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AS FESTAS BÍBLICAS E A LITURGIA JUDAICA

Importância do tema para a compreensão da cultura e da fé bíblica; a ‘festa’


como elemento cultural e antropológico. A dimensão festiva da vida como manifestação
de partilha e de encontro. A ‘festa’ como elemento de relação com o transcendente.
1. As fontes para o estudo das ‘festas bíblicas’
Os textos bíblicos e extra-bíblicos que se fazem eco da liturgia judaica do
período inter-testamentário e que nos ajudam a compreender a fé bíblica e como ela era
celebrada: textos do Novo Testamento (S. João; Carta aos Hebreus); textos da liturgia
da Sinagoga (Midrashîm, Targums); textos normativos que nos transmitem as normas
orientativas da prática litúrgica sobre a celebração das festas (Mishná, Talmud, etc.).
2. O Calendário litúrgico do judaísmo
As marcas de uma cultura agrária que se fazem repercutir na memória litúrgica e
nas celebrações religiosas; O calendário lunar (Lv 23,24; Am 8,5) e o calendário solar,
conhecido pelos escritos de Qumrãn. A importância do Sinédrio para a marcação das
festas; as datas da celebração da Páscoa.
3. Alguns elementos fundamentais do culto judaico
Os Sacrifícios e o sistema cultual; significado e sentido teológico dos sacrifícios.
A importância do Sábado no ritmo da vida do povo de Israel e os ritos da sua
celebração; do sábado como ‘repouso’ ao ‘sábado messiânico’ da escatologia judaica.
Vestes e utensílios do culto.
4. A festa da Páscoa
A Páscoa como festividade de cariz agrário e a sua evolução para celebração da
libertação do Egipto. A teologia da celebração pascal. A Páscoa como paradigma da
relação do povo de Israel com Yahwé. A liturgia pascal na sua vivência familiar. A
‘noite’ pascal e seu significado messiânico. A Páscoa como ‘nova criação’ e o sacrifício
de Isaac (Aquedah de Isaac). Cristo pascal como novo Isaac que com a sua entrega nos
conquista a vida nova.
5. A festa do Pentecostes (ou das Semanas, 7x7)
Sentido agrícola da festa (agradecer as primeiras colheitas) e sua evolução como
festa do ‘dom da Lei’. A festa, a renovação da aliança sinaítica e a constituição do Povo.
6. A festa das Tendas (ou Tabernáculos)
A festa das Tendas celebra a identidade de Israel como povo nómada; do
nomadismo à sedentarização e ao dom da terra. A itinerância como paradigma da
relação de Israel com Yahwé: Israel não é dono da sua terra, nem esta é pertença sua;
Israel é um povo de peregrinos a caminho da escatologia (sentido messiânico).
7. Yom Kippur (Expiação) e Hanukah (festa da Luz)

João Lourenço (30 de Maio de 2008)


AS FESTAS BÍBLICAS
Introdução:
A ‘Festa’ constitui um dos elementos centrais da religião cristã e da
vida do Homem, tanto em termos individuais como sociais. Ela percorre
todas as culturas e todas as épocas, e parece que nunca as manifestações
festivas foram tão importantes como hoje num tempo chamado de pós-
modernidade. Apesar de vivermos um tempo marcado pelo drama, pelo
pessimismo radical, pelo suicídio, pelo desespero, pela desorientação, pelo
negativo, a ‘festa’ constitui uma espécie de elemento agregador que
percorre a vida do homem a todos os níveis1.
O nosso tema de hoje, apesar de se debruçar sobre as festas bíblicas
em geral, mormente no AT, não pode ignorar que elas estão presentes no
NT, constituindo como que um quadro de fundo para a revelação de Jesus e
de muitos núcleos temáticos da sua mensagem. O Evangelho de João, por
exemplo, não se serve de uma geografia espácio-temporal, recorrendo antes
a uma espécie de itinerário festivo, através do qual apresenta Jesus e mostra
como Ele é a plenitude da verdadeira festividade que é a comunhão do
Homem com Deus. Não são apenas as festas que encontram em Cristo a
sua plenitude; elas eram apenas simbologia de algo que estava para vir;
mas também Cristo é a plenitude da comunhão festiva do amor de Deus, as
núpcias eternas a que o homem é chamado. Por isso, Ele é a ‘tenda’, o
Tabernáculo da presença de Deus no mundo; Ele habitou, estabeleceu a
Sua tenda entre nós e convida-nos para o banquete da sua comunhão, num
itinerário de Páscoa permanente em busca da cidade eterna, a nova
Jerusalém que descia do céu.
A Festa faz parte da realidade humana, já que o Homem é um “ser
festivo” pela sua própria natureza. Não só trabalha (“homo faber”) e pensa
(ser racional), como também canta, dança, ora e celebra! Tudo isto
constitui um elemento essencial da sua identidade, razão pela qual o
Homem tem necessidade da festa. Daí podemos dizer que a festa é antes de
mais um elemento antropológico, que marca o ritmo da vida e das etapas da
natureza. Muitos exemplos podem colorir esta afirmação, como a festa de
aniversário, a festas religiosa, a festa agrícola, a festa folclórica, a festa
sazonal, entre muitos outros exemplos que podem ser dados. Desta forma, a
‘festa’ é um espaço privilegiado para desenvolver os aspectos mais
significativos da vida, dentre os quais sobressai o da gratuidade e o da
partilha. Ensina a viver e manifesta a alegria nas suas mais variadas formas
e expressões como sejam o vestir, o comer, o beber, o cantar, dançar, o
partilhar e repartir, o testemunhar a sociabilidade da nossa identidade. Por
isso, a dimensão comunitária é um elemento fundamental da festa já que
1
RUBIO, M – Hermenêutica moral del fin de siglo, “Moralia”: 18, 1995, p 25 ss.

2
esta se celebra, antes de mais, em contexto de grupo. O grupo, por sua vez,
encontra na festa um lugar privilegiado, que não é fácil manifestar noutras
dimensões, para fazer nascer de novo aspectos cruciais na vida humana
comunitária: a união, a força, a coesão, a inter-ajuda, a partilha. Assim, a
Festa fortalece o sentimento de pertença ao grupo e recupera a sua
identidade.
Por outro lado, a festa constitui também um momento e um
instrumento para ultrapassar barreiras, já que estas não resistem à alegria e
à amizade que um clima de festa acaba por criar. Em toda a festa há como
que uma espécie de regeneração. Mas num outro aspecto a Festa ainda vai
mais longe na medida em que não só nos liberta de algo de negativo, mas
também se torna num verdadeiro trampolim para o patamar dos valores que
estão na base da realização humana e, portanto, podem comunicar ao
homem a verdadeira felicidade. A Festa cobre toda a dimensão da
identidade humana através da memória, do entendimento e da vontade.

1. FESTA E FESTAS BÍBLICAS


Em todas as religiões e culturas a ‘festa’ está ligada ao
transcendente, ao divino, e constitui um elemento essencial do culto e a
base de toda a ‘religio’, de toda a relação cultual que deve ser expressão de
comunhão e de afecto, no sentido mais profundo e pleno do termo. A festa,
sendo rito, não pode deixar de ser relação, pelo que a sua realização implica
e envolve sempre o homem. Neste sentido, podemos dizer que a ‘festa’
envolve e monopoliza o homem por inteiro. Por isso, o culto nunca pode
ser uma realidade sem relação, sem envolvimento, sem compromisso. A
Sagrada Escritura, através dos Profetas, faz-se eco disso mesmo,
condenando o culto vazio, hipócrita, sem expressão de comunhão. Pede-se
a conversão de coração, para que a festa seja realmente festa no seu sentido
original que envolva o Homem por inteiro:
“Eu aborreço e rejeito as vossas festas; elas desgostam-me, e não sinto
nenhum gosto nos vossos cultos” (Am 5, 21). “Porei fim aos seus divertimentos,
às suas festas; às suas luas novas, aos seus sábados e todas as suas solenidades”
(Os 2, 13).

O termo ‘festa’ diz-se em hebraico ‘hag’ que etimologicamente


significa “dança”. Nesta medida, embora os dias de festa fossem dias de
descanso, estes eram um descanso “activo”. Eram um descanso da vida
quotidiana orientado para a dança, a alegria e o culto a Javé. Desta raiz
deriva ‘Hagag’, um verbo que significa: “Festejar” e também
provavelmente “houng” que significa “círculo”, de onde vem a ideia de
fazer uma roda, dançar evocando o rito das danças Sagradas, ou de andar
em volta de um altar sacrificial, um rito de peregrinação quase universal.

3
Na Bíblia “todas as Festas” tem como origem um mandamento de Deus,
mesmo quando suas raízes se encontram nos ciclos da natureza e das
estações. As Festas no Povo de Deus ligam-se à História da Salvação.
Temos como exemplo: “Este dia vos será por memorial, e celebrá-lo-eis
por Festa ao Senhor; nas vossas gerações o celebrareis por estatuto
perpétuo” (Ex 12:14). Aqui é de ressaltar um facto essencial da vida
religiosa: o memorial. O ‘memorial’ é um elemento central da festa e do
culto bíblico, e o Povo de Deus tem como missão manter a ‘Tradição’, ou
seja, ‘fazer memorial’, transmitindo e recordando as obras do Senhor. Por
isso, a palavra “Hag” está intimamente associada à palavra Mo‘ed que
significa a festa calendarizada no tempo e anunciada publicamente. O
plural Mo‘adîm indica todas as reuniões festivas determinadas ao povo
hebreu pelo seu Deus e que eram anunciadas ao som da trombeta. Dai a
importância e a preocupação em determinar as datas festivas como “uma lei
de Javé, uma obrigação para Israel”, Povo Eleito de Deus, ao toque da
trombeta ou do odre de carneiro, o célebre “Chofar” (Sl 81,5). As festas
são, portanto, pontos culminantes da vida religiosa, um memorial de
acontecimentos relevantes na História da Salvação.
Mas a dimensão de memorial não esgota o sentido das festas
bíblicas; Elas fazem desse memorial uma realidade presente, actualizam-
no para o crente que o vive. Ao reviver esses acontecimentos, desperta no
crente sentimentos de gratidão, de reflexão sobre a vida, de reconhecimento
do poder e misericórdia de Deus e da necessidade de ser fiel ao
cumprimento da Lei, abrindo aos fiéis também uma perspectiva
escatológica que se consumará na plenitude messiânica e na comunhão
plena com Deus.
Todas estas dimensões estão presentes nas diversas festas bíblicas, na
sua liturgia diversificada, em que cada uma dessas celebrações contempla
todos os elementos essenciais, embora confira a um deles um destaque
especial
2. As festas e a liturgia judaica – As fontes
A liturgia do período intertestamentário constitui uma das
expressões que melhor traduz a riqueza e a pluralidade desta dimensão
festiva do judaísmo. Os textos bíblicos que chegaram até nós não nos
transmitem muitas informações sobre esta liturgia, sobre o modo
celebrativo das festas nem dos seus ritos2. Para o sabermos, dispomos hoje,
no entanto, de textos extrabíblicos que são as verdadeiras fontes onde
podemos recolher elementos para a compreensão desta liturgia. Conhecer
2
A razão desta ausência de dados sobre a liturgia tem a ver com o facto dos textos do AT serem
anteriores a este período e os do NT, apesar de aludirem às festas, pouco ou nada nos dizerem sobre elas,
uma vez que, tal como nos diz a carta aos Hebreus, Cristo aboliu o culto judaico. Ele era de facto o
verdadeiro sacerdote, o novo cordeiro (Hb 8) e o Seu corpo ressuscitado o verdadeiro Templo e santuário
da nova aliança e de comunhão com Deus. Com a destruição do Templo em 70, essa ausência mais se
justifica, já que a partir dessa data o culto do Templo tinha sido abolido.

4
as tradições das festas do calendário litúrgico judaico, o seu significado, os
seus ritos e a sua teologia é, certamente, um contributo precioso para a
compreensão da espiritualidade judaica, da sua diversidade cultural e
também dos próprios textos neotestamentários e da teologia que está na
génese da sua composição.
Apesar desta ausência de dados, podemos encontrar nos textos do
NT diversas alusões à liturgia do Templo de Jerusalém, em especial no
evangelho de S. João que recorre constantemente às festas do calendário
judaico para nos oferecer uma espécie de itinerário sobre os principais
temas da mensagem de Jesus e também na carta aos Hebreus onde se faz
uma releitura teológica de toda a liturgia judaica à luz do Seu mistério
pascal, mostrando como essa liturgia não era mais do que uma ‘figura’ e
uma antecipação do verdadeiro culto que em Cristo devemos prestar a
Deus3.
Para além destes indícios, os escritos mais significativos sobre a
liturgia judaica deste período chegaram até nós através das fontes rabínicas,
tais como a Mishná, os Tragumim, os Midrashs e textos de tipo
apocalíptico. Temos também os escritos samaritanos e os manuscritos de
Qumrãn, especialmente o Rótulo do Templo, onde se descreve, em
pormenor, a liturgia do movimento essénio do Mar Morto.
Ainda no que diz respeito à liturgia judaica, podemos dizer que o
período intertestamentário foi uma época difícil, de contornos muito
ambíguos devido à influência da cultura grega, bem como às guerras contra
Roma (no ano 70, com a destruição do Templo e em 132-135, com a
derrota de Bar Kokba e a transformação de Jerusalém numa cidade romana,
Aelia Capitolina). A consequência primeira destas guerras foi a abolição da
liturgia oficial do Templo e o incremento da oração e da instrução na
Sinagoga.
É neste cenário e em função destes condicionalismos que temos de
abordar a questão da liturgia judaica e das festas, sabendo que muitas das
tradições que até nós chegaram estão condicionadas pelas vicissitudes
históricas deste período4.
3. O calendário litúrgico
Um dos elementos fundamentais para compreender as festas
bíblicas diz respeito à questão do calendário. Ao contrário do que sucede na
3
No evangelho de João, as festas judaicas marcam o ritmo da sua própria revelação: 2,13; 6,4; 11,55
(temos três alusões à Páscoa dos judeus enquanto instituição oficial à qual é contraposta a nova Páscoa
que é a Sua passagem: 13,1; 18,28; 19,14); em 7,2 (a festa das Tendas que era a celebração messiânica
por excelência dentro da tradição judaica); em 5,1 fala-se de festa sem se explicitar de qual se trata,
embora o facto de se fazer referência à água possa ser um indício de que seria a festa do Pentecostes (ou
das Semanas), uma vez que a água é símbolo do Espírito e da Torah; 10,22 é a festa da dedicação do
Templo, mais conhecida como a festa de Hanukkah, festa da luz (1 Mac 4,36s).
4
A redacção das fontes rabínicas, tal como vimos antes, prolongou-se no tempo e conheceu diversas
etapas, o que dificulta muito qualquer distinção entre a origem das tradições e a sua redacção.

5
nossa cultura contemporânea, o homem bíblico está muito condicionado
pelos ciclos da natureza e do tempo. As marcas de uma cultura agrária que
tem a sua expressão máxima na transumância e na dependência do ciclo
das estações, mormente no que concerne à chuva que é o bem essencial
para o cultivo das terras, exprimem-se e fazem-se repercutir nas convicções
culturais e nas celebrações religiosas. À semelhança do que sucede com os
demais povos do Médio Oriente, a vida quotidiana dos israelitas está
dependente e sempre condicionada pelo ritmo sazonal que é vivido e
celebrado em determinados momentos de uma forma mais intensiva.
Podemos dizer que as festas são expressão dessa intensidade vivencial,
rompendo o ciclo do tempo ordinário para prolongar no homem a memória
do passado. Essa memória retoma formas e repete-se no tempo de modo
regular, fixando-se através de um calendário. Trata-se do calendário
litúrgico e celebrativo, fazendo memória do passado, mas dando também
consistência ao presente e abrindo o crente à esperança messiânica.
O calendário lunar é, sem dúvida, o mais usado em todos os povos e
civilizações, designadamente na zona do Médio Oriente. Nos primórdios de
Israel, o ano começava no Outono, já que o tempo das colheitas encerrava o
ciclo e dava início a um novo ritmo da vida (Ex 23,16; 34,22). Por isso, os
nomes dos meses estavam ligados aos produtos da terra5, donde resulta uma
estreita relação entre as festas celebradas e as actividades agrícolas que
tinham lugar nesse período. Mais tarde, já com a monarquia, tomou-se
como início do ano o período da primavera (o mês de Nisãn), sendo os
nomes designados de forma abstracta por primeiro mês, segundo mês…
Porém, a partir do domínio da Babilónia são introduzidos em Israel os
nomes do calendário dos Caldeus para designar os meses6. Já no período
helenista, com o domínio da cultura grega, é usual encontrarmos também
nomes gregos para designar os meses7.
Na Palestina do período intertestamentário coexistiam dois
calendários, dependendo o seu uso dos diversos grupos judaicos e também
das autoridades oficiais que regulamentavam o culto festivo. Embora o
calendário lunar, muitas vezes referido no AT (Lv 23,24; Am 8,5), seja o
mais difundido e comum no ordenamento da vida do povo, estava também
em uso o calendário solar, um calendário sadoquita usado por alguns
grupos, tal como é possível comprovar através dos escritos de Qumrãn8.
Quanto ao judaísmo ‘ortodoxo’ do início da nossa era, este seguia
um calendário semi-lunar, dito oficial, em que os meses eram determinados
pelas lunações mas que, devido às festas agrícolas, tinha em conta o ritmo
5
Temos o mês de Abib que significa ‘espiga’, Nisãn ‘flor’.
6
São estes nomes que acabam por se impor como sendo o calendário oficial que vigora até aos nossos
dias. Eis as suas designações: Tishri, Héshvan, Quisleu, Tevet, Shevat, Adar, Nisãn, Ijar, Sivan, Tammuz,
Av, Elul. Quanto ao mês intercalar para acerto de calendário chamava-se Adar Sheni (segundo Adar).
7
2 Mac 11,21.30.33.38; Tb 2,12.
8
S. TALMON, “Divergences in Calender-Reckoning in Ephraim and Judah”, VT 8 (1958) 48-74.

6
solar. Ora, como a soma dos doze meses lunares (de 29 ou 30 dias) dava
um total de 354 dias, tínhamos então que de dois em dois ou em três anos
tinha de ser inserido um mês suplementar. Para esta determinação tinha
grande importância a decisão do Sinédrio que fixava também as datas das
festas, bem como o seu termo, no caso de dúvida. Dada a importância que
era conferida à Lua no mundo semita do Médio Oriente, as festas bíblicas
eram celebradas na lua nova (neoménia) ou nos períodos de lua cheia,
estando o ritmo da vida condicionado pelas próprias fases da lua.
A data da festa da Páscoa era aquela que criava sempre mais
problemas, pois o cumprimento estrito do preceito bíblico (a noite de 14 ou
15 de Nisãn) era um dos pressupostos fundamentais desta solenidade.
Algumas das questões que o evangelho de S. João nos coloca acerca da
data da Páscoa de Jesus tem, certamente, a ver com a interpretação do
calendário que é seguido pelo autor do evangelho.
Quanto ao calendário solar propriamente dito, o seu uso era já
conhecido mesmo antes das descobertas de Qumrãn, uma vez que os livros
de Henoc Etiópico e o livro dos Jubileus tinham já posto em questão o
calendário oficial. Estes livros seguiam um calendário de 364 dias, ou seja,
de 52 semanas, com quatro trimestres e treze semanas cada um. Desta
forma, as festas eram celebradas, todos os anos, no mesmo dia da semana,
já que havia um número exacto de semanas.
Com a descoberta e a publicação do Manual de Disciplina de
Qumrãn foi possível saber que o movimento essénio seguia outro
calendário litúrgico diferente daquele que era o oficial do Templo e que
começava à 4ª feira, já que tinha sido ao quarto dia que os astros foram
criados. Por isso, se o tempo era contado tendo em referência os astros,
então o ritmo do tempo deve ter como ponto de referência o 4º dia9. Ora,
para além das referências retiradas do Rótulo do Templo, encontrado em
Qumrãn, também nas descobertas feitas em Massada, em 1963-64, um dos
achados mais significativos foi um rolo de cânticos litúrgicos que seguem o
mesmo calendário e que teria sido também seguido por Jesus, na ceia
pascal, e pelas comunidades cristãs primitivas, tal como se pode deduzir da
Didaskalia dos Apóstolos.
Tendo presentes estes elementos, apesar de escassos, tudo aponta
para a existência de mais do que um calendário litúrgico em uso no
judaísmo do período intertestamentário, embora o lunar fosse aquele que
era seguido no Templo, apesar dos ajustes e da intervenção do Sinédrio
para dirimir e harmonizar as diferentes perspectivas que se confrontavam
no interior do judaísmo.
4. Os sacrifícios
Os sacrifícios constituem um dos pilares da liturgia judaica que, a
par da leitura da Torah, são a melhor expressão da comunhão e da aliança
9
Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 99.

7
entre Yahwé e o Seu povo. A Escritura e os textos rabínicos desenvolveram
um sistema jurídico de grande precisão acerca dos sacrifícios a fim de
evitar erros ou abusos que fizessem com que estes perdessem a sua eficácia
e o valor expiatório que muitos deles revestiam. A sua primeira função era
a de obter a misericórdia divina e restabelecer a relação de comunhão que
muitas vezes era violada pelo povo. Por isso, podemos dizer que a natureza
do sistema litúrgico de Israel é, essencialmente, de tipo expiatório, à qual se
junta, desde muito cedo, a oração que consistia em invocações dirigidas a
Deus (1 Sam 1,13s). Como refere Ben Chorin10, no Templo, a par de uma
liturgia da palavra11 que consistia na leitura da Lei, desenvolve-se
fundamentalmente um sistema sacrificial que era a alma do culto judaico.
Os sacrifícios cultuais do AT eram, simultaneamente, oferta,
expiação e comunhão. Não se tratava de um tributo como tal; eram antes
um gesto de gratuidade e reconhecimento que expressa de forma visível a
soberania de Deus sobre todas as coisas. Podemos constatar isso mesmo
pela oferta dos primeiros frutos da terra, das primícias que assim eram
‘dessacralizadas’ dos ritos de fecundidade para serem retribuídas a Deus
como fonte de todas as coisas.
Os texto bíblicos e extrabíblicos referem-nos diversos tipos de
sacrifícios, sendo de destacar os holocaustos, os sacrifícios de comunhão,
os sacrifícios expiatórios e as ofertas. De entre todos, assume particular
importância no contexto da liturgia do AT o sacrifício chamado ‘Tamid’
(quotidiano ou diário) que era oferecido no Templo, pela manhã e à tarde,
diariamente sem interrupção12. Neste sacrifício era imolado um cordeiro de
um ano, sem defeito. Esta imolação era acompanhada de um ritual
profundamente simbólico e que encontrará grandes ecos na teologia do NT,
logo a começar pela designação de Jesus como ‘cordeiro de Deus’ e como
chave de leitura da Sua morte.
Assim, antes de ser conduzido ao matadouro para ser imolado, era
dada ao cordeiro água a beber numa taça de ouro e o seu sangue era
recolhido e lançado na base do altar13. Quanto à pele, esta era vendida em
benefício dos sacerdotes e a carne cortada em doze pedaços que, após
salgados, seriam colocados sobre o altar. Os seus ossos não podiam ser
quebrados, prescrição que era também válida para o cordeiro pascal14.

10
S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière. La liturgie de la Synagogue, Paris, 1984, 25.
11
É a partir do exílio, com Esdras e Neemias que esta ‘liturgia da Palavra’ se vai desenvolver, com a sua
proclamação e explicação ao povo (Ne 8,8-9), embora mais tarde esta ‘liturgia da Palavra’ venha a
constituir o núcleo central da oração na Sinagoga.
12
As determinações de Ex 29,38 e de Nm 28,3 são corroboradas pelo tratado da Mishná (Tamid) que
estabelece as normas precisas para a sua realização.
13
O tratado Tamid descreve todo o ritual do sacrifício e constitui a fonte mais completa de que dispomos
sobre o ritual desse sacrifício.
14
S. João evoca esta mesma prescrição acerca de Jesus (Jo 19,36) a quem apresenta como ‘cordeiro que
tira o pecado do mundo’ (Jo 1,29) e que na sua concepção teológica é agora o verdadeiro ‘cordeiro
pascal’.

8
Para além do sentido de expiação, os sacrifícios eram também
expressão de comunhão entre Deus e o homem. Por isso, ao serem
oferecidos sobre ao altar, eles recordavam que este era o símbolo da
presença de Deus no meio do Seu povo, lugar da criação do mundo e da
eleição de Isaac que aí fora oferecido e pela sua ‘aquedah’15 mereceu a
eleição para dar início ao novo povo de Yahwé. Por isso, o culto sacrificial
continha não apenas a dimensão expiatória, mas também uma forte
componente de retribuição e comunhão com Deus, ou seja, de
reconciliação. A esta comunhão alude Paulo na 1 Cor 10,18 quando refere:
“Os que comem das vítimas acaso não estão em comunhão com o altar?”.
Importa ter presente que, com a destruição do Templo, os sacrifícios
foram abolidos e daí a razão da literatura sobre esta questão não ser muito
abundante. As tradições conservadas na Mishná, no tratado Zebajim,
constituem por isso a melhor documentação de que dispomos. O facto do
tema ter caído no esquecimento, incluindo na época talmúdica, porque já
não se praticavam sacrifícios pode explicar, em parte, a sensação que se
tem ao ler este tratado de que muitas das determinações aí contidas são para
nós pouco claras quando não carecidas de sentido.
5. O sábado
O ‘sábado’ é um dos elementos fundamentais no conjunto do
universo cultural do judaísmo e um dos pólos mais significativos da sua
liturgia16. Logo em Gn 2,2-3, o ‘sábado’ é apresentado como a coroa da
criação, coroa esta que é dada ao homem, mas da qual também Deus
participa: “Deus abençoou o sábado e santificou-o’. O verbo usado para
traduzir esta acção de Deus é lishbot (do verbo tbf) que significa ‘repousar-
se, parar de trabalhar’. O uso do termo deu origem a um conceito que vai
muito para além do seu significado original, uma vez que o ‘sábado’ não é
apenas a cessação do trabalho, mas antes um dinamismo de santificação
que implica essa cessação. Por isso, diversos textos17 ao longo da Escritura
recordam o repouso de Deus depois da criação (Ex 20,11) e é por esse
repouso que o sábado se tornou sagrado: ‘Ele é um sinal da Aliança’ (Ex
31,17) e da ‘comunhão de Deus com o Seu povo’ (Ez 20,12). Mais tarde, o
Deuteronómio ajunta um novo elemento que confere ao sábado uma nova
dimensão, associando-o à libertação do Egipto como um memorial que

15
‘Aqedah’ é o acto de Isaac ser atado em oferecimento sobre o altar para ser imolado por Abraão. Para o
judaísmo rabínico é pela sua disponibilidade que Isaac ganha méritos e fazem do seu gesto o acto
constitutivo do novo povo de Deus.
16
O hebraico shabbat (descansar, repousar) traduz um conceito que está muito para além do sentido que a
palavra assume no vocabulário corrente. Trata-se de uma instituição que marca a vida e o ritmo
existencial de cada judeu.
17
São inúmeras as alusões ao ‘sábado’, o que faz com que este se tenha tornado não apenas uma
instituição de referência para o judaísmo, mas também um elemento diferenciador face aos demais povos.
A essência do judaísmo passa pelo ‘sábado’, pois é indissociável do conceito de santificação que lhe é
inerente, como referem muitos dos textos bíblicos: Am 8,5; Is 56,1-7; Jr 17,19-27; Ez 20,16-21; Ne
9,13-14; 10,33,34; 13,15-23; 1 Mac 2,31-41; 2 Mac 15,1-5.

9
perpetua essa ‘nova criação’ (Dt 5,15), já que a saída da terra do Egipto é o
acto fundador do povo de Israel. Por isso, todo aquele que profana ou não
santifica o ‘sábado’ renega a sua identidade de israelita e exclui-se a si
mesmo do povo eleito (Ex 31,14.16-17), assemelhando-se assim aos
pagãos.
No que diz respeito à liturgia do ‘sábado’, esta inicia-se com a
cerimónia qabbalat hashabbat que, traduzindo à letra, se pode chamar ‘a
recepção ao sábado’ e que consiste numa liturgia familiar, composta por
uma refeição festiva18 com toda a família ao entardecer de 6ª feira e que é
precedida do qiddush (a oração da bênção). O pai de família, no seu
regresso da oração sinagogal, “abençoa o pão e o vinho e louva a Deus por
ter escolhido o Seu povo e lhe ter dado o sábado”19. A recitação desta
oração era fundamentada pelos rabinos como um mandamento (um mitzvá)
a partir do próprio texto bíblico quando diz “recorda o dia de sábado para
santificá-lo”, sendo a bênção a expressão dessa santificação a que todo o
israelita estava comprometido. A preparação da mesa era confiada à mãe
que a devia ornar com velas acesas conforme a tradição recomendava20.
Alguns autores referem que deviam ser duas as velas a acender para assim
evocar os dois mandamentos: zakor (Ex 20,8 - recorda-te do dia de sábado
para santificá-lo) e shamor (Dt 5,12 - guardarás o dia de sábado para o
santificar), sintetizando em si a espiritualidade do ‘sábado’. Procedia-se
também à recitação de Salmos (Sl 95-99 e 29) que anunciavam o advento
do período messiânico e o repouso definitivo com Deus (ou seja, o eterno
sábado messiânico).
A segunda parte da liturgia do sábado consistia numa cerimónia com
o nome de la habdalah (que significa ‘separação’) e tinha lugar ao final da
tarde de sábado, pretendendo com isso estabelecer a ‘separação’ do dia
santificado dos demais dias considerados profanos. Esta cerimónia consiste
na recitação das três primeiras bênçãos do Shemoné eszé, após as quais se
acrescentava uma outra bênção chamada ata hibdalta que tem por
objectivo confirmar as diferenças estabelecidas por Deus. A inserção desta
oração no conjunto da celebração de ‘separação’ do ‘sábado’ era objecto de
disputa entre os rabinos21. Vejamos o seu sentido:
18
A tradição rabínica punha muito em evidência o gosto e o sabor especial que as comidas do dia de
sábado tinham, contando-se algumas histórias a tal respeito. Por exemplo, segundo o Talmud, Adriano
teria perguntado um dia a Rabbi Yehoshúa ben Janina qual a razão porque as comidas que os judeus
preparavam para o shabbat tinham sempre uma fragância especial, ao que o Rabbi respondeu: ‘O judeu
possui uma especiaria que se chama shabbat; isso é o que ele introduz nas comidas e lhes confere essse
sabor especial. Dá-me um pouco disso, requereu o imperador romano ao rabino. Este replicou-lhe: Esta
especiaria é só eficaz para aquele que observa o sábado e não serve para mais ninguém’, cf. Shab 119ª. O
mesmo se teria passado entre Rabbi Yehudá e o imperador Antonino, Bereshit Rabbá 11.
19
F. MANNS, Le judaïsme, 102.
20
O número de velas podia variar de acordo com diversas tradições: 7 (para recordar os dias da semana),
10 (em memória dos 10 mandamentos), diversas (conforme os filhos da família), uma (recordando o dom
da vida), etc.
21
Cf. Mishná, Berakôt 5,2.

10
“Tu separaste o sagrado do profano, a luz das trevas, Israel das nações, o
sétimo dia dos seis dias de trabalho. Tal como Tu nos separaste das nações
do mundo e das famílias da terra, purifica-nos também e afasta de nós todo
o pecado e toda a transgressão. Concede-nos o conhecimento, a
inteligência e a sabedoria. Bendito és Tu, Yahwé, que concedes o
conhecimento”22.
Podemos dizer, em jeito de síntese, que o sábado encerra em si uma
tríplice dimensão. Por um lado, ele transmite e contém em si algo da
essência de Deus, já que Deus ‘descansou e santificou o sábado’, devendo
o homem, à imitação do Criador, também descansar e santificar o sábado.
Por outro lado, o sábado contém igualmente, como já referimos, uma
dimensão social, pois não apenas os israelitas, mas também os escravos e
os animais beneficiam dessa dimensão, pois partilham também eles da
dimensão do Criador (Dt, 5,12-15). Mas, para além destas, o sábado
encerra em si uma terceira dimensão que é a de ser sinal da aliança que os
‘filhos de Israel devem guardar de geração em geração como aliança
eterna’ (Ex 31,16-17). Eis toda a riqueza teológica que o sábado em si
encerra.
6. Vestes e utensílios da oração
Para além das vestes próprias do sumo-sacerdote para cada festa,
donde se destacam as que eram empregues na celebração de Yom Kippur,
os israelitas usam diversas vestes e utensílios nas suas festividades e
também na oração sinagogal. Alguns são de uso obrigatório e assumem
uma importância notável, razão pela qual nos parece oportuno deixar aqui
uma breve palavra explicativa, já que o seu emprego confere ao momento
celebrativo uma dimensão singular. Para além de outros, têm um especial
significado as filactérias e tefilîm, a kipa, a mezuza e o talit. São utensílios
que estão ligados à oração na Sinagoga, embora alguns deles remontem, de
acordo com a própria tradição judaica, ao período do 2º Templo.
As filactérias e tefilîm aparecem já mencionadas nos textos da
23
Torah e podemos constatar a sua existência ao tempo do NT (Mt 23,5). O
seu uso pode também ser documentado pelas descobertas de Qumrãn que
remontam ao período da revolta de Bar Kokba, em 135. O termo bíblico
para designar as filactérias é totafot que o Targum traduziu por Tefilîm,
derivado da raiz phalal ou taphal, significando ‘separar, dividir ou fixar’.
Ao usar os Tefilîm o crente judeu “testemunha diante do mundo que ele
está separado dos outros povos. A separação faz dele um ser à parte”24.
Trata-se de duas tiras de couro que saem de um pequeno invólucro,
uma pequena caixinha, onde está contido um pequeno escrito com alguns

22
Seguimos aqui a tradução de S. GOLDSCHMIDT, Seder Rab ‘Amram Gaon, Jerusalem, 1971, 81.
23
Ex 13,9.16; Dt 6,8; 11,18.
24
F. MANNS, La prière d’Israël à l’heure de Jesus, Jerusalém, 1986, 107.

11
versículos da Torah25. Nos momentos da oração, nas festas, nas escolas
enquanto aprende a Lei e a recita ou na celebração da maturidade religiosa
dos jovens (no chamado Bar Mitzvah, baptismo da Lei)26, deve-se usar os
Tefilim para testemunhar que a Torah assume uma total centralidade na fé
bíblica. Em geral, os Tefilîm são atribuídos aos jovens por ocasião do seu
Bar Mitzvah para assim testemunhar que nesse momento se inicia a sua
maioridade religiosa. Uma das tiras de couro que saem da pequena caixa
que se coloca na testa deve ser enrolada à volta da cabeça e a outra no
braço esquerdo, apertando-o junto ao coração. Nessa caixinha são escritos à
mão textos bíblicos de Ex 13,9.16; Dt 6,8-9; 11,18, textos estes que
recordam o preceito de trazer diante dos olhos e nas mãos os preceitos de
Yahwé.
Quanto à kipa, trata-se de um pequeno chapéu ou gorro que é
colocado na cabeça para a oração, embora também seja muito usado pelos
homens na vida quotidiana. Este pequeno solidéu cobre a cabeça como
sinal de respeito diante de Deus. Todos os momentos de oração devem ser
feitos com a cabeça coberta, pelo que o seu uso é sempre obrigatório.
No que diz respeito ao talit, é uma espécie de manto ou xaile que
deve ser colocado sobre os ombros e as costas nos momentos de oração. A
ele se faz alusão em Mt 23,5, embora o seu uso seja já mencionado em Dt
22,12 e também em Nm 15,37-40. Trata-se de uma peça branca, com riscas
azuis e escuras da qual pendem alguns fios nas suas pontas. O objectivo
destes fios atados às extremidades do talit é o de recordar os mandamentos
do Senhor, dados a Israel, e que os israelitas devem ter permanentemente
presentes27. Embora se trate de uma peça que está profundamente ligada à
oração, hoje em dia muitos judeus usam na vida corrente uma espécie de
escapulário de lã, chamado kanfôt, por baixo da roupa exterior e que
substitui o talit.
O uso destas vestes era obrigatório para os homens, mesmo
prosélitos, embora conforme a tradição talmúdica28 a obrigatoriedade desse
uso nem sempre tenha sido uniforme.
Uma palavra final sobre a mezuza, um pequeno estojo em metal ou
madeira, contendo um pequeno pergaminho com os textos de Dt 6,4-9; 11;
13-21 que se fixa sobre o montante direito das portas na entrada das casas.

25
Na tradição antiga, a pequena caixa dos Tefilîm continha também o decálogo, tal como sucedia nas
mezuzôt (que se colocam na entrada das portas). Este uso de introduzir o decálogo foi abandonado devido
ao facto dos cristãos terem assumido os mandamentos como parte fundamental da Escritura, cf S. BEN
CHORIN, Le judaïsme en prière, 47.
26
Trata-se da festa que confirma que o jovem judeu é já adulto e responsável na vivência da sua fé, razão
pela qual a partir desse momento ele deve mostrar a sua fidelidade à Torah, aos mandamentos, assumindo
assim a maioridade como crente diante de Deus.
27
A túnica ‘sem costura’ a que alude S. João (19,23) é, segundo S. BEN CHORIN (Le judaïsme en
prière, 51), algo semelhante a um talit.
28
Menahot 43a-44a.

12
Ao entrar, é habitual beijar a mezuza, manifestando assim a veneração aos
preceitos de Yahwé e implorando a sua bênção.
7. A festa da Páscoa judaica
A festa da Páscoa (Pesah) é de todas a mais significativa do
calendário judaico e a primeira das chamadas ‘festas de peregrinação’ (Hag
haRegalîm)29. Estas festas celebravam os principais acontecimentos da
história da salvação e, por isso, todo o israelita devia ‘subir’ a Jerusalém
por ocasião de uma destas três festas, para aí festejar os dons de Deus e a
Sua aliança. A celebração da Páscoa, na noite de 14 de Nisãn, estava
inserida e dava início a uma outra festa, a dos Ázimos que durava sete dias
e se concluía com uma convocação solene no 7º dia da festa (Dt 16,8) 30 que
encerrava o ciclo da solenidade pascal.
As fontes bíblicas são abundantes no que diz respeito às motivações
e à evocação destas festas. A Páscoa era essencialmente um ‘memorial’ (Ex
12,14) da libertação do Egipto. Em Jos 5,10-11, após a passagem do
Jordão, os israelitas celebraram a 1ª Páscoa já na terra prometida, ‘comendo
dos frutos da terra: pães ázimos e espigas tostadas’. Trata-se, naturalmente,
de uma espécie de ritual de ‘exorcização’ do local, para aí manifestar a
supremacia sobre os costumes dos cananeus. Segundo Manns 31, os textos
da tradição do Êxodo já combinavam as diferentes tradições das tribos.
Assim, Ex 23,15-19, que tinha a sua origem no Norte conhecia a tradição
dos ázimos mas desconhecia a Páscoa, enquanto que em Ex 34
encontramos já uma conjugação dos dois ritos, conjugação esta que depois
está consagrada em Lv 23,5-8 e Dt 16,1-8. Por sua vez, o livro das
Crónicas faz-se eco de duas celebrações da Páscoa: uma ao tempo de
Ezequias (2 Cr 30,1) e a outra na época de Josias (2 Cr 35,1). O seu ritual
evoca a saída do Egipto com a imolação do cordeiro no Templo e a
aspersão do altar com o seu sangue.
A literatura apócrifa dá igualmente grande relevo à celebração da
festa de Páscoa. O livro dos Jubileus faz remontar a celebração da Páscoa a
Abraão e estabelece uma relação intrínseca entre o sacrifício de Isaac e a
festa (18,13-19). Esta mesma relação encontra-se também no Targum Lv
26,46, em que o sacrifício de Isaac é considerado como o verdadeiro
fundamento da Aliança.
Enquanto o judaísmo palestinense destacava esta relação entre o
sacrificio de Isaac e a Páscoa, o judaísmo alexandrino sublinhava mais o
sentido alegórico da festa, como símbolo da primeira criação e anúncio da
nova criação. É particularmente Filão de Alexandria32 que desenvolve este
29
As outras duas festas eram a do Pentecostes e a das Tendas.
30
As duas festas tinham uma legislação própria conforme os textos de Ex 23 e 34 e Lv 23, embora com o
tempo acabassem por se confundirem ou serem assimiladas mutuamente.
31
F. MANNS, Le judaïsme, 107.
32
De specialibus legibus II,18.

13
sentido alegórico da saída do Egipto, fazendo desta festa um ‘memorial’ e
uma ‘acção de graças’ da libertação. Idêntica perspectiva encontra-se no
livro da Sabedoria com um sentido de reactualização do tema do êxodo
para a comunidade judaica de Alexandria.
O centro da celebração litúrgica da festa da Páscoa decorria no
Templo e nas famílias, com o Seder pascal: a refeição da família. É a partir
da reunião familiar que se desenvolve a Aggadah pascal que é, ao mesmo
tempo, um ‘ordo’ da refeição e um memorial do acontecimento celebrado
que não se confina apenas à libertação do Egipto, mas também abarca os
principais momentos da história da salvação.
No que diz respeito à liturgia sinagogal, um dos textos mais belos e
sugestivos sobre esta festa é aquele que nos provém do Targum Neófiti.
Trata-se de um comentário de tipo midráshico que encontra o seu
desenvolvimento a partir do facto do autor de Ex 12 referir 4 vezes o termo
‘noite’. Vejamos:
“Quatro são as noites que estão inscritas no livro das memórias. A
primeira noite Deus manifestou-se sobre o mundo para o criar. O mundo
era confusão e trevas. As trevas cobriam o abismo. A Palavra de Yahwé
era a luz e brilhava. Chamou-se a primeira noite.
A segunda noite, quando Yahwé apareceu a Abraão com a idade de 100
anos e a Sarah, sua esposa, com a idade de 90 anos, para realizar a
Escritura que diz: Será que Abraão, com 100 anos de idade, vai gerar e
Sarah, sua esposa, com 90 anos, vai dar à luz? Isaac tinha 37 anos quando
foi oferecido em sacrifício sobre o altar… Chamou-se a segunda noite.
A terceira noite Yahwé apareceu aos egípcios no meio da noite: a sua mão
matou os primogénitos dos egípcios e a sua direita protegeu os
primogénitos de Israel para que se cumprisse a Escritura que diz: Meu
filho primogénito, é Israel… Chamou-se a terceira noite.
A quarta noite o mundo chegará ao seu fim para ser destruído; os jugos de
ferro serão destruídos e as gerações perversas serão aniquiladas. Moisés
subirá do meio do deserto e o Rei Messias virá do alto. Um caminhará à
frente do rebanho e o outro caminhará à frente do rebanho e a sua Palavra
caminhará entre os dois. Eu e eles caminharemos lado a lado. É a noite da
Páscoa para a libertação de todo Israel”33.
Quanto aos textos rabínicos, a Páscoa aparece também bem
documentada nessas fontes, particularmente no tratado Pesahim da Mishná.
Os capítulos 5º e 10º oferecem-nos uma detalhada descrição dos ritos
fundamentais da festa segundo a tradição rabínica, mas recolhendo
tradições que, provavelmente, são já do período posterior à destruição do
Templo, uma vez que não há alusões à celebração festiva no Templo e os
rabinos citados são, em geral, também do período posterior a 70. Os rituais
festivos que este tratado nos apresenta têm uma forte componente alusiva à
celebração familiar e assemelham-se em muito às tradições que se
33
Targum Neófiti a Ex 12,42.

14
perpetuam na Aggadah pascal que é um texto que condensa em si esse
sentido da festa celebrada e vivida na família como memorial da história da
salvação.
Em termos teológicos, a festa de Páscoa é sem dúvida a mais rica de
todas do calendário judaico. Nela se cruzam certamente tradições muito
díspares, mas que pouco a pouco se foram cruzando e convergindo para o
sentido da libertação do Egipto, apesar de nem todas as tribos terem tido a
mesma experiência de saída do Egipto nem de passagem pelo Sinal.
Poderemos sintetizar a teologia da Páscoa em 3 grandes perspectivas:
a) Sentido messiânico-escatológico da celebração pascal
A festa actualiza a saída do Egipto na vida da comunidade e, ao
mesmo tempo, antecipa a libertação definitiva. A simbologia dos ritos
festivos têm uma dimensão escatológica, prefigurada no vinho do banquete
messiânico, tal como o deixa entender o Targum do Cântico dos Cânticos.
De acordo com Gn 49,11, o vinho tem um sentido profundamente
messiânico, pois o Messias lavará as suas vestes no sangue da videira34.
Esta dimensão messiânica é também confirmada por Pesah 9,11 que refere
que ‘os habitantes de Jerusalém convidavam os pobres para a refeição
pascal, já que Elias se manifestaria sob a forma de um pobre, antes do
advento do Messias que deve acontecer na noite pascal.
A Páscoa é também a festa do anúncio da libertação que Yahwé
concede ao seu povo, fazendo-o passar da ‘casa da escravidão’ que era o
Egipto para a libertação que é a Terra Prometida. Não se trata de um
anúncio celebrativo, memória do passado; ele é antes um grito de esperança
que percorre toda a história do povo e aberto ao futuro. De facto, a
perspectiva escatológica da liturgia pascal está bem presente num texto
atribuído a Rabban Gamaliel35, em que cada um dos crentes judeus é
convidado a celebrar a festa como se ele próprio tivesse estado presente na
altura da sua instituição. Diz o texto:
“Cada um de nós tem o dever de se considerar como se ele próprio tivesse
saído do Egipto, já que está escrito: Explicarás ao teu filho naquele dia,
dizendo: ‘É pelo que o Senhor fez em meu favor quando saí da terra do
Egipto’. Por isso, estamos obrigados a dar-lhe graças, louvá-lo, cantar,
magnificar, exaltar, glorificar, bendizer aquele que fez, em favor dos
nossos antepassados e por nós, todos estes prodígios. Ele conduziu-nos da
escravidão à liberdade, da tristeza à alegria, do luto à festa, das trevas à
luz, da escravidão à redenção. Cantemos em Seu louvor, Aleluia”.

34
Na refeição pascal cada israelita devia beber 4 taças de vinho, de acordo com o rito da Ceia (Seder),
devendo permanecer uma 5ª taça na mesa em honra de Elias, já que Elias era esperado na noite pascal e
devia tomar parte no banquele celebrativo. Embora se trate de uma prescrição da Halakah, a imaginação
popular, como diz BEN CHORIN (Le Judaïsme en prière, 136), estabeleceu uma “relação entre a taça do
profeta Elias e a oração de Jesus no Getsémani” quando suplica ao Pai: ‘Meu Pai, se é possível afasta de
mim este cálice’ (Mt 26,39). Era o cálice que evoca a chegada dos tempos messiânicos.
35
Mishná, Pesah, 10,5.

15
Esta dimensão escatológica da festa é aquela que melhor se coaduna
e que mais facilmente foi assumida pela liturgia cristã. De acordo com os
Evangelhos Sinópticos, o próprio Jesus tinha consciência da dimensão
escatológica da Sua ceia pascal, quando após a bênção da taça do vinho
acrescenta: “Eu vos asseguro que já não beberei do fruto da videira até ao
dia em que o beba de novo no reino de Deus (Mc 14,25)”36. Jesus não só
conferiu à refeição pascal com os discípulos este sentido escatológico, mas
também a própria comunidade cristã primitiva encontrou aqui a ‘chave de
leitura’ da vida do Mestre. O seu sangue, tal como o do ‘cordeiro pascal’,
selou uma nova aliança, a aliança escatológica que fora proclamada pelos
profetas e que agora se concretiza no mistério da sua Páscoa.
b) A Páscoa como nova criação
O judaísmo alexandrino cultivou muito o método alegórico e
simbólico na sequência da tradição platónica. Muitos dos acontecimentos
da história do povo de Israel foram interpretados e comentados como
alegorias de realidades futuras ou, então, como protótipos dos verdadeiros
mistérios da salvação37. Também com a festa da Páscoa sucede o mesmo.
Assim, sendo o mês de Nisãn o primeiro dos meses (Ex 12,2)38, Filão de
Alexandria interpreta isso como sendo ‘um memorial da origem do
mundo’39 e a Páscoa, enquanto festa da primavera, era o memorial da nova
criação que Deus realiza, libertando o Seu povo da escravidão para a
liberdade40. A leitura do Cântico dos Cânticos (Shir haShirim) que era feita
na liturgia pascal confere a esta celebração um sentido de ‘núpcias festivas’
entre Deus e o Seu povo e dessas núpcias nasce um povo novo, o povo da
aliança. A própria tradição rabínica também interpreta o “êxodo como uma
espécie de criação precedendo o nascimento de Israel”41, já que para certos
rabinos a origem do mundo teria tido lugar no mês de Nisãn. A própria
simbologia dos pães ázimos’ (os matzot) confere o significado de algo
novo, original à celebração, determinando assim o começo de uma
realidade que se inicia sem qualquer mácula, ou seja, em santidade. O
mesmo se passa com o ‘ovo’ que se coloca na ceia pascal, simbolizando a
36
A tradição judaica fala das 4 taças de vinho que se deviam beber durante a ceia pascal, às quais era
costume juntar uma quinta, a taça de Elias, o profeta que vinha na noite de Páscoa, evocando assim os
tempos messiânicos. Segundo Malaquias (3,23), Elias é o mensageiro do Messias que vem à frente a
preparar-lhe o caminho (Mc 9,11-13).
37
Filão de Alexandria dizia: “As coisas claras que são ditas são símbolos de coisas escondidas e
obscuras” (De specialibus legibus I, 200).
38
Trata-se do 1º mês do ano religioso ou ano cultual, já que o ano civil começa com a festa de Rosh
haShanah, no mês de Tishri que corresponde ao nosso Setembro-Outubro. De facto, a Páscoa era a festa
das festas e daí que fosse ela a marcar o ritmo de toda a liturgia judaica, já que a lua nova de Nisãn
determinava todo o ritmo festivo do ano. Todavia, é bom ter presente que este calendário é tardio,
retomando inclusive nomes de alguns meses do calendário de Babilónia.
39
De specialibus legibus II,151.168.
40
“A Páscoa tem um sentido universal pela sua relação com a harmonia da natureza. Porque a primavera
nascente trás com ela uma renovação que recorda a criação” (De specialibus legibus II, 150-155), cf. La
Pâque: fête juive et fête chrétienne, Le Monde de la Bible 43, Paris, 1986, 19.
41
Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 113.

16
origem da vida e, ao mesmo tempo, a vida nova da ressurreição, já que o
ovo contém o gérmen da vida na sua plenitude.
Podemos dizer que a liturgia pascal é, por ela mesma, um apelo à
esperança, não só a Israel, mas também a toda a humanidade, que se renova
num novo dinamismo de libertação. É esta a mensagem que o texto de Pesh
10,5 nos deixa quando diz que a Páscoa é a passagem ‘das trevas à luz’,
passagem que o Targum confirma pondo a noite pascal em ligação com a
noite da criação.
c) A Páscoa e a ‘Aqedah’ de Isaac
A liturgia judaica, tal como se pode constatar pelo texto do Tg
Neófiti a Ex 12,42, estabelecia uma estreita relação entre a festa da Páscoa
e o sacrifício de Isaac. Esta relação foi também assumida pela liturgia cristã
que na noite de Páscoa retoma a leitura de Gn 22 como um dos momentos
mais significativos da história da salvação e pré-figuração do sacrifício de
Cristo, o novo Isaac.
De facto, a teologia judaica sempre interpretou a entrega de Isaac no
país de Moriá como o nascimento do povo de Israel na pessoa do filho de
Abraão. É em atenção aos méritos de Isaac que Israel subsiste aos olhos de
Deus. Para o Livro dos Jubileus (18,3), o sacrifício de Isaac teve lugar a 15
de Nisãn. A intenção do autor dos Jubileus é a de mostrar que as festas
judaicas, especialmente a mais importante de todas – a Páscoa – tinham já
uma origem patriarcal através da concretização do apelo que Yahwé lhe
fizera. Os sete dias da festa de Páscoa eram a ‘memória’ dos sete dias da
viagem de Abraão até ao país de Moriá. O mesmo se pode deduzir desta
aggadah a Ex 12,2 que diz:
“Este mês será para vós o primeiro dos meses (Ex 12,2). O Santo, bendito
seja Ele, designou para os israelitas um mês de redenção no qual eles
foram redimidos do Egipto e no qual eles serão redimidos… Nesse mês
nasceu Isaac, e nesse mês ele foi ‘ligado’”42.
No entanto, a relação simbólica entre os dois acontecimentos não se
restringe apenas à data; é muito mais profunda. Assim, o cordeiro pascal
recorda o cordeiro sacrificado por Abraão em substituição do próprio filho,
embora, como diz o Targum, Isaac é o verdadeiro cordeiro para o
sacrifício. Ele mesmo, quando está a ser atado ao altar, suplica ao pai para
que o ate bem, já que não quer remexer-se nem manifestar qualquer recusa
da sua entrega, a fim de que o seu sacrifício não seja inválido e desta forma
Israel possa ser redimido pelos seus méritos. Isaac é assim a perfeita
imagem do ‘cordeiro pascal’ que se oferece para merecer a salvação para
Israel. Por sua vez, o Targum de Lv 22,27 reconhece que os cordeiros
oferecidos no Templo o eram para ‘fazer memória’ do sacrifício de Isaac.
Desta forma, Isaac é o protótipo do crente israelita que se entrega a Deus

42
Ex Rabbah 15,11.

17
para expiar o pecado do mundo, tal como outrora ele se oferecera no altar.
Foi em atenção ao sacrifício de Isaac que Yahwé preservou, na noite pascal
da libertação através do sangue do cordeiro, os primogénitos dos israelitas.
Esta teologia fundada na Aqedah de Isaac foi também desenvolvida
pelos autores cristãos que a aplicaram ao sacrifício de Cristo, tal como nos
mostra Melitão de Sardes no seu Peri Pascha. O facto do judaísmo pós-
rabínico e moderno ter transferido o memorial da Aqedah de Isaac para a
festa de Rosh haShanah (festa do ano novo, no mês de Tishri) pode ser uma
consequência da apropriação feita pelo cristianismo do tema do sacrifício
de Isaac e da sua releitura como chave interpretativa do sacrifício de Cristo,
novo Isaac.
8. A festa do Pentecostes ou das ‘semanas’
Trata-se de uma solenidade importante do calendário judaico que
encerra em si um significado muito diversificado, já que esta festa foi
conhecendo uma evolução muito acentuada ao longo dos tempos e
assumindo significações diversas de acordo com a evolução do próprio
judaísmo como tal. O nome mais antigo por que é conhecida era de ‘festa
das colheitas (Hag haqqâsír: Ex 23,16). O seu carácter agrário está ainda
bem presente numa outra designação por que era conhecida: a festa das
primícias (Hag haBikkûrim: Ex 34,22). Nela se ofereciam as primícias do
trigo que eram trazidas ao Templo numa atitude de agradecimento pelo
dom das colheitas.
O nome de ‘festa das semanas’ ou Hag haShavuôt põe em evidência
a relação que existia entre a festa e a Páscoa. De acordo com Lv 23,15-21,
a festa era celebrada sete semanas após os ázimos, com a entrega da oferta
do ‘omer (o molho de espigas), completando assim aquilo que poderíamos
chamar de quadra pascal43. Quanto à designação de ‘festa do Pentecostes’,
ela tem apenas um sentido temporal e pretende realçar o facto desta
celebração ocorrer no quinquagésimo dia após a Páscoa, apesar da data não
43
Para a tradição judaica, a forma de contar as ‘sete semanas’ que medeiam entre as duas festas nunca foi
passiva nem uniforme, mormente entre saduceus e fariseus. Com a predominância de algum destes
grupos no Sinédrio, a confusão por vezes era manifesta, tal como o deixa entender a diversidade de
calendários que eram seguidos. Para os Saduceus, a interpretação de Lv 23,15 era literal e por isso
afirmavam que a Escritura se referia ao dia seguinte ao primeiro sábado da quadra da Páscoa, a partir do
qual se deviam contar os 49 dias (sete semanas). Desta forma, a festa devia ser celebrada sempre no
primeiro dia da semana (ao domingo), no quinquagésimo dia depois da apresentação do ‘omer (molho de
espigas). Esta é a tradição que foi retomada pelo cristianismo que sempre conta quarenta e nove dias entre
a Páscoa e o Pentecostes. No entanto, o vocábulo Shabbat do texto de Lv 23,15 que serve de referência
para contar as sete semanas pode não indicar o dia semanal (o dia de sábado), mas antes o ‘dia de
preceito’ (dia de repouso – shabbat). Se assim fosse, então o quadragésimo nono dia (as setes semanas)
teria como referência o dia de Páscoa (esta interpretação pode apoiar-se em Jos 5,11). Por sua vez, os
Essénios e outros grupos que seguiam o calendário de Qumrãn, ou seja, o calendário solar, fixavam a data
da festa só a partir do 1º sábado depois da semana da Páscoa. Como a festa dos ázimos era a 15 de Nisãn
e o calendário era fixo, esta era celebrada sempre a uma 4ª feira, pelo que o 1º sábado depois da semana
da Páscoa seria o dia 25 do mês de Nisãn. Contadas assim as sete semanas, a festa tinha lugar a 15 do 3º
mês do calendário, ou seja, a 15 do mês de Sivan, tal como se pode deduzir da col. XVIII do Rótulo do
Templo encontrado em Qumrãn (cf. Y. YADIN, The Temple Scroll, 88).

18
ser uniformemente aceite por todos os grupos judaicos, conforme referimos
na nota anterior.
As referências bíblicas a esta celebração são inúmeras44, já que se
trata, juntamente com a Páscoa e as Tendas, de uma das três mais
importantes festas do calendário litúrgico, chamadas ‘festas de
peregrinação (Hag haRegalîm), durante as quais todo o varão israelita
devia subir, ao menos uma vez ao ano, a Jerusalém, para aí se apresentar
diante do Senhor, levando consigo as primícias da época em que decorria a
respectiva festa45.
a) A evolução da festa
Originariamente, todo o contexto e significado desta festa
apontava para um ambiente agrícola, profundamente ligado às primeiras
colheitas, o que constituía para o povo um momento de grande expectativa
e também de reconhecimento pelos frutos que começavam a ser colhidos.
No entanto, progressivamente ela foi assumindo um significado de carácter
histórico ligado ao Sinai como a ‘festa da renovação’ ou a ‘festa da entrega
da Lei’. Esta primeira perspectiva como festa da ‘renovação da aliança’
encontra-se já desenvolvida na tradição essénia (em Qumrãn) e sacerdotal
de que se faz eco o livro dos Jubileus, enquanto que a segunda, ‘festa da
entrega da Torah’, é mais desenvolvida pela tradição rabínica posterior,
mormente a partir da altura em que a Torah, devido à destruição do
Templo, assumiu a centralidade da liturgia judaica.
Em Jubileus 15,1, diz-se que Abraão já celebrou a festa das semanas,
embora aí se aluda ao seu carácter agrícola, pondo em realce a oferta das
primícias do trigo. Foi então que Yahwé firmou com ele uma aliança (15,4)
que deve ser guardada por ele e por toda a sua descendência (15,11). A
alusão às primícias é aqui apenas contextual, uma vez que a tónica é posta
na aliança e na sua teologia. De facto, a festa é apresentada como o início
da aliança entre Yahwé e Abraão e do compromisso mútuo de fidelidade de
que a circuncisão será um sinal perpétuo:
“Eu sou o Deus omnipotente, sê-me agradável e perfeito; estabelecerei a
minha aliança contigo e te multiplicarei” (Jub 15,3-4).
A alusão à festa das semanas é explícita em 6,17s, onde se diz que
nesta festividade se renovava a aliança todos os anos. Aliás, a festa tem um
acentuado cunho apocalíptico, destacando-se já a sua existência nos céus
desde a criação até à altura em que a sua celebração foi ordenada a Noé
(Jub 6,18). Ora, sendo o livro dos Jubileus um escrito ligado aos grupos
essénios e sacerdotais pré-essénios, é natural que ele deixe transparecer as
perspectivas teológicas da seita de Qumrãn no que diz respeito a esta
celebração. Era nesta altura que se fazia a admissão dos novos membros na
44
Ex 34,22; Lv 23,15s; Nm 28,26; Dt 16,10; 2 Cr 8,13.
45
O tratado da Mishná, Bikkurim 3, descreve-nos o processo como decorria a subida a Jerusalém para aí
apresentar no Templo as primícias e entregar aos sacerdotes os primeiros frutos da terra ou dos animais.

19
comunidade e se procedia à renovação da aliança46. Neste sentido, os
grandes acontecimentos da história da salvação tinham tido lugar nesta
festa: a aliança com Abraão e a promessa do nascimento de Isaac (Jub
15,19), o nascimento de Isaac (16,13), as bênçãos a Isaac e Ismael em plena
celebração da festa das semanas (Jub 22).
Em 2 Cro 15,10-15 alude-se a uma festa de renovação da aliança
aquando do reinado de ‘Asa (911-870), o que poderia constituir para o
autor do livro das Crónicas o fundamento de uma tradição sacerdotal sobre
a renovação da aliança do Sinai. Esta festa foi celebrada no 3º mês, ou seja,
no mês de Sivan (2 Cro 15,10) que era o mês de Hag haShavuôt (festa das
semanas).
Ora, a tradição sacerdotal do Pentateuco coloca neste mesmo mês a
aliança do Sinai entre Deus e Moisés (Ex 19,1). Neste contexto, a
celebração a que se refere 2 Cro 15,10-15 poderia ser o primeiro
testemunho da evolução da festa que, paulatinamente, foi perdendo a sua
significação agrícola ligada às primícias, tornando-se, em virtude da
teologia sacerdotal, uma festa ligada à aliança do Sinai e ao dom da
Torah47.
A par desta tradição da renovação da aliança sinaítica que
provavelmente já existia ao tempo do NT, encontramos, no séc. II (d.C.), as
primeiras referências explícitas que nos atestam uma outra perspectiva
teológica sobre a festa do Pentecostes: o dom da Torah48, perspectiva esta
que passará a constituir o tema central desta festa na liturgia sinagogal.
Para fundamentar esta perspectiva, os rabinos raciocinavam com
cálculos baseados nas passagens da Escritura que aludiam à caminhada de
Israel através do deserto e à sua chegada ao Sinai, provando que a entrega
da Torah a Moisés no monte Sinai ocorreu a 6 do mês de Sivan49 que era o
46
O rito da admissão dos novos membros na comunidade de Qumrãn significava, segundo o espírito dos
qumranitas, o início da salvação daqueles que eram admitidos, pois só os membros do grupo, os ‘filhos da
luz’ ou ‘filhos da aliança’ alcançavam a salvação.
47
Importa ter presente que tanto o livro das Crónicas como o dos Jubileus têm a sua origem nos círculos
sacerdotais, podendo os dois (Crónicas e Jubileus) testemunhar uma tradição comum que se foi impondo
nos grupos sectários que viviam à margem do judaísmo oficial e do culto do Templo, entre os quais a
festa acabou por se impor. Os dados fornecidos por FILÃO de ALEXANDRIA (De Vita Contemplativa,
65) sobre a celebração da festa entre os Terapeutas (seita judaica que vivia em Alexandria) vão no mesmo
sentido. Estes celebravam a festa com uma refeição integrada por um conjunto de ritos que recordam a
aliança do Sinai (uma refeição que compreendia um conjunto de ritos e era composta por pão, sal, água e
hissope; pão e sal são o sinal da aliança eterna; a água purifica, tal como o hissope que recorda o rito da
purificação com o qual se concluía a aliança. Além disso, a água é também símbolo do Espírito que está
associado ao dom da Torah).
48
A complexidade das diversas tradições e a falta de elementos claros acerca desta festa não tem
proporcionado aos diferentes autores encontrar uma significação que seja por todos aceite (cf. SAFRAI –
STERN, The Jewish People in the First Century, Assen-Amsterdam, 1976, 893, pensa que era uma festa
agrícola; M. WEINFELD, “Pentecost as Festival of the Giving oh the Law”, Immanuel 8 (1978) 7-18, diz
que se trata da comemoração do dom da Torah no Sinai).
49
Cf. Shab 86b; Yoma 4b; Mikilta Shemot 9,1-10. Aliás, é interessante o comentário da Pesikta De-Rab
Kahana, Piska 12, ed. De W. Braude e I. Kapstein, Philadelphia, 1978 (ed.), 227s que, comentando o
texto de Ex 19,1-20,26, a leitura da festa do Pentecostes, alude aos preceitos da tradição rabínica que

20
1º dia da festa das semanas (Hag haShavuôt). O Talmud de Babilónia
(Pesah 68b) transmite-nos uma afirmação de Rabbi Eleazar (por volta de
250 d.C.) que relaciona a festa do Pentecostes com o dom da Lei no Sinai:
“O Pentecostes é o dia em que foi dada a Torah”.
Desta forma, facilmente se pode verificar como o carácter
originariamente agrário desta festa se foi perdendo, dando lugar a uma
perspectiva teológica mais centrada na Torah e na sua entrega a Israel. A
razão desta evolução de perspectiva teológica tem certamente muito a ver
com a situação histórica do judaísmo após a destruição do Templo. De
facto, não fazia sentido conferir a esta festa uma dimensão que o povo já
não podia celebrar, pois não havia Templo, nem culto oficial, nem
sacerdócio, nem apresentação e entrega das primícias, sendo a renovação
da aliança apenas um ‘fazer memória’ agora no presente de algo que não se
podia reconfirmar na liturgia sinagogal.
Ao contrário do que sucedera com o culto, a Torah tinha-se tornado,
face às circunstâncias de diáspora da comunidade judaica, o centro do
judaísmo; a vida do povo judeu estava agora totalmente centralizada na Lei
e nos comportamentos por ela impostos como expressão vivencial da fé.
Assim, da renovação da aliança para o dom da Lei foi apenas uma pequena
evolução confirmada pelas tradições rabínicas acerca da festa do
Pentecostes, inserindo-a desta forma no centro da liturgia sinagogal. Por
isso, como diz Yaacov Vainstein, “Shavuôt traduz plenamente a eterna
verdade que Israel, a Torah e a terra de Israel são uma unidade
indivisível”50.

Como vemos, parece claro que a festa foi perdendo importância


depois da destruição do Templo, não se perpetuando muitos ecos do
período anterior, salvo as alusões à apresentação das primícias que se
mantêm na liturgia sinagogal, já que aí se lia nesta ocasião o Targum de
Ruth51. Ruth está associada à festa das colheitas e essa associação tem

representam a explicitação da Torah. Segundo esta tradição, foram dados a Israel 613 mandamentos, dos
quais 248 são positivos (tantos quantos os membros que compõem o corpo humano) e 365 negativos
(tantos como os dias do ano). Tudo isto testemunha já como a tradição rabínica desenvolveu a sua
perspectiva legalista à sombra desta festa, ligando-a ao carácter normativo da Lei e reforçando a sua
centralidade na vida e na piedade judaica. Desta forma, facilmente se pode deduzir que por trás da
celebração da festa há uma tradição muito forte que a liga à recordação da entrega da Torah no monte
Sinai. A Pesikta De-Rab Kahana é um midrash formado por um conjunto de homilias para os diversos
serviços litúrgicos da sinagoga e a homilia a que aqui aludimos (a Piska 12) era proferida no dia da festa
do Pentecostes. As suas tradições são antigas e, como tal, podem testemunhar um uso do judaísmo já
antigo.
50
Y. VAINSTEIN, El ciclo del año judio: Un estudio sobre las fiestas y sobre selecciones de los rezos,
Jerusalem 5740/1980.
51
O Targum de Ruth (tradução-interpretação em aramaico) era lido na festa do Pentecostes, narrando a
história de Ruth (a moabita) que veio a ser a avó de David. Este texto tinha um acentuado cunho
messiânico. Um outro texto que também era lido nesta quadra festiva era o Targum Sheni de Ester (ou
seja, o Targum de Ester, 2ª versão). Era um texto com muitas tradições midráshicas antigas, o que confere
a este texto um valor muito representativo.

21
como fundamento o modo como ela abraçou a religião israelita. Desta
forma, servindo-se do Targum de Ruth, a liturgia sinagogal queria pôr em
evidência uma outra realidade: a conversão dos pagãos à religião de Israel.
O texto targúmico é bem explícito ao realçar a atitude de Ruth que ‘deseja
ser prosélita’52. Por sua vez, Noemi, sua sogra, recorda-lhe a obrigação de
guardar os sábados e os dias de festa, bem como os ‘seiscentos e treze
preceitos’. A fórmula de fé que Ruth profere é: “O teu Deus será o meu
Deus”53. Numa outra passagem, o Targum de Ruth alude à protecção que a
Shekinah (glória - presença) de Yahwé concede aos que se tornam
prosélitos e que, por isso, não serão condenados ao juízo da Geena (2,12).
As tradições targúmicas sobre a festa do Pentecostes são muito
abundantes e diversificadas. Por exemplo, o Targum Ex 24 fala-nos dos
primogénitos que pertencem a Yahwé (24,5). Em 24,8 alude-se à aspersão
do sangue sobre o povo e sobre o altar numa referência clara à purificação
que antecede a conclusão da aliança, mostrando-nos assim que a solenidade
de Shavuôt mantinha o seu carácter agrícola e recordava, igualmente, a
celebração da aliança no Sinai.
Um outro elemento significativo sobre a festa do Pentecostes é-nos
dado pelo Targum de Habacuc 3. Trata-se de um texto que é uma espécie
de complemento a Dt 16,9-1254. Ora, para além dos textos da Torah55 que
conferiam a esta festa um profundo significado agrícola, o Targum de
Habacuc, 3, não alude em nada a esse contexto. Logo, é de supor que o
texto targúmico era utilizado nesta altura porque a celebração de Shavuôt
tinha então recebido uma nova orientação teológica56.
O Targum de Habacuc por sua vez realça a misericórdia e a
paciência de Deus para com os ímpios, esperando e dando tempo para a sua
conversão. Fala-se também da nova criação, dum novo êxodo que Yahwé
vai realizar. Os temas da teofania do Sinai estão muito presentes no
Targum, embora não façam parte do texto canónico de Habacuc. O
contexto global da versão targúmica é de aliança (3,10).
Admite-se que este Targum estivesse já em uso no séc. I (a.C.), pelo
que, se assim fosse, tratava-se de um texto contemporâneo aos textos de
Qumrãn. Aí pressente-se que a perspectiva agrária da festa se foi perdendo,
52
Tg Ruth 1,16.
53
Ruth e Tg Ruth 1,16.
54
O Targum de Habacuc 3 servia de ‘haphtarah’ à passagem do Dt, ou seja, trata-se do texto da secção
dos profetas que era lido na sinagoga como leitura complementar ao texto do Pentateuco e que constituía
uma espécie de comentário a esse texto. No caso aqui referido, o texto do Targum era uma espécie de
comentário à perícope de Dt 16,9-12.
55
Particularmente Lv 23,15-21 e Nm 28,26-31.
56
Um dado muito significativo a este respeito é o facto de ter sido encontrado em Qumrãn um Pesher de
Habacuc, ou seja, um comentário ao livro deste profeta, o que só por si já testemunha a importância que o
movimento dos essénios dava a este profeta. Todavia, o texto que foi encontrado termina no cap. II e, por
isso, nada nos diz sobre a interpretação que a seita fazia da visão que Habacuc descreve no cap. III. Aliás,
a leitura de Dt 16,9-12 nesta festa parece ser uma introdução tardia (Meg 3,5), tal como Ex 19,1s que
remontariam apenas ao séc. II da nossa era. Segundo o Talmud, Ex 19 seria a leitura da Torah para o 1º
dia da festa, enquanto que Dt 16,9-12 seria a leitura própria para o 2º dia.

22
tomando antes uma significação que aponta para a aliança, tal como aliás,
já era referido em Dt 16,9-12 com a alusão explícita à libertação do Egipto
e à prática dos preceitos da Lei. Este texto do Targum de Habacuc 3
apresenta uma série de temas teológicos que estão muito próximos do NT,
dos quais saliento: a necessidade e urgência da conversão, o perdão que é
concedido aos homens pela misericórdia divina, o anúncio da renovação do
mundo no fim dos tempos57.
Um outro texto da liturgia sinagogal sobre a festa de Shavuôt é o
Targum de Ez 1. No entanto, é difícil precisar quando é que esta perícope
começou a ser usada como haphtarah nesta festa. Na Mishná (Meg 4,10),
alude-se à leitura deste texto, embora se coloquem reservas ao seu uso
(Hag 2,1), uma vez que Ez 1 era uma passagem suspeita para o judaísmo
rabínico58. Por volta de 150 (d.C.), Rabbi Judá permitia a sua leitura,
enquanto que na Tosefta Meg 4,34 diz-se que esse capítulo de Ez podia ser
lido, mas não traduzido em língua vulgar, o que quer dizer que não podia
ser usado como targum na liturgia da sinagoga. No entanto, o Targum de
Ez 1 parece ser antigo, uma vez que existem certas ressonâncias das suas
tradições no livro de Henoc59 e as especulações sobre o ‘carro de Yahwé’
eram já conhecidas também em Qumrãn. Todavia, os rabinos tinham
colocado muitas reticências ao uso deste texto, uma vez que as
interpretações de carácter esotérico podiam pôr em questão a orientação
que o judaísmo rabínico pretendia conferir a esta festa.
No seu conjunto, os textos litúrgicos (targúmicos) que aqui referimos
mostram-nos que a festa de Shavuôt foi evoluindo na sua significação,
passando do sentido tipicamente agrícola para a comemoração do dom da
Lei, tema este que se tornou muito caro ao judaísmo rabínico, já que a
Torah estava no centro de todo o seu sistema religioso.

9. A festa das Tendas


O ciclo anual das ‘festas de peregrinação’ encerra-se com a
celebração de Sukkôt, também conhecida pelo nome de ‘festa das Tendas
ou Tabernáculos’. No que diz respeito ao nome Sukkôt, o midrash retoma
muitas vezes o seu significado, baseando-se nas palavras de R. Aqiba para
quem o termo significava “as nuvens da glória que foram dadas ao povo no
deserto para o proteger do sol”60. Por sua vez o Targum descreve essas sete

57
É interessante verificar como todos estes temas estão presentes, de forma mais directa ou indirecta, no
discurso de S. Pedro no dia do Pentecostes (Act 2).
58
As suspeitas que envolvem o texto de Ez 1 referem-se ao tema do ‘carro de Yahwé (Merkkabah
Yahwé) à volta do qual se desenvolveram interpretações místicas e esotéricas que punham em questão o
judaísmo legalista e normativo imposto pela reforma levada a cabo no sínodo de Yabné na sequência da
destruição do Templo. Este tema será, mais tarde, amplamente desenvolvido pelas correntes cabalísticas
do pensamento judaico medieval.
59
Henoc 14,9; 17,5.
60
Sifra Lv 23,42-43.

23
nuvens de glória que “protegeram Israel e o transportaram afastando todos
os obstáculos” do seu caminho e assim o povo pôde chegar à terra
prometida.
Tal como sucede com as festas anteriores, também a origem agrária
desta não é contestada pela tradição bíblica, já que na sua génese está o
tema das colheitas de Outono (Ex 23,16) que se celebrava durante oito dias,
de 15 a 22 do mês de Tishri (Lv 23,34), correspondendo ao Setembro-
Outubro do nosso calendário. O carácter agrícola da festa assume a sua
plena expressão simbólica nas ‘quatro espécies de ramos de árvores’ que os
fiéis deviam levar para dar ambiente festivo a esta solenidade (Lv 23,40)61.
É interessante notar como o Midrash faz uma interpretação desses
elementos vegetais que deviam ser usados na festa das Tendas, ligando o
seu simbolismo à Torah e à sua prática, o que empresta à festa de Sukkôt
um carácter profundamente messiânico à volta da Lei e do seu significado
para a vivência do povo62.
Mas, para além desta perspectiva, uma outra das ideias fundamentais
que está associada a esta festa é a da travessia do deserto que o povo
percorreu no seu regresso do Egipto e que, realçando a sua condição de
nómada, deu consistência na alma do povo israelita à ideia de ‘ser
peregrino na terra’ que recebera de Yahwé (Lv 23,42-42). Por isso,
subjacente a esta festa está a concepção do povo que é itinerante e que na
celebração das tendas, melhor que em qualquer outra época do calendário
litúrgico, vive e sente que a terra é dom de Deus e que a sua condição é a
de peregrino e ‘hommo viator’.
No seu início, a celebração desta festa parece ter tido uma certa
mobilidade em termos de calendário, tendo sido fixada a data do seu início
para o dia 15 do mês de Tishri (equivalente à lua cheia do equinócio de
Outono) apenas no período pós-exílio. Mais tarde, foi acrescentado um 8º
dia à celebração (Ne 8,17-18; Lv 23,36), conferindo-lhe um carácter festivo
e solene em louvor da Lei e concluindo desta forma as festas do calendário
litúrgico de Israel com um dia de ‘grande alegria’ (Simeghá Torah). O
ambiente de alegria que era conferido a esta solenidade esta bem presente
61
O texto bíblico refere estas quatro espécies de ramos de árvores com os seguintes nomes: êtrog (fruto
semelhante ao limão ou ramo de limoeiro), lulav, hadasim e aravot. Trata-se de árvores típicas da região,
entre as quais a palma, a murta, o limão. O sentido do uso desses ramos era o de traduzir a alegria e o
contentamento dos fiéis como agradecimento do dom das colheitas já recolhidas. Por isso, era uma festa
de grande alegria. A própria saudação que se usa nesta quadra festiva diz bem dessa alegria: Simeghá
Torah (alegria da Lei; festas alegres).
62
Suk 46b: “Tal como o etrog (ou ramo de limoeiro) tem um bom sabor e uma agradável fragância, assim
também entre os israelitas existem homens estudiosos da Torah e que praticam boas acções; um ramo de
palmeira, à semelhança do seu fruto, a tâmara tem bom sabor embora careça de aroma, assim existem
homens que tendo estudado não praticam o que aprenderam com perfeição; tal como o ramo de murta tem
um agradável aroma, porém é insosso, assim existem homens de boas acções que não possuem instrução;
da mesma forma que o molho de espigas não é comestível nem tem qualquer odor agradável, assim
também aqueles homens que não estudaram nem tão pouco praticam boas acções”. Temos quatro tipos de
pessoas que simbolizam a totalidade dos diversos grupos que formam uma nação, neste caso o povo de
Israel.

24
no provérbio que nos é transmitido pela Mishná, no tratado Sukkah:
“Quem não viveu o entusiasmo da ‘recolha da água’63 jamais conheceu a
alegria na sua vida”64. Neste dia completava-se igualmente o ‘ordo’ cíclico
das leituras da Torah na Sinagoga, já que no sábado seguinte à festa, o
chamado Shabbat Bereshit (1º sábado) se inaugurava um novo ciclo
litúrgico com a leitura dos Génesis.
Quanto à vivência propriamente dita desta festa, a sua singularidade
passa pelo facto de, durante sete dias, todo o israelita ser obrigado a viver
numa cabana ou tenda, devendo aí dormir e fazer a comida. Esta obrigação
estendia-se a todo o israelita varão, inclusive crianças, deste que já não
precisassem dos cuidados maternos, bem como aos prosélitos e aos
escravos que entretanto tinham alcançado a liberdade, estando dela apenas
isentas as mulheres, os doentes e escravos.
Na história bíblica são referidos alguns momentos importantes que
coincidiram com a celebração de Sukkôt, pondo em relevo, desta forma, o
carácter universalista que a festa veio a assumir pouco a pouco no
judaísmo. Assim, em 1 Re 8,60-61 diz-se que a dedicação do Templo de
Salomão foi realizada por ocasião da festa. Também no regresso do exílio
esta celebração revestia grande solenidade (Esd 3,4; Ne 8,13-18), fazendo-
se expressa menção dos sacrifícios e holocaustos que eram oferecidos65.
Além disso, a festa assumiu também uma forte componente messiânica
conforme podemos constatar na palavra do profeta Zacarias que convida
“todos os povos a subir a Jerusalém para a celebrar” (14,16). É talvez por
isso mesmo que Flávio Josefo descreve a festa de Sukkôt como sendo a
maior e a mais santa de todas66. Filão de Alexandria, por sua vez, alude a
diversas interpretações, incluindo até uma espécie de representação
simbólica de sentido cósmico: “Sukkôt é a festa das colheitas e do repouso
da terra67. Ela corresponde ao plano da semana cósmica, ao tempo que
segue a criação. É a festa do equinócio de Outono que nos ensina a honrar a
igualdade”68.
No que diz respeito à forma de celebrar e viver esta quadra, a
Mishná legou-nos um tratado69 que constitui a melhor fonte de informação
acerca desta festa, dos seus rituais e dos símbolos que eram usados, bem
63
Trata-se do momento em que o sumo-sacerdote e todo o povo desciam a Siloé para recolher a água que
era solenemente trazida para ser lançada no altar a fim de implorar de Yahwé as chuvas de Outono que
deviam preparar os campos para as novas sementeiras.
64
Suk 5,1. A Tosephta (Suk 3) aprofunda o simbolismo que esta cerimónia da procissão da água de Siloé
até ao Templo e a sua libação sobre o altar revestia: “Do cântaro da água lançada sobre o altar saíam as
águas da criação, as águas que tinham dessedentado o povo no deserto e as águas escatológicas”, cf. F.
MANNS, Le judaïsme, 120.
65
No tratado Suk 55b (do Talmud de Babilónia) diz-se que eram oferecidos, na altura da festa, 70 bois em
sacrifício pelo bem-estar de todos os povos.
66
Ant 8,100.
67
De specialibus legibus 2,204.213.
68
Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 119.
69
Trata-se do tratado Sukkah, totalmente dedicado à celebração da festa.

25
como dos cantos e dos sacrifícios que eram realizados ao longo dos
diversos dias da celebração. Os dados que aí são apresentados têm como
referência o período em que ainda existia o Templo, já que esses rituais
aludem expressamente às cerimónias que aí eram realizadas. Após a sua
destruição, a festa passa a ter lugar na sinagoga, o que obriga à adaptação
de alguns dos seus rituais. Por isso, a festa conheceu uma grande evolução
não apenas ritual, em virtude da destruição do Templo, mas também
teológica, uma vez que se foi perdendo a sua referência agrícola e deixaram
de ter lugar alguns dos momentos mais entusiasmantes da sua celebração,
como era a solene recolha da água em Siloé e a sua libação no altar do
Templo.
Embora a primeira característica da festa seja a experiência de viver
por sete dias em cabanas, a verdade é que a teologia da celebração estava
desde muito cedo associada à Aliança e ao dom da terra. Tal como as
demais, também a festa de Sukkôt tinha um enquadramento agrícola ligado
aos ritos e aos culto de Baal, pois ele era o deus que concedia a chuva e a
fertilidade aos campos. A festa das tendas tornava-se assim a expressão
desse agradecimento pelas colheitas dos campos, o que permitia agora aos
israelitas usufruírem na alegria da abundância dos bens recolhidos. Ao
integrar esta festa no quadro da sua história, Israel sentiu a necessidade de a
ligar à teologia da Aliança, já que a abundância dos campos e dos seus
gados era, no fundo, a manifestação da generosidade de Yahwé para com o
Seu povo, sinal da sua fidelidade e da sua bênção.
Por outro lado, sentindo a terra como dom, Israel guardou desde
sempre a ‘memória’ do seu peregrinar pelo deserto durante a caminhada do
êxodo em direcção à terra prometida como o tempo idílico do seu
enamoramento por Deus e de Yahwé pelo Seu povo. Foi essa peregrinação
por quarenta anos, vivendo em tendas e acolhendo Yahwé na ‘Tenda do
Encontro’ que Israel descobriu a sua identidade de povo peregrino que a
teologia deuteronomista põe em realce e que os profetas enalteceram como
o ‘tempo ideal da salvação’70. Por isso, Israel deve continuar na sua terra
como peregrino (Sl 119,19), vivendo essa comunhão de aliança com Deus,
celebrando assim a sua peregrinação de quarenta anos em que
experimentou em tendas a protecção de Yahwé71.
No entanto, com a sedentarização e a estruturação do culto, a festa de
Sukkôt assumiu uma nova significação ligada à teologia da Aliança, embora
mantivesse viva a memória do deserto e das colheitas agrícolas, tal como
70
Desta experiência de peregrinação nasce não apenas o acolhimento que deve ser dispensado aos
forasteiros, já que Israel sentiu também essa condição no Egipto (Dt 24,18; Lv, 25,23; 1 Cr 29,13-15),
mas também a experiência da comunhão íntima com Yahwé vivida no deserto (Os 2,16-18; 12,10; Am
5,25; Jr 2,2-3; Is 40,3).
71
; Lv 23, 41-43; Dt 16,13-16. O viver em tendas estendeu-se muito para além da tomada da terra e do
processo de sedentarização, pois ainda ao tempo de Jeremias (36,9-10) vamos encontrar o grupo dos
Recabitas, tribo nómada convertida ao nonoteísmo bíblico, vivendo em tendas.

26
sucedia com outras festas do calendário. A esta nova dimensão festiva
juntou-se uma outra perspectiva, conferindo-lhe uma dimensão universal,
já que a Torah dada a Israel é a Lei para todos os povos. Trata-se assim de
uma celebração que contém, no espírito da própria festa, um significado
para todos os povos e encarna um ideal messiânico aberto à humanidade. O
judaísmo tinha consciência desta universalidade, tal como nos diz o tratado
Sukkah, ao “sacrificar 70 bois, durante os sete dias de festa, oferecendo-os
pelo bem-estar e pela felicidade das setenta nações do mundo”72. Ao fazê-
lo, Israel como que recordava às nações que a aliança com Deus não se
esgotava nas fronteiras da sua terra; ao contrário, era uma aliança aberta
aos outros povos e para a qual estes caminhavam também, tal como
sucedera com o povo no seu longo itinerário histórico. Esta compreensão
encontra-se já presente em Isaías (2,3) e, particularmente, em Zacarias que
convida todos os povos a ‘subir a Jerusalém para ali celebrarem a festa das
Tendas’ (14,16). Trata-se de reconhecer a realeza universal de Yahwé que
abarca toda a terra e que de Jerusalém, povo eleito, se estende às outras
nações.
Os profetas, mormente no período do pós-exílio, procuraram reforçar
as dimensões teológicas das diversas festas, ultrapassando o carácter
agrícola que as fundamentava, de modo a orientar essas celebrações para as
origens históricas de Israel de modo que o povo tomasse consciência da sua
identidade de nação escolhida e eleita de Yahwé. Como bem notamos na
palavra de Oseias, Israel sempre teve a ‘nostalgia’ da experiência do
deserto e por isso, no seu horizonte celebrativo, toda a dinâmica das festas
de Israel situava-se num esquema histórico-salvífico em quatro momentos:
Libertação, experiência do deserto, aliança, terra prometida. Neste
esquema, a aliança era um momento decisivo, pois não só confere uma
identidade específica a Israel, mas também fundamenta o mistério da sua
relação com Deus. Por isso, na festa de Sukkôt o povo experimenta este
mistério da sua íntima relação com Yahwé, que é vivida no quadro festivo
do Templo, recordando o tempo em que Israel era ainda muito pequeno e o
Senhor o carregou nos Seus braços pelo deserto.
É nesta perspectiva de mudança de sentido teológico de festa das
colheitas (hag ha’asip) para festa das tendas (hag haSukkôt) que a
celebração assume um novo significado, centrado agora no santuário
davídico, em Jerusalém, onde decorrem as celebrações. Aí acorrem os
israelitas de todas as partes para celebrar e renovar a aliança com Yahwé
através de um solene ritual de proclamação da Lei (Dt 31,9-13; 2 Re 23,1s).
10. As festas de Outono
A época de Outono é a quadra mais festiva de Israel, já que, para
além da festa das Tendas, também se celebram no início desta estação mais
72
Y. VAINSTEIN, El ciclo del año judio, 140; Suk 55b.

27
duas importantes festas do calendário judaico: Trata-se da festa de Yom
Kippur (dia da expiação) e da festa de Rosh haShanná (festa do ano novo).
Ao contrário das celebrações a que aludimos anteriormente, estas duas
festas são celebradas apenas num dia e representam um espírito totalmente
diferente, voltadas mais para a dimensão da grandeza e do fascínio de
Yahwé do que para a alegria e o júbilo do povo. No dizer de S. Ben Chorin,
estamos em presença das festas que celebram o mistério ‘tremendum’ que
Yahwé exerce sobre Israel e sobre todos os povos da terra73.
Embora nenhuma destas seja uma ‘festa de peregrinação’, as duas
ocupam um lugar de destaque no calendário litúrgico. No entanto, enquanto
a festa de Rosh haShanná tem um carácter popular e festivo, o Yom Kippur
é essencialmente uma celebração vivida na intimidade e numa relação
penitencial com Deus, já que se trata do grande momento de expiação em
que Israel toma consciência da sua condição de povo pecador e implora de
Yahwé a sua misericórdia e o seu perdão.
a) A festa de Yom Kippur
Uma outra solenidade importante do período de Outono é a festa de
Yom Kippur. Embora possamos apelidar esta celebração de festa, o espírito
que a ela preside não coincide, em tudo, com o nosso tradicional sentido de
festa. Ao contrário, trata-se de um momento de grande intimidade com
Deus, tanto pessoal como comunitária e nacional, levando o povo a tomar
consciência da sua condição pecadora e implorando de Yahwé o seu perdão
e misericórdia. Entre as duas festas de Outono (Rosh haShanná e Yom
Kippur) medeiam dez dias, que são um tempo de arrependimento74, em que
se implora o perdão de Yahwé, já que o sacrifício de Kippur apenas redime
os pecados cometidos contra Deus e contra os outros quando deles se tenha
implorado o perdão75. O sentido destes dias é o de íntima preparação para a
celebração do perdão no dia de Yom Kippur, devendo todos fazê-lo
segundo o espírito de Ecl 7,20 e 1 Re 8,46: “Não há nenhum justo sobre a
terra que faça o bem sem nunca ter pecado”.
No que diz respeito à singularidade da celebração do Yom Kippur,
basta atender ao facto de se tratar de uma jornada de total e absoluto jejum
que devia ser guardado desde a tarde de véspera até ao entardecer do
próprio dia, sendo proibidos todos os trabalhos, incluindo aqueles que eram
admitidos em dia de sábado. Trata-se, por isso, de uma jornada penitencial
no mais genuíno sentido dos seus elementos, já que todo o povo a deve
viver e celebrar como sendo parte integrante da sua identidade. Embora
possamos encontrar esta dimensão penitencial em outras religiões, ela faz

73
S. BEN CHORIN, Le judaïsme en prière, 143.
74
Teshuvah é a palavra que designa arrependimento, conversão, regresso a Yahwé. Trata-se de um
substantivo derivado do verbo shub que significa voltar às origens, regressar. Neste caso, o
arrependimento é o regresso a Yahwé, o voltar para Deus.
75
Cf. F. MANNS, Le judaïsme, 124.

28
parte da essência do judaísmo e atinge aqui uma das suas expressões mais
profundas e dramáticas76.
Esta festa decorre no décimo dia do mês de Tishri e é conhecida na
Bíblia como o ‘dia da expiação’ (Yom Kippur ou também yom
haKippurim). Ao contrário do que sucedia com a festa de Rosh haShanná,
as referências bíblicas a esta celebração são abundantes e percorrem um
pouco toda a Sagrada Escritura. Os textos normativos da festa encontram-
se no Pentateuco77, embora depois os seus ecos se repercutam em muitos
outros livros, mormente na teologia profética que interpela o povo à
conversão e à expiação dos seus pecados (Os 14,2; Am 5,22-24).
O nome da festa resulta da raiz do verbo kappar, na sua conjugação
Piel que significa ‘expiar’. Embora a origem do termo seja desconhecido e
objecto de múltiplas interpretações, a verdade é que o seu uso no AT é
muito frequente e na sua forma Piel significa o “resultado da acção
realizada”, devendo traduzir-se por “realizar a expiação”78. Trata-se,
portanto, de um acto que se faz, oferencendo um sacrifício ou um resgate
para assim restabelecer uma relação que previamnete tinha sido quebrada.
Quem oferecia este sacrifício era o sacerdote; era ele que fazia a expiação.
Na Sagrada Escritura temos diversos textos que nos falam de
expiações colectivas (Dt 21,1-9; 2 Sam 21,1-9) e o Kippur é um sacrifício
do tipo de expiação colectiva que retira o pecado de todo o povo. Trata-se
apenas de um rito sacrificial que por si mesmo realiza a acção de purificar
o povo das suas faltas, embora a teologia profética reforce a dimensão
pessoal através da conversão do coração. No que diz respeito à liturgia do
Yom Kippur, temos Lv 16, Nm 29,7-11 e Ex 30,10 que nos descrevem o
ritual da celebração de acordo com aquilo que seria a prática corrente no
período do 2º Templo. No entanto, muitos dos elementos desta celebração
remontam, certamente, ao período anterior ao Exílio, embora as tradições
que chegaram até nós sejam de época posterior. O facto de Esdras e
Neemias não se referirem a esta solenidade pode constituir um sinal de que
ao seu tempo a festa ainda não tinha assumido o papel que depois veio a ter
no calendário festivo.
Confrontando os elementos referidos em Lv 16 com aqueles que nos
fornece a Mishná no tratado sobre o ‘Dia da Expiação’79 facilmente se pode
verificar que os rituais do Yom Kippur se mantiveram muito constantes e
76
Cf. N. WINTER (ed.), The High Holy Days, Popular Judaica Library, Jerusalem, 1973: “The concept of
atonement is found in other religions as well. Unique to Judaism, of all the world’s great faiths, is the
setting aside of a specific day for this purpose. The Bible calls the day Shabbat Shabbaton, a Shabbat of
Shabbats. It is not just a memory of the world’s creation but a memory of Creation itself” (p. 54).
77
De entre outros, saliento: Ex 30,10; Lv 23,27-28; 25,9; Nm 29,7-11.
78
E. JENNI – C. WESTERMANN, Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, I vol.,
Madrid, 1978, 1155-1158.
79
A Mishná dedica um tratado, no conjunto da 2ª Ordem, a esta festa. Este tratado tem o nome de Yoma
(ou Yom haKippurim), o que manifesta logo a importância que o rabinismo atribuía a esta celebração,
pois Yoma significa ‘o dia por excelência’. Além deste tratado, também a Tosephta e o midrash Sifra
(acerca do Levítico) comentam as cerimónias do Kippur.

29
sem grandes alterações, decorrendo estas apenas das circunstâncias
históricas e das consequências que lhe são inerentes, como sejam a
destruição do Templo e a diáspora e a consequente celebração ritual da
festa nas sinagogas e nas casas.
Assim, no período da existência do Templo, o dia de Yom Kippur era
o único do ano em que o sumo-sacerdote podia entrar no ‘Santo dos
Santos’ para pronunciar aí o nome Yahwé e oferecer o incenso, devendo
também ser ele a oferecer todos os sacrifícios nesse dia80. As cerimónias do
dia tinham início com a oferta do sacrifício Tamid (sacrifício quotidiano)
no Tempo, após o que lançava as sortes sobre os dois bodes que deviam ser
depois sacrificados: um para Yahwé e o outro para Azazel. O oferecimento
do incenso era o momento alto e emblemático da celebração. Tomando
numa das mãos (a direita) um incensário com brasas retiradas do altar e na
outra mão uma paleta com incenso, o sumo-sacerdote entrava e colocava o
incenso nas brasas para que o recinto do ‘Santo dos Santos’ ficasse repleto
de fumo, saindo fora para dizer uma oração81. O tratado Yom haKippurim
(Mishná) descreve-nos detalhadamente este momento e mostra-nos como a
forma de proceder era discutida pelas duas grandes facções do judaísmo:
Fariseus e Saduceus. Para estes, devia ser colocado muito incenso já antes
do sumo-sacerdote entrar a fim de que ele não chegasse a ver a face de
Yahwé e morresse. Ao contrário, os fariseus diziam que o incenso apenas
devia ser colocado quando já estivesse dentro, pois no santuário não estava
Yahwé, mas apenas a sua Shekinah. A estadia do sumo-sacerdote no
interior do ‘Santo dos santos’ devia ser curta, já que a demora aí poderia
significar que algo de anormal se tinha passado.
Terminada a cerimónia do incenso, o sumo-sacerote procede então à
imolação de um dos ‘bodes de expiação’, aquele que tinha sido escolhido
para Yahwé, devendo proceder ao seu sacrifício para em seguida ungir o
povo com o seu sangue. Também aqui o ritual assume um sentido singular,
pois retoma a cerimónia pascal de ungir as portas com o sangue do
cordeiro. Este rito tinha naturalmente um significado muito profundo,
sendo o sangue do ‘bode de expiação’ o resgate do povo. Quanto ao outro
bode, que tinha sido destinado a Azazel e sobre o qual eram lançados os
pecados do povo, era enviado para o deserto para aí ser precipitado num
despenhadeiro e as suas carnes comidas pelas aves do céu. Assim, ficaria
Israel livre das suas faltas e o povo purificado dos seus pecados. O capítulo
VI do tratado Yom haKippurim descreve-nos alguns momentos dessa
80
Como tinha de presidir a todos os actos celebrativos da festa, o sumo-sacerdote devia permanecer em
privado durante uma semana, de forma a não contrair impureza ritual e a preparar as celebrações. Neste
dia, devia ainda mudar cinco vezes as suas vestes, de forma a realizar os diversos ritos com vestes
diferentes, conforme o que estava determinado. No ‘Santo dos Santos’ apenas podia entrar com vestes
brancas de linho e nunca com ornamentos dourados, para não recordar o pecado de Israel ao adorar o
bezerro de ouro. Para além dos sacrifícios próprios do dia de expiação, devia também ser ele a oferecer o
‘sacrifício quotidiano’ (Tamid) que diariamente se fazia no Templo.
81
Yom haKippurim 5,1.

30
correria em direcção ao deserto e deixa entender que cada etapa era
acompanhada por pessoas diferentes para que isso fosse feito no mais breve
espaço de tempo possível. Chegados ao deserto e lançado o bode no
despenhadeiro, logo faziam sinais para que em Jerusalém se soubesse que o
povo já estava livre dos seus pecados, devendo o sumo-sacerdote dar sinal
disso mesmo.
Procedia-se então à leitura da Lei e concluía-se a celebração com
diversos ritos de santificação e a recolha dos diversos instrumentos usados
na liturgia da festa. Após a destruição do Templo, a cerimónia passou a ser
celebrada na Sinagoga, assumindo então uma perspectiva mais orientada
para a celebração da palavra em vez dos ritos festivos que tinha quando
existia o Templo.
Como já referimos, a festa de Yom Kippur está no âmago da
representatividade do judaísmo, razão pela qual encontramos inúmeros
ecos desta celebração em todos os quadrantes da literatura judaica, tanto
litúrgica como normativa, incluindo textos de alguns dos mais notáveis
pensadores do judaísmo. É paradigmática a descrição que nos dá Filão de
Alexandria acerca do espírito desta celebração:
“O dia santificado é inteiramente dedicado à oração e às súplicas e as
pessoas, desde manhã até à noite, empregam o seu tempo exclusivamente
oferecendo petições de humildes súplicas… para remissão dos seus
pecados, voluntários ou involuntários, e tomando em consideração as mais
nobres esperanças que se fundamentam não nos méritos pessoais, mas na
misericordiosa bondade de Deus, que concede perdão de preferência ao
castigo”82.
b) A festa de Hanukkah
A festa de Hanukkah é celebrada no dia 25 do mês de Kisleu que
corresponde, em geral, ao nosso mês de Dezembro, razão pela qual há uma
proximidade bastante grande entre esta festa e o Natal. A grande motivação
que preside à Hanukkah é a memória da dedicação do Templo após a
profanação levada a cabo por Antíoco Epífanes (1 Mac 4,59), por alturas de
175 (a.C.), com a imposição do helenismo na Palestina. Trata-se, portanto,
de uma festividade que tem como motivação um acontecimento histórico,
bem datado e, como tal, com um objectivo específico: celebrar a dedicação
do Templo e de Jerusalém após a reconquista ao tempo dos reis selêucidas,
levada a cabo pela família de Matatias Macabeu e o grupo dos Hasidim,
comandados por Judas. É também conhecida como a ‘festa da luz’,
coincidindo com o solstício de Inverno, o que pode representar uma
adaptação de costumes pagãos ancestrais comuns, aliás, em outros povos e
tradições culturais83.
82
FILÃO de ALEXANDRIA, De specialibus legibus, II, 194-203.
83
Na cultura chinesa temos nesta quadra a ‘festa das lanternas’ que consiste em passar a noite vigilantes,
em clima festivo e ambiente familiar, aguardando nas praças e jardins que se possa ver a lua na altura do
solstício de Inverno.

31
As fontes históricas que nos reportam aos acontecimentos ligados à
tomada de Jerusalém e consequente purificação do Tempo e da cidade
encontram-se nos livros dos Macabeus que, embora não façam parte do
cânon judaico, são considerados como obras de grande importância para o
conhecimento do judaísmo do período intertestamentário.
Embora o livro dos Macabeus não mencione ritos nem celebrações
especiais para a dedicação, trata-se de uma festa que perdura por oito dias,
toda ela centrada no simbolismo da luz e retomando o padrão das festas
levadas a cabo por Salomão quando foi feita a dedicação do 1º Templo. O
ritual da festa concentra-se no acender das luzes da Hanukkiah, o
candelabro de 8 lâmpadas, uma para cada dia da festa. Cada dia acendia-se
uma lâmpada nova da Menorah de nove braços, simbolizando assim a nova
luz que vêm do Templo e que alumia o povo na sua caminhada 84. De
acordo com 2 Mac 10,6, a festa de Hanukkah era celebrada à maneira da
festa de Sukkot, podendo haver aqui uma alusão implícita às tendas de
Sukkot e à Tenda-Templo que é a morada de Yahwé no meio do Seu povo.
De acordo com a tradição popular, quando os Asmoneus se apossaram do
Templo encontraram apenas uma pequena ampola de óleo que permanecia
intacta e com o selo do sumo-sacerdote, já que os gregos tinham consumido
todas as demais. Ora, esse óleo apenas daria para alimentar o candelabro
por um dia, tendo então sucedido um autêntico milagre, já que nessa altura
deu para oito, razão pela qual a festa passou a ocupar 8 dias, recordando
assim o milagre realizado. Daqui nasceu então o costume de acender a
Hanukkiah, o candelabro de oito braços, durante oito dias, celebrando a
purificação do Templo e a vitória do grupo dos Macabeus que, apesar de
serem poucos, levaram de vencida o poderoso exército selêucida que
ocupava Jerusalém.
Flávio Josefo chama à Hanukkah a ‘festa das luzes”85. A luz tem aqui
no cenário desta festa uma dupla simbologia, já que significa a vida do
crente e, ao mesmo tempo, a Lei. Para alcançar a plenitude da vida, o
crente deve abraçar a Torah que é luz para os seus caminhos. Este
simbolismo está já bem presente nos salmos e também nos textos
sapienciais. É particularmente significativa a descrição que o salmista faz
no Sl 16,8-15, bem como no livro dos Provérbios 6,23 e 20,27,
estabelecendo uma profunda relação entre a luz e a vida. É à luz da Torah
que o justo encontra os caminhos de Yahwé e é do Templo que essa luz
irradia, tal como já Isaías havia proclamado: “Vinde, subamos ao monte do

84
De acordo com o Talmud de Babilónia (Shab 21b), a forma de acender as lâmpadas era também objecto
de disputa entre as duas principais escolas rabínicas do período intertestamentário. Assim, para a escola
de Shammay, no primeiro dia eram acesas todas as lâmpadas, devendo depois apagar-se uma mais em
cada dia da festa. Para a escola de Hillel, ao contrário, no primeiro dia apenas se acendia uma e, depois,
progressivamente ia-se acendendo cada dia uma mais até completar as oito no 8º dia da festa.
85
F. JOSEFO, AJ 12,325.

32
Senhor, à casa do Deus de Jacob… pois de Sião virá a Lei… caminhemos à
luz do Senhor” (2,3.5).
Não é explícita a razão porque se chama a esta quadra a ‘festa da
luz’. Uma das possíveis motivações estaria na relação próxima que existe
entre esta celebração e a festa de Sukkôt e que a cerimónia da dedicação
levada a cabo pelos Asmoneus tivesse acontecido num contexto da festa de
Sukkôt, quando se procedia à recolha da água para ser lançada sobre o altar.
Esta cerimónia, além das danças e cantos, era acompanhada por muitas
luzes que lhe emprestavam um brilho especial. A lei recorda que em cada
casa devia ser acesa uma Hanukkah, embora os mais zelosos defendessem
que devia ser uma por pessoa. O acender da luz ao entardecer era
acompanhado por orações para abençoar a luz, para recordar o milagre da
ampola de azeite encontrada no Templo.
S. João, no seu evangelho, menciona a festa de Hanukkah como um
dos cenários em que decorre uma das manifestações de Jesus em Jerusalém
(10,22-23). O contexto aponta-nos para Jesus que se manifesta como a
verdadeira luz. De facto, Ele mesmo havia declarado também que os
discípulos deviam ser luz, colocando assim no centro da sua mensagem o
tema da luz que percorre todo o AT, desde o Génesis, faça-se a luz,
passando pela Torah que é luz, pela profecia que exorta os povos a
caminharem à luz do Senhor, até à luz que ilumina no Templo e é sinal da
presença de Yahwé no meio do seu povo. Trata-se, por isso, de uma festa
carregada de simbolismo, já que a luz significa não só a Lei que ilumina o
justo na sua caminhada, mas também a própria alma, o espírito, que é sinal
da luz divina manifesta no mundo.

Bibliografia:
F. MANNS, Le Judaïsme: Milieu et Mémoire du Nouveau Testament, Jerusalém, 1992.
J. LOURENÇO, O mundo judaico em que Jesus viveu, UCE, Lisboa, 2005.
BÍBLICA, Série científica – A Festa e as Festas na Bíblia e na Vida. Lisboa: Difusora
Bíblica, 1995 (Novembro, n.º4).

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