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DE
Somerset Maugham
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►D.Source
Chuva
O lar
O Dr. Sabe-tudo
O barco da ira
O impulso criativo
Vermelho
A força das circunstâncias
Chuva
Querida,
A Sra. Bulfinch sente necessidade de mudar e decidiu ir-se embora,
e, como eu não me sinto inclinado a continuar aqui sem ela, também vou.
Já tomei toda a literatura que consigo agüentar, e estou farto da arte.
A Sra. Bulfinch não se preocupa muito com o casamento, mas se tu
quiseres divorciar-te ela está disposta a casar comigo. Espero que aches a
nova cozinheira satisfatória. Tem excelentes referências. Para te poupar
possíveis problemas, informo-te de que a Sra. Bulfinch e eu estamos a
viver em Kensington Road, nº 411 S.E.
Albert
O capitão meteu a mão num dos bolsos das calças e, com alguma
dificuldade porque os tinha na frente e não dos lados e era corpulento,
tirou para fora um grande relógio de prata. Olhou para ele e depois tornou
a encarar o sol poente. O kanaka à roda do leme deitou-lhe um olhar
rápido, mas não falou. Os olhos do capitão fixaram-se na ilha que se
aproximava. Uma linha branca de espuma assinalava os recifes. Ele sabia
que havia uma passagem suficientemente larga para o navio, e contava vê-
la quando se aproximassem um pouco mais. Ainda tinham uma hora de
luz do dia à sua frente. A lagoa era funda e nela poderiam ancorar
confortavelmente. O chefe daquela aldeia que já se avistava por entre os
coqueiros era amigo do imediato e seria agradável ir passar a noite a terra.
Nesse momento o imediato aproximou-se, e o capitão virou-se para ele.
— Vamos levar conosco uma garrafa da rija e arranjar algumas
moças para dançar — disse ele.
— Não vejo a passagem — disse o imediato.
Era um kanaka, tipo simpático e moreno, com alguma coisa do
aspecto de um dos últimos imperadores de Roma, com tendência para
engordar; mas os traços do seu rosto eram finos e bem delineados.
— Tenho a certeza absoluta que há uma precisamente por aqui —
disse o capitão, olhando pelo binóculo. — Não entendo porque é que a não
vejo. Manda um dos homens subir ao mastro para ver se a descobre.
O imediato chamou um homem da tripulação e deu-lhe a ordem. O
capitão viu-o trepar ao mastro e esperou que ele dissesse alguma coisa.
Mas o kanaka gritou para baixo que não via nada a não ser a ininterrupta
linha de espuma. O capitão falava samoano como um nativo, e insultou-o
copiosamente.
— Quer que ele fique lá em cima? — perguntou o imediato.
— Para que diabo servia isso? — respondeu o capitão. — O filho da
mãe não vê um palmo adiante do nariz. Podes ter a certeza que eu veria
logo a passagem se estivesse lá em cima.
Olhou o delgado mastro com raiva. Era muito fácil para um indígena
habituado a trepar em coqueiros toda a sua vida. Mas ele era gordo e
pesado.
— Podes descer — gritou. — És tão inútil como um cão morto.
Temos de ir ao longo dos recifes até encontrarmos a passagem.
Era uma escuna de setenta toneladas, revestida de parafina; andava,
quando não tinha vento contrário, a uma velocidade de quatro a cinco nós
por hora. Uma coisa imunda; outrora fora pintada de branco, mas agora
estava suja e manchada. Cheirava fortemente a parafina e a copra, que era
o seu carregamento habitual. Estavam agora a cerca de trinta metros da
linha dos recifes e o capitão disse ao homem do leme que fosse ao longo
dela até encontrarem a passagem. Mas depois de algumas milhas
compreendeu que a tinham perdido. Mandou voltar para trás, e
regressaram lentamente. A espuma branca dos recifes continuava sem
interrupção, e já o sol desaparecia no horizonte. Com uma praga para a
estupidez da tripulação, o capitão resignou-se a esperar até à manhã
seguinte.
— Ponham o barco ao largo — disse ele. — Não podemos ancorar
aqui.
Saíram um pouco para o mar. Já era noite. Ancoraram. Quando
ferraram as velas, o navio começou a balançar muito. Em Ápia diziam que
ele um dia ainda se viraria de borco; e o proprietário, um alemão-
americano que era dono de uma das maiores lojas, dizia que não havia
dinheiro no mundo capaz de o fazer viajar nele.
O cozinheiro, um chinês de calças brancas muito sujas e rasgadas e
uma pequena bata branca, veio dizer que o jantar estava pronto; quando o
capitão entrou na cabine, encontrou o maquinista já sentado à mesa. O
maquinista era um homem magro e comprido, de pescoço de galinha.
Vestia um macacão azul e uma blusa sem mangas, que mostrava os braços
delgados, tatuados do cotovelo ao punho.
— Bem, temos de passar a noite a bordo — disse o capitão.
O maquinista não respondeu; jantaram em silêncio. Uma pálida
lâmpada de óleo iluminava a cabine. Quando acabaram de comer os
damascos em conserva com que terminava o jantar, o chinês trouxe-lhes
uma xícara de chá. O capitão acendeu um charuto e foi para o convés. A
ilha agora era apenas uma massa escura de encontro à noite. As estrelas
brilhavam intensamente. O único som era o contínuo quebrar da ressaca.
O capitão afundou-se numa cadeira de bordo, a fumar lentamente. Três ou
quatro membros da tripulação subiram e sentaram-se. Um deles trazia um
banjo e outro um pandeiro. Começaram a tocar um cantou. O cântico
nativo soava estranhamente naqueles instrumentos. Depois, a acompanhar
a música, dois começaram a dançar. Era uma dança bárbara, selvagem e
primitiva, rápida, com movimentos sacudidos das mãos e dos pés e
contorções do corpo; sensual, mesmo sexual, mas sexual sem paixão. Era
muito animal, direta, estranha mas sem mistério — natural, em resumo, —
e poder-se-ia mesmo dizer infantil. Por fim cansaram-se. Estenderam-se
no deque e adormeceram, e tudo ficou em silêncio. O capitão ergueu-se
pesadamente da cadeira e desceu pela íngreme escada do tombadilho.
Entrou na sua cabine e despiu-se. Depois trepou para o beliche e deitou-se.
Arquejava, tal era o calor da noite.
Mas na manhã seguinte, quando a aurora deslizou ao longo do mar
tranqüilo, a tal passagem dos recifes que os arreliara na noite anterior
apareceu, um pouco a leste do sítio onde estavam. A escuna entrou na
lagoa. Não havia uma prega à superfície da água. Viam-se pequenos
peixes coloridos, no fundo, a nadarem por entre os bancos de coral.
Depois de o navio ter ancorado, o capitão tomou o primeiro almoço e
subiu ao convés. O sol brilhava num céu sem nuvens, mas de manhãzinha
cedo o ar estava agradável e fresco. Era domingo, e havia uma sensação de
quietude, um silêncio, como se a própria natureza estivesse a descansar,
que lhe deu uma estranha sensação de conforto. Sentou-se, olhando a costa
arborizada, e sentiu-se preguiçoso e bem disposto. Um sorriso assomou-
lhe aos lábios; atirou a ponta do charuto à água.
— Vou a terra — disse depois. — Lancem o bote à água.
Desceu a escada com ar importante; e o barco levou-o a uma
pequena enseada. Os coqueiros vinham até à orla das águas, não em
grupos, mas espaçados numa formalidade ordenada. Davam idéia de um
grupo de solteironas a dançarem um bailado clássico, em atitudes afetadas
com o sorriso tolo de uma idade já passada. O capitão vagueou
preguiçosamente por entre eles, seguindo um carreiro tão tortuoso que mal
se via, que o conduziu até um ribeiro largo. Havia uma ponte por cima;
mas uma ponte feita de uma escassa dúzia de troncos de coqueiro,
colocados topo a topo e suportados nas juntas por forquilhas de ramos de
árvore enterrados no leito da corrente. Tinha de se caminhar por uma
superfície redonda e lisa, estreita e escorregadia, e não havia corrimão.
Para se atravessar uma ponte dessas é preciso ter pés firmes e coração
forte. O capitão hesitou. Mas viu no outro lado, aninhada no meio das
árvores, a casa de um homem branco; decidiu-se e, com um passo
hesitante, começou a andar. Via onde punha os pés, e, nos sítios em que os
troncos se juntavam e onde havia uma diferença de nível, tropeçava um
pouco. Foi com um suspiro de alívio que alcançou o último tronco e
finalmente pisou chão firme do outro lado. Estivera tão ocupado com a
difícil travessia que nem reparara que estava a ser observado, e foi com
surpresa que ouviu alguém dirigir-lhe a palavra.
— É preciso coragem para atravessar estas pontes, quando não se
está habituado a elas.
Ergueu os olhos e viu um homem na sua frente. Tinha saído,
evidentemente, da tal casa.
— Vi-o hesitar — continuou o homem, com um sorriso nos lábios, -
e estava à espera de o ver cair.
— Isso é coisa que nunca verá — disse o capitão, que tinha
recuperado a confiança em si próprio.
— Eu próprio já tenho caído. Lembro-me de uma noite em que eu
voltava da caça e caí dentro de água com espingarda e tudo. Agora arranjo
sempre um garoto para me levar a espingarda.
Era um homem de certa idade, com uma pequena barba já um pouco
grisalha e um rosto magro. Trazia vestida uma blusa sem mangas e umas
calças de lona. Não tinha nem meias nem sapatos. Falava inglês com um
leve sotaque.
— Você chama-se Neilson? — perguntou o capitão.
— Chamo.
— Tenho ouvido falar de si. Calculei que morasse por estes sítios.
O capitão, seguindo o dono da casa, entrou no pequeno bangalô e
sentou-se pesadamente na cadeira que o outro lhe indicou com um gesto.
Enquanto Neilson ia buscar uísque e copos, o capitão passeou o olhar pela
sala. Ficou admirado. Nunca vira tantos livros. As estantes iam desde o
chão até ao teto nas quatro paredes, e encontravam-se apinhadas de livros.
Havia um grande piano coberto de músicas, e uma larga mesa com livros e
revistas amontoados em desordem. A sala fê-lo sentir-se embaraçado.
Lembrou-se de que Neilson era um tipo estranho. Ninguém sabia muito
acerca dele, embora já vivesse nas ilhas havia muitos anos; mas aqueles
que o conheciam concordavam em considerar Neilson estranho. Era sueco.
— Tem aqui muitos livros — disse ele, quando Neilson voltou.
— Não fazem mal a ninguém — respondeu Neilson com um sorriso.
— Leu-os todos? — perguntou o capitão.
— A maior parte.
— Eu também gosto muito de ler. Leio todas as semanas o Saturday
Evening Post.
Neilson encheu um bom copo de uísque forte ao seu visitante e
ofereceu-lhe um charuto. O capitão resolveu prestar alguns
esclarecimentos.
— Cheguei ontem à noite, mas não consegui encontrar a passagem.
Por isso tive de ancorar fora. Nunca tinha feito esta viagem, mas lá o meu
patrão mandou-me trazer umas coisas para aqui. Para um tal Gray;
conhece?
— Sim, tem um estabelecimento aqui perto.
— Bem, ele pediu uma grande porção de conservas, e da copra em
troca. E eles pensaram que era melhor mandarem-me cá, em vez de estar
sem fazer nada em Ápia. Geralmente viajo entre Ápia e Pago-Pago, mas
agora anda por lá a varicela e o comércio está parado.
Bebeu um gole de uísque e acendeu o charuto. Era homem de poucas
falas, mas havia em Neilson qualquer coisa que o enervava; e essa
sensação nervosa obrigava-o a falar. O sueco olhava-o com grandes olhos
escuros, em que havia uma expressão de ligeiro divertimento.
— Pois aqui é um sítio bem bom este que você tem aqui.
— Tenho-o arranjado o melhor que me tem sido possível.
— Deve fazer bom dinheiro com as suas árvores. Têm ótimo
aspecto. E com a copra ao preço que está... Eu também já tive uma
pequena plantação, em Upolu, mas tive de a vender.
Tornou a percorrer a sala com os olhos; todos aqueles livros davam-
lhe sensação de qualquer coisa incompreensível e hostil.
— Deve achar isto um bocado monótono, apesar de tudo.
— Habituei-me. Já estou aqui há vinte e cinco anos.
O capitão não conseguiu lembrar-se de mais nada para dizer, e
continuou a fumar num silêncio que Neilson parecia não ter desejos de
quebrar. O sueco fitava com olhar meditativo o seu hóspede. Este era um
homem alto, com mais de um metro e oitenta, muito corpulento. O seu
rosto era vermelho e manchado, com ramais de pequenas veias purpurinas
nas faces, e as feições submergiam-se na gordura. Os olhos, raiados de
sangue. O pescoço, enterrado em rolos de banha. Não tinha cabelo, exceto
uma comprida farripa encaracolada, quase branca, na parte de trás da
cabeça; e essa imensa e brilhante superfície da testa, que lhe poderia dar
um falso aspecto de inteligência, dava-lhe pelo contrário um ar de
particular imbecilidade. Trazia vestidas uma camisa de flanela azul, aberta
no pescoço, que lhe deixava ver o peito gordo, coberto de uma floresta de
pelos avermelhados, e umas calças de sarja azul muito velhas. Alastrava
na cadeira com uma atitude desajeitada e pesada, e a enorme barriga
espetada para a frente e as gordas pernas abertas. Toda a elasticidade
desaparecera dos seus membros. Neilson perguntava-se, ociosamente, que
espécie de homem fora aquele na mocidade. Era quase impossível
imaginar que esta criatura de enorme volume tivesse sido menino, a correr
de um lado para o outro. O capitão acabou o seu uísque Neilson; empurrou
a garrafa para o lado dele.
— Sirva-se à vontade.
O capitão inclinou-se para a frente e com a sua grande mão pegou na
garrafa.
— E como é que o senhor veio parar aqui? — disse ele.
— Oh, eu vim para estas ilhas por causa da saúde. Estava mal dos
pulmões e ninguém me dava mais de um ano de vida. Como vê,
enganaram-se.
— Quero eu dizer — como é que se decidiu a fixar-se aqui?
— Sou um sentimentalista.
— Oh!
Neilson sabia que o capitão não fazia a mínima idéia do que ele
dissera, e mirou-o com um brilho irônico nos olhos escuros. Talvez por o
capitão ser um homem tão bruto e estúpido, apeteceu-lhe falar mais.
— Você estava demasiadamente ocupado em não perder o equilíbrio
para ter reparado, quando atravessou a ponte; mas este lugar é geralmente
considerado bastante bonito.
— É realmente uma casita engraçada, esta sua.
— Ah, não estava aqui quando vim para cá. Havia uma cabana
indígena, com o telhado em forma de colmeia, sobre pilares, à sombra de
uma grande árvore com flores vermelhas; e os arbustos de cróton, com
folhas amarelas vermelhas e douradas, formavam uma sebe colorida em
volta. E depois havia por toda a parte os coqueiros, garridos como
mulheres, e tão fúteis como elas. Ficavam à beira da água e passavam os
dias a mirarem a imagem refletida nela. Eu era um homem novo nessa
altura — Meu Deus, foi há um quarto de século! — e queria gozar todas as
coisas belas do mundo no curto prazo que me restava antes de mergulhar
na escuridão eterna. Pensei que era o mais belo sítio que vira em toda a
minha vida. Da primeira vez que o vi senti apertar-se-me o coração, e
pensei que ia chorar. Tinha só vinte anos; e, por mais que procurasse
conformar-me, não queria morrer. E no entanto parecia que a própria
beleza do lugar me tornava mais fácil aceitar o meu destino. Quando
cheguei, senti que toda a minha vida passada desaparecera — Estocolmo e
a sua Universidade, e depois Bonn: tudo isso me parecia a vida de outra
pessoa, como se finalmente tivesse acabado por alcançar a realidade que
os nossos doutores em filosofia — sou um deles, sabe? — tanto têm
discutido. "Um ano", dizia eu para comigo. "Tenho um ano. Passá-lo-ei
aqui e depois poderei morrer."
Aos vinte e cinco anos somos tolos, sentimentais e melodramáticos,
mas se o não fôssemos talvez tivéssemos menos juízo aos cinquenta.
Mas beba, meu amigo. Não preste atenção demasiada à minha tola
conversa.
Indicou a garrafa com a mão magra, e o capitão escorropichou o que
ficara no copo.
— Você não está a beber coisa nenhuma, — disse ele, pegando na
garrafa.
— Sou de hábitos sóbrios, — sorriu o sueco. — Embriago-me de
maneiras que penso serem mais subtis. Seja como for, os efeitos são mais
duradoiros e os resultados menos deletérios.
— Dizem que agora nos Estados Unidos se está a tomar muita
cocaína, — disse o capitão.
Neilson riu.
— Mas não é muitas vezes que encontro um branco, continuou, e
uma vez na vida não será um pouco de uísque que me irá fazer mal.
Deitou um pouco no copo, adicionou alguma soda, e tomou um
trago.
— E depois descobri porque é que este sítio tinha uma tal beleza
extraterrena. Aqui o amor parava por um momento, como uma ave
emigrante que encontra um navio no meio do oceano e por um curto
instante dobra as asas cansadas. A fragrância de um maravilhoso amor
pairava sobre tudo isto como a fragrância das silvas em Maio nos prados
da minha terra. Parece-me que os lugares onde os homens amaram ou
sofreram conservam para sempre à sua volta um ligeiro aroma de qualquer
coisa que não morreu inteiramente. É como se tivessem adquirido um
significado espiritual que misteriosamente afeta os outros que por eles
passam. Gostaria de saber exprimir-me com clareza. — Sorriu levemente.
— Embora creia que mesmo que o fizesse, você não me compreenderia.
Fez uma pausa.
— Creio que este lugar era maravilhoso por eu ter sido aqui amado
de uma forma maravilhosa. — Encolheu os ombros. — Mas talvez isto
seja apenas por ao meu sentido estético ser agradável a feliz conjugação de
um amor jovem e de um cenário adequado.
Até mesmo um homem menos imbecil do que o capitão ficaria
admirado com as palavras de Neilson. Porque parecia fazer troça daquilo
que ele próprio dizia. Era como se falasse movido por uma emoção que o
seu cérebro achasse ridícula. Ele próprio dissera que era um
sentimentalista, e quando o sentimentalismo anda junto ao cepticismo, as
pessoas muitas vezes sofrem os horrores do inferno.
Calou-se por um momento e contemplou o capitão com um olhar
onde havia uma súbita perplexidade.
— Sabe, não posso deixar de pensar que creio já o ter visto nalgum
lado, — disse ele.
— Confesso que não me lembro de si, — respondeu o capitão.
— Tenho a curiosa sensação de que a sua cara não me é estranha.
Tenho estado a ver se me lembro, mas não consigo situar essa recordação
em qualquer lugar ou qualquer época.
O capitão encolheu os ombros maciços.
— Já há trinta anos que vim para estas ilhas. Um homem não se pode
lembrar de toda a gente que encontrou em trinta anos.
O sueco abanou a cabeça.
— Você sabe como a gente às vezes tem a sensação de que um lugar
onde nunca se esteve nos é estranhamente familiar. É o que me está a
suceder consigo. Talvez eu o tenha conhecido numa existência passada.
Talvez, talvez você fosse o chefe de uma galera da Roma antiga e eu um
dos escravos aos remos. Há trinta anos que anda por estas regiões?
— Trinta anos certos.
— Por acaso terá conhecido um homem chamado Vermelho?
— Vermelho?
— Foi esse o único nome por que eu o conheci. Nunca o conheci
pessoalmente. E apesar disso parece-me vê-lo mais nitidamente do que a
muitos outros homens — os meus irmãos, por exemplo, com os quais
passei a minha vida diária durante muitos anos. Vive na minha imaginação
com a nitidez dum Paolo Malatesta ou dum Romeu. Mas você talvez
nunca tenha lido Dante, ou Shakespeare?
— Confesso que isso nunca li.
Neilson, fumando um charuto, recostou-se na cadeira e olhou
negligentemente o anel de fumaça que flutuava no ar parado. Depois olhou
para o capitão. Havia na sua larga obesidade qualquer coisa de
extraordinariamente repelente. Tinha a pletórica satisfação dos muito
gordos. Era um insulto. Aquilo irritou os nervos de Neilson. Mas o
contraste entre o homem na sua frente e o homem em que estava a pensar
era divertido.
"Parece que Vermelho era o homem mais belo que ainda se viu.
Tenho falado com muita gente que o conheceu nessa época — homens
brancos, é claro — e todos concordam que a beleza dele, a primeira vez
que o víssemos, até nos tirava o fôlego. Chamavam-lhe Vermelho por
causa do cabelo cor de fogo. Era ondeado, e ele usava-o comprido. Devia
ser dessa maravilhosa cor de que os pré-rafaelistas tanto gostavam. Não
creio que ele tivesse vaidade nisso, era demasiadamente simples para tal;
mas ninguém o poderia censurar se a tivesse. Era alto, com mais de um
metro e oitenta — na cabana indígena que aqui estava havia uma marca da
sua altura: um golpe de faca no tronco central que sustentava o telhado, —
e tinha a figura dum deus grego, largo de ombros e estreito de ancas; era
como Apolo, com aquelas linhas maciçamente arredondadas que
Praxíteles lhe deu, e aquela graciosidade suave e feminina que tem
qualquer coisa de perturbante e misterioso. A sua pele era
deslumbrantemente branca, leitosa, como cetim; era como a pele duma
mulher.
— Eu também tinha a pele muito branca quando era garoto, — disse
o capitão, com um brilho nos olhos raiados de sangue.
Mas Neilson não lhe prestou atenção. Estava agora a contar a sua
história, e as interrupções impacientavam-no.
— E o seu rosto era tão belo como o corpo. Tinha grandes olhos
azuis, muito escuros, a tal ponto que muita gente dizia serem negros; e, ao
contrário da maior parte das pessoas ruivas, tinha negras as sobrancelhas e
as longas pestanas. Os seus traços fisionómicos eram perfeitamente
regulares e a sua boca como uma ferida escarlate. Tinha vinte anos.
Aqui o sueco parou, com um certo sentimento do dramático. Bebeu
um gole de uísque
— Era único. Nunca houve ninguém mais belo. A sua existência
explica-se pela mesma razão por que pode numa planta silvestre
desabrochar uma flor maravilhosa. Era um feliz acidente da natureza.
"Um dia aportou àquela enseada onde você deve ter desembarcado
esta manhã. Era um marinheiro americano, e desertara dum navio de
guerra. Convencera algum indígena de bom coração a dar-lhe uma
passagem num cutter que por acaso ia partir de Ápia para Safoto, e
trouxeram-no a esta enseada numa canoa.
Não sei porque desertou. Talvez a vida num barco de guerra com a
sua disciplina o irritasse, ou talvez estivesse metido nalgum sarilho; ou
então talvez fossem os Mares do Sul e estas ilhas românticas que lhe
entraram no corpo. De vez em quando elas tentam estranhamente um
homem, fazem dele uma mosca numa teia de aranha. Pode ser que
houvesse nele uma certa moleza de fibra, e estes montes verdes com o seu
ar macio, este mar azul lhe roubassem a força nórdica — tal como Dalila a
de Sansão. Seja como for, pretendia esconder-se e pensou que estaria em
segurança neste recanto isolado, até que o navio partisse de Samoa.
"Havia uma cabana indígena na enseada; e enquanto ele hesitava,
pensando para onde devia ir, uma rapariga saiu da cabana e convidou-o a
entrar. Vermelho apenas sabia duas ou três palavras da linguagem
indígena, e ela a mesma coisa de inglês. Mas compreendeu perfeitamente
o que significavam o sorriso e os graciosos gestos, e seguiu-a. Sentou-se
numa esteira, e ela ofereceu-lhe fatias de ananás. Nunca conheci Vermelho
pessoalmente, mas vi a rapariga três anos depois de ele a ter encontrado;
nessa altura tinha ela dezanove anos. Não pode calcular como era
maravilhosa. Tinha a graça apaixonada do hibisco e a sua rica coloração.
Era bastante alta, delgada, com as delicadas feições da sua raça, e grandes
olhos como lagos tranqüilos sob os palmeirais; o cabelo negro e
encaracolado, caía-lhe pelas costas; e trazia uma grinalda de flores
perfumadas. As mãos eram lindas — tão pequenas, tão maravilhosamente
desenhadas, que faziam parar o coração de quem para elas olhava. E nessa
época ria-se com facilidade. Um sorriso tão delicioso que perturbava. A
pele era como um campo de trigo maduro num dia de verão. Meu Deus,
como posso eu descrevê-la? Era bela demais para ser real.
E esses dois jovens — ela com dezasseis anos e ele com vinte —
apaixonaram-se à primeira vista. Esse é o verdadeiro amor, não o amor
resultante de simpatia, ou de interesses comuns, ou de afinidade
intelectual, mas o amor puro e simples. Esse é o amor que Adão sentiu por
Eva quando acordou e a viu no paraíso olhando-o com olhos orvalhados.
Esse é o amor que atrai os animais uns para os outros, e os deuses. É esse
o amor que dá à vida o seu intenso significado. Você nunca ouviu falar
naquele sábio e cínico duque francês que dizia que, entre dois amantes, há
sempre um que ama e outro que se deixa amar? É uma amarga verdade, à
qual quase todos nós temos de nos resignar; mas, de vez em vez, há dois
que se amam e ao mesmo tempo se deixam amar. Então podemos
imaginar que o sol pára na sua órbita — como parou quando Josué rezou
ao Deus de Israel.
"E mesmo agora, depois de todos estes anos, quando penso nesses
dois — tão jovens, tão puros, tão simples — e em todo o seu amor, sinto
um baque no coração. Sinto o coração rasgar-se-me, tal como quando em
certas noites vejo a lua cheia a refletir-se na lagoa, do alto dum céu limpo
de nuvens. Provoca sempre sofrimento a contemplação da beleza perfeita.
"Eram como crianças. Ela era meiga, doce, bondosa. Dele não sei
nada, mas gosto de imaginar que, então, ele era em tudo simples e franco.
É-me agradável imaginar que a sua alma era tão correta quanto o seu
corpo. Mas estou em dizer que ele não tinha mais alma do que os
habitantes dos bosques e das florestas que faziam flautas de cana e se
banhavam nas torrentes da montanha — quando o mundo ainda era jovem,
e se podiam ver pequenos faunos galopando escarranchados no lombo
dalgum centauro barbudo através das clareiras. A alma é um objeto
incômodo, e quando o homem a criou perdeu o Jardim do Éden.
"Ora, quando Vermelho chegou à ilha, esta fora recentemente assolada
por uma dessas epidemias que os brancos trouxeram para os Mares do Sul,
e a terça-parte dos habitantes morrera. Parece que a rapariga perdera todos
os seus parentes próximos e vivia agora em casa duns primos afastados.
Nessa casa viviam duas velhotas, curvadas e enrugadas, duas mulheres
mais novas, um homem e um rapaz. Durante uns dias ele viveu lá. Mas
talvez se sentisse demasiadamente perto da praia, com a possibilidade de
dar de cara com algum branco que poderia revelar o seu esconderijo;
talvez os amantes não pudessem suportar que a companhia dos outros os
roubasse por instante que fosse ao prazer de estarem sozinhos. E assim,
uma manhã partiram — os dois sozinhos, — com as poucas coisas que
pertenciam à moça, e caminharam ao longo dum carreiro relvado, por
entre os coqueiros, até que chegaram a este regato. Tiveram de atravessar
a ponte que você hoje atravessou, e a moça ria alegremente porque ele
tinha medo. Ela ajudou-o até chegarem ao fim do primeiro tronco, mas aí
ele perdeu a coragem e teve de voltar atrás. Foi obrigado a despir a roupa
toda antes de se arriscar, e ela levou-a à cabeça. Instalaram-se na cabana
vazia que aqui estava. Se ela tinha ou não direitos sobre essa cabana (aqui
nas ilhas a propriedade das terras é uma questão complicada), ou se o dono
dela morrera na epidemia, é coisa que não sei. Mas fosse como fosse
ninguém os incomodou, e eles apossaram-se dela. A mobília consistia
unicamente nas duas esteiras de palha em que dormiam, no fragmento
dum espelho, e em duas ou três tigelas. Isso chega para montar casa nesta
maravilhosa terra.
"Diz-se que as pessoas felizes não têm história, e na verdade um
amor feliz não a tem. Durante todo o dia não faziam coisa alguma e apesar
disso os dias pareciam-lhes curtos. A rapariga tinha um nome indígena,
mas Vermelho chamava-lhe Sally. Num instante ele aprendeu a fácil
língua indígena, e costumava jazer horas seguidas na esteira a ouvi-la
falar-lhe alegremente. Ele era um tipo calado; talvez o seu espírito fosse
preguiçoso. Fumava incessantemente os cigarros que ela lhe fazia com
tabaco indígena e folhas de pântano, e observava-a enquanto ela fazia
esteiras de palha com os dedos ágeis. Frequentemente apareciam
indígenas, e contavam longas histórias dos velhos tempos em que a ilha
era agitada pelas guerras das tribos. Às vezes ia pescar para os recifes e
voltava trazendo um cesto cheio de peixes coloridos. Às vezes ia à noite
com uma lanterna pescar lagostas. Havia frutos nos arredores da cabana, e
Sally assava-os para as suas frugais refeições. Sabia fazer deliciosos pratos
de coco; e a árvore de pão que havia perto do regato abastecia-os de pão.
Em dia de festa matavam um leitão e assavam-no sobre pedras quentes.
Banhavam-se no regato; e à noite iam até à lagoa, onde passeavam numa
canoa indígena. O mar era azul-escuro, cor de vinho ao pôr do sol, como o
da Grécia homérica; mas na lagoa a cor da água tinha infinitas variantes
— turquesa, ametista, esmeralda; — e o sol poente transformava-a,
durante um curto momento, em ouro líquido. E havia também a cor do
coral, castanho, branco, cor de rosa, vermelho, púrpura; e as formas que
ele tomava eram maravilhosas. Era como um jardim mágico, de que os
velozes peixes fossem borboletas. Era estranhamente irreal. Entre os
bancos de coral havia lagos com fundo de areia branca onde, numa água
espantosamente límpida, era muito agradável tomar banho. Depois, ao
crepúsculo, frescos e felizes, regressavam lentamente pelo carreiro de erva
macia, caminhando de mãos dadas, enquanto os pássaros enchiam os
coqueiros com a sua algazarra. E depois a noite, com este enorme céu
salpicado de pontos dourados que parece ser maior do que os céus da
Europa, e a macia brisa que atravessava suavemente a cabana aberta, a
longa noite também era curta. Ela tinha dezasseis anos, ele mal tinha vinte.
A aurora rastejava por entre os pilares de madeira da cabana e vinha
contemplar essas encantadoras crianças dormindo nos braços uma da
outra. O sol escondia-se atrás das grandes e velhas folhas das palmeiras
para os não incomodar, e depois, com malícia brincalhona, dardejava um
raio dourado nos seus rostos, como a pata estendida de um gato angora.
Abriam os olhos sonolentos e sorriam, em boas-vindas a um novo dia. As
semanas cresceram, meses, e um ano passou. E eles pareciam amar-se
tão... hesito em dizer apaixonadamente, porque a paixão tem sempre em si
uma sombra de tristeza, uma ponta de amargura ou de angústia;... mas tão
completamente, tão simples e naturalmente como nesse primeiro dia do
seu encontro, em que compreenderam terem um deus dentro de si.
"Se alguém lhes tivesse perguntado, não tenho dúvida de que
responderiam ser impossível que o seu amor morresse. Não sabemos nós
que o elemento essencial do amor é a crença na sua eternidade? E contudo
talvez houvesse já em Vermelho uma pequena semente, desconhecida dele
próprio e não suspeitada pela rapariga, que com o correr do tempo
cresceria em enfado. Porque um dia um dos indígenas da enseada disse-
lhes que um barco inglês de pesca da baleia estava ancorado a alguma
distância da costa.
"— Ah, — disse Vermelho, bem gostava de saber se eles queriam
trocar por uns cocos e umas bananas, uma libra ou duas de tabaco.
"Os cigarros de pântano que Sally lhe fazia com mãos incansáveis
eram fortes e bastante agradáveis, mas deixavam-no insatisfeito; ansiou
subitamente por tabaco verdadeiro, áspero, amargo, picante. Não fumava
uma cachimbada havia muitos meses. Nascia-lhe a água na boca só de
pensar nisso. Supor-se-ia que qualquer pressentimento poderia ter levado
Sally a procurar dissuadi-lo, mas o amor possuía-a tão completamente que
acreditava não haver poder no mundo capaz de o separar dela. Foram aos
montes próximos buscar laranjas bravas, ainda verdes, mas doces e
sumarentas, de que encheram um grande cesto; colheram frutos das
árvores ao redor da cabana, e cocos, e frutos da árvore de pão, e mangas; e
transportaram-nas para a enseada. Carregaram com eles a instável canoa; e
Vermelho e o rapaz indígena que trouxera a notícia da chegada do navio
embarcaram e remaram em direção à linha dos recifes.
"Foi essa a última vez que ela o viu.
"No dia seguinte o rapaz indígena regressou sozinho. Vinha banhado
em lágrimas. Eis a história que ele contou. Quando, depois de remarem
durante muito tempo, alcançaram o navio e Vermelho chamou pelo
capitão, um branco olhou por cima da amurada e disse-lhes que subissem
a bordo. Levaram a fruta que haviam trazido e empilharam-na no
tombadilho. O branco e Vermelho começaram a conversar e pareceram
chegar a um acordo. Um homem da tripulação desceu e voltou trazendo
tabaco. Vermelho imediatamente pegou nalgum e acendeu o cachimbo. O
rapaz imitava a volúpia com que ele soprou uma grande nuvem de fumaça.
Depois disseram-lhe qualquer coisa e ele entrou na cabine. Olhando
curiosamente pela porta aberta, o rapaz viu-os tirarem para fora uma
garrafa e copos. Vermelho bebia e fumava. Pareceram perguntar-lhe
qualquer coisa, porque ele abanou a cabeça e riu-se. O homem — o
primeiro que lhes falara — riu-se também e tornou a encher o copo de
Vermelho. Continuaram a conversar e a beber; e a certa altura o rapaz,
cansado de observar um espetáculo que para ele não tinha significado
algum, deitou-se no tombadilho e adormeceu. Foi acordado por um
pontapé; e, levantando-se dum salto, viu que o navio saía lentamente da
lagoa. Avistou Vermelho sentado à mesa com a cabeça descansando
pesadamente nos braços, num sono profundo. Fez um movimento na sua
direção, com a intenção de o acordar, mas uma rude mão agarrou-o por
um braço, e um homem, com cara feroz e palavras que ele não
compreendeu, apontou-lhe a amurada. Gritou pelo Vermelho mas sem
resultado, nadou até à canoa que andava por ali à deriva e empurrou-a até
aos recifes. Aí subiu para ela e, sempre a soluçar, remou em direção à
praia.
"O que acontecera era evidente. O barco da pesca da baleia lutava
com falta de homens — por deserção ou por doença — e quando
Vermelho subira a bordo, o capitão perguntara-lhe se se queria engajar.
Perante a sua recusa, embriagara-o e raptara-o.
"Sally quase enlouqueceu de dor. Durante três dias gritou e chorou.
Os indígenas fizeram o que puderam para a consolar, mas ela não se
conformava. Recusou-se a comer. E então, exausta, caiu numa apatia
taciturna. Passava longos dias na enseada, olhando a lagoa, na vã
esperança de que Vermelho conseguisse de qualquer maneira escapar.
Ficava sentada na areia, durante horas e horas, com as lágrimas a
correrem-lhe pela cara, e à noite arrastava-se penosamente até à cabana à
beira do regato onde fora feliz. Os parentes com quem vivia antes de
Vermelho chegar à ilha queriam que ela fosse viver com eles, mas ela não
acedeu; estava convencida de que Vermelho voltaria, e queria que ele a
encontrasse onde a tinha deixado. Quatro meses mais tarde deu à luz uma
criança morta, e a velha que viera ajudá-la no parto ficou com ela na
cabana. Toda a alegria se fora da sua vida. Se a sua angústia com o tempo
se tornou menos intolerável, foi substituída por uma melancolia
permanente. Ninguém imaginaria que nesse povo, cujas emoções, embora
violentas, são passageiras, se encontraria uma mulher capaz duma paixão
tão duradoura. Nunca perdeu a profunda convicção de que, mais tarde ou
mais cedo, Vermelho voltaria. Estava sempre à espera dele; sempre que
alguém atravessava esta pontezinha de troncos de coqueiro ela corria a ver
quem era. Podia ser que fosse ele, finalmente.
Neilson parou de falar e soltou um ligeiro suspiro.
— E depois o que foi feito dela? — perguntou o capitão.
Neilson sorriu amargamente.
— Oh, três anos depois juntou-se com outro branco.
O capitão soltou uma larga gargalhada cínica.
— É geralmente o que lhes acontece, — disse ele.
O sueco dardejou-lhe um olhar de ódio. Não sabia porque é que esse
homem grosseiro e obeso lhe causava uma repulsa tão grande. Mas os seus
pensamentos tomaram outra direção e o espírito encheu-se-lhe de
recordações do passado. Voltou vinte e cinco anos atrás. Fora quando pela
primeira vez viera a esta ilha, cansado das bebedeiras e do jogo e da
grosseira sensualidade de Ápia, doente, procurando resignar-se à perda da
carreira que lhe enchera a cabeça de pensamentos ambiciosos. Pusera de
parte resolutamente todos os desejos de criar um grande nome e tratara de
se contentar com os escassos meses de vida hesitante que eram tudo com
que podia contar. Morava em casa de um comerciante mestiço que tinha
uma loja a poucas milhas, numa pequena aldeia indígena, na costa; e um
dia, vagueando sem objetivo pelos carreiros relvados por entre os
coqueiros, deparara-se-lhe a cabana em que Sally vivia. A beleza do lugar
enchera-o de um bem estar tão grande que quase era doloroso; e depois
vira Sally. Era a mais bela criatura que jamais vira e a tristeza naqueles
olhos escuros e magníficos afetou-o estranhamente. Os kanakas eram uma
raça de feições simpáticas, e a beleza não era rara entre eles, mas era uma
beleza de animais bem conformados. Era vazia. Mas aqueles olhos
trágicos eram negros de mistério, e neles pressentia-se a amarga
complexidade da obscura alma humana. O comerciante contou-lhe a
história dela, que o comoveu.
"E acha que ele voltará?", perguntara-lhe Neilson.
"Não. O contrato de fretamento do navio durará ainda alguns anos, e
por essa altura já ele se terá esquecido dela. Calculo como deve ter ficado
furioso quando acordou e descobriu que fora seqüestrado, e não me
admirava nada que tivesse querido jogar à pancada. Mas teve de sorrir
amarelo e agüentar, e aposto que um mês depois já achava que nada
melhor lhe poderia ter sucedido do que sair daquela ilha".
Mas Neilson não conseguiu esquecer a história. Talvez por estar
doente e fraco, a radiosa saúde de Vermelho não lhe largava a imaginação.
Homem feio, de aparência insignificante, apreciava grandemente a beleza
nos outros. Nunca amara apaixonadamente e, com certeza, nunca fora
apaixonadamente amado. A atração mútua dessas jovens criaturas dava-
lhe um singular prazer. Tinha a inefável beleza do Absoluto. Foi outra vez
à pequena cabana junto do regato. Tinha grande facilidade em aprender
línguas e um cérebro ágil, habituado a trabalhar, e já dedicara muito tempo
ao estudo do idioma local. Por força dos velhos hábitos estava a reunir
material para um trabalho sobre o idioma samoano. A velhota que vivia na
cabana com Sally convidou-o a entrar e a sentar-se. Ofereceu-lhe kava
para beber e cigarros. Ela estava contente por ter alguém com quem
conversar, e enquanto ela falava ele olhava Sally. Fazia-lhe lembrar a
Psique do Museu de Nápoles. Aquelas feições tinham a mesma nítida
pureza de linhas; e, embora tivesse tido um filho, conservava um aspecto
virginal.
Só ao fim de duas ou três visitas conseguiu fazê-la falar. E mesmo
isso foi para lhe perguntar se não vira em Ápia um homem chamado
Vermelho. Tinham passado dois anos desde o seu desaparecimento, mas
era evidente que ainda pensava nele incessantemente.
Neilson não levou muito tempo a perceber que estava apaixonado
por ela. Era apenas com intervenção da sua força de vontade que
conseguia não ir todos os dias ao regato; quando não estava ao pé de Sally,
estavam-no os seus pensamentos. A princípio, considerando-se
condenado, apenas desejava vê-la, e ocasionalmente ouvi-la falar; e este
amor dava-lhe uma felicidade maravilhosa. A sua pureza exaltava-o. Nada
queria de Sally a não ser a oportunidade de tecer à volta da sua graciosa
pessoa uma rede de belas fantasias. Mas o ar puro, a temperatura
moderada, e repouso, a comida simples, começaram a ter um efeito
inesperado sobre a sua saúde. A temperatura já não atingia alturas tão
alarmantes de noite, tossia menos frequentemente e começou a ganhar
peso; passaram-se seis meses sem tossir sangue; e subitamente entreviu a
possibilidade de viver. Tinha estudado a sua doença cuidadosamente, e
começou a ter esperança de, com grandes cuidados, poder deter-lhe a
marcha. Regozijou-se ao olhar outra vez o futuro. Fez planos. Era evidente
que não voltaria nunca a ter uma vida ativa, mas podia viver nas ilhas; e o
pequeno rendimento que tinha, magro em qualquer outro lugar, seria
suficiente para viver bem aí. Poderia cultivar coqueiros; seria uma
ocupação; e mandaria vir os seus livros e um piano. Mas o seu espírito viu
imediatamente que, debaixo de todos estes planos, estava a tentar esconder
de si próprio o desejo que o obcecava.
Queria Sally. Amava não só a sua beleza mas a alma sombria que
adivinhava por trás daqueles olhos sofredores. Embriagá-la-ia com a sua
paixão. Conseguiria por fim fazê-la esquecer. E num êxtase de rendição,
imaginava-se a compartilhar com ela a felicidade que imaginara nunca
mais ter e que tão miraculosamente alcançara.
Pediu-lhe que fosse viver com ele. Ela recusou. Já esperava isso e
não desanimou, porque tinha a certeza de que, mais tarde ou mais cedo,
ela cederia. O amor dele era irresistível. Contou à velhota os seus desejos,
e descobriu com certa surpresa que ela e os vizinhos, sabedores há muito
tempo, aconselhavam fortemente Sally a aceitar a proposta. Afinal de
contas, todo o indígena gosta de viver com um branco; e Neilson era um
branco rico, comparado com o que era habitual na ilha. O comerciante em
casa de quem Neilson vivia foi falar com Sally e disse-lhe que não fosse
idiota; uma oportunidade dessas não tornaria a aparecer-lhe, e depois de
tanto tempo ela certamente não ia acreditar que Vermelho voltasse. A
resistência da rapariga apenas aumentava o desejo de Neilson e o que fora
um amor puríssimo em breve se transformou numa paixão desvairada.
Estava decidido a servir-se de todos os meios para conseguir o que queria.
Não dava tréguas a Sally. Por fim, vencida pela persistência dele e pela
persuasão — ora implorativa, ora zangada — de toda a gente à sua volta,
ela consentiu. Mas quando no dia seguinte, exultante, ele a foi visitar, viu
que durante a noite ela queimara completamente a cabana onde ela e
Vermelho tinham vivido. A velhota correu ao seu encontro, cheia de
queixas zangadas contra Sally; mas ele afastou-a; isso não tinha
importância; construiriam um bangalô no sítio onde estivera a cabana.
Uma casa européia seria realmente mais conveniente se queria mandar vir
um piano e grande número de livros.
E assim se construiu a pequena casa de madeira onde vivia há muitos
anos; e Sally tornou-se mulher dele. Mas depois das primeiras (e poucas)
semanas de encantamento durante as quais ele se satisfizera com o que ela
lhe dava, sentira-se pouco feliz. Ela cedera por cansaço, mas só cedera
naquilo que para ela tinha pouco valor. A alma que ele obscuramente
entrevira escapava-lhe. Sabia que ela o não amava. Ainda amava
Vermelho, e continuava à espera dele. Neilson sabia que, não obstante o
seu amor, a sua ternura, a sua simpatia, a sua generosidade, ela o deixaria
sem um momento de hesitação a um sinal de Vermelho. E que nem
pensaria na sua dor. A angústia apossou-se dele; tentou forçar aquela
impenetrável outra parte de Sally que sombriamente lhe resistia. O amor
tornou-se amargo. Tentou comovê-la com bondade, mas o coração dela
continuou tão duro como antes; fingiu indiferença mas Sally nem deu por
tal. Às vezes perdia a paciência e insultava-a, ela chorava silenciosamente.
Muitas vezes pensava que se enganava a seu respeito — aquela alma não
passava de simples invenção dele — e que não podia entrar no santuário
do seu coração porque tal santuário não existia. O amor tornou-se-lhe uma
prisão da qual ansiava escapar; mas nem sequer tinha força de abrir a porta
— bastaria fazer isso — e sair para o ar livre. Era uma tortura. Por fim
cansou-se e perdeu as esperanças. O fogo apagou-se; e quando via o olhar
dela pousar por um instante na delgada ponte, já não era a raiva que lhe
enchia o peito, mas a impaciência. E agora viviam há muitos anos ligados
pelos laços de hábito, e era com um sorriso que pensava na sua antiga
paixão. Ela estava uma velha, porque as mulheres nas ilhas envelhecem
rapidamente; e, embora já lhe não tivesse amor, tolerava-a. Deixava-o em
paz. A ele bastavam-lhe o piano e os livros.
Aqueles pensamentos provocaram-lhe o desejo de falar.
— Quando agora olho para trás e reflito nesse breve e ardente amor
de Vermelho e Sally, penso que talvez devam agradecer-lhe ao implacável
destino que os separou quando o seu amor parecia estar no auge.
Sofreram, mas tiveram um sofrimento belo. Foram poupados à verdadeira
tragédia do amor.
— Não entendeu muito bem o que quer dizer — disse o capitão.
— A tragédia do amor não é a morte ou a separação. Quanto tempo
você acha que demoraria um deles a ficar cheio do outro? Oh, é
horrivelmente amargo olhar para uma mulher que amamos com todo o
coração, com toda a alma, — tanto, que sentíamos não nos podermos
separar nunca dela, — e compreender que se nunca mais a víssemos não
teríamos desgosto nenhum. A tragédia do amor é a indiferença.
Mas enquanto falava sucedeu-lhe uma coisa extraordinária.
Conquanto se tivesse dirigido ao capitão, não falava para ele; pusera os
pensamentos em palavras para si próprio; e, com os olhos fixos no homem
em sua frente, não o vira. Mas, de repente, uma imagem apresentou-se aos
seus olhos, não a do homem que via, mas de um outro homem. Era como
se estivesse a olhar para um daqueles espelhos curvos, que alteram as
figuras, fazendo-as extraordinariamente altas ou ultrajosamente
atarracadas. Mas aqui sucedia precisamente o contrário; e, no homem
gordo e feio, entreviu o vago aspecto dum rapaz. Examinou-o, com um
olhar rápido e perscrutador. Porque o teria trazido a este sítio uma viagem
de acaso? Um súbito baque no coração fê-lo ficar com a respiração
suspensa. Uma suspeita absurda apoderou-se dele. O que lhe ocorrera era
impossível — e contudo podia ser verdadeiro.
— Como é que você se chama? — perguntou brutamente.
O rosto do capitão encheu-se de pequeninas rugas e ele soltou uma
gargalhada sabida.
— Já há tanto tempo que não ouço o meu nome, que quase me
esqueci dele. Mas há trinta anos que sou conhecido aqui nas ilhas por
Vermelho.
O seu corpo balofo tremia num riso baixo, quase silencioso. Era um
espetáculo obsceno. Neilson estremeceu. Vermelho estava divertidíssimo,
e lágrimas escorriam-lhe dos olhos raiados de sangue pela cara abaixo.
Neilson ficou suspenso — porque nesse momento uma mulher
entrou na sala. Era uma mulher indígena de aspecto um tanto imponente,
forte sem ser corpulenta, escura, porque os indígenas escurecem com a
idade, de cabelo grisalho. Trazia vestida uma mother-hubbard preta, que
deixava adivinhar, por baixo do pano fino, os seios pesados. Tinha
chegado o momento.
Fez uma observação a Neilson a respeito de qualquer assunto
doméstico, e ele respondeu. Perguntou a si mesmo se a voz lhe soaria tão
pouco natural como a ele próprio parecia. Ela deitou um olhar indiferente
ao homem sentado ao pé da janela, e saiu da sala. O momento tinha
chegado — e passado.
Neilson não pôde falar por instantes. Estava estranhamente abalado.
Depois:
— Teria imenso prazer em que ficasse para jantar comigo. Terá é de
se sujeitar ao que houver.
— Creio que não posso, — disse Vermelho. — Tenho de ir à procura
desse tipo Gray. Entrego-lhe a mercadoria e depois vou-me embora. Quero
estar amanhã em Ápia.
— Vou mandar-lhe um garoto para lhe ensinar o caminho.
— Ótimo.
Vermelho ergueu-se com custo da cadeira, enquanto o sueco
chamava um dos rapazes que trabalhava na plantação. - disse-lhe para
onde o capitão queria ir, e o rapaz começou atravessar a ponte. Vermelho
preparou-se para o seguir.
— Não caia, — disse o sueco.
Neilson viu-o fazer a travessia; e, já o outro desaparecera por entre
os coqueiros, ainda olhava. Depois deixou-se cair pesadamente na cadeira.
Era então esse o homem que o impedira de ser feliz? Era esse o homem
que Sally amara durante todos esses anos e por quem esperara tão
desesperadamente? Era uma coisa grotesca. Apoderou-se dele uma fúria
repentina; queria levantar-se e quebrar tudo à sua volta. Fora ludibriado.
Eles tinham-se visto um ao outro, finalmente, e não se tinham
reconhecido. Começou a rir, sem alegria; o riso aumentou até se tornar
histérico. Os deuses haviam-lhe pregado uma partida cruel. E agora estava
velho.
Até Sally entrou para lhe dizer que o jantar estava pronto. Sentou-se
em frente dela e tentou comer. Perguntava-se o que diria se lhe contasse
que o homem gordo e velho sentado na cadeira era o amante de quem se
recordava ainda com o apaixonado abandono da sua juventude. Alguns
anos atrás, quando a odiava por o tornar tão infeliz, teria sentido prazer em
fazê-lo. Nessa altura queria feri-la como ela o feria, porque o seu ódio
apenas era amor. Mas agora tanto lhe fazia. Encolheu os ombros, com
indiferença.
— Que queria aquele homem? — perguntou ela.
Não lhe respondeu logo. Ela também estava velha, uma indígena
velha e gorda. Ele pensava: como pudera tê-la amado tão loucamente?
Espalhara aos seus pés todos os tesouros da sua alma, e ela não lhes ligara
nenhuma. Desperdício — que desperdício! E agora, quando a olhava,
apenas sentia desprezo. A paciência acabara-se. Respondeu à sua
pergunta:
— É o capitão de uma escuna. Veio de Ápia.
— Sim?
— Trouxe-me notícias de casa. O meu irmão mais velho está muito
doente e tenho de lá ir.
— Demoras-te muito?
Ele encolheu os ombros.
A força das circunstâncias
Fim
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D.Source
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