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Cultura Contemporânea
Artur Alves, 2001
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................4
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................30
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................32
Steiner: Leitura(s) 4
INTRODUÇÃO
(Isaac Disraeli)
(George Steiner)
A que se poderia referir este conceito que não às palavras de Isaac Disraeli? O
analfabeto funcional sabe ler, escrever, fazer contas, mas não poderá "ver" e exercer a
arte da leitura, do pensar ou da escrita. As responsabilidades de um sistema educativo
são, recorde-se, preferencialmente apontadas a este nível: um sistema de ensino,
segundo o Governo, tem a função de formar cidadãos e trabalhadores válidos, livres
(vastíssima questão: a liberdade e a escrita) e plenamente conscientes do Mundo. Como
se compreende, uma crise da leitura advém justamente da incapacidade de comunicar in
absentia, da pura e simples recusa, por repulsa, do Outro autoritário (Steiner não deixa
de nos lembrar que a palavra "autor" está presente em "autoridade"), seja porque o
igualitarismo cria anticorpos contra esse "autoritarismo", seja por liminar rejeição da
alteridade. Quer dizer: a arte de ler é algo que também é necessário aprender, sendo que
tal aprendizagem me parece ser, por maioria de razões, indirecta, já que a pedagogia
actual não procura, decerto, que tão poucos se dediquem à leitura. Voltar-se-á a este
assunto, mais aprofundadamente, na Primeiro Parte deste trabalho.
Acresce a esta problemática algo de ainda mais profundo: como tratamos a nossa
linguagem? O que fazemos com ela? Como a preservamos, como a transmitimos, como
a alteramos? Em Steiner, estas interrogações constituem como que um basso continuo,
quando ele nos fala das "doenças da linguagem" e da "crise da educação",
argumentando que, tendo a literatura e a escrita em geral contribuído para a formação e
cristalização das línguas, perder a capacidade e o interesse pelos grandes autores
equivale a virar costas, não apenas a um passado histórico a glorificar (fonte de
abomináveis nacionalismos), mas sobretudo à herança mais sublime e mais humana, ao
cimento comunitário de cada povo e, mesmo, a um imaginário comum verdadeiramente
fundador da cultura.
George Steiner afirma que há figuras, alusões, metáforas absolutamente
universalizadas na cultura, enraizadas na poesia e na prosa, na escultura e na música,
preservadas mesmo nas línguas, na sua estrutura gramatical e nas suas expressões mais
coloquiais - e como tal, menos postas em causa -, realidades essas que são, cada vez
mais, postas de parte, quando não completamente ignoradas e já perdidas para sempre
por muitos. E essas "metáforas contínuas" da cultura, desde sempre transmitidas pelas
artes, que são um pilar fundamental da civilização ocidental, de lugar- comum dos
círculos da alta cultura europeia e da nata artística ocidental desde a Antiguidade, são
condenados, por inaudita falta de audiência, às notas de rodapé cada vez mais chãs das
Steiner: Leitura(s) 6
nossas edições dos clássicos. Objectar-se-á, com alguma justiça, que a nossa cultura
massificada está organizada em volta dos mass media, aos quais não se pode atribuir a
responsabilidade de evitar esse desaparecimento. Na verdade, o que se poderia apontar
aos mass media contemporâneos seria alguma falta de cuidado no uso da língua: se os
olhos do mundo se encontram virados para eles, a questão pode ser posta ao nível mais
pragmático possível, ou seja: os novos guardiães da norma linguística são eles - pelo
menos para a mais substancial parte da população -, e isso torna-os, de facto,
responsáveis, ainda que recusem tal responsabilidade em nome das lógicas de
mercado... ou outras... A noção de responsabilidade aqui adoptada corresponde ao termo
answerability, no sentido de answering answerability e de responsible response, usados
por Steiner em Presenças Reais e traduzidos por Miguel Serras Pereira como
«responsabilidade» (vide texto em epígrafe). Alude-se a um processo com dois
momentos (1) à acção exercida por uma leitura, no sentido lato do termo (não
meramente verbal), sobre o leitor/fruidor/espectador e (2) ao modo como este último
toma o objecto como seu - a sua reacção/resposta posterior à leitura. Paralelamente,
qualquer ser humano inscrito numa comunidade recebe dela algo que passa a ser "seu",
i.e., passa a "responder por" isso. Não deverá ele assumir a "responsabilidade" de passar
essa herança em toda a sua plenitude? A preservação da língua também passa pelos
falantes.
Já o acto de leitura propriamente dito é um acto solitário, uma manifestação de
liberdade que ocorre em privado, ergo absolutamente não- comunitário no sentido
presencial do termo. Na verdade, não se nega a co- presença de consciências, mas tal
presença está obviamente relacionada com (1) uma suspensão da "presença física" de
terceiros, ou pelo menos a suspensão da comunicação com um terceiro e (2) a aceitação
da mais completa das alteridades, presentificada num objecto (livro - o carácter
evocativo, mnemónico mas re- figurativo da escrita é justamente o tema do poema de
Yeats em epígrafe), um "absolutamente Outro". A decisão pelo isolamento é um acto de
liberdade, uma afirmação de escolha, tão afastada do plano da determinação empírica
como o próprio acto de criação artística (no sentido em que ambos os actos poderiam
simplesmente não ser, uma vez que são resultado de decisões autónomas). Não deixa de
ser curioso que esta "identificação" da leitura e liberdade seja documentada por Steiner
Steiner: Leitura(s) 7
1
Voltaremos a este ponto mais adiante. Trata-se de um assunto abordado no livro On Difficulty and
Other Essays.
2
Quando aqui se fala de "texto "e "leitura", tem-se presente que, embora tendo como horizonte imediato
o verbal, é possível alargar estes termos a outros códigos semióticos. Tenta-se ressalvar o carácter inter-
semiótico da cultura e das "metáforas contínuas".
Steiner: Leitura(s) 8
Capítulo I:
DA PRESERVAÇÃO DA "BOA LEITURA"
3
In Ricoeur, Paul, Du texte à l'Action, Essais d'Herméneutique, vol. II, Paris, Seuil, 1986, pág., 115
Steiner: Leitura(s) 9
Por ser pura realização, pura construção humana, a obra de arte - não podemos ainda, e
talvez não seja de utilidade indiscutível, delimitar definitivamente o campo a qualquer
dos ramos da arte - é propriamente a manifestação do humano, do «dur désir de durer».
«Num sentido perfeitamente concreto, as linhas que delimitam [a arte] são uma
extensão desconhecida na direcção do futuro.»4 A liberdade do Homem é, assim,
projectada no futuro, cada vez mais indefinidamente à medida que a capacidade dos
dispositivos mnemónicos da Humanidade aumenta exponencialmente. Retenhamos
deste último ponto a ponte entre a arte e o desejo de perdurar na memória dos homens.
Afirma Steiner: «Não há literatura, arte ou música estúpida que perdure.»5 A
questão, na realidade, não se afigura assim tão simples... O problema da distinção entre
"boa" arte e "má" arte não se coloca ao nível chão (e ridículo) da comparação entre uma
música (?) de Zé Cabra e uma ária de Puccini, mas é grave e perdura por décadas
quando se pretende comparar ou avaliar os génios de Wagner e Verdi, por exemplo
(toda uma geração de melómanos nacionalistas alemães e italianos contemporâneos dos
compositores se digladiaram ao som de Aïda e de Tannhäuser com considerações
estéticas, filosóficas e políticas de toda a sorte). Não haverá nada, a não ser talvez a
evolução das audiências de determinada obra ao longo do tempo (e mesmo esse será, de
todos os critérios, o mais usado e menos consensual), ou a persistência do fascínio por
um dado objecto artístico, que nos indique a qualidade imutável da arte. Obras
largamente apreciadas hoje não passarão de sombras amanhã, memórias distantes de
manchas de criação lavadas pelo tempo, enquanto, por estranho efeito purificador e
decantador do mesmo, esquecidas obras- primas verão sua qualidade exaltada,
colocadas solenemente no panteão da Arte. Na minha opinião, as artes podem produzir
prolixamente mas, para a enorme torrente daí resultante, os abstractos factores da
liberdade e criação humanas acabam por ser as pedras de toque da resolução do estatuto
da obra de arte: a criação mais original, a obra mais rica e mais livre - ou seja, mais
aberta e sensível àquilo que o mundo tem para dar ao Homem como criador - perdura.
São, de facto, inteligência de.
Igualmente, a boa leitura, ainda que de boas obras se diga, é algo de mui difícil
análise. Donde, por um lado, o próprio surgimento da crítica como actividade literária,
metatextual e, por outro, a acumulação e estratificação, quando não simples
"soterramento" da obra original, dos comentários mais variados no estilo e no sentido.
4
in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág.35
5
idem, pág.22
Steiner: Leitura(s) 10
Este seria um problema fácil de resolver, dessem os próprios artistas as chaves para a
sua obra ao leitor; enfim, se alguns o fizeram, não foi decerto a maior parte, e desses
poucos ainda menos terão deixado mais do que simples marcos miliários no caminho da
interpretação. Uma vez que o mundo imaginário proposto por Steiner, «uma sociedade
na qual toda a discussão sobre as artes, a música e a literatura fosse proibida (...)[na
qual] qualquer discurso, oral ou escrito, sobre livros ou quadros ou obras musicais de
valor seria considerado palavreado ilegítimo.»6, nunca poderia passar de fantasia, a
interpretação da obra de arte não só se encontra confinada à busca de si mesma - das
metodologias que lhe permitam aceder à "boa leitura" - mas também está condenada a
erigir marcos miliários periclitantes em tal senda.
Acompanhemos Steiner quando nos apresenta a execução (leia-se: interpretação)
de uma obra musical como o paradigma da "leitura". De facto, neste caso está bem
estabelecido um cânone de diversos níveis, um dos quais nos permite identificar a obra
em questão como a obra A do compositor B, o que desde logo limita muito o universo
do que pode ser considerado uma boa leitura dessa obra. Neste sentido, "boa"
interpretação alude à fidelidade à partitura - ao texto. Mas há mais: « Em pintura e
escultura, como em literatura, a luz concentrada tanto da interpretação (a hermenêutica)
como da apreciação (nível crítico- normativo) reside na própria obra. São arte as
melhores leituras de arte.»7 As conclusões que podemos derivar desta argumentação são
decisivas para o avançar deste capítulo.
Desde logo, percebemos que os artistas são, em elevado grau, conhecedores do
universo de referências e alusões em que a cultura se move, ou de que a cultura artística
se faz (a isto chamar-se-á doravante "metáforas contínuas" - metáforas porque trata de
um mecanismo do tipo comparativo, co- presencial e co- referencial relativamente aos
objectos evocados; contínuas por serem elementos omnipresentes e perenes na cultura),
objectos que, de resto, "contaminam" as diversas artes através dos tempos; um exemplo,
que consideramos riquíssimo:
«If thou beest he - but ho, how fallen! How changed
From him who, in the happy realms of light,
Clothed with transcendent brightness, didst outshine
Myriads, thought bright! (...)»8
6
idem, pág. 16
7
idem, pág. 27
8
in Milton, John, Paradise Lost, Londres, Penguin Books, 1996, pág. 9, 84-87
Steiner: Leitura(s) 11
Neste breve trecho da obra maior de John Milton, encontramos, sem margem
para dúvida, claras referências a outro marco do género épico - a Eneida, de Virgílio -,
bem como ao livro de Isaías, da Bíblia: do primeiro, uma imitação da exclamação de
Eneias ao fantasma de Heitor, mutilado por Aquiles: «quantum mutatos ab illo /
Hectore»9, do segundo, uma referência óbvia: «Como caíste dos céus, / ó astro
brilhante, Filho da Aurora?».10 Só um conhecimento alargado e, na realidade, uma
memorização e interiorização de tais obras da tradição clássica e judaico- cristã (em boa
verdade, os dois pilares da cultura ocidental) poderia permitir tal entrelaçamento e re-
combinação de elementos dessas obras. Pelo lado da recepção, também é verdade que
só o leitor culto, informado e conhecedor pode aceder à profundidade de significação e
referência evocativa de tais versos. Assim, chegamos ao segundo ponto deste capítulo.
O papel da memória na "boa leitura" é óbvio. A compreensão de grandes obras
da tradição ocidental (em português, Os Lusíadas são indubitavelmente a grande obra
que vem à lembrança) depende, em grande parte, de uma prévia aquisição de
conhecimentos e, mesmo, de uma in- corporação, no sentido literal do termo, dos
elementos formais e estilísticos e dos topoi atravessados. A riqueza multifacetada de
textos como Paradise Lost encontra-se, pois, verdadeiramente inacessível a quem não
possui esta "bagagem". Uma sociedade cujos elementos não acedam a este nível de
conhecimento e cultura perde a memória da sua herança cultural e, mesmo, da língua e
literatura próprias. Esse "lastro da identidade" que é constituído pelos fragmentos in-
corporados da cultura através da memória individual (um poema decorado, uma música
conhecida de cor) é pura e simplesmente perdido quando se deixa de prestar a devida
atenção a esse ruído de fundo que são as referências da cultura. Logo, com o
afastamento do indivíduo relativamente à sua própria envolvente, ele fica muitíssimo
mais vulnerável a manipulações e arbitrariedades de toda a sorte, desde logo porque não
possui qualquer sentimento de pertença a uma comunidade de valores e referentes: «As
questões que aqui se levantam são políticas e sociais no sentido mais pleno. As
memórias alimentadas e cultivadas em comum mantêm uma sociedade naturalmente em
contacto com o próprio passado. Mais ainda, a memória salvaguarda o núcleo da
9
in Virgílio, Eneida, II, 274-75
10
in Isaías, 14, 12. A referência é bem mais rica que a nota de rodapé da edição da Penguin nos dá a
entender. Is., 14, 12 é parte de uma «Sátira contra o Rei da Babilónia», um cântico contra o opressor
finalmente tombado e um hino à liberdade do povo de Israel. A designação de «Filho da Aurora» é,
naturalmente, sarcástica, coincidindo com um segundo nível de sentido que Milton quer conferir à
interpelação de Satanás por parte de um dos seus companheiros, derrotado como ele na contenda que
moveu contra Deus.
Steiner: Leitura(s) 12
11
in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág. 21
12
in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, pág. 6
Steiner: Leitura(s) 13
exótico, destinado à guarda dos sectores iluminados e cultos, mais ligados a essa "alta
cultura": não foram sempre poucos os guardiães dessa cultura? Pensar a literatura e a
música como algo de exterior resulta num empobrecimento, numa perda da riqueza que
as obras de arte podem trazer à vida humana e à vida em comunidade. Afinal, aquilo
que distingue sem tais elementos passa a ser uma questão de consumo, de
"exteriorização" e não de "interiorização", de afirmação.
O problema não se põe politicamente, como é óbvio; não é uma questão de
regime político, mas sim de valores e de valorização da memória e da liberdade de
pensamento. Nunca se insistirá demasiado neste ponto: a cultura encontra-se perdida
quando é recusada sistematicamente, quando a recusa ou indiferença atinge um ponto de
ruptura em que já não é possível qualquer sensibilidade estética à arte e, mais grave
ainda, se deixa de reconhecer a liberdade pela arte. Esta hierarquia de valores
"bibliófila" encontra-se largamente erodida, mesmo tendo constituído, até esta época
histórica, o modo de construção e desenvolvimento da cultura. O sentido de equilíbrio e
fruição estéticos que perdurou desde a Antiguidade clássica até ao século XIX,
reflectidos no conhecimento - e, mesmo, familiaridade - com as pedras angulares da
literatura ocidental, é hoje remetido para um elitismo retrógrado ou reaccionário13,
excepto no caso das Universidades.
Steiner alerta-nos para este novo risco: apesar da riqueza do comentário e da
glosa ser uma realidade, ela fica sempre devedora do texto, para além de dever sempre
instituir-se em nova obra, mais do que um mero operar de um reconhecimento crítico do
texto em análise. Há um modo próprio de comentar, de interpretar, de ler, que consiste
em manter um espírito aberto, como que um convite a entrar em nossa casa a um Outro.
Perder de vista a obra original é deixar o estudo enrolar-se sobre si próprio,
desconsiderar o que temos diante de nós. Há algo de totalitário e obsessivo na leitura,
tanto por parte do texto em si como por parte do leitor: «Self- bestowal on a text, the
vertigo of attention which bends the scholar's back and blears the eye, is a posture
simultaneously sacrificial and stringently selfish. It feeds on a stillness, on a sanctuary
of egotistical space, which exclude even those closest to one.»14 Logo, o que resulta de
uma verdadeira leitura é o produto de uma dedicação extremamente exigente, pelo que
13
As razões para tal quebra, para esta perda de valores centrais na civilização tal como a conhecemos, são
demasiado numerosas e ramificadas para o propósito deste trabalho.
14
in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, pág. 10
Steiner: Leitura(s) 14
me parece que, perante as solicitações do mundo actual não hajam condições ideais para
conseguir tal dedicação.
O que de facto acontece é que a cultura - fala-se aqui em cultura enquanto
manifestação e produto, enquanto objecto criado - é relegada para os especialistas da
universidade, que tratam de estudar, dissecar e conservar entre paredes aquilo que
deveria ser cultura viva. A mumificação da cultura, da arte, ocorre pelo comentário e
crítica desenfreados que, tarde ou cedo, deixarão para trás a própria obra que os
originou. Ora, não só não é possível interpretar verbalmente uma peça musical, como
ainda é duvidoso que se possa verter em paráfrase um texto literário, analisar um poema
em toda a sua profunda liberdade - mas «Toda a arte, música ou literatura séria é um
acto crítico.»15. A primazia da obra sobre o comentário é uma constante na
argumentação de Steiner. No último ponto deste capítulo, resta lembrar que estas
leituras secundárias que são as críticas têm responsabilidades em qualquer possível
secundarização da obra primeira - desde logo porque a liberdade do recenseador não o
compromete para com a sua obra crítica, enquanto que uma interpretação em forma de
obra de arte em sentido estrito (como a execução de uma sonata) é algo em que o
intérprete investe o seu Ser. Não se limita a julgar, mas actualiza, dá-lhe novo sentido.
Esta é, quanto a mim, a diferença decisiva, operada no diferimento entre obra e
comentário; trata-se, como facilmente se percebe, do ponto fulcral de um novo "estilo"
de cultura, que "arruma" as obras - que pertencem à rua, à comunidade que os recusa -
para passar a trabalhar infinitamente no comentário, e no comentário do comentário,
mundo autofágico e empobrecido. Não é um retorno à origem - como já vimos,
resultado desse movimento de glosa, citação e autoridade, a cultura constitui aquilo que
se poderia designar, na esteira de Derrida, como uma cadeia de suplementos -, mas sim
da compreensão da realidade subjacente à interpretação: para lá e antes do ruído, a
música!
15
in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág. 22
Steiner: Leitura(s) 15
Capítulo II:
DA ESTRUTURA DA CULTURA: "METÁFORAS CONTÍNUAS"
A dificuldade das coisas excelentes é a pedra de toque de tudo o que foi escrito
neste curto ensaio. O trabalho de leitura, difícil, penoso e exigente, é de molde a ser
rejeitado pelas veleidades facilitistas e imediatistas da nossa sociedade. Ainda que as
metáforas contínuas tenham vivido com e pelos leitores e artistas ao longo de centenas
de anos, o risco de as perder no pó dos séculos e nas memórias mortas das letras esteve
sempre bem presente. Não que a sua perda completa estivesse em causa; o que aparece
como risco é a própria separação entre o Homem e a arte, entre o ser humano e a
cultura. Como se se tivesse perdido de vista o apelo dos sofistas: «Nada de humano me
deve ser estranho.»
Curiosa vida, a das referências culturais clássicas. Surgidas em tempo e lugar
bem determinados, da fonte da cultura escrita e livresca que se desenvolveu no
Mediterrâneo (Jerusalém, Atenas, Roma, Alexandria, Bizâncio, Florença, Génova,
Veneza), determinaram fortemente todo o futuro desenvolvimento das artes. O modelo
estava estabelecido nas suas principais linhas e topoi e, sendo tão rico, oferecia
possibilidades de criação e de profundidade de interpretação reconhecíveis em obras
como Ulisses de James Joyce ou no Hamlet de Shakespeare. Os recursos disponíveis
permitem, como vimos no capítulo anterior, níveis de interpretação de profundidade
inalcançável pela linguagem coloquial (que, ela mesma, se encontra já enquadrada nesta
vida e movimento das metáforas contínuas). Os simbolismos e metáforas que persistem,
como a associação do loureiro ao deus Apolo, às artes, à glória alcançada pelo indivíduo
- aparece na cabeça dos imperadores romanos, mas também na de Luiz Vaz de Camões
e de Dante Alighieri -, não morrem completamente, bem entendido; mas perde-se a
origem: o vencedor dos Jogos Píticos de Delfos (santuário de Apolo) - que incluíam
provas desportivas e concursos musicais e dramáticos -, na Grécia Antiga, era coroado
de louros. A árvore de Apolo é referida continuamente na poesia e pintura ocidentais,
Steiner: Leitura(s) 16
mas podemos estar certos de que muito poucos percebem verdadeiramente o alcance
histórico e metafórico da referência.
A persistência das metáforas contínuas é, então, o campo onde se joga a arte e a
sua riqueza. Ademais, não nos podemos esquecer de que este nunca será um campo
estanque, com novas referências e metáforas criadas com cada acto de liberdade de
criação, novos significados e profundidades alcançadas na busca da plenitude de
expressão. Steiner relembra, contudo, um aspecto deste tipo de literacia: floresceu em
ambientes não, ou mesmo anti- democráticos, com fortes tendências de totalitarismo,
bem enquadrado política e culturalmente e, claro, sempre foi raro: «Creative literacy
was always the disciplined, authoritatively transmitted possession of the few. The
general gloss which it gave to society, between the Enlightenment and the crisis of the
mid- twentieth century, sprang from power- relations, from pretences, from silences
form the majority which our present world is no longer prepared to put up with.»16 Bem
entendido, sempre foram poucos os que alcançaram um grau de excelência elevado na
sua criação, e continuam sendo poucos aqueles que entendem o próprio vocabulário
usado pelos grandes poetas - já não falando da compreensão que interessa, aquela que
penetra no próprio poema, nas profundidades da criação. O trabalho de elucidação pode
ser, de facto, uma tarefa gigantesca, mas existem no próprio mundo do conhecimento os
instrumentos para o realizar.
Voltaremos ao aspecto da dificuldade intrínseca à leitura e interpretação mais
adiante. Estamos agora em condições de aprofundar mais o conceito de metáfora
contínua. Já vimos que a própria referência à metáfora é já metafórica; neste momento,
voltar-nos-emos para os temas recorrentes no mundo da arte e no mundo da vida que
incluímos também neste conceito vago e nebuloso. Vejamos o caso bem conhecido do
uso dado ao Rei Édipo de Sófocles: depois de Freud, assistimos à representação desta
tragédia com um ponto de vista feito e refeito a partir das novas referências e
concepções - o imaginário e os mitos - surgidas no século XX. Não há dúvida que hoje
em dia se fala muito mais desta tragédia do que, por exemplo, no século XIX. Steiner
afirma, aliás, que a universalidade do Édipo afirmada por Sigmund Freud não é
completa (aliás, de outro ponto de vista, o mesmo é defendido por Deleuze e Guattari no
célebre Anti- Édipo), contrapondo-lhe a realidade apresentada por uma outra tragédia:
Antígona. «Mas há milhões e milhões de pessoas que não sabem uma palavras de grego,
que nunca ouviram falar de Sófocles, mas viram com os seus próprios olhos e viveram
Steiner: Leitura(s) 17
16
in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, pág. 16
17
in Jahanbegloo, Ramin e Steiner, George, Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa, Fenda, 2000,
págs. 129-130
Steiner: Leitura(s) 18
prática, para efectivar uma reflexão sobre o mundo segundo problemas colocados
necessariamente. Ou seja, a inevitabilidade do surgimento destes temas, a
universalidade das referências obriga a não passar ao lado da questão. Daí que o
filosofia e arte do nosso mundo se encontrem impregnados por estas figuras a um nível
bem mais profundo do que a mera aparência.
Portanto, daqui se pode entender que a preservação das metáforas contínuas não
é algo que possa ser assegurado pelos «nossos sistemas sociais permissivos», pela
ideologia pseudo- democrática que dá prioridade a esquemas de aprendizagem
desajustados. Logo, se «este tipo de incorporação e referência, consciente ou
inconsciente, mimética ou polémica, é [como vimos] uma constante em arte.»18, e dado
que a arte na arte tem origem, pode esperar-se uma certa degenerescência nas
referências artísticas em circulação na nossa sociedade. Os sistemas educativo e
mediático, ligados como nunca, não são de molde à preservação das metáforas
contínuas. O ritmo de circulação muito veloz e o prazo de validade demasiado reduzido
da maior parte da produção simbólica actual contribuem para esta queda dos valores
livrescos. Já não nos referimos à qualidade da produção, mas ao ritmo da recepção - a
velocidade de rotação dos livros nas grandes cadeias de livrarias são um fiel indicador
deste fenómeno A educação de massas é muito pouco propícia a contrariar tal estado de
coisas, em favor de valores considerados tão retrógrados. As metáforas contínuas são,
portanto, relegadas da apreciação estética para o intelectualismo mumificador - vide
Capítulo I - com as consequências que daí advêm para a identidade social, cultural e
política de uma comunidade ou indivíduo.
Com esta visão do estado de coisas não podemos, assim, evitar partilhar a visão
de Steiner: a glosa e a alusão superficial das notas de rodapé fazem a arte correr o risco
de soterramento ou subserviência, quando o seu pleno desenvolvimento parece
depender de condições de liberdade e conhecimento muito para além da superfície do
imediato. A coragem necessária para, contra a corrente do tempo, afirmar a necessidade
das condições - já caracterizadas - de produção artística é inversamente proporcional ao
igualitarismo histérico das instituições- chave da sociedade de consumo.
Privilegia-se a mera alusão à verdadeira intertextualidade. Recordo-me de um
crítico de cinema português, que apontava o "piscar de olho" de um determinado filme
«ao público mais cultivado» como um ponto negativo - sendo que, como acontece
habitualmente no cinema norte- americano, as referências à chamada «alta cultura», ou
Steiner: Leitura(s) 19
cultura clássica, dificilmente poderiam ser tidas como mais do que alusões. Voltemos ao
fragmento de Paradise Lost (vide pág. 7); o tipo de intertextualidade que aqui ocorre é
mais profundo e variado; não só ocorre uma alusão, mas também uma verdadeira
citação, uma glosa de um tema rico e de origens múltiplas (greco- latinas e judaico-
cristãs), cuja compreensão integral exige o conhecimento (pelo menos) da Ilíada, da
Eneida e da Bíblia (especificamente, do livro do Profeta Isaías). O que se pode passar
hoje em dia é algo como: mesmo que as referências sejam feitas por conhecedores,
artistas livres e responsáveis, o problema colocar-se-ia na recepção, lugar para o qual se
encontram perdidas ou distantes as chaves da detecção das alusões e, a posteriori, da
compreensão da profundidade intertextual da obra.
Naturalmente, não se exige o conhecimento integral da produção escrita
mediterrânico- clássica, mas tão-só se faz um apelo à percepção das exigências de uma
boa leitura e da atenção exigida pelas subtis metáforas contínuas.
18
in Steiner, George, Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pág. 27
Steiner: Leitura(s) 20
Capítulo III:
A MEMÓRIA, A LEITURA E UMA ÉTICA
19
in Jahanbegloo, Ramin e Steiner, George, Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa, Fenda, 2000,
págs. 129-130
Steiner: Leitura(s) 21
máximo respeito pela obra de arte é uma citação, no meio de um estudo crítico entre
muitos.20 Não é a mesma coisa.
A própria problematização da hermenêutica romântica não enveredou pelas
sendas que Steiner pretende explorar. No ensaio «On Difficulty», de 1978, Steiner
desenha uma tipologia da dificuldade, distinguindo quatro tipos de obstáculos que nos
podem levar a afirmar que determinado fragmento de texto é difícil: «Contingent
difficulties aim to be looked up; modal difficulties challenge the inevitable parochialism
of honest empathy; tactical difficulties endeavour to deepen our apprehension by
dislocating and goading to new life the supine energies of word and grammar. (...)
Ontologocial difficulties confront us with blank questions about the nature of human
speech, about the status of significance, about the necessity and purpose of the
construct which we have, with more or less rough and ready consensus, come to
perceive as a poem»21.
Dificuldade de contingência, dificuldade modal, dificuldade táctica e dificuldade
ontológica, apesar do que a sua divisão pode fazer parecer, podem coexistir numa
suprema dificuldade múltipla de certos textos. A primeira pode ser resolvida através da
"cultura geral", procurando num bom dicionário a chave para o problema semântico ou
de referência (mitológica, por exemplo); situa-se a um nível que permite uma resolução
relativamente rápida e simples. Não nos esqueçamos, no entanto, que quando tudo é
dificuldade de contingência, todo um poema se torna um quebra- cabeças (isto pode
acontecer, por exemplo, na leitura de um texto em língua estrangeira. Voltaremos mais à
frente à questão da tradução), completamente inextrincável com os instrumentos
habituais. Uma leitura não deve ser interrompida por constantes buscas no dicionário...
Na dificuldade modal deparamo-nos com o problema da experiência pessoal e do
mundo do texto que se esconde sob o manto vocabular (claro que o problema da
dificuldade de contingência é central sob todos os aspectos, permitindo aceder ao
contacto com outro tipo de problemas). O que se procura aqui é uma espécie de
conhecimento dissimulado ou insinuado no texto, repleto de simbolismo, de subtilezas
derivadas do uso indirecto de calão ou gírias, a um nível não completamente explícito
no texto. Mais uma vez, a dificuldade é inacessível por instrumentos de estudo directos,
20
Não caiamos em generalizações extremistas: é óbvio que a crítica e o comentário crítico são
extremamente úteis. O que aqui se critica é a cegueira que este sistema parece ter imposto: perde-se de
vista a obra da arte porque se prefere o comentário crítico em ciclo infindável à nova criação artística de
resposta. Este problema já foi abordado com maior desenvolvimento no Capítulo I.
21
in Steiner, George, On Difficulty and other essays, Oxford, Oxford University Press, 1978, págs. 40-41
Steiner: Leitura(s) 23
pessoal. Isto cria vários tipos de problemas, nomeadamente na Literatura, que estão
ligados à interpretação e à tradução.
A tradução é, por si, um dos grandes exercícios de interpretação. Steiner não
refere tanto a segunda como a primeira, mas podemos facilmente passar de uma para a
outra. Uma interpretação é uma tradução, no sentido em que é paráfrase de, e uma
tradução tem de ser uma interpretação, que vê entre as línguas de partida e de chegada
uma «terceira língua». Se o impulso / liberdade de criação se sentem impotentes ao
tentar verbalizar a crítica a uma obra e tendem a efectivar a sua resposta sob a forma
artística, há algo que se manifesta, indubitavelmente, na tradução: trata-se da descoberta
dessa terceira língua. O exemplo mais admirado por George Steiner é Hölderlin, de
quem fala nos seguintes termos a propósito da questão da tradução: «(...) Hölderlin,
mostrando demasiada audácia na apreensão da interzona entre as línguas [sic] não pôde
voltar a entrar em si próprio»23 (recorde-se que Hölderlin traduziu tragédias de Sófocles
para alemão). O que parece dar-se durante a tradução é um cruzamento de línguas e
planos poéticos na pessoa do tradutor, topos de uma luta e fusão entre valores e ideias
de culturas diferentes mas que, contudo, responde com uma nova criação. Os grandes
tradutores, segundo Steiner, são os grandes leitores das grandes obras, transformando-se
em palco da realidade de mundos do texto e Weltanschauungen distintos.
A tradução é, também, um acto de amor, de entrega e de recepção, um manifesto
estético e compreensivo. Cada grande tradução reflecte toda uma teoria da tradução e,
simultaneamente, uma visão nítida, naturalizada, das linguagens em cena. Tal como as
grandes obras nacionais, também as grandes traduções podem ajudar a delinear as
normas linguísticas - esta sendo uma das grandes responsabilidades do escritor: ao
escrever em Português, tem-se por predecessores D. Dinis, Gil Vicente, Camões, Vieira,
Garret, Eça de Queiroz, Saramago. As línguas são, de certo modo, definidas pelos seus
grandes artistas. Como foi dito na Introdução, a perda das referências literárias e
culturais da nação empobrece a identidade nacional, do mesmo modo que a infiltração -
ou melhor, invasão - cultural massificada corrói o cerne do que deve ser uma política da
língua e da literatura: o estudo e conhecimento aprofundado, simultaneamente
pedagógico e cultural, das principais referências literárias e artísticas em geral. Ou seja,
descurar o papel desses "grandes" é o mesmo que perder um pouco do que ajudou a
22
op. cit., pág. 35
23
in Jahanbegloo, Ramin e Steiner, George, Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa, Fenda,
2000, pág. 157
Steiner: Leitura(s) 25
24
op. cit., pág. 110
Steiner: Leitura(s) 26
Capítulo IV:
A CULTURA CONTEMPORÂNEA REFERIDA À HISTÓRIA DO
SÉCULO XIX - curto ensaio em torno de No Castelo do Barba Azul
25
in No Castelo do Barba Azul (algumas notas para a redefinição da cultura), Lisboa, Relógio d'Água,
1992, págs. 16-17
Steiner: Leitura(s) 28
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA