paradoxalmente!) um aspecto místico assaz acentuado.
Segué um ritual solene em que cerimónias simbólicas, sinais e
emblemas ocorrem com profusáo, inspirados parte pelos ritos
das antigás religióes orientáis e gregas de misterios, parte pela
Biblia e o Cristianismo, parte pelos usos das corporagóes medie-
vais de pedreiros.

A adopgáo désse ritual na Maconaria se explica pelo íato de que no


séc. XVIII, juntamente com o racionalismo, estavam muito em voga as
seitas ocultistas e a Cabala judaica, seitas que durante a Idade Media se
formaram amalgamando idéias e usos do esoterismo antigo. Por estranho
que isto pareca, o ocultismo, com a sua mística, se combina com o racio
nalismo, pois também bajula o orgulha humano, promctendo urna sabe-
doria que eleve o iniciado ácima do comum dos moríais, ou seja, a quin-
tesséncia da sabedoria de todas as épocas e de todos os povos. Ademáis
o racionalismo estéril, depauperante, e o misticismo aberrante, fanta-
sista, sao manifestacoos congéneres da decadencia do espirito c da cul
tura de urna época.

As cerimónias usuais na Magonaria servem para inculcar


os principios e as aspiragóes da seita. Tres sao os graus de intro-
dugáo na Loja : o do aprendiz, o do companheiro e o do mestre.

Aprendiz é o cidadáo que, libertando-se da servidáo e da


cegueira do mundo profano, abre os olhos para a «verdadeira
luz», a da «Estréla cbamejante» (parodia da estréla de Belém).
Realiza assim urna especie de purificagáo intelectual e moral,
dispondo-se a ser «um pensador e um sabio».

A seguir, o candidato passa «entre as duas colunas (Boaz


e Jakin)», tornando-se companheiro. Estuda entáo assidua-
mente as ciencias e as artes liberáis, preparando a sua «divi-
nizagáo» ou consumacáo na Humanidade pura... É-lhe reco-
nhecida a superioridade sobre todos os profanos, assim como a
serenidade característica dos que se aproximam da perfeigáo
(essa serenidade é simbolizada por um cubo entregue ao can
didato; note-se que o. cubo é urna figura que está sempre em pé,
sempre igual a si mesma).

— 387 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958, qu. 9

Por fim, dá-se a elevagáo ou transfiguragáo ou divinizagáo


do iniciado, que recebe conseqüentemente a dignidade de Mestre.
Éste é considerado morto a todos os preconceitos e vicios do
mundo profano e regenerado para urna vida nova. Está pronto
a tudo sacrificar, mesmo a vida, no combate contra os poderes
inimigos (a superstigáo, o fanatismo, o despotismo). Como in
signia, é-lhe entregue urna prancheta de desenho, a simbolizar a
tarefa do magon perfeito, que é a de construir o edificio da socie-
dade futura, numa fraternidade universal e cosmopolita, eman
cipada de dogmas.
A iniciagáo nesses diversos graus se faz em ambiente de
misterio e terror mediante severos juramentos de fidelidade e
segrédo, sob \a. ameaga de morte pela espada. Em algumas Lojas
se acrescentam aos ritos comuns práticas inspiradas pela alqui
mia e a magia.

3. A atitude da Igreja

Nao se pode deixar de reconhecer a oposigáo radical vigente


entre ja ideología magónica e a doutrina católica : aquela é essen-
cialmente racionalista, ao passo que esta se volta toda para o
sobrenatural.
Nao admira, pois, que, desde Clemente XII (1738) até
Leáo XIII (1884), nove Papas, em doze pronunciamentos suces-
sivos, tenham condenado a seita, denunciando o seu aspecto en
gañador ou satánico. Nos últimos tempos, havendo cessado a
animosidade aberta entre católicos e magons, surgiu em muitas
pessoas a idéia de possivel conciliagáo entre a Sta. Igreja e a
Magonaria, idéia que até hoje vem sendo repetidamente pro
posta. Nao poderia a Igreja coordenar as suas fórg¡as com as da
Magonaria no plano da beneficencia humanitaria, visando úni
camente um^progresso mais acelerado da cultura e da civili-
zagáo?
A tal propósito dove-se observar o seguinte :
No séc. XVni, alguns magons influentes tentaram reorga
nizar a Magonaria nos seus moldes originarios, moldes das corpo-
ragóes medievais, que eram inegávelmente católicos. Nao o con-
seguiram, porém, pois o mal já penetrara longe demais na socie-
dade. Após o reerguimento da Magonaria subseqüente á Revo-
lugáo francesa de 1789, a sucessáo dos acontecimentos mostrou
nao haver possibilidade de conciliagáo.
Contudo, finda a guerra de 1914/18, alguns magons trouxe-
ramí de novo á baila o plano de urna aproximagáo em relagáo
ao Catolicismo. O líder André Lebey, muito popular ñas Lojas,
convidava «os que sentiam necessidade de um culto» a irem
«ao ninho comum : a religiáo católica». Rene Guénon tachava

— 388 —
QUE É A MACONARIA ?

de «degenerada» a organizagáo magónica de seu tempo e pre-


conizava u'a Magonaria restaurada de acordó com as suas ori-
gens católicas. Por fím, Albert Lantoine, membro do Supremo
Conselho do Rito Escocés, no ano de 1937 entrou em diálogo
com o Pe. Berteloot S. J.; num opúsculo intitulado «Lettre au
Souverain Pontife» propunha á Igreja como que urna «tregua»
para se constituir urna frente comum contra os perigos do totali
tarismo e do marxismo, que, conforme Lantoine, ameagavam «os
dois cultos». As idéias déste autor, embora tenham despertado
simpatía entre varios de seus correligionarios, nao encontraran!
apoio por parte das autoridades das Lojas, de sorte que Lantoine,
antes de morrer, abandonou toda atividade masónica. A Igreja,
do seu lado, dcclarou, por um decreto do Sto. Oficio datado de
abril de 1949, que as disposigóes (condenatorias) do Código de
Direito Canónico referentes á Magonaria nao haviam sofrido
mudanga.

Para que urna conciliacáo se pudesse dar, seria preciso que


a Magonaria renunciasse a mais de dois sáculos de laicismo e
ateísmo, e retomasse seus moldes medievais, como ainda dese-
jam alguns magons tradicionalistas. Tal reestruturagáo, porém,
parece totalmente utópica! O Pe. Berteloot verificava nítida
mente : «A Magonaria nao tem mais principio algum que possa
fundamentar um acordó religioso qualquer».

Todavia, para provar a possibilidade de urna alianga, objeta-


-se por vézes que o Papa Pió IX, assim como bispos e sacerdotes
famosos no Brasil, aderiram á Magonaria (entre estes, apon-
tam-se o Conde de Irajá, bispo do Rio de Janeiro; D. José Joa-
quim de Azevedo Coutinho, bispo de Olinda; o cónego Januário,
Freí Caneca, Frei Montalverne...).

Diante desta dificuldade, será preciso lembrar que, no


tocante a Pió IX, há equívoco comprovado, ou seja, confusáo dos
nomos de Giovanni Ferroti Mastai (jovom libertino do Roma
e magon reconhecido) e de Giovanni Mastai-Fcrrctíi (bispo de
Imola e posteriormente Papa Pió IX). O primeiro autor que fez
a identificagáo dos nomes, Carlos Gasola, retratou-se devida-
mente no jornal «Positivo» de Roma aos 18 de junho de 1857.

Quanto aos demais eclesiásticos citados, ,náo se nega que


tenham pertencido a Magonaria. Notem-se, porém, as circunstan
cias em que se lhe agregaram : viveram geralmente no inicio do
século passado, por ocasiáo do movimento em favor da indepen
dencia do Brasil. Ora a Magonaria naquela época propugnava
poderosamente esta causa, sem ter caráter nítidamente anticle
rical. Tal atitude foi suficiente para que os mencionados sacer-

— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 9/1958, qu. 9

dotes procurassem as Lojas, visando conseguir mais fácilmente


o ideal da independencia nacional. Aderiram, portanto, á Mago-
naria por causa de urna campanha nacionalista comum a todos
os patriotas, nao por' causa das idéias específicas da seita.
Acontecía aínda no sáculo passado que as proibigSes da Santa
Sé referentes a Magonaria nao recebiam o «Beneplácito» do Go-
vérno regalista do Brasil, de sorte que a muitos cidadáos hones
tos (mesmo eclesiásticos) podia parecer que nao obrigavam em
consciéncia (conclusáo esta objetivamente errónea, pois as leis
da Igreja nao precisam de confirmagáo civil para atingir a cons
ciéncia dos católicos). — Donde se vé que a realidade da historia
mesma nao desmonte <i incompatibilidade existente entre filoso
fía masónica e doutrina católica.

CORRESPONDENCIA MlODA
A. F. L. (Recife): Caro amigo, nao há motivo para se abalar. As
razóes apresentadas por seu interlocutor contra o celibato do clero, por
mais capciosas que sejam, nao passam de sofismas, como V. S. depreen-
derá de urna se¡«na análise das mesmas :

1) "O matrimonio é um direito natural". — Sim. Disto se segué


que também é urna obrigacáo? Nao ; a conclusáo ultrapassarm as pre-
missas. Do texto de Gen 1, 28 ("Crescei e multiplicai-vos...") decorre
apenas que a coletividade do género humano deve prover á propagacao
da especie — coisa que se pode obter sem que todo e qualquer uidividuo
se case.
"O matrimonio é um direito natural". Muito bem. Mas poderia o cris-
táo dizer que vive na ordem meramente natural, guiado exclusivamente
por criterios naturais? Nao; o cristáo foi elevado a um plano sobrenatur
ral plano que Sao Paulo diz ser por vézes inintehgivel ao homem psí
quico" (orientado pela mera natureza), mas plenamente compreensivel
a quem tem o Espirito de Deus (cf. 1 Cor .2,14s).
Pois bem; na ordem sobrenatural estáo em vigor os seguintes prin
cipios: o matrimonio é algo de muito santo, instituicáo natural que Cristo
elevou a nova dignidade, tornando-a sacramento, jsto e, canal comumeador
de gracas e santidade aos cónjuges (cf. Ef 5,32). Quanto ao celibato
abracado por amor ao Reino dos céus, constitui umavotaSM aínda mais
nobre e bela do que o matrimonio (cf. 1 Cor 7,1 8. 25-28. 38-49; Ht 19,12) :
permite a vida una, indivisa, de adesáo ao Senhor: «Aquele que nao é
casado, cuida das coisas do Senhor, em como há de agradar ao Senhor.
Aquéle, porém, que é casado, cuida das coisas do mundo, em como ha üe
agradar á mulher..." (1 Cor 7,32s). Éste ponto de doutrina se acha
desenvolvido em "P. R." 4/1957, qu. 7¡ 7/1957 qu. 7.

2) Mas "é mtelhor casar-se do que abrasar-se (em concupiscencia)"


diz o Apostólo em 1 Cor 7,9. — E se alguém, por graca de Deus, nao se
senté abrasado no celibato?... Pode crer que também isto se dá. A
virgindade é dom de Deus, dom que o Senhor outorga realmente quando
chama alguém ao sacerdocio entre nos. O sacerdote que tenha sido or
denado mediante comprovados sinais de vocacáo, sabe que, da parte de

— 390
CORESPONDÉNCIA MIÚDA

Deus, nao lhe faltará a grasa de estado necessária para ser fiel (as que
das nada provam em contrario, pois a graca nao extingue a liberdade
de arbitrio).

3) O fato de que a Igreja, por instituigáo de Cristo, é contraria á


dissolucáo do matrimonio, nao significa que ela deva mandar a todos os
seus filhos que se casem. Bem se vi que os criterios que levam a repudiar
o divorcio, nao tém que ver com os criterios que levam a recomendar
o matrimonio a determinado individuo.

4) Seu estimado interlocutor apela para o Antigo Testamento :


Lev 21,13s; Ez 44,22. — Seja-nos permitido perguntar: Se o Antigo Tes
tamento vale ao pé da letra para o cristáo, porque é que o distinto inter
locutor nao ohservn todas as domáis p rose libóos da l.i-i d<> MnLsi's: o n;-
pouso lio Hallado, a flint¡n<;ñii enln; animáis punís ■• impuros, as |iurifi-
cacóes rituais para quem baja tocado um cadáver, um leproso, c a indu
mentaria sacerdotal com seu efod? Será que nosso irmáo separado nao
aceita a explicagáo de Sao Paulo aos Gálatas, a qual nos diz que, para
quem quer voltar á Lei de Moisés, de nada servem o Cristo e a Redengáo?
"Separados estáis de Cristo, vos que vos justificáis pela Lei : da graca
tendes caído" (Gal 5,4) — Em particular, o sacerdocio do Antigo Tes
tamento com suas instituicóes cedeu ao do Novo Testamento, conforme
S. Paulo. ,
O caro oponente afirma que urna parte obscura da S. Escritura deve
ser entendida pelos trechos claros concernentes ao mesmo assunto. Ótima
norma de exegese ! — Ora nos, cristáos, dizemos que os textos obscuros,
típicos, sao os do Antigo Testamento e que os do Novo Testamento sao
mais claros, pois "o fim da Lei é Cristo" (Rom 10,4); todo o Antigo
Testamento, portante, deve ser visto á luz do Cristo, isto é, do Novo
Testamento, e nao vice-versa. Parece, porém, que o amigo contendente
quer justamente interpretar o Novo Testamento (1 Cor 7; Mt 19,32) a
luz do Antigo.

5) A "irmá" mencionada em 1 Cor 9,5 significa, como julgam os


melhores «xegetas, urna crista que provia as necessidades dos Apostólos
em viagem. Caso, porém, significasse "esposa", a passagem citada nos
lembraria apenas aquilo que sabemos: alguns (muitos ou poucos?) Apostó
los se haviam casado antes de ser chamados por Cristo. Disto nao se segué
preceito algum para nos. Sao Joáo era virgem. Ademáis o Senhor acon-
selha nao a todos, mas a quem tenha o chamado interior, abandone ate
mesmo a esposa para poder dedicar-se inteiramente ao Reino de Deus:
"Se alguém vier a Mim e nao aborrecer seu pai, sua máe, una esposa,
seus filhoH,... nao pode ser meu discípulo" (Le 14,26; cf. Le 18,29).
Sendo assim, bom irmáo, tranqüilize seu interlocutor. Cristo esta com
os Apostólos e seus sucessores até a consumagáo dos séculos (cf. Mt 28,20).

DUVIDOSA: Para resolver sua questáo, tenha em vista a seguinte


premissa :
Nao é lícito a um católico colaborar para a difusáo ou o prestigio de
urna crenca náo-católica, pois a Verdade, que o católico professa em seu
Credo tem direitos inalienáveis; nao pode ser equiparada ao erro, nem
mesmo em nome da "boa vontade", que no caso seria mero sentimenta
lismo, indigno da natureza humana.
Sendo assim, vé-se que em tese nao é permitido a um católico auxiliar
campanhas e obras promovidas por denominacóes náo-católicas, mesmo
que se destinem a praticar a caridade; geralmente tais campanhas re-
dundam em prestigio para a seita náo-católica e, conseqüentemente, em

— 391 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 9/1958

propaganda para o erro doutrinário. Se, em caso excepcional, a obra de


beneficencia náo-católica nao implicasse conseqülncia religiosa alguroa,
já nao haveria empecilho em que o católico, por motivos imperiosos e na
falta de outra obra, colaborasse com ela. Contudo lembre-se o fiel de que
lhe sao oferecidas sobejas ocasióes de praticar a caridade em jnstituic.5es
genuinamente católicas, instituisóes realmente necessitadas, que dos cató
licos esperam o auxilio oportuno.

A respeito da participacáo de uin católico em cerimónias religiosas


de seitas nao-católicas, distinga-se: se essas cerim&nias t§m caráter reco-
nhecidamente religioso, o católico nao pode assistir a elas, pois éste seu
gesto equivaleria de certo modo á renegagáo da Verdade; o simples fato
de que um católico compareca a tal cerimónia á semelhanca de um mem-
bro da seita, ja ó urna ofuscacáo da Verdade, já pode ser tomado como
assentimento ao erro. — Dado, porétn, que a cerimónia religiosa seja
comumente considerada como mero ato social, que nao implica profissáo
de algum credo religioso, é lícito ao católico assistir a tal ato, desde que
tenha motivos serios para isto; nao lhe será permitido, porém, exercer
papel ativo em tal cerimónia.

Sobre o índice dos livros proibidos, veja "P. R." 6/1957, qu. 10.

A respeito da descida de Cristo aos "infernos", cf. "P. R." 8/1957, qu. 2.

PETRUS ROMANUS (Rio de Janeiro): As suas perguntas, prove


nientes de espirito táo fino, deram muito prazer. Há semanas que aguar
damos a prometida oportunidade de.lhe responder pela palavra oral; nao
nos foi dada. Já que numerosas sao as questóes do bom amigo e dispomos
de pouco <espac.o na revista, nao julga oportuno indicar-nos um enderéco
ao qual possamos remeter a resposta pelo Correio? Ou marcar algum en
contró pcssoal ?

A respeito da fé, saiu urna elucidagáo em "P. R." 8/1958, qu. 2.

D. ESTBVAO BETTENCOURT O.S.B.

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