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AMUSICA, O CORPO E AS MAQUINAS* Fernando lazzetta Como se explica 0 fato de que quando alguém ouve voluntariamente uma musica com seus ouvidos @ sua mente, ele também se volta involuntariamente a essa musica de modo que seu corpo responde com movimentos de algum modo similares & musica owvida? (Boethius, 1989: 8). RESUMO; Artigo analisa de que maneira o surgimento das tecnologias elétricas, eletrénicas e digitals no decorrer do século XX vao alterar os modos. de produgao musical. O primeiro ponte levantade refere-se ao fate de que com o desenvolvimento de aparelhos como 0 fondgrato @ o gramofone, a performance da lugar reprodugaa mecdnica da musica ¢ a instituigio do concerto € substitufda pela escuta individual. Essa mudangas véo apontar para a importancia da materialidade e corporalidade na performance musical. So também analisades o papel do.gesto como velculo de significagao musical e,tinalmente, o impacto que a miisica eletroactistica e o uso de computadores causaram nos modas de produgdo e recepgao musical. Técnica e tecnologia so dois aspectos da cultura que sempre estiveram profundamente envolvidos com a musica, ndo apenas no que diz respeito a sua produgao, mas também em relagéo ao desenvolvimento de sua teoria @ ao estabelecimenta de seu papel cultural. Entende-se técnica, aqui, como os processos e métodos desenvolvidos para a realizagdo de uma determinada tarefa. Por sua vez, tecnologia refere-se as ferramentas, conceituais ou materiais, utilizadas nessa realizagéio. Instrumentos musicais podem ser vistos como extensdes tecnolégicas de nossas habilidades de produzir sons. Porém, 6 necessario que se desenvolvam técnicas para manipulagéo desses aparatos tecnolégicos para que se alcance os resultados desejados. * OPUS, Rio de Janeiro, v. 4, n. 4, ago. 1997, a7 Com a chegada do século XX a relagao entre musica e tecnologia se mostra mais intensa devido a uma série de fatores, entre eles, o aumento do conhecimento acetca de aspectos fisicos e cognitivos do som, 0 acesso & energia elétrica baratae a aplicagao das tecnologias eletronica e digital na geragao sonora artificial. Até entao, os Sons utilizados na mtisica eram fruto de um mesmo tipo de processo mecanico, Os instrumentos musicais como o cravo, a rabeca, a voz, ou 0 plano, apesar de suas formas variadas, baseavam-se em um mesmo principio de produgéio sonora: até © século passado todo sem era proveniente da vibragao de algum material eldstico (as cordas de um violdo, a palheta de um oboé, as teclas de uma marimba) que gerava ondas que se propagam pelo.ar até atingirem o sistema auditivo do ouvinte, Entretanto, © surgimento de novas tecnologias baseadas na eletricidade e o uso de sinais eletromagnéticos abriram a possibilidade da geracao de sons sem a utilizagao de instrumentos mecdnicos. Embora as ondas sonoras que atingem nosso aparelho auditive possuam a mesma natureza, sejam elas provenientes das batidas de um tambor ou dos osciladores eletrénicos contidos em um sintetizador, seus processos de produgdo so radicalmente diferentes. Por um lado ha o universo concreto, visivel @ mec&nico dos instrumentos tradicionais, onde os corpos (do insirumento @ de quem a toca) envolvidos e seus movimentos estao intrinsecamente relacionados ao resultado sonora obtida: as cordas tensas e curlas de um violino vibram mais rapido, porém com menos energia que as cordas mais longas e flacidas de um contrabaixo, que exigem a aplicacaéo de mais forca do instrumentista. Apesar de sua semelhanca em termos de forma, esses dois jinstrumentos, violino e contrabaixo, comportam-se de um modo distinto, em fungao da contormagao fisica e dimens4o de seus componentes. Também o instrumentista esta sujelto as limitagSes e possibilidades impostas pela fisica desses instrumentos ao mesmo tempo que os controla com uma técnica que as vezes beira os limites da capacidade humana, impanda os movimentos © gestos de seu préprio corpo, sobre 0 corpo do seu instrumenta, Per outro lade, com o advento da eletricidade e da eletr6nica, inais e mais passamos a ouvir e conviver com sons provenientes de corpos invisiveis contides nes circuitos de sintetizadores, samplers, gravadores magnéticos 6 computadores. Durante milénios as pessoas aprenderam a ouvir sons que quardavam relagdes estreitas com os corpos que os produziam, Subitamente, tada a experiéncia auditiva acumulada em um longo processo de evolugao da cultura musical é transformada pelo surgimento dos sons eletrénicos. A audicao desses sons nao revela as relagdes mecanicas, concretas e aparentes dos instrumentos actisticos tradicionais, ja que estes so gerados através de processos elétricos, invisiveis & nossa percepgo. Sao sons novos € extremamente ricos, mas ao mesmo tempo, conflituasos, ja que vem desvestidos de qualquer conexao com corpos ou gestos. Até o advento dos sistemas de gravagdo neste século, o contato com musica se dava primordialmente através da performance, O ouvinte, mesme que nao envolvide diretamente com a produgdo sonora, participava da realizagao musical ao reconstruir interamente, néo apenas seqéncias de notas produzidas pelos instruments musicais 28 ou as estruturas formais da composig4o, mas todo o universo gestual que os acompanha, pois a musica era fruto dos compos que a produzem e era impossivel, para 0 ouvinte, ficar alheio @ presenga desses corpos. Um exemplo da forca que existe nessa conexio entre o som e as imagens que acompanham a geragao desse som esta no artificio da utilizagao do “musico fora de cena” que tem sido usado desde os mistérios sacros da dade Média, até as sinfonias de Mahler ou os dramas de Wagner. Ao se criar uma situagae anormal, quase fantastica, fazendo com que se ouga o som sem que se veja o corpo que o produz, 6 realcado © cardter magico da figagao entre aquilo que se ouve ¢ aquilo que se vé. 1880 porque a presenga do musico e do instrumento no ato da performance representam algo por si mesmas, A realidade fisica, biolégica e social dessa presenga empresta & performance musical, tao imaterial e intangivel, uma espécie de materialidade. O corpose expressa ao produzir musica através do gesta, mapeanda o yisivel e o audivel dentro de uma mesma geografia. Em uma obra recente, Richard Leppert (1993) explora de moda bastante criativo a relagdo entre aquilo que se ouve & aquilo que 5e yg em musica através da andlise de diversas pinturas cujo tema central é a situagao de performance musical. Leppert aborda a miisica de um modo indireto: sua andlise parte de pinturas de diversos artistas e épocas representando situagdes de performance musical para mostrar o quanto se pode ver na musica e que os componentes imagéticos da linguagem musical po ‘ser de importancia fundamental no processo de compreensao de seu préprio discurso. Para o autor, musica é algo notadamente corpéreo: “Justamente porque 0 som 6 abstrato, intangivel e etéreo [...] a experiéncia visual de sua producdo 4 algo crucial para que, tanto os misicos quanto a audiéncia, possam situar e comunicar o lugar da musica e do som musical dentro da cultura e da sociedade[...] A musica, apesar de sua eterealidade sonora, & uma pratica corporal, como a danga ou a teatro." (Leppert, 1993: xxi), E interessante notar que essa dimensao gestual da musica $6 vem @ tona muito recentemente A medida que essa dimensdo desvanece com o surgimento da musica eletrénica e dos meios de gravagao e reprodugao, 08 quais modificam ou, por vezes, eliminam completamente a existéncia da performance. Ao mesmo tempo em que as tecnologias reprodutivas (0 radio, o disco, ou o CD) passam a dominar no Ambito sociocultural os processas que envolvem a produgdo e recepgao da misica, duas alterapSes se processam paralelamente. MUSICA MECANIZADA A primeira alteragao refete-se ao deslocamento da énfase no processo de produgae (composi¢ao ¢ interpretagao) para a recepeao (audio) como experiéncia 29 cultural (Mowitt, 1987). Torna-se saliente aqui o fato de que é incomensuravelmente maior o nmero de pessoas que ouvem miisica do que o nlimero de pessoas que fazem misica. Mais do que um dado quantitativo, isso reflete uma transformagao no espago sociocultural; a musica é preduzida primordialmente para ser ouvida e nda para ser locada, © os processos de composigaa e interpretagao passam a ser os meios pelos quais isso se realiza. Essa projecao na diregao do ouvinte @ realgada pelos processos de reproducdo que vaoimpor, de certa forma, os padroes: de recepgao. Quando surgiram os primeiros aparelhos fonograficos no final do século passado, o padro de escuta que esses aparelhos almejavam se espelhava no moda de escuta vigente na época, ou seja, a da escuta baseada na experiéncia auditiva das apresentacOes a0 vivo, A meta daqueles sistemas de reprodugao musical passou a ser definida pelo termo fidelidade, indicando que melhor seria uma reprodugo quanto mais ela $2 aproximasse da qualidade sonora de uma apresentagao ao vivo (Thompson, 1995). Entretanto, com o passar do tempo, apresentagies ao vivo deixaram de ser padrao para qualquer tipo de escuta em musica. O que a maioria dos ouvintes entende hoje por audi¢ao musical refere-se 4 escuta através de sistemas reprodutores, como © fadio, os discos as fitas magnéticas. Lentamente, esse novo contexte regido pela gravacao & teprodugaio tomou-se 0 padre de noreamento da producao musical. O termo fidelidade — cuja existéncia pressup6e uma relagdo de iqualdade ou semelhanca com algo — é ainda utilizado, especialmente na industria fonagréfica e de audio, mas seu significado tornou-se reflexive @ inconsistente: a fidelidade de uma reprodug&o nao é estabelecida pela comparagao com seu original, mas em relagio ao padréio imposto pela propria tecnologia de gravag&o. Ndo é, portanto, de se estranhar que mais @ mais misicos tentem repraduzir em suas apresentagdes ao vivo o padrao oferecido em suas gravacées, especialmente no que conceme a musica popular. Assim, aalengao aos novos meios de produgéo toma-se fundamental no estudo e andlise da mdsica uma vez que esses meios vém transformando os modes de escuta, A importancia desse fato é realgada em um ensaio de John Mowitt: "S@ a gravagdo organiza a experiéncia da recepgdo pelo condicionamento de sua presente escala ¢ pelo estabelecimenta de suas normas qualitativas, tanto para misicos quanto para ouvintes, entao as condi¢des de recepgao na verdade precedem o momento de pradugao. [A] andlise social da experiéncia musical deve levar em conta a prioridade fundamental da recepgdo." (Mowitt, 1987: 176-77) Em 1926, num jivro chamado The Future of Music, o professor Edward J. Dent comenta as possibilidades que os avangos tecnoldgicos de sua época em relagao & musica: “As Invengdies mecénicas de anos recentes nos trouxeram uma facilidade erescente para a ditusdo musical. A época atual poderd vir a ser vista com @ mesma importéncia histérica daquelas que foram as primeiras beneficidrias da invengao do pentagrama ou da imprensa musical. De certa forma, essas mudancas representam meramente a adaptagao de 30 condigGes praticas ao aumento populacional. Mas, se a invengao do pentagrama ou da imprensa musical provavelmente aumentaram o ntimera de pessoas capazes de ler musica imediatamente, a moderna maquinaria de reprodugdo nao pode fazer mais do que aumentar o numero daqueles que se confinam & escuta, Permanece desconhecida a proporg&o daqueles que adquirindo 0 habita de ouvir serdo estimulados a aprender algo da arte da performance.” (citado in Moore, 1981: 224-225). A idéia que circulava na época em que 6 professor Dent escreveu seu artiga eraade que o surgimento do gramofone permitiria que cada vez mais pessoas tivessem acesso a um numero maior de obras ¢ estilos musicais, o que, esperava-se, despertaria o interesse pelo aprendizado e apraciagao musical. De fato, o cilindro gravado usado nos primeiras fondgrafos ¢ gramafones, abriu novas perspectivas no contato com uma quantidade e diversidade musical sem precedentes na histéria, Um tnico exemplo ‘Serve pata ilustrat esse ponto: a Gramophone Company, formada na Inglaterra em 1898 possula, jd por volta de 1900, um catélogo de 5.000 titulos fonograficos separados porcategorias de gravacées inglosas, escocesas, irlandesas, celtas, francesas, alamas, italianas, vienenses, hingaras, russas, persas, hindus, urdus, 4rabes e hebréias (Chanan, 1995: 29). Embora desde seu inicio até os dias de hoje a industria fonografica tenha se dirigido primariamente ao gosto popular e comercial, tal diversidade foi sempre erescente, gerando o langamento de uma enorme quantidade de gravagdes “étnicas”, que atrafam ouvintes curiosos, geralmente mais pelo exotismo do que pela nova informagao musical. Esse proceso culminou, hd pouco mals de dez anos nachamada world-music, verdadeiro caldo diluider de misicas e culturas. O compositor Béla Barték (1881-1945) um entusiasta do uso dos novos maios de gravacao ¢ reprodugao, especialmente devido aos benelicios trazidos por esses meios ao estudo da musica folclérica, termina um artigo de 1937 com a suplica: “Deu proteja nossos filhos dessa pragal” (Bartok, 1976: 298). A 'praga’ a que o compositor hingaro se refere é a possibilidade de que um dia.a misica mecanizada, ou seja, aquela proveniente de aparelhos como 0 gramotone, viesse substituir a musica realizada “ao vivo". Preacupado com a crescente substituig&o das apresentagoes musicais em concerto pela chamada musica mec4nica, © compositor adverte para 0 cardter artificial da segunda: "Alémde tudo, a gravagao do. gramofonetem coma musica que a originou mesma relagdo que tem a fruta enlatada com a fruta fresea; uma nao contém vitaminas, a outra contém. A misica mecénica 6 uma produgao industrial, a musica ao vivo 6 um artesanato individual." (Barték, 1976: 298). Certamente a posicao de Barték nao representava a visdo geral de sua época, Na maior parte das vezes 0 fascinio exercido pelas novas conquistas tecnolégicas levava, ao menos aqueles supostamente comprometidos comas idéias de progresso ¢ conquista de noves conhecimentos, a uma altitude de exaltagdo, ou a0 menos de simpatia em relagao a essas conquistas. O movimento futurista de Marinetti ja na década de 1910 incentivava o culto as maquinas, o que se mostra claro no textos @ at obras das simpatizantes do movimento. Luigi Russolo em sua célebre carta de marco de 1913 ao compositor Balilla Pratella, a qual viria se tomar o manifesto da musica futurista, expSe sua posigao em relacao as maquinas e aos ruidos que elas produzem: "[Hoje], a arte musical busca combinacdes mais dissonantes, estranhas @ estridentes para o ouvido. Assim, se aproxima ainda mais do som tuidoso. Essa avolugdo é comparavel & multiplicagao das méquinas, que em todos os lugares colaboram com o homem." (Russolo, 1986: 24). Além das diversas experiéncias musicais futuristas com seus: intonarumore (fazedores de ruldo), uma série de obras foram realizadas entre as trés primeiras décadas deste século cuja inspiragdio era a mecanizacdo trazida pela tecnologia da vida modema. A maior parte dessas obras cairam logo no esquecimento e hoje poucas, come 0 Ballet Mécanique de George Antheil (1923-25) e Pacific 234 (1923) de Arthur Honegger ainda fazem incursdes esporddicas nas salas de concerto e gravagdes. Em 1931, a revista Modem Music dedica o volume de margo e abril ao tema “A. Misica ¢ a Maquina". Diversos artigos tratam das novas relagdes entre musica e seus modas de produgao. Boris de Schloezer assina um dos artigos com 0 titulo Man, Music and the Machine (Schloezer, 1931), onde trata da chamada mecanizagao da musica, Para Schloezer, a musica mecdnica 6 apenas um mito, uma vez que esta sempre dependeu de técnicas e tecnologias dos instrumentos para sua realizagao. Para ele, o desenvolvimento dos aparelhos de reproducao fonografica, do radio e dos instrumentos elétricos nao representa uma mecanizagao da musica — assa 6,6 sempre sera, essencialmente espirtual, diz ele — mas apenas uma substituigaio gradual da relagdo direta entre o intérprete © 0 ouvinte por uma relagdo mais remota: “A mecanizagao da musica significa, na verdade, um aumento no ntimero de intermediarios entra © predutor de miisica e 0 ouvinte que, sozinha, possibilitou o desenvolvimento de aparelhos como 0 fonégrato @ o radio" (Schloezer, 1931: 3) Assim como Barték, ) Schloezer compara a misica trazida pelo radio ou reproduzida pelo fondgrafo com a introdugao da comida enlatada: “O que é uma gravagéio? E, sobretudo, musica em conserva” (Schloezer, 1931: 7), Mas ao contrario da postura de Bartok, Schloezer vé a comida enlatada (e, por analogia, a musica gravada) como um “excelente” substituto dos produtos ‘naturais’, Embora ambos tenham caracteristicas diferentes, as pessoas passam a aceitar os discos como substitutos dos concertos ao vivo, assim como passaram a usar consérvas no lugar de alimentos frescos: tudo por uma questo de habit © comoadidade. Os sons “distorcidos” produzides pelo fondgrafo passam a ser © padréa de qualidade sonora dos ouvintes & medida que estes se habituam as caracteristicas desse novo meio (Schloezer, 1931: 7). Para o ouvinte modemo, acostumado aopadro de qualidade dos equipamentos digitais de reproducao, parece dificil acreditar que aiguém poderia tomar uma gravagao realizada nos velhos fonégrafos e gramofones em substituigao & performance ao vivo. Mas isso parece endossara idéia de que nos habituamos, ou melhor ainda, aprendemos a ouvir de acorde como 0 material sonore @ que estamos expostos. E esse processo 32 de aprendizagem parece ser muito mais antigo do que imaginamos. A misica renascentista realizada em instrumentos de época, com suas afinagdes caracteristicas: pode soar bastante estranha para um ouvinte habituado & sonoridade da orquestra moderna. Bach, por outro lado, quando fol apresentado ao instrumento que dominaria a musica das geragdes seguintes & sua, o piano, reagiu com desprezo pois preferia a sonoridade do clavicérdio para o qual compunha suas obras. Qualquer um pode testar esse aprendizado auditivo ouvindo um dos discos de “alta fidelidade" dos anos 60. Na época eles representavam um verdadeiro alcance tecnologico, porém, um ouvinte hoje jamais se enganaria pensando tratar-se de uma gravacao recente. O GESTO MUSICAL Asegunda alteragao que se da em relagao aos modas de produpao e recepgaio musical esté ligada & questo do gesto musical. Embora presente de diversas manelras no processo musical, a questao do gesto sé muito recentemente passa a receber alguma atengo dentro da musicologia. Gesto é entehdide aqui nao apenas come movimento, mas como movimento capaz de expressar algo. E, portanto, um movimento dotado de significagdo especial. E mais do que uma mudanga ne espago, uma agao corporal, ou um movimento mecnico: 0 gesto 6 um fendmenc de expressao que se atualiza na forma de movimento. Ages come girar botées ou acionar alavancas, $40 alos correntes no uso da tecnologia modema, mas nao podem ser consideradas como gesios em um sentido amplo do terme. Assim, digitar algumas linhas de texto em um teclado de computador nao tem nada de gestual, uma vez que o movimento de apertar cada tecla nao possui significado algum. Nao interessa quem ou o que realizou tal agao, nem tAo pouco de que maneira: 0 resultado é sempre o mesmo. A situagao 6, porém, completamente diferente no caso de um musico executando uma pega no teclado de um piano: o resultado final, a performance musical, depende, em varios aspectos, dos gestos do instrumentista. No que conceme & miisica, 0 gesto desempenha um papel primordial como gerador de significagdo. De certo modo, nés aprendemos a compreender os acontecimentos sonoras com 0 auxilio dos gestes qué produzem ou representam esses sons. Ecomo dizemG, Kurtenbach e E. Hulteen, a fungao do gesto dentro da musica 6 proporcional ao seu poder de expressao: “Os gestos ampiificam suas funcées em virtude de sua expressividade ‘Quer dizer, um geste pode controlar varios parametros ao mesmo tempo, permitinde assim que © usuario possa manipular os dados de uma maneira que seria impossivel se tivesse que modificar um parametro de cada vez. Por exemplo, um maestro controla simultaneamente o tempo @ 0 volume do gesto musical. O ritmo do gesta controla o tempo @ o jamanho do gesto controla 0 volume. Isso permite uma comunicagao eficiente que nao seria possivel pelo ajuste individual do tempo © do volume.” (Kurtenbach & Hulteen, 1990; 311-12). 33 E necessdrio também fazer aqui uma distingo entre gestos fisicos e gestos meniais (Zagonel, 1992). Os primeiros referem-se & producéo do som enquanto fendmeno fisico, gquardando uma relago causal entre ago gestual e seus resultados sonores. Um instrumentista sabe que de seus gestos dependem o controle de toda uma série de parametros musicais, das dindmicas a articulagao, do timbre ao fraseado. Existe também 0 gesto corporal, que é um gesto fisico que nao produz, mas acompanha 0.som. Um intérprete produz musica 6 se expressa pelo corpo. A pouca importancia dada a esse aspecto dentro da musicologia deve-se, em parte, ao fato de que o compo nunca foi levado em considerag&o como suporte da realizagao musical. Foi preciso a eliminagao do corpo do misico e do instrumento na misica eletrnica e digital para que fosse notada a importancia de sua presenga. © corpo do instrumentista e seu instrumento atuam em simbiose na produgao musical e 0 seu comportamento conjunto interfere na compreensao do resultado sonoro que produzem. Um gesto violento do instrumentista aumenta a eficacia expressiva de um ataque sonoro brusco, assim como expressées corporais do cantor podem enriquecer a arliculapdo de uma frase musical. Nao apenas nosso aprendizado musical, mas a prépria vivanela com os objetos ao nosso redor, nos ajudam a estabelecer conexdes entre os materials fisicos ¢ os gestos necessdrias para gerar um determinado resultado sonore com esses materiais. Através da experiéncia consequimos estabelecer proporgdes entre eventos @ materials que produzem sons. Ainda que a percepedo dessas proporces nao se dé de modo preciso em termos especificos (quo forte seria o som desta revista ao cair no chao), essa percepgao é extremamente sofisticada em um nivel relativa (0 som do lapis correndo sobre a folha de papel é menos intenso do que o percutir desse mesmo lay sobre uma mesa de madeira). Alids, essa escala proporcional tragada mentalmente em relagao ao som produzido, ao objeto que o produziu, e ao geste que operou sobre esse objeto, 6 que confere & musica parte de seu fascinio ¢ poder de expressao: de fato, no conhecemos, entre os objetos com os quais convivemos no cotidiano, algum capaz de uma performance sonora semelhante & da maiorla dos instrumentos musicais. Quer dizer, nossa impressiio nos diz que um objeto comum de madeira com algumas dezenas de centimetros jamais produziré sons com a qualidade, poténcia, clareza @ regularidade que se consegue com um violing, por exemplo. E mais: abjetos ordinarios ndo permitem um controle na geragao sonora tao preciso por meio do gesto. O instrumento musical subverte, portanto, nossa idéia das possibilidades que um tal objeto traria em termos sonores ao suplantar todas as expectativas criadas a partir de nossa experiéneia cotidiana. O instrumento nao 6, portanto, apenas veiculo da idéia musical, mas parie dessa idéia, e explorar os gestas que o conirolam é algo de importéncia fundamental no fazer musical, Obviamente, cada instrumento permite um determinado grat de interagfo intimidade de controle. O orgdo de tubo tem um funcionamento interno quase automatico deixando pouco a ser conirolada por mein dos gestos do intérprete. Por ‘outro lado, instruments como © violino ou diversos tipos de tambores possibilitam a exploracdo de caracteristicas sonoras extremamente sutis pela interagao entre o corpo do instrumentista, seus gestos e 0 corpo do instrumento. Richard Moore comenta sobre as sutilezas presentes nesse tipo de instrumento: a4 “Em tais instrumentos, movimentos minimos do corpe do interprete sao traduzidos em sons de maneira a permitir que a interprete se utilize de uma vasta gama de qualidades emotivas no som musical. E isso o que toma esses mecanismos 6timos instrumentos musicais extremamente dificeis de serem bem tocados, e faz com que superar essa dificuldade seja algo que vale a pena, tanto para o mUsico quanto para o ouvinte.” (Moore, 1987: 258). Para a mtisica no € apenas o gesto fisico que é importante. A categoria dos gestos mentais esta intimamente ligada aos processos de composi¢4o, interpretagaa @ audigdo. Os gestos mentais fazem referéncia aos gestos fisicos e suas relagoes causais, ocorrendo na forma de uma imagem ou idéia de um ouire gesto. Assim o compositor muitas vezes parte de uma idéia ou imagem mental de um gesto sonoro para compor um determinado gesto instrumental. A idéia desse gesto é aprendida através da experiéncia e armazenada na memoria, servindo de parametro para que o compositor possa prever o resultado sonoro no momento em que a composicao for realizada por um intérprete. Esse gesto mental nao faz referéncia apenas ao plano corporal do musico ou ao comportamento do instrumento, mas pode apontar para uma estrutura sonora particular. Assim, um arpejo é entendido como um gesto de deslocamento de um ponto a outro no espago das alturas sonoras e a marcagdo de um.surdo em uma escola de samba reflete, gestualmente, a delimitagfo de uma unidade- temporal regular, semelhante aquela determinada polo gesto das maos do maestro que rege uma orquestra. O que nao se pode esquecer é que o gesto mental faz sempre referéncia a um gesto {isico (musical ou n&o} aprendido anteriormente. De certa forma, o gesto fisico esta ligado mais diretamente a interpretagao da misica, enquanto a composigao se apoia muito mais no gesto mental: “Se o compositor vai do gesto & composigaa, o intérprete faz 0 caminho inverse, isto 6, vai da composi¢ao, da partitura ao gesto” (Zagonel, 1992: 17-18). Poderlamos adicionar aqui que o ouvinte por sua vez completa a cadeia recriando mentalmente os gestos fisicos do intérprete no momento da audi¢éo. Daf a importancia expressiva do ver aquilo que se ouve: a visualidade expressiva dos movimentos do intérprete funciona como referéneia para a compreensio do material sonora. DO GESTO INSTRUMENTAL A ACUSMATICA Pode-se dizer que pelos instrumentos ¢ possivel compreender a musica que Ihes foi concebida, Pode-se compreender que das fugas de Bach escritas para o clavicérdio &s sonatas para pianoforte de Beethoven oxiste uma diferenga que vai além da técnica, estilo, cu género desses compositores. Essa diferenga reside na tecnologia disponivel para cada um na criagfo de sua obra, pois se a misica existe pelo Som, $40 os instrumentos que dao realidade a essa existéncia. Por esse moth 35 compreender a natureza dessas interfaces musicais, é um passo na compreensao da propria musica. Nesse sentido, Richard Orton comenta que os instrumentos “podem ser entendides come algo que incorpora uma consideravel inteliggncia e compreensao musical, as vezes transmitida por geragdes para aumentar, estender e desenvolver atividades criativas complementares de compositores, ¢ interpretes, contribuindo, por sua vez, para com as necessidades culturais e educacionais de sua sociedade.” (Orton, 1992: 319). Até pouco tempo atrés, a produgao musical era necessariamente realizada através da performance, do trabalho dos musicos sobre seus instrumentos ¢, portanto, © desenvolvimento da habilidade técnica dos instrumentistas sempre foi uma meta importante na educagao musical. Conhecer musica implica, geralmente, em tocar um instrumento. Mesmo © aprendizado de compasigao acorria usualmente apés uma razoavel pratica instrumental. Os instrumentos eram o meio pelo qual o conhecimento musical era adquirido ¢ desenvolvido, Esse conhecimento nao pode sertratado, como ocorre geralmente na musicologia, como algo estritamente ligado ao intelecto: esse conhecimento vem antes atado ao corpo, do instrumento e do instrumentista, e & moldado pela teia de relagées estabelecidas entre musculos, nervos e a matéria vibrant que compée essas fontes sonoras. Quer dizer, tradicionalmente o instrumento funciona como 0 meio pelo qual se adquire conhecimento musical. Com 0 surgimento das tecnologias eletrénicas e digitalis, entretanto, esse conhecimento pode derivar de experiéncias praticamente restritas ao dominio mental, descorporificadas, sem relagao coma fisicalidade de objetos materiais, gestos e movimentos implicitos na performance de um instrumento. Instrumentos tradicionais mantém sua identidade através do que Schaeffer chama de permanéncia instrumental (Schaelter, 1966; Smalley, 1992: $40), ou seja, a propriedade apresentada pelo instrumanto de ser reconhecido enquanto fonte sonora, independentemente das variagées de dindmica, tessitura ou articulagao que ‘acompanham a produgao do som. Na maior parte das vezes, sons provenientes de instrumentes da orquestra tradicional ndo deixam divida em relagdo ao tipo de instrumento nem a qualidade do geste que os produziram. Quando se trata da musica eletroacistica, entretanto, essas relagdes nao se mostram tao explicitas. Embora muitas vezes, 05 sons criades eletrénica ou digitalmente possam apresentar caracteristicas acustico-morfolégicas semelhantes as de um instrumento tradicional, na maior parte dos casos, sons sintetizados destroem seu principio de identidade causal e 0 ouvinte fica incapaz de associar algum tipo de fonte ou gesto a esse timbre. Sons produzidos pelas tecnologias eletroaciisticas (ao menos quando esses nao so apenas uma imitagdo do som de instrumentos tradicionais) tornam-se, entéo, dubios, difusos, revelando-se como aparéncia que oscila entre a existéncia no mundo. real e a abstra¢ao de um mundo imagindrio. Eventualmente o ouvinte pode associar um determinado som eletronico a um tipo de fonte ou evento geral — uma explosao, a 36 fricg&o de um abjeto metélico ou o movimento de uma substéncia liquida — 0 que resgataria de certa forma uma identidade sonora. Mas um dos maiores valores da produgdo eletrénica reside exatamente na altitude oposta de gerar sans que resistem qualquer tipo de referéncia aos eventos sonoros geralmente experienciados no meio ambiente. Essa modilicag3o nos modelos segundo os quais se organiza @ audi¢ao musical que ocorre apés 0 surgimento da musica cletroacustica é enfocada em um interessante artigo de Denis Smalley (1992). Segundo o autor, até muito recentemente, as expectativas do ouvinte em um concerto eram limitadas a modelos familiares, fixados pelo repertério e tradigaio musicais: “Antes da era eletroaciistica [...] 0 ouvinte podia assumir automaticamente, mesmo antes de ouvir uma pega musical, que ela estaria ligada ao modelo do gesto instrumental, ao discurso falado, ou a ambos(...] Assim, tradicionalmente, a moldura e limites de um trabalho musical eram nao apenas predeterminados, mas, também, até onde se considera a cultura, permanentes.” (Smalley, 1992: 544). Na misica eletroacustica, ao contrario, nao ha um confinamente a modelos instrumentais au vocais. O compositor é estimulado a criar novos campos sonoros & @ ouvinte a desenvolver estratégias de escuta que nao faziam parte de seu repertério, A auséncia total de intérpretes, instrumentos, referéncias visuals ¢ gestuais, faz com que a experiéncia sonora seja expandida radicalmente: “tudo permanece por ser revelado pelo compositor e descoberto pelo ouvinte” (Smalley, 1992: 545). Como aponta Smalley, © problema que se consiste nesse caso é o de estabelecer, dentro da composigéo, um balango entre a exploragdi do potencial de imaginagao do ouvinte e acriagae de camposindicativos que oferegam algum tipo de referencialidade ou unidade sonora. Ao desviar 0 foco do gesto instrumental para a atitude acusmatica, onde se ‘ouve o som sem que se identifique a fonte, a musica eletroacustica tende a perder a dramaticidade gerada pela presenca do intérprete com sua gestualidade. Talvez, a dificuldade na reconstituigao dessa dramaticidade puramente por recursos eletrinicos — 0 que nao deve ser visto, porém, como tarefa impossivel — tenha atraido mais mais compositores a incluir intérpretes humanos atuando interativamente com o material életroacustico de suas obras. A presenga do instrumentista ou cantor no paleo atuando em trabalhos hibridos que se utilizam de sons gerados eletrénica ou digitalmente ao lado de sons produzidos por instrumentos acusticos, serve como referéncia fisica e visual na compreensao das estruturas sonoras. Entretanto, o desenvolvimento de sistemas de processamento sonoro e controladores de instrumentos que operam em tempo real, enfrenta um novo desafio em relarao & uniao homem/maquina dentro do paico. Esses novos dispasitivos Permitem a geragdo e controle de formas sonoras que muitas vezes ndo guardam relagéio com os gestos que o intérprete utiliza para produzi-las. Computadores e instrumentos digitais desestruturam a relagéa causal entre o gesto € 0 som. 37 "Enquanto os instrumentos acusticos sempre exibiram uma correspondéncia de um-para-uim entre a aco de interprete eo resultado sonoro, 0 conjunto musical expandido pelo computador, com sua tecnologia invisivel (as vezes beirando a magia), ndo possul esse tipo de relacao intrinseca,” (Jaffe & Schloss, 1994: 83). Denis Smalley (1992) chamaria atengao também para 0 fato de que, especialmente apés o surgimento do protocol MIDI, computadores 6 outras maquinas digitais podem ser usados para gerar eventos sonoros que esto totalmente dissociados dos gestos do instrumentista. Um sintetizador pode estar programado para disparar uma seqdéncia musical inteira com o acionar de uma Unica tecla. Os sons de uma fonte acustica (um instrumento, ou a voz, por exemplo) podem ser modificados em ‘tempo real por meio de processadares de cleito de uma tal forma que o-som resultante guarde pouca ou nenhuma relagao morfoligica com afonte. Além disso, equipamentos digitais podem ter suas fungaes constantemente remapeadas de forma a n&o permitir que o ouvinte tenha tempo suficiente para estabelecer ligagdes entre os gestos de comando do instrumentista e as fungdes desempenhadas pelos aparelhos. “Assim, podemos chegar a uma situagao onde as morfologias espectrais do som nao correspondem ao gesto fisico percebido: 0 ouvinte nao esta armada de modo adequada com 0 conhecimento sabre as possibilidades praticas das novas capacidades e limitagSes ‘instrumentais' e as sutilezas de articulagéo nao sao reconhecidas, ou mesmo reduzidas se comparadas com o instrumento tradicional[...] Isso é perigoso porque ‘em um extremo, na performance acusmatica ao vivo, a palavra ‘vivo! se toma redundante € sem significado” (Smalley, 1992: 548) ALUTERIA ELETRONICA As praticas musicais que se utilizam de tecnologias eletrénicas tém despertado um misto de ansiedade © deslumbramento desde o inicio dos anos 50, Ansiedade porque intraduziram mais uma dose de novidade e experimentagao no ja bastante agitado discurso musical do século XX. Deslumbramento porque algumas pessoas enxergaram nos recursos eletro-eletrénicos uma forga libertadora que traria a musica possibilidades de criagaio nao mais restritas as limitagbes dos corpos dos mUsicos & da fisicalidade de seus instrumentos. E claro que esses sentimentos de ansiedade @ deslumbramento nao sao um privilégio da misica eletrénica. Ao contrario, acompanham a histéria da musica (para no falar da histéria da sociedade como um todo) & vem a tona toda vez em que a estabilidade de um certo perlodo é confrontada com a criatividade trazida por algum tipo de mudanga substancial. Para nos datermos apenas & histéria musical mais recente, pode-se dizer que isso acorreu com o surgimento do mercado fonografico @ 9 desenvolvimento do radio, com a intradugao das idéias de SchSnberg sobre o serialismo, ou com a inveng&o de instrumentos elétricos como o 38 Theremin e o Cndes Martenot. Cada um desses momentos trouxe 0 antincio de um rompimento, do nascimento de uma nova forma artistica e da morte de uma tradi¢ao esgotada. Passado algum tempo, 0 que se revela, no entanio, é que tudo no passara de um susto. A despeito do impacto que essas mudangas ocasionaram, a musica continuou intacta, sem que se tenha destruido a longa é delicada teia de sua historia. Ansiedade e deslumbramento, entdo, cedem lugar ao movimento de exploracao de novos tarritérios. Nos anos 50’e 60, as compositores envolvidos com as tecnologias disponiveis no estudio eletrénico disseminaram o termo musica eleirénica para delimitar 0 seu territéria de agao. A mesma fungao teve a partir dos anos 70 0 termo musica computacional em relagao a musica feita com computadores, Esses termos de modo algum romperam com a histéria da misica. Carl Dahihaus, hd mais de 20 anos ja negava tranqUilamente essa possibilidade: *O fato de que a musica constitui uma categoria histérica ou uma suma mutavel de fendmenos implica que a continuidade ou descontinuidade histérica, a relagéio com a tradigao ou a auséncia de referéncia & mesma. decidam, juntas, se um fendmeno sonoro deve ou nao ser considerado como misical...] Mlisica como categoria histérica compreende também 0 procedimento composicianal eletrénico, pois tal procedimento é oriundo nao somente da fisica acistica, mas antes de mais nada da historia mesma da musica.” (Dahlhaus, 1996: 172-3). E como parte da histéria, cada vez mais termos como miisica eletrnica ou musica computacional vao perdendo ¢ sentide de demarcagao de um territdrio restrito. Afinal, sendo parte de uma extensa teia, nao estariam essas territories sujeitos aos movimentos de cada um dos fios dessa trama complexa a que chamamos musica? Como apontamos no inicio deste texto, a linguagem da musica sempre foi afetada por diferentes tipos de tecnologia: inicialmente a mecanica, depois a eletrénica ¢ finalmente a digital. E de se esperar que no futuro, também tecnologias bioquimicas sejam desenvolvidas e utilizadas de alguma maneira na produgdo musical. Nao & impossivel visiumbrar o dia em que as interfaces entre a produgao de sons e a experiéncia sonora sejam eliminadas e musica seja diretamente injetada dentro de nossos corpes. O que é certo é que a exploragéo de novos meios combina muito bem com a criagao artistica: em ambos os casos, 0 que se procura ¢ a expansao das possibilidades de se criar signos. As tecnalogias eletrénicas tém seduzido cada vez mais compositores, as universidades estae incorporando 0 assunto em seus curricules tam se multiplicado os estidios & centros de pesquisa dedicados 4 produrdo eletroactistica. Sem duvida, a5 novas tecnologias so sedutoras, 6 por isso também oferecem os seus perigos. ‘Arlindo Machado alerta para a relagdo fetichista que existe hoje entre 0 homem e a tecnologia: “A medida que [as mAquinas] se tomam mais “amigaveis", 0 seu efelto tende a se tomar sedutor, talvez mesmo lisérgico, sobretudo a um pliblico desprovido de inquietagdes intelectuais e de um lastro cultural mais amplo." (Machado, 1983; 12). 39 Compor uma obra musical e criar um programa de computador so duas tarefas bastante diferentes, mas ligadas por um mesmo carater de seducao. Em ambos os casos, 0 compositor ou o programador encontram-se imersos na busca de solugdes Para uma determinada classe de problemas. Essa busca envolve uma reflexéio, por vezes profunda, sobre esses problemas, sobre questdes de representagao, sobre 0 contexte onde esses problemas seinserem. Também em ambos 0s casos, as solucdes vém do exercicio criativo e de processos que refletem a viso que 0 compositor ou programador tém a respeito daquele problema em particular. Essa é uma aventura semiética estimulada pelo prazer estético da criagao. Quando se concebem maquinas ‘© programas, emogao e cognigéo se mesclam ao desejo de explorar novas estruturas 8 processos. Como diz Pierre Lévy, “os grandes atores da hist6ria da informatica [...] conceberam 0 computador de outra forma que nado um autémato funcional. Eles frabalharam e viveram em sua dimensao subjetiva, maravilhosa ou profética,” (Lévy, 1993: 57). Tradicionalmente a tarefa de construir instrumentos musicais pouco tinha a ver com 0 processo de composi¢ao ou interpretagao. Neste século, as tecnologias eletrénicas e, em especial, 0 uso de computadores em misica, fizeram com que 0 pape! de construir instrumentos se mesclasse com o papal de compor. Com o surgimento de diversas linguagens e ambientes musicais de programacao, como Csound, Music V, CMix, ou MAX, 0 luthier passa a ser 0 proprio compositor e 0 instrumento, parte da sua obra. Num instigante artigo sobre as transformagées sociais trazidas & miisica pelas tecnologias digitais, o compositor Paul Lansky tece o seguinte comentario: “O projeto & construgdo de instrumentos se tornam, agora, uma forma de composi¢ao musical. A visdo do construter de instrumentos pode ser idiossincratica e, mesmo, composicional, Tocar 0 instrumento feito Por outro torna-se tocar uma composi¢do de outro.” (Lansky, 1990: 108). Talvez seja esse prazer de construir algo que venha seduzindo um numero cada vez maior de mUsicos a destinar uma quantidade de tempo considerdvel ao ' aprendizado de novas tecnologias, em especial, ao uso e programagao de computadores. Nao se pode deixar de notar, também, que o trabalho solitério do compositor em seu laboratério digital, tentando penetrar cada vez mais na natureza dessas maquinas de produzir som, 6 muito semelhante ao relacionamente intenso e por vezes arduo do instrumentista com seu instrumento, o que de certa forma aproxima 0 trabalho de composigo do trabalho de interpretagdo. O computador representa em nossa sociedade hoje mais do que uma ferramenta eficiente de trabalho: é também um instrumento cultural extremamente ludico, 0 que por si s6 representa um grande apelo ao uso. Isso parece ébvio para toda inddstria informatica, acostumada a langar no mercado sucessivos programas recheados de bugs, e versées novas de velhas aplicagdes cujas melhorias $40 multas vezes de utifidade duvidosa, Talvez no seja tao ébvio para boa parte dos usuarios, sempre a procura de novos produtos para encher seus hard diskse preencher seu tempo, apesar de estarem sempre lamentando a falta de espago e meméria de suas maquinas ou os 40 longos periodos gastos resolvendo as idiossincrasias de cada programa, Entretanto, poucos compositores e instrumentistas assumiriam que seu envalvimento com computadores vai além de preecupagdes musicais ¢ que esse envolvimento refletiria tambem @ desejo de se utilizar uma ferramenta poderosa que, em si mesma, esta ligada ao prazer da criag&o. © compositor Gareth Loy, em um artigo intitulado The Composer Seduced inte Programming escrito no inicio dos anos 80, 6 um dos poucos compositores a apontar para o lado sedutor do uso de computadores. Além do carater estético, Loy aponta que o caréter geral do computador age como um estimulo A reflexo sobre o meia @ o objeto sobre 0 qual se criam programas: “A generalidade de computador é sua caracteristica mais persuasiva. Com a mdsica computacional 0 compositor tem, agora, um campo Uniforme sabre o qual pade apoiar tanto os pensamentos musicais quanto 0s pensamentos sobre a natureza da musica com a mesma facilidade. Ao resolver problemas musicais no computador, o compasitor 6 levado @ estudar como os problemas em geral so resolvidos no computador, 0 que leva a um influxa de novos modos de se pensar sobre miisica." (Loy, 1981: 190). O préprio Loy se confessa seduzido pelos processos de modelizagao & simulacao oferecides pelo computador. Esses processes expandem o pensamento racional do Ocidents que, sustentado pelo sucesso da ciéncia newtoniana, impos, de ceria forma, que 0 conhecimenta do mundo & nossa volta nao se dé apenas através da reflexdo, mas 6 também necess4rio que se realizern testes com os fendmenos observados ¢ sobre eles devem se estabelecer leis que possam fornecer conclusdes precisas sobre a realidade. Entretanto, com os computadores, podemos gerar modelos dos fendmenos em questo e reproduzi-los digitalmente, com uma precisdo sujeita a efros muito menores do que aqueles que nossa percepodo poderia detectar. O novo laboraiério onde sé processa o conhecimento deixa de seguir o modelo da ciéncia classica para adotar o procedimento informatico da simulagaio. No lugar do projeto racionalista inaugurado por Descartes, surge uma nova heuristica bastante poderosa baseada no conhecimento por simulagao (Lévy, 1993). O. computador permite que se construam modelos que podem ser constantemente testados, redirecionados, e realimentados a partir de cada resultado obtido, antes que sé aplique esse modelo a uma situagao real. “O desenvolvimento do computador é, em si mesmo, um componente para realizar a conexéo que hoje se observa novamente entre diseiplinas intelectuais ¢ artisticas, E a interessante propriedade de generalidade do computador que pode compilar em uma Unica metodologia, muitas das ferramentas de organizacao existentes na base de nessa cultura. Portanto, 0 projeto de computadores é em si um ato de auto-referéncia humana, bem como o é seu uso inteligente. Assim, existe uma forte conexao entre a tarefa do artista no trabalho de programador devido & natureza auto-teferencial das duas ocupa¢des. Embora certamente 44 existam importantes diferencas, esta é a razio mais forte que encontrei para o interesse dos artistas em programar computadores." (Loy, 1981: 194). Porém, aqui a musica se coloca frente a um outro perigo, Nessa aproximagao entre musica € tecnologia que assistimos neste século, torna-se muito facil confundir- 8@ @ experiéncia estética dos processos de criapéo com a estética daquilo que emerge desses processos o que acabaria por permitir que se justificassem obras musicais por meio de elegantes algoritmos ou eficientes métodos de programagéio. Mas, nao sao apenas os processos de criagéo de programas e instrumentos que seduzem nas novas tecnologias musicals. Elas também atraem porque possibililam uma intervengaa no universo sonore jamais experienciada anteriormente. Nos itimos 50 anos as tecnologias musicais iniciaram uma verdadsira revolugao no tratamento sonoro seja pela possibilidade de geragfo direta através dos processos de sintese, seja pelos novos processas de organizagiio desses sons na composigao mediada por computadores e instrumentos eletrénicos. Nesse perlodo a atengao esteve centralizada por esses dois pélos: sintese e composipaa. Nos tiltimos dez anos, um terosira pola emergiu come complemento aos dois anteriores. Esse polo diz respeito ao controle, ou na finguagem da musica, & performance, des sons ¢ dos processos composicionais. Esse novo polo esta diretamente ligado 4 maneira como homem interage com as novas tecnologias e com o desenvolvimento de interfaces que viabilizem essa interagao. ‘Ao comentar o atual estagio das pesquisas ligadas as tecnologias musicais, Roger Dannenberg delineia a relagéo entre esses trés polos tomando suas escalas temporais come ponto de partida: *O controle da sintese sonora é uma drea desprezada. Existe um intervalo entre os niveis das amostras [sonoras] que 6 abordado em sintese de som € 0 nivel do ‘pulso’ que 6 abordado pela composic¢ao. A Area de controle entre 10 250 milesegundos 6 inexplorada e descobertas excitantes serdo realizadas la.” (Dannenberg, 1996: 53), O intervalo temporal entre 10 ¢ 250 milesegundos a que se refere Dannenberg 6 justamente 0 intervalo que representa a limite de percepgda e atuagao sensério- motora do homem. Na musica, 6 nesse intervalo que sa processa a rica trama de sutilezas e expressividade da performance. O desafio da pesquisa em musica eletroacistica reside hoje no desenvolvimento de sistemas que permitam o controle ‘em tempo real de toda a riqueza sonora trazida pelos computadores, sintetizadores e outros aparelhos. Os sons eletrénicos so plasticos, maledveis, moldaveis, justamente por estarem despregados da materialidade dos instrumentos mecanicos. Sua materialidade bruta dé lugar ao estado de virtualidade polo qual eles se formam dentro das chips dos computadores. E para que se possa explorar toda riqueza que eles potencializam, é preciso que se criem sistemas de controle interative eficientes, baseados em interfaces funcionais. O desatio imposto para 4 criagao desses sistemas musicais interatives esta na reconciliagAo entre a corporalidade que sempre esteve 42 ligada & musica e a imaterialidade das estruturas sonoras que as novas tecnologias musicais vém tornando disponiveis. E esse desafio deve impulsionar boa parte das pesquisas relacionadas & milsica eletroactistica nos proximos anos. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BARTOK, B. (1976). Mechanical Music, In B. Suchoff (Ed.), Béla Batok Essays (pp. 289-298). New York: St. Martin's Press. BOETHIUS, A. M, S. (1989). Fundamentals of Music (Calvin M. Bower, Trans.). New Haven & London: Yale University Press. CHANAN, M. (1995). Repeated Takes: A Short History of Recording and its Effects on Music. London / New York: Verso. DAHLHAUS, G. (1998). Problemas Estéticos da Musica Eletrénica. In F. 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