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PIERRE BOURDIEU O PODER SIMBOLICO Traducéo de Fernan do Tomaz ‘TOMBO: (Cm SBD-FFI SP 5 ~ me) DIFEL., © 1989, Pierre Bourdieu Todos os direitos pata publicagto desta obra em Portugal reservados por: we) DIFEL bua D. esc, 46-0 1000 LISBOA Tees 387677-54 5886-54 5839 Teee: 61030 DIFEL P Todos os direitos desta euigao reservados no Trail 5 EDITORA BERTRAND RASH. 5. Rua Benjamin Constant, ba, Ghorks 20241 Ria de Jane. Kd Tel: (021) 2201182 “Telex 2) aNOTA Fan: (O21) 281-0754 Meméria € Social Coleegae coordenals por Francisco Bethencourt € Diog Ramadi Curto Capa: Emilio Tavor Viar Revido: Fernanda Portal faces: Cladino Ferrvine Composigio: Maria Esther — Gab, Fotocomposigao Impressio e acabamento: Tipograjia Guerra, Visew Depesito Legal 9° 2673989 ISHN 972-29.0014 5, NOTA DE APRESENTACAO |A obra de Pierre Bourdien tem-se afirmado, ao longo dos ilsimos trinta anos, como wma das mais etinulantes einovadoras na dea das ciéncias sociais, influenciando mumerasas pesquivas secioligicas, antro- polégicas e histiricas em tado 0 mundo. A novidade encontra-se na tscolha dos objetos de andlise (sociedad tribais, sistemas de ensino, processes de repradugao, critérios de lasificagao eligicas de sting), ina reorientacéo do olhar (atento aos fenimenos de perepedo socal, da produgin simbélica e das relagies informais de poder), na formulagéo cde nocies operatérias (habitus, repredugao, poder simbilico, capital, distingdo, campo, etc,) € no constante reso a swinlogia do combec- ‘mento (onde a posigzo do imestigador & questionada como forma de controle do sen trabalho de producio de sentido), Compreender 0 ‘percurso ciemsifico de Bourdieu implica atender a pelo menos duas Tigicas de leitura: por wm lado, uma ligica da evolugzo da obra, por cutro, uma ligica da sua tipoogia. Num primeir momento, 0 objeco de anélise sao os cabilas do Norte de Africa, ou seja, uma sociedade tribal que vive nas margens da swiedade moderna, enjos fenimenos de aculturagio sao caracteriza dos a partir da organizagao social e familiar, da percipgao do tempo € do espaco da visio do mundo (Esquisse d'une théorie de la pratique, précédé de trois éeudes d'éthnologie kabyle, Genive, Droz, 1972). Este campo de observagao, inserido nas retantes dreas da swiedade argelina (Sociologie de VAlgérie, Paris, P.U.F., 1958), permite superar as divisies tradicionats do saber entre antopo- Logia, sinlogia ¢ ermomia, e serd objecto de comparagao através das danélises conduzidas na pripria regidn de origem, isto é, no Béarn (Etudes rurales, 5-6, 1962, pp. 32-136). A transfréncia do campo de andlle das margens para 0 centro da sociedade moderna implica a reformulagao de velbos problemas da sociologia ¢ a escola de amas vias de esto, Neste caso, encontrama-nas no dmago des meca 2 0 PODER SIMBOLICO nismos de reproducin, cruzando-se a problendtica da educaséo com a dda origem social dos estudantes. A posigt central do sistema de ensino na reprodugio de praticas e de representagies & relacionada com a aparente igualdade de oportunidades ¢ questionada em fungao das diferencas de capital econdmico, social e cultural entre os estudantes, as (quais sdo decisivas nas escolhas das niveis superiors de formacdo (Les héritiers. Les étudiants ct a culture, Paris, Minuit, 1964; La reproduction. Eléments pour une théorie de la violence symbo- lique, Paris, Minuit, 1970, ambas escritas com J. C. Paseron). Converginds no mesmo interesse pela instituicao escolar, a leitura de Panofiky permite imlar um caso em que a inculeagao de babitus iidéntias poderd revestir madalidades diversas (E. Panofiky, Archi- tecture gothique et pensée scolastique, traduio ¢ posfdcio de P. Bourdien, Paris, Minuit, 1967). De passagem, wote-se que tais territérios de investigagao se desenvolvem em tempos marcados pela descolonizagio francesa da ‘Argélia e, mait tarde, pela revolta estudantil de Maio de 68. Contudo, reconstituir, mesma que de forma simplificada, este contexto obriga a ter presente as lutas entre intelectuais, que caracterizam 0 campo cultural francés das anos sessenta. Q impacto e 0 grau de consagracdo de autores enmo Sartre ou Levi-Strauss ¢ a discuss@o difusa em torno das obras de Marz e de Prend (mais propriamente dos ‘ews comentaristas) ou, numa outra escala, de Sanssure e de outros linguistas sao alguns dos dados a ter em conta. Neste quadro, ifortemente dominado pelos «maitres & penser, a obra de Bourdien cafirma-se coma instrumento de relativizagao, através de um duplo inestimento, Por nm lado, 0s inquéritos sobre 0 consumo da fotogra- fia, do Livro ow da pintura contribuiram para valorizar as priticas dos grupos sociais constituédns nos actos de apropriasin de taisobjectos cnlturais (obras colectivas coma Un art moyen, essai sur les usages DE APRESENTAGAO 3 sociaux de la photographie, Paris, Minuit, 1965; «Les utilisa- seurs de la bibliosbeque universitaire de Lille», in Rapport pédago- Bique et communication, Paris-Haia, Mouton, 1965, pp. 109- -120; L'amour de l'art, les musées d'art européens et leur public, Paris, Minuit, 1966). Por outro lado, as andlises rlativas grupos especficos de sespecialistas da producao simbélica» permiti- ram situar 0 acto de criagéo individual no dmbito de um campo ow de sum mercado particulares («Champ intellectuel et projet oréateur», Les temps modernes, 246, 1966, pp. 865-906; muito importan- tes a respeito de objectos ditos «empiricos» muito precisos, frequentemente menores na aparéncia, e até mesmo um pouco isrisérios. Tem-se demasiada cendéncia para crer, em ciéncias socials, que a importéncia social ou politica do objecto é por si mesmo suficiente para dar fundamento 4 importincia do discurso que Ihe € consagrado — ¢ isto sem davida que explica Gque os sociélogos mais inclinados a avaliar a sua importincia pela importancia dos objectos que estudam, como ¢ 0 caso daqueles que, actualmente, se inceressam pelo Estado ou pelo poder, se mostrem muitas vezes 05 menos atentos aos procedi- mentos metodolégicos. O que conta, na realidade, é a constru- io do objecto, ¢ a eficicia de um método de pensar nunca se manifesta tao bem como na sua capacidade de constituir objectos socialmente insignificantes em objectos cientificos fou, 0 que € 0 mesmo, na sua capacidade de reconstruir cien- tificamente os grandes objectos socialmente importantes, apreendendo-os de um angulo imprevisto — como eu procuro fazer, por exemplo, 20 partir, para compreender um dos efeitos maiores do monopélio estatal da violéncia simbélica, de uma anilise muito precisa do que é um cerificado: de invalidex, de aptidao, de doenga, etc. Neste sentido, o socidlogo encontra-se hoje numa situagio perfeitamente semelhante — mutatis mutan- dis — A de Manet ou de Flaubert que, para exercerem em pleno ‘© modo de construgéo da realidade que estavam a inventar, 0 ‘aplicavam a projectos tradicionalmence excluidos da arte acadé- mica, exclusivamente consagrada is pessoas ¢ 3s coisas social- mente designadas como importantes — 0 que levou a acusé-los de «realismor. O sociélogo poderia tornar sua a formula de Flaubert: «pintar bem 0 mediocre» f preciso saber converter problemas muito abstractos em operacies cientificas inteiramente priticas — 0 que supde, como se veré, uma relagio muito especial com o que se chama geralmente «teoria» ou «pricica». Neste processo, os preceitos abstractos, rais como aqueles que se encontram, por exemplo, cAPETULO 2 em Le Métier de sociologue — & preciso construir 0 objecto; é preciso por em causa os objectos pré-construidos — ainda que tenham a faculdade de despertar a atencio ¢ de por de sobreaviso, nao prestam grande ajuda. £ assim, sem duvida, Porque nao hé outra maneira de adquirir os principios funda. mentais de uma pritica — ¢ a pritica cientifica nio é excepgio — que nao seja a de a praticar a0 lado de uma espécie de guia ou de treinador, que protege e incute confianga, que do exemplo € que corrige ao enunciar, em situagao, i directamence aplicados av cao pantilar. Evidentemente, hié-de acontecer que, apés terem assistido a duas horas de discussio sobre o ensino da miisica, sobre os desportos marciais, sobre o aparecimento de uma critica de jazz ou sobre os tedlogos franceses, perguntem a voces mesmos se no perderam o vosso tempo e se aprenderam realmente alguma coisa. Nao sairio daqui com belos discursos sobre a acco comunicacional, sobre a teoria dos sistemas ou mesmo sobre a nogio de campo ou de habitus. Em ver de fazer, como fazia hi vinte anos, uma bela exposicéo sobre a nogio de estrutura na matemética ¢ na fisica modernas e sobre as condigées de aplicacio em sociologia do modo de pensamento estrutural (era sem duivida mais «impressionante»...), dicei a mesma coisa mas de forma pritica, quer dizer, por meio de observacées perfeitamente triviais, perfeitamente banais, por meio de ques- tes elementares — tio elementares que nos esquecemos mui- tas vezes de as por — e passando, em cada caso, ao pormenot do seu estudo particular. $6 se pode realmente dirigit uma pesquisa — pois ¢ disso que se trata — com a condigio de a fazer verdadeiramente com aquele que tem a responsabilidade directa dela: 0 que implica que se trabalhe na preparacéo do questionirio, na leitura dos quadros estaristicos ou na interpre- tagio dos documentos, que se sugiram hipéteses quando for caso disso, etc. — é claro que ndo se pode, nestas condigdes, dirigir verdadeiramente senio um pequeno nimero de traba- Ihos, e aqueles que declaram «dirigiry um grande nimero deles nio fazem verdadeiramente 0 que dizem. Visto que 0 que se trata de ensinar é, essencialmente, um ‘modus operandi, um modo de producio cientifico que supse um 22 INTRODUGAO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA modo de percepcio, um conjunto de principios de visio e de divisio, a tinica maneira de o adquirie € a de 0 ver operat Pracicamente ou de observar 0 modo como este habitus cientifi- co — é bem este 0 seu nome —, sem necessariamente se tornar explicito em preceitos formais, «reage» perante opgdes priticas — um tipo de amostragem, um questionério, etc. © ensino de um oficio ou, para dizer como Durkheim, de uma «arte», entendido como «pritica pura sem teorian, exige uma pedagogia que nao é de forma alguma a que convém 20 ensino dos saberes. Como se vé bem nas sociedades sem escrita € sem escola — mas. também é verdadeiro quanto a0 que se ensina nas sociedades com escola e nas préprias escolas ‘umerosos modos de pensamento ¢ de accio — e muitas vezes 0s mais vitais — transmitem-se de pritica a pritica, por imodos de transmissio tosis ¢ priticos,fiemados no contacto recto ¢ duradouro entre aquele que ensina ¢ aquele que aprende («faz como eu»). Os historidores ¢ 08 fildsofos das ciéncias — e os proprios cientistas, sobretudo — tém frequen- temente observado que uma parte importante da profissio de cientista se obtém por modos de aquisicéo inteiramente prici- cos — a parte da pedagogia do siléncio, dando lugar explicitagio ndo s6 dos esquemas transmitidos como também dos esquemas empregados na transmissio, € sem divida tanto maior numa ciéncia quanto nela sio menos explicitos e menos codificados 0s préprios contetidos, saberes, modos de pensa- mento e de accéo. A sociologia € uma ciéncia relativamente avancada, muito mais do que habitualmente se julga, mesmo entre os sociélo- gos. Um bom sinal do lugar que um socidlogo ocupa na sua disciplina seria sem divida o da ideia — maior ou menor — que ele tem daquilo que precisaria de dominar para estar realmente a altura do saber adquirido* da sua disciplina, ja que @ propensio para uma apreensio modesta das suas capacidades cientificas 56 pode crescer & medida que cresce 0 conhecimento do que mais recentemente foi adquirido** em matéria de acquis» a0 cexto original. (N.T.) * acquisitions» no texto original. (N.T.) CAPITULO IL 2B métodos, de técnicas, de conceitos ou de teorias. Mas ela esti ainda pouco codificada e pouco formalizada. Nao se pode pois, tanto como em outros dominios, confiar nos automatismos de pensamento ou nos automatismos que suprem o pensamento (na evidentia ex terminis, a «evidéncia cega» dos simbolos, que Leibniz opunha @ evidéncia cartesiana) ou ainda nos cédigos de boa conduta cientifica — métodos, protocolos de observacio, etc. — que constituem o direito dos campos cientificos mais codificados. Deve-se pois contar sobretudo, para se obterem praticas adequadas, com 0s esquemas incorporados do Aabitus. (© habitus cientifico é uma regra feita homem ou, melhor, um modus operandi cientifico que funciona em estado pritico segundo as normas da ciéncia sem ter estas normas na sua origem: € esta espécie de sentido do jogo cientifico que faz com que se faga 0 que € preciso fazer no momento proprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, € menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada. O socidlogo que procura transmitit um Aabitus cientifico parece- se mais com um treinador desportivo de alto nivel do que com um professor da Sorbonne. Ele fala pouco em termos de principios ¢ de preceitos gerais — pode, decerto, enuncié-los, como eu fiz em Le Métier de socilogue, mas sabendo que é preciso nao ficar por ai (nada ha pior, em certo sentido, que @ epistemologia, logo que ela se transforma em tema de disserta- Go ou em substitute da pesquisa). Ele procede pot indicagoes préticas, assemelhando-se nisso ao treinador que imita um movimento («no seu lugar, eu faria assim...») ou por «correc- Bes» feitas & prética em curso € concebidas no proprio espitito da prética (eu nao levantaria essa questio, pelo menos dessa forma»). Pensar relacionalmente Nunca tudo isto é téo verdadeiro como quando se trata da construgio do objecto, sem diivida a operagéo mais importante €, no entanto, a mais completamente ignorada, sobretudo na tradigéo dominante, organizada em torno da oposicéo entre & 24 INTRODUGAO A UMA SOCIOLOGIA REPLEXIVA ateoria» € a ametodologiay. O paradigma (no sentido de realizagao exemplar) da «teoria» te6rica é a obra de Parsons, smelting pot conceptual obtido pela compilagdo puramente teéri- ca (quer dizer, alheia a coda a aplicagio) de algumas grandes obras (Durkheim, Pareto, Weber, etc.), reduzidas a sua di- mensio «te6rica» ou, melhor, professoral, ou ainda, mais perto de nés, 0 neofuncionalismo de Jeffrey Alexandre. Nascidas do ensino, estas compilacdes eclécticas € classificatérias so boas para 0 ensino — mas para isso somente. A pat disto, hé « emetodologia» catélogo de preceitos que nio tém que ver nem com a epistemologia, como reflexio que tem em vista trazer & luz os esquemas da priica cientifica apreendida tanto nos seus cerros como nos seus éxitos, nem com a teoria cientifica. Penso, neste caso, em Lazarsfeld. O par Parsons-Lazarsfeld (e, entre 0s dois, Merton e as suas teorias de médio alcance) constituiu uma espécie de holding «cientifico» socialmente muito poderoso, que reinou na sociologia mundial durante trinta anos. A diviséo «teoria»/«metodologia» constitui em oposicdo episte- mol6gica uma oposicio constitutiva da divisio social do traba- Iho cientifico num dado momento (como a oposicéo entre professores ¢ investigadores de gabinetes de estudos). Penso que se deve recusar completamente esta divisio em duas instncias separadas, pois estou convencido de que nao se pode reencontrar 0 concreto combinando duas abstraccées. Com efeito, as opcées técnicas mais «empfricas» sao insepa- riveis das opges mais «tedricas» de construcéo do objecto. FE em fungio de uma certa construgdo do objecto que tal método de amostragem, tal técnica de recolha ou de andlise dos dados, etc. se impoe. Mais precisamente, € somente em funcéo de um corpo de hipéceses derivado de um conjunto de pressu- posigées tedricas que um dado empitico qualquer pode funcio- har como prova ou, como dizem os anglo-saxénicos, como evidence. Ora, ptocede-se frequentemente como se 0 que pode ser reivindicado como evidence fosse evidente. O que se faz em fungio de uma rotina cultural, a maiot parte das vezes imposta e inculcada pela educacio (os famosos cursos de «methodology» das universidades americanas). O feiticismo da evidenee leva & recusa dos trabalhos empfticos que néo aceitem como evidente CAPITULO II 25 2 pate dfnigho de coe: inmetlgnlt slo concnde 0 estatuto de dados, data, senio a uma pequenissima fracgéo do dado, nao, como seria preciso, aquela que é chamada a exis- téncia cientifica pela sua problemética (0 que é inteiramente normal), mas aquela que é validada e garantida pela tradigio peaggice em cue ele ae sims 6 a el E significativo que «escolas» ou tradigdes se possam consti- tuir em torno de wma técnica de recolha de dados. Por exemplo, actualmente, certos etnometodélogos 56 se interessam pela andlise de conversagio reduzida 4 andlise de um texto separado do seu contexto, ignorando totalmente os dados a Podemos chamar ecnagefions — sobre 0 contesto imediato (0 que se chama tradicionalmente a situacio), sem falar dos dados que tornariam possivel que se situasse a situacéo nna estruturacao social. Estes . Seja, por exemplo, 0 caso da Escola Normal Superior: 0 conhecimento incipiente que dela possa ter, € que € nocivo na medida em que é tido por desmistificado ¢ desmistificador, dé origem a toda uma série de perguntas extremamente ingé- nuas, que todo o normaliano achara interessantes porque asurgem de repente no espititor daquele que se interroga acerca da sua escola, isto é, acerca dele mesmo: sio os norma- lianos literirios de uma origem social mais elevada que os normalianos cientificos? concribui o escaléo de entrada para a escolha das disciplinas: matemitica ou fisica, filosofia ou leeras? etc. De facto, a problemacica espontines, em que entra uma enorme parcela de complacéncia narcisista, € geralmente muito mais ingénua ainda. Vejam as obras com ambicdes cientificas que, de ha uns vinte anos, tém tido por objecto esta ‘ou aquela escola superior. Ao fim ¢ ao cabo, poder-se-a assim escrever um volumoso livro cheio de factos com aparéncia inteiramente cientifica, mas que falhara no essencial: se,_pelo ‘menos, como creio, a Escola Normal Superior, & qual podem ligar-me lacos afectivos, positives ou negatives, produto dos ‘meus investimentos anteriores, nao passa na realidade de um ponto num espaco de relacies objectivas (um ponto, de resto, Cujo «peso» na estrutura teré de ser detetminado); € se, mais precisamente, a verdade desta instituicio reside na rede de relacies de oposicéo ¢ de concorréncia que a ligam ao conjunto capéruto Mm das instituigdes de ensino superior e que ligam esta mesma rede 20 conjunto das posigdes no campo do poder as quais dé acesso a passagem pelas escolas superiores. Se é verdade que 0 real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituicéo acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relagdes com o todo, Daqui resulta os problemas de estratégia que encontra- mos sempre € que se colocario constantemente nas. nossas discussdes de projectos de pesquisa: sera que vale mais estudar extensivamente 0 conjunto dos elementos pertinentes do objec- to construido, ou antes, estudar intensivamente um fragmento limitado deste conjunto teérico que esta desprovido de justifi cacao cientifica? A opgio socialmente mais aprovada, em nome de uma ideia ingenuamente positivista da precisio e da «serie- dade» € a segunda: a de «estudar a fundo um objecto muito preciso, bem ciccunscrito», como dizem os directores de teses. (Seria bastante ficil mostrar como vircudes pequeno-burguesas de «prudéncian, de «seriedade», de . Mas no se pode ficar por ai. O espaco de interaccio € 0 lugar da actualizacio da incerseccio entre os diferentes campos. Os agentes na sua luta para imporem o veredicto «imparcial», quer dizer, para fazerem reconhecer a sua visio como objectiva, dispdem de forgas que dependem da sua pertenga a campos objectivamente hierarquizados e da sua posigio nos campos respectivos. Existe, em primeico lugar, 0 campo politico: os homens politicos, directamente implicados no jogo, portanto directamente interessados € percebidos como tais, sd0 imediata~ mente percebidos como juizes e partes, logo, sempre suspeitos de produzirem interprecacées interessadas, enviesedas e, pot isso mesmo, desacreditadas. Eles ocupam posigdes diferentes no campo politico: esto situados neste espaco_pela sua filiagio num partido, mas também pelo seu estatuto nesse partido, pela 56 INTRODUGAO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA sua notoriedade, local ou nacional, etc. Vem depois 0 campo jornalistico: os jornalistas podem e devem adoptar uma retérica da objectividade e da neutralidade (apoiando-se eventualmence ‘nos «politélogos»). Segue-se 0 campo da «ciéncia politica», no interior do qual os «politélogos mediéticos» ocupam um lugar pouco glorioso, mesmo que gozem de prestigio no exterior (Sobretudo junto dos jornalistas a quem se sobrepdem estrucu- ralmente). Logo depois, esté o campo do «marketing» politico, com os publicicérios e os conselheiros em comunicagio politica, que cobrem com justificagées «cientificas» os seus veredictos acerca dos homens politicos. Finalmente, encontra-se 0 campo Universitario propriamente dito, com os especialistas da hist ria eleitoral que se especializaram no comentario dos resultados eleitorais. Tem-se assim uma progressio, desde 0s mais «empe- nhados» até aos mais desligados estruturalmente ¢ estatutari mente: 0 universitario € aquele que, como se diz, tem mais «reco», «distincia». Tratando-se, como é 0 caso da sessio cleitoral, de produzir uma retérica da objecividade tio eficaz quanto possivel, ele detém uma vantagem estructural sobre todos 0s outros. As estratégias discursivas dos diferentes actores, ¢ em especial os efeitos retdricos que tém em vista produzit uma fachada de objectividade, dependerio das relacées de forca simbélicas entre os campos ¢ dos trunfos que a pertenga a esses campos confere aos diferentes participantes ou, por outras palavras, dependerio dos interesses especificos ¢ dos trunfos diferenciais que, nesta situagéo particular de luta simbélica pelo veredicto «neutro», Ihes sio garantidos pela sua posigéo tnos sistemas de relagdes invisiveis que se estabelecem entre os diferentes campos em que eles participam. Por exemplo, 0 politélogo tera, como tal, uma vantagem em relacio ao homem politico ¢ ao jomnalista, pois se Ihe concede mais facilmente 0 crédito de objectividade, e tem a possibilidade de recorrer & sta competéncia especifica, por exemplo, a histéria eleitoral que Ihe permite fazer comparacdes. Ele poder aliar-se aos jornalis- tas, cujas pretensdes & objectividade reforca e legitima. O que resulta de todas estas relacdes objectivas, sao relagoes de forca simbélicas que se manifestam na interaccio em forma de CAPITULO IL 37 cesteatégias retéricas: estas relagoes objectivas decerminam no essencial quem pode cortar a palavra, interrogar, responder fora do que foi perguntado, devolver as questées, falar longamente sem ser interrompido ou passar por cima das interrupcdes, ec., quem esti condenado a estratégias de denegacio (interesses, estratégias interessadas, etc.), a recusas de respostas rituais, a formas estereotipadas, etc. Seria preciso ir mais longe, € mostrar como € que a apreensio das estrucuras objectivas permite explicar 0 pormenor dos discursos ¢ das eseratégias retéricas, das cumplicidades ou dos antagonismos, dos «golpes» desferidos e bem sucedidos, etc., em resumo, tudo 0 que a anilise de discurso julga que pode compreender a partir unicamente dos discursos. ‘Mas por que razdo a anélise é, neste caso, particularmente dificil? Sem divida, porque aqueles que o socidlogo pretende objectivar séo concorrentes pelo monopélio da objecrivacto objectiva. De facto, 0 socidlogo, segundo os objectos que estuda, est, ele mesmo, mais ou menos afestado dos actores € das coisas em jogo por ele observadas, mais ou menos directa- mente envolvido em rivalidades com eles, mais ou menos centado, por conseguinte, @ entrar no jogo do mecadiscurso, com a aparéncia de 0 objectivar. Quando, no jogo analisado, se trata, como aqui, de sustentar um metadiscurso a respeito de todos os outros discursos — 0 do homem politico que afiema ter ganho, 0 do jornalista que declara fazer uma exposicio objective dos desvios, 0 do «politdlogo» e especialista de histéria cleitoral que tém a pretensio de fornecerem a com- preensio a explicagio objectiva do resultado apoiando-se na comparacio dos desvios ¢ na andlise das tendéncias de evolugio — quando se trata, numa palavra, de se situ ir meta, acima de, unicamente pela forga do discurso, ése tentado a fazer uso da cigncia das estratégias que os diferentes actores aplicam, a fim de fazerem triunfar a sua «verdade» para dizer a verdade do jogo, € para triunfarem assim no jogo. E ainda a relagao objectiva entre a sociologia politica ¢ a «politologia medificicas ou, mais precisamente, entre as posigdes que observador ¢ observado ocupam nos respectivos campos, objectivamente hie- rarquiizados, que comanda a percepgio do observador, sobretu- 58 INTRODUGAO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA do impondo-Ihe as cegueiras reveladoras dos seus préprios vested interests A objectivagao da relagio do socidlogo com 0, seu objecto é, como se vé bem neste caso, a condi¢ao da ruptura com a propensio para investir no objecto, que esté sem davida na origem do seu «interesse» pelo objecto. E preciso, de certo modo, ter-se renunciado tentacdo de se servir da ciéncia para intervir no objecto, para se estar em estado de operar uma objectivacao que nao seja a simples visio redutora e parcial que se pode ter, no interior do jogo, de outro jogador, mas sim a visio global que se tem de um jogo passivel de ser apreendido como tal porque se saiu dele. $6 a sociologia da sociologia — € do sociélogo — pode dar um certo dominio dos fins sociais que podem estar na mira dos fins cientificos directamente prosse- guidos. A objectivagio participante, sem divida, 0 cume da arte sociolégica, por pouco realizavel que seja, $6 0 é se se firmar numa objectivacio cio completa quanto possivel do interesse @ objectivar 0 qual esta inscrito no facto da participa- Gio, € num por-em-suspenso desse inceresse ¢ das representa- Ges que ele induz. CAPITULO II A génese dos conceitos de habitus e de campo Ao apresentar aqui, de modo mais sintético e mais sistema- tico, os conhecimentos que pude obter, no decurso dos anos, pela aplicacao a universos diferentes do mesmo modo de pensamento — aquele que ¢ designado pela nogio de campo — conto realizar a confluéncia da diversidade aberta pela pesquisa em acco com a coeréncia reforcads por um olhar recrospectivo. Diferente da teoria tebrica — discusso profético ou programiti- co que tem em si mesmo o seu proprio fim e que nasce e vive da defrontacio com outras teorias —, a ceoria cientifica apre- senta-se como um programa de percepcao ¢ de acsio sé revelado no'trabalho empiricoiem que se realize. Construcéo provisdria elaborada para o trabalho empirico ¢ por meio dele, ganha menos com a polémica teérica do que com a defrontacéo com novos objectos. Por esta razio, tomar verdadeiramente 0 parcido da ciéncia € optar, asceticamente, por dedicar mais tempo e mais esforcos a por em accdo os conhecimentos tedricos adquiridos investindo-os em pesquisas novas, em vez de 0s acondicionar, de certo modo, para a venda, metendo-os num embrulho de metadiscurso, destinado menos a controlar 0 pensamento do que a mostrar e a valorizar a sua propria importancia ou a dele retirar directamente beneficios fazendo-o circular nas imimeras ocasides que a idade do jacto e do coléquio oferece a0 narcisismo do pesquisador. Mas é também correr 0 isco de dar a imagem de um isolacionismo provinciano ou sectério, sobretudo quando o emprego colectivo do mesmo mudus operandi — embora seja coisa banal nas ciéncias mais avangadas — vem -reforgar esta impressio de monismo totalitirio * Alguns dos trabathos cujos resultados sio aqui apresentados foram ji “objecco de publicagio, tendo els préprios servido de base, desde hé uns vinte anos, para pesquisas em que me apoiarei nos cextos que cm em vista 60. A GENESE DOS CONCEITOS Tratar da teoria como um mudus operandi que orienta ¢ organiza praticamente a pritica cientifica é, evidentemente, romper com a complacéncia um pouco feiticista que os «tedri- cos» coscumam ter para com ela. Assim, nunca me pareceu indispensivel fazer a genealogia de conceitos que, nao tendo nascido da partenogénese teérica, nao ganham muito em serem re-situados em relagio aos usos anteriores, tendo por funcio, sobretudo, designar, de maneira estenografica, uma postura teérica, principio de opcodes metédicas, canto negativas como positivas, na conducio da pesquisa. Neste sentido, por exem- plo, a nogio de Aabitus exprime sobretudo a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciéncia social se encerrou, a da consciéncia (ou do sujeito) ¢ do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc. Quando introduzi aquela nogio, por ocasiéo da publicagio em francés de dois artigos de Panofsky que’ nunca tinham sido cotejados — um sobre a arquiteccura gética, no qual a palavra era empregada, a titulo de conceiro «nativo» *, para dar uma explicagao do efeito do pensamento fazer a sintese dos conhecimentos sdquitides. Os principios teéricos ¢ rmetodoldgicos que orientaram estes trabulhos foram apresentades,originn- fiamente, no quadro de um seminério que se reaizou na Escola Normal Superior entre os anos 60 € os anos 80. Este semindrio, ainda que ten tido Sempre um nimero muito resrito de partcipantes (sobretado Jean-Claude Chamboredon, Christophe Charle, Rémi Ponton, Jean-Louis Fabiani Menger e alguns outros) tinha sido eoncebido, de comego, como um vasto trabalho colectivo destinado a cobri 0 conjunto da producio licerdria e aistica do século XIX francés — gragas sobrerudo 4 elaboragio de um Ficheiro comum, destinado a servi de ase para diferentes andlises. O mécodo 86 se vé bem pelos resuleados que produ e, quando éexigente, a sua apicagio fequer muita inteligénciaeinvengio também muito trabalho, Resulea dagui {ue € dificit pr em evidence fezeevaler principios téricos € conceitos que funcionaram praticamente em forma de sugestées, de incitages, de conselhos ‘ou de correccbes no quadro de seminitios ou de grupos de trabalho sem secorret 0 isco de se set injusto pusa com todos aquees que os fzeram funciona, contribuindo, por isso mesmo, para os aperfeigoar. Eassim, visto que, no pais dos meses de pensar, napa de um coun de eta de psi fe aparecer como um testemunho de submissio seguidista « um pattio liso ov deena ces mes mm my cei Tae tama representagso colectva do trabalho intelectual que é, sem divide, uma ‘das causas maiores do fracasso total ou parcial dos erabalhos colectivos. indigenes no texto (N. T.) CAPITULO II 61 escolistico no terreno da arquitectura, o outro sobre 0 Abade Suger em que cla podia também tornar-se itil? —, tal nogéo petmitia-me ‘romper com 0 paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciéncia, a da economia clissica e do seu homo economicus que regressa hoje com 0 nome de individualismo metodolégico. Retomando a velha nogio aristotélica de hexis, convertida pela escoléstica em habitus, eu desejava reagir contra 0 estruturalismo ¢ a sua estranha filosofia da accio que, implicita na nogao levi-straussiana de inconscien- te, se exprimia com toda a clareza entre os althusserianos, com © seu agente reduzido 20 papel de suporte — Trager — da estrututa; ¢ fazia-o arrancando Panofsky a filosofia néo- -kantiana das «formas simbélicas» em que ele ficata preso (correndo 0 risco, com isso, de tirar partido um tanto forcado do uso, tinico na sua obra, que ele fazia da nogio de habitu:) Sendo as minhas posigdes proximas das de Chomsky que claborava, por entio, € quase contra os mesmos adversitios, a nogio de generative grammar, eu desejava por em evidencia as capacidades_scriadoras», activas, inventivas, do hzbitur e do agente (que a palavra hétito nao diz), embora chamando acengio para a ideia de que este poder gerador nio € 0 de um espirito universal, de uma natureza ou de uma razio humana, como em Chomsky — 0 habitus, como indica a palavra, é um ‘conhecimento adquirido ¢ também um hater, um capital (de tum sujeito transcendental na tradicdo idealista) 0 habitus, a bexis, indica a disposicéo incorporada, quase postural —, mas sim 0 de um agente em accio: tratava-se de chamar a atengio para © «primado da razao pritica» de que falava Fichee, retomando 20 idealismo, como Marx sugeria nas Tees sobre Feuerbach, 0 «lado activo» do conhecimento pratico que a tradigéo materialista, sobretudo com a teoria do «reflexo», tinha abandonado. Nao hé diivida de que as primeiras aplicagées por mim feitas da nogéo de habitus comportavam pouco mais ou menos tudo isso, mas apenas em estado implicito: eram, com efeito, 0 produto no de um célculo teérico semelhante a0 que acabo de 1, Panofiky, Arcbitecure gobigue et pone scolatiqne, trad. francesa de Pierre Hourdiew, Paris, Minuit, 1967 62 A GENESE DOS CONCEITOS fazer mediante uma balizagem sistemética do espaco teérico ‘mas sim de uma estratégia pritica do habitus cientifico, espécie de sentido do jogo que ndo tem necessidade de raciocinar para se orientar e se situar de maneira racional num espaco. Creio, hho entanto, que a escotha desta velha palavra ha muito fora de uso, por no ter herdeiros ¢ s6 ocasionalmente empregada, no € estranha a realizagio ulterior do conceito, Os que quiserem ligar a palavra & sua origem, na intengio de a reduzir ou de a destruir, nio deixario de descobrir, por pouco inteligente que seja 0 modo de conduair o inquérito, que a sua fora teérica residia precisamente na direccio da pesquisa por cla cesignada ‘a qual esta na propria origem da superacio que cornou possivel Parece-me, com efeito que, em todos 05 casos, os utilizadores da palavra habitus se inspiravam numa intencio teérica proxima da minha, que era a de sair da filosofia da consciéncia sem anular 0 agente na sua verdade de operador pritico de constru- ges de objecto. E 0 que se afiguta, tanto no caso em que, Como em Hegel que também recorre na mesma perspectiva a nogio de etas, a nocio de hexis (equivalente grego de habitus) exptime a vontade de romper com o dualismo kantiano ¢ de reintroduzir as disposigées duradouras constitutivas da «moral realizadan (Sittlicbkeit) em oposigéo a0 moralismo abstracto da moral pura e formal do dever; como no caso em que, como em Husserl, 0 mesmo conceito € nogdes vizinhas, como a de Habitualitét, assinalam 0 esforco para Sait da filosofia da Consciéncia. reintroduzindo — como em Heidegger ¢ Merleau- -Ponty, que, de resto, nio empregam a palavra — uma relacéo de cumplicidade ontolégica com 0 mundo; ou ainda no caso em que — como Mauss, o qual reconhece a dimensio corporal da exis como porte ou postura — a nogio serve para teferir 0 funcionamento sistematico do corpo socializado. * ‘A decisio de recomar uma palavra da tradigio para a reactivar assenta na conviegio de que o trabalho de concepeuali- zacio pode, tambem ele, ser cumulacivo, € € diametralmente ‘posta & estratégia que consiste em tentar associar 0 seu nome + 0 cermo «disposition», na acepgio em que o toma o autor, sera por as tnidueido por atitude a0 longo destes textos, salvo ocortéacia especial (N.T.) CAPITULO I 6 tum neologismo ou, segundo © modelo das ciéncias da natureza, a um efeito, mesmo menor, fazendo assim subir a sua coragio no Citation Index* ‘A procura da originalidade a todo o custo, frequentemente facilitada pela ignorincia e a fidelidade religiosa a este ou aquele autor candnico que leva 4 repeticao.ritual, impedem, tuma ¢ outra, a justa aticude para com a tradigao teérica, que consiste em afirmar, 20 mesmo tempo, a continuidade © Fuptura, a conservacéo e a superagio, em se apoiar em todo 0 pensamento disponivel sem temer a acusacao de seguidismo ou de ecletismo, para ir para além dos ancecessores, ultrapassados assim por uma utilizago nova dos instrumentos para cuja producio eles contribuiram*. A capacidade de ceproduzir acti- vamente os melhores produtos dos pensadores do passado pondo a funcionar os instrumentos de produgio que eles deixaram € a condigao do acesso a um pensamento realmente produtivo. Também a elaboragio ¢ a transmissio de métodos de pensamento eficazes e fecundos nada tém de comum com a circulagio das wideias» tal como ¢ geralmente pensada: se é permitida esta analogia, diria que os trabalhos cientificos sio parecidos com uma miisica que fosse feita néo para set mais ou menos passivamente escutada, ou mesmo executada, mas sim para fornecer principios de composigio. Compreender trabalhos cicntificos que, diferentemente dos textos te6ricos, exigem nao a contemplagao mas a aplicagdo pritica, ¢ fazer fancionar 2 sea estraégia, que é a moeda mitida da ambigéo positivise tradicio- de liga 0 nome a uma escola ou a um sistema e, deste modo, a uma visio do mundo, tem a seu favor as aparéncias da modéstia cientista, *Também aqui as ciéncias sociais stio numa posigdo pouco favordvel 4 instituigio de tal relacio realists com a heranga ceérica: os valores de foriginalidade, que sio os dos campos literirio, arciseico ou filossfico continuam a orientar 0s juizos; eles desacredieam como servil ou seguidista 8 vontade de adquitir instrumentos de producio expecificos ligada a uma tradicio ©, deste modo, a um trabalho colectivo e, assim, favorecem os tembustes sem futuro pelos quais os pequenos empresicios sem capital tém fem mint associae 0 sew nome a uma marca de fubrica —~ como se ve no tlominio da critica em que no hi, hoje, aucoe que se néo atribua um nome famine, ies ant haa 4 ‘A GENESE DOS CONCEITOS praticamente, a respeito de um objecto diferente, 0 modo de pensamento que nele se exprime, € reactivé-lo num novo acto de produgio tio inventivo e original como 0 acto inicial que se opse absolutamente a0 comentario des-realizante do lector, meta- discurso ineficaz ¢ esterilizante.’ Por isso a apropriacio activa de uum modo de pensamento cientifico, ainda que muitas vezes desacreditada como imitacio servil de epigono ou como aplica- so mecanica de uma arte de inventar jf inventada, é tao dificil € to rara, no s6 pelos efeitos de conhecimento que produz, como também pela sua elaboragio inicial Uma das inimeras raz6es da particular dificuldade das ciéncias sociais esta no facto de exigirem unido de uma grande ambigao com uma extrema humildade: humildade necessiria para conseguir dominar prati- camente todo 0 conjunto dos conhecimentos adquiridos, dispersos ¢ pouco formalizados, da disciplina, incorporando-o, como modo de habitus (apesar da falsa originalidade da arrogin- cia ou da ignorincia continuarem a ter crédito); ambicio indispensivel para tentar cotalizar numa pritica realmente cumulativa 0 conjunto dos saberes ¢ do saber-fazer acumulados ‘em todos os actos de conhecimento — ¢ por meio deles — realizados pelo colégio dos melhores, no passado e no presente ‘A mesma atitude esteve na origem do emprego do conceito de campo. ‘Também aqui a noo serviu primeiro para indicar ‘uma direccio & pesquisa, definida negativamente como recusa & alternativa da interpretagio interna ¢ da explicagio externa, pperante @ qual se achavam colocadas todas as ciéncias das obras culturais, ciéncias religiosas, histéria da arte ou histéria literé- ria: nestas matérias, a oposigao entre um formalismo nascido da teorizagio de uma arce que chegara a um alto grau de autono- ‘mia e um reducionismo empenhado em relacionar directamente as formas artisticas com formas sociais — com o qual 0 marxismo, apesar da nogio de autonomia relativa, tendia a identificar-se, especialmente com Lukacs e Goldmann — enco- bria 0 que as duas correntes tinham de comum, a saber, 0 facto de ignorarem 0 campo de producéo como espaco social de relagdes objectivas. Segue-se daqui que, uma vez mais, investigacio genealégica — que conduziria a autores tdo distantes uns dos outros, como é 0 caso de Trier ¢ de Kurt CAPITULO Ut 6 Lewin — daria infinitamence menos resultados do que a referéncia & linhagem ou a linha ce6rica em que o emprego da palavra inscrevia tudo 0 que se empreendia: 0 modo de pensamento relacional (de preferéncia a estruturalista) que é 0 de toda a ciéncia moderna’, como mostrou Cassirer a0 rorni-lo explicito®, é sem duivida o que liga erabalhos io diferentes aparéncia como os dos formalistas russos — em particular Tynianov’ —, os de Lewin ou os de Elias e também, evidente- mente, os estruturalismos linguisticos ou antropolégicos*. A dificyldade que é parcicular a aplicagao deste modo de pensamento as coisas do mundo social provém da ruprura com a percepcdo comum do mundo social por este exigida. Assim, para construir realmente a nogio de campo, foi preciso passar para além da primeira tentativa de andlise do «campo intelec- * como universo relativamente auténomo de relacoes S Teneei por em evidéncia, num artigo escrito no aemé do estruturalis- smo, as condicdes da apicago 's ctacias soias do mado de pensamento felacional que se impts as citcias da nacutera © que, por mio ter sido Claramence pensado nor sr prinipior, se vin aos poucos deformado, desviado fou pervertido, as diferentes formas de cstruturaismo (cf. P. Bourdics, “Scructuralism and Theocy of Sociological Knowledges, Soial Rewarh, XXV,, 4, Verio. 1968, pp. 681-706). Ease Castres, Substance et Fonction, Pais, Minuic, 1977, p. 19. 7 Sobre a ligagio entre 0s formalistas rusts Caste, pode verse P. Steiner, Russen Formalim, A Metaparih, Ithaca, Cornell University Press, 1984, pp._ 101-104. * sea unidade de linha terica esi na origem das afinidades, de inicio confusamente sentidas, © dos pontos de encontro, az mais das veres descoberos fora de tempo, que importa nfo descrever como produtos de urn fempréstimo, pois fo o resultado da aplicacio separa dos mesmos esque- fas (veremes isto mais adiante a respeico dos formalstas russes). Nada hi de mais diverido, no trabalho intelectual, que descobrit « mesma idea, ‘com poucas diferencas de forma, em autores diferente, sobrecado quando & frigem deste enconero € perfeiamente clara, Pensamos neste c1s0 em Baudelaice: «Pois bem, acusam-me, a mim, de imitar Poe! Sabe por que ranio taduzi Poe com tanta pacigncia? Porque le se parti comige. A primeira ver que abri um livro dele, vi com espanco e enlevo, no 36 ‘motivos sonhados por mim, mas fas, pensadas pot mim, © escritas por ele, vinee anos antes...» (CE. C. Baudelaire « Théophile Thor, 1863, in Baudelaire Critique Fart, Pats, Club des Lorizes, p. 179. 'P. Bourdicu, «Champ Incllectel et “ree Cxéateur, in Let Temps alerns, 0. 246, Nov. ele 1966, pp. 86! 906 tual» 66 A GENESE DOS CONCEITOS especificas: com efeito, as relagdes imediatamente visiveis entre 05 agentes envolvidos na vida intelectual — sobretudo as ineeraccdes entze os autores ou entre os autores € os edicores — tinham disfarcado as relagdes objectivas entre as posigoes ocupadas por esses agentes, que determinam a forma de tais interacgdes. Foi assim que a primeira claboracéo rigorosa da nogao saiu de uma leitura do capitulo de Wirtschaft und Guiellichaft consagrado a sociologia religiosa, leitura que, domi- nada pela referencia permanente ao campo intelectual, nada tinha de comentério escolar. Com efeito, mediante uma critica da visio interaccionista das relagbes entre os agentes religiosos _ proposta por Weber que implicava uma critica retrospectiva da minha cepresentacio inicial do campo intelectual, eu propunha uma consteugio do campo religioso como estratura de relagies objectivas que pudesse explicar a forma concreta das interagées que Max Weber descrevia em forma de uma tipologia realita'. Nada mais restava fazer do que pér a funcionar 0 instrumenco de pensamento assim elaborado para descobrir, aplicando-o a dominios diferentes, ndo s6 as propriedades especificas de cada campo — alta costura, literatura, filosofia, politica, etc. — mas também as invariantes reveladas pela comparacio dos diferentes universos tratados como «casos particulares do possi vel». As eransferéncias metédicas de modelos baseados na "© P. Bourdieu, «Une inceeprétation de la sociologie religieuse de Max Weber, in Archines eopiomes de sociologie, Xi, 1, 1971, pp. 3-21. Embora cambém aqui conte evidentemente a incencio de redusit 0 feito proprio da Teirura, a evidéncia — ex post — da reimerpretaids estrucucalista por mim ‘proposta faz com que, desde que primeieo volumede W rtschaftumd Gusllschaft foi, enfim, traduzido, se atcibua geralmence 20 proprio Weber (compreendes- sse-d que eu nio faga citagdes) conceitos como os de campo religioso ou capital simbélico e todo um modo de pensamenco que sio evidentemente testranhos @ logica do seu pensamento. (Trata-se dot, I intitulado Ecamomiee Sait, etad, ditigida por J. Chavy e E. de Dampierre, Paris, Plon, 1971] "Y Se a aplicagio reiterada dos mesmos esquemas a objects diferentes cconduz a algumas repetigdes fastidiosas, ela justificase sem divida do ponto de visea de pedagogia da pesquisa, na medida em que estes esquemas podem tleste modo passar directamente para a pratica do leitor activo, capaz de ttacar 0 protocolo cieatifico como exercicio de trabalhos priticos —~ ito sem exclu os efeitos, sem divida muito diferentes, da transmissio em forma de tradugio formalizads dos esquemas priticos do habitus cientfic, CAPITULO It 67 hipStese de que existem homologias estrucurais ¢ funcionais entre todos os campos, a0 invés de funcionarem como simples metéforas orientadas por intengées retoricas de persuasio, cém uma eficécia heuristica eminente, isto é, a que toda a tradicio epistemolégica reconhece analogia. Além disso, a paciéncia das aplicagées priticas repetidas deste método é uma das vias possiveis (para mim a mais acessivel ¢ a mais aceitivel) da ascensio semantica» (no sentido de Quine) permitindo levar a um nivel de generalidade e de formalizacio mais clevado os principios tedricos envolvidos no estudo empitico de-universos diferentes e as leis invariantes da estrutura e da histéria dos diferentes campos. Estes, em consequéncia das particularidades das suas funcées e do seu funcionamento (ou, mais simples- mente, das fontes de informacio cespectivas), denunciam de maneira mais ou menos clara propriedades comuns a todos os campos: assim, 0 campo da alta coscura levou, mais directa- mente do que qualquer outro universo, a uma das propriedades mais importantes de todos 0s campos de produgio cultural, que é a da légica propriamente magica da produgio do produtor € do produto como feitigos — sem duivida porque, sendo mais legitimo culturalmente, ele censura de modo menos vivo 0 aspecto «econémico» das praticas e esti menos protegido contra x abecivago, que implica sempre wma forma de de- -sacralizagio. ‘Todavia, procurar a solugio de um problema canénico neste ou naquele estudo de casos, sobrecudo se este se dedica 20 universo frivolo da moda, implicava uma transformagio do trabalho intelectual que ndo deixa de ter relagio com 0 que, segundo Erich Auerbach, fizeram os inventores do romance moderno, Virginia Woolf, Joyce ¢ Faulkner: «Di-se menos imporcancia aos grandes acohtecimentos exteriores € a0s acasos da fatalidade, pensa-se que eles sio pouco capazes de revelar alguma coisa de essencial a respeito do objecto considerado; cré-se, a0 invés, que qualquer fragmento da vida, tomado 20 acaso, em qualquer momento, contém a totalidade do destino e que pode servir para representé-lo, Tem-se mais confianga nas sinteses obridas pelo aprofundamento de uma circunsténcia auoridliana do que num tratamento global, ordenado cronologi- 68 ‘A GENESE DOS CONCEITOS camente, que segue 0 seu objecto do comego ao fim, se esforga por nada omitir de exteriormente importante e pGe em relevo as grandes viragens da vida para fazer delas as articulagoes da intriga» '?. Pode-se, com efeito, «regressar as proprias coisas» mergulhando na particularidade de um caso particular (a revo- lugdo impressionista, por exemplo) para tentar descobrir nele alguma coisa de essencial (a verdade trans-historica das revolu- des simbélicas), mas tio-s6 com a condicéo de se repudiar a hierarquia académica dos géneros e dos objectos a qual, banida da literatura e da pintura desde o século XIX, se perpetua na tradigéo filoséfica — através, por exemplo, da condenagio altiva do «historicismo» A teoria geral dos campos que, pouco a pouco’, se foi assim elaborando, nada deve, a0 contririo do que possa pare- cer, & transferéncia, mais ou menos repensada, do modo de pensamento econémico, embora, ao reinterpretar numa perspectiva relacional a andlise de Weber, que aplicava a religido um certo niimero de conceitos retirados da economia (como concorréncia, monopélio, oferta, procura, etc.), me achei de repente no meio de propriedades gerais, validas nos diferentes campos, que a teoria econémica tinha assinalado sem delas possuir 0 adequado fundamento teérico. Em vez de ser a transferéncia que est na origem da construgéo do objecto — como quando se vai buscar a outro universo, de preferéncia prestigioso, etnologia, Linguistica ou economia, uma nocéo descontextualizada, simples metafora com fungio puramente emblemitica — ¢ a construgio do objecto que exige a transfe- réncia ¢ a fundamenta: assim, tratando-se de analisar os usos sociais da lingua, a ruptura com a nocio vaga ¢ vazia de «situagio» — que introduzia, ela propria, uma ruptura com o modelo saussuriano ou chomskiano — obriga a que se penser as relagdes de permuta linguistica como outros tantos mercados "B, Auerbach, Mines, la représentarion de la réalit dans la litrature cwcidentale, Paris, Gallimard, 1968, p. 543. "Procure isolar as propriedades gerais dos campos, levando as diferentes andlises realizadas a um nivel superior de formalizagio, nos cursos que dei no Collige de Frane em 1983 © 1984 © que serio objecto de publicacio. CAPITULO U1 69 que’se especificam segundo a estrutura das relagdes entre os capitais linguisticos ou culturais dos interlocutores ou dos seus grupos. Tudo leva a supor que a teoria econémica, como se espera poder um dia demonstrar, em vez de ser modelo fundador, deve antes ser pensada como um caso particular da teoria dos campos que se constr6i pouco a pouco, de generaliza- do em generalizacio ¢ que, a0 mesmo tempo permite com- preender a fecundidade € 0s limites de validade de transferén- cias como as com que Weber opera, ¢ obriga a repensar os pressupostos da teoria econémica a luz sobretudo dos conheci- mentos adquiridos a partir da analise dos campos de producio cultural ". A teoria geral da economia dos campos permite descrever definis a forma especifica de que se revestem, em cada campo, 08 mecanismos € 0s conceitos mais gerais (capital, investimento, ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, a comecar pelo economismo, que nada mais conhece além do interesse material e a busca da maximizagio do lucro moneti- rio. Compreender a génese social de um campo, ¢ apreendet aquilo que faz a necessidade especifica da crenga que 0 sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais € simbélicas em jogo que nele se geram, € explicar, tornar necessério, subtrair a0 absurdo do arbitrario ¢ do nio-morivado 605 actos dos produtores ¢ as obras por eles produzidas € nao, como geralmente se julga, reduzir ou destruir. Nio hé davida que é tentador, como nota Wittgenstein nas Leans sur lEthi- que, abandonat-se a0 prazer de «destruir os preconceitos», sendo certo que alguns tipos de explicagéo exercem uma atraccdo irresistivel», como em especial uma explicacio do “A analise, em curso, de um universo econémica como o do campo dos producores de habitacio, reconhece um certo niimero de caracteristicas i observadas em campos como 0 da alta costura ou mesmo 0 da pintura e da Hiceracura: sobrecudo 0 papel dos investimentos destinados a. produzie @ ‘crenga no valor de um produto simultaneamente econémico ¢ simbélico, ou © facto de, neste dominio como em outros, as estratégias das operagdes dependerem da sua posicio no campo da produgéo, quer dizer, na estrucare dda distribuigio do caital expsifice (no qual hé que inclu a «teputacio~ do Prom ak ane, 70 A GENESE DOS CONCEITOS tipo: «isto & apenas aquilo». E certo, no entanto, que, contra codas as espécies de escapism que levam a achar na arte uma nova forma da ilusio dos mundos imagindrios, a ciéncia deve aprender a obra de arte aa sua dupla necessidade: necessidade interna desse objecto maravilhoso que parece subtrair-se a contingéncia e ao acidente, em suma, tornar-se necessitio ele proprio e necessitar ao mesmo tempo do seu referente; neces dade externa do encontro entre uma trajectéria € um campo, entre uma pulsio expressiva e um espaco dos possiveis expressi- vos, que faz com que a obra, a0 realizar as duas histérias de que ela € produto, as supere ‘Nunca se passa para além da histéria e a ciéncia do homem nao pode por a si mesma outro fim que nio seja o de se reapropriar, pela tomada de consciéncia, da necessidade que esta inscrita na histéria e, em particular, de conferir a si mesma © dominio teérico das condigées histéricas em que podem emergir necessidades trans-histOricas. Por exemplo, € cair pro- fandamente na ilusio feiticista ndo querer ver que a solusio do problema da «literalidade», caro aos formalistas russos, nio pode ser encontrada noutro dominio que nao seja o da histéria do campo literério: nenhuma andlise de esséncia, nenhuma definigio formal pode, com efeito, esconder que a afirmacio da ‘especificidade do «literario» ou do «pict6rico» ¢ da sua irredu- tibilidade a qualquer outca forma de expressao é inseparivel da afirmacéo da autonomia do campo de producio que ela supde €, ‘a0 mesmo tempo, reforga. O movimento do campo literério ou do campo artistico para a auconomia pode ser compreendido como um processo de depuragdo em que cada género $e orienta para aquilo que o distingue ¢ 0 define de modo exclusivo, para além mesmo dos sinais exteriores, socialmente conhecidos reconhecidos, da sua identidade. Os formalistas — e sobretudo Jakobson, familiarizado com a feaomenologia — nada mais fizeram do que retomar, de maneira mais mecédica e mais consequente, as velhas interrogacdes da critica e da cradicéo escolar acerca da narureza dos génetos, teatro, romance ou poesia; eles cornaram-se assim culpados, com toda a tradicio de reflexéo sobre a «poesia pura» ou sobre @ «teatralidade>, de constituirem em esséncias trans-hist6ricas aquilo que, na reali- CAPITULO I n dade, € 120-56 uma espécie de quinta-ssincia hisérica, quer dizer, 0 produto do lento € longo trabalho de alquimia hist6rica que acompanha o processo de autonomizacio dos campos de producao cultural. Com efeito, de depuragio em depuragao, as lucas que tém lugar no campo da producio poética conduziram a que se isolasse, pouco a pouco, o princt pio essencial do efeito poético, quer dizer, o essencial daquito que separa a poesia da prosa: ao fazer desaparecer, por exemplo, com 0 verso livre, caracteristicas secundarias como a rima e 0 ritmo, essas luras nfo deixaram subsistir mais que uma espécie de extracto altamente concentrado (como em Francis Ponge, por exemplo) das propriedades mais indicadas para produzir 0 feito poético de desbanalizacio das palavras ¢ das coisas, a stranenie dos formalistas russos, sem se recorrer a técnicas socialmente designadas de «poéticas». Sempre que se institui uum destes universos relativamente auténomos, campo artistico, campo cientifico ou esta ou aquela das suas especificacdes 0 pprocesso histérico af instaurado desempenha © mesmo papel de abstractor de quinta-essincia. Donde a anilise da histéria do campo ser, em si mesma, a tinica forma legitima da analise de esséncia Mas, dir-se-4, que é que se ganhou, a no ser 0 prazer um pouco perverso do desencanto, com esta reducio historica daquilo que se quer viver como experiéncia absoluta, escranha as contingéncias de uma génese histérica? Ha uma histéria da raz que nfo tem a razio como principio; uma histéria do verdadeiro, do belo, do bem, que nao tem apenas como motor a procura da verdade, da beleza, da vireude. “A autonomia relativa do campo artistico como espaco de relagées objectivas em referéncia aos quais se acha objectivamente definida a relagao entre cada agente € a sua prépria obra, passada ou presente, & 0 que confere & histéria da arte a sua autonomia relativa €, portanto, a sua ldgica originaly Para explicar o facto de a arte parecer encontrar nela prépria 0 principio € a norma ° Assim, a anilise da atitude estétca pura, que € exigida pelas formas mais avangadas da arte, € inseparivel do processo de auronomizagéo do Campo de produgio, De mesmo modo, a epistemologia no pode set sepatada, ven ale luce nem de diteito, da historia social da ciéncia 72 A GENESE DOS CONCEITOS da sua teansformacio — como se a histéria estivesse no interior do sistema e como se o devir das formas de representacéo ou de expresso nada mais fizesse além de exprimir a logica interna do sistema — nao ha necessidade de hipostasiar, como frequen- cemente se faz, as leis desta evolucio; se existe uma hiseéria propriamence artistica, , além do mais, porque os artistas € os seus produtos se acham objectivamence situados, pela sua pertenca, a0 campo artistico, em relagio aos outros artistas 0s seus produtos © porque as rupcuras mais propriamente estéticas com uma tradicéo artistica tém sempre algo que ver com a posicéo relativa, naquele campo, dos que defendem esta tradigio © dos que se esforcam por quebricla. «A accio das obras sobre as obras», de que falava Brunetitre, s6 se exerce por intermédio de autores cujas estratégias devem a posicio relativa que tém na estrutura do campo intelectual a forma, @ légica e 0 conteiido que apresentam *, O analista que procura ° A resiséncia & andlise cinttica tem recurs quaseinfiitos, como se pode ver nesta apresentacio das minhas andlises: «Bourdieu, ao contriio| (de Adorno), defende uma abordagem funcionaisa. Ele analse as acgbes, dos sujeitos naquilo a que chama 0 campo cultural levando em lia de conta exlusnamene a probabilidades de conguista do poder e do pretigo, € considera os objects simplemente como mos extatégicos que os produto: tes empregam na luta pelo poder» (P. Burger, «On the Literary History, Puetics, vol. 14, 2.9 3/4, August 1985, pp. 199-207 — sublinhado por mim). Estratégia muito comum, que consste em acu de redaionimo ua ceoriapreviamence reduzida: at estratégias priticas e wbredterminadas, que nio sio necesaciamente coascientes ¢ clculadas ¢ que exprimem of invereses, 20 mesmo temp estéicos€ soca, assoiados a uma posgto no campo, sio poe Peter Burger substtuidas por estatégias exclusivamente e explicitamente orentadas por uma espécie de vontade de poder genrica que poderia ser exercida tanto no campo politico como no campo econémico. Ele faz desaparecer assim a especiicidade das luasextéricas © dos inveresies elas envolvides, em suma, precisamente aquilo que « nogio de campo Cinha em vise explicar: na realidade, as lutas que tém lugar no campo ingeleceual tém o poder simbélico como coisa em jogo, quer dizer, 0 que nelas esti em jogo 0 poder sobre um uso particular de uma categoria particular de sinais e, deste modo, sobre a visio ¢ o sentido do mundo acura ¢ social. Traa-se de um equivoco demasiado groseto a rspeito de tum pono demasiado evidente pea ndo ser de certo modo interessado, logo, ssratgico (99 sentido que eu dou a esta pale), quer dizer, orientado, com toda a inocEncia, como em todas as formas de ecasa de saber, pelos interes ses ligados uma posicio CAPITULO II B nos interesses ligados & pertenca a um campo de producio cultural e, mais largamente, a0 campo social no seu conjunto, © principio da existéncia da obra tanco naquilo que ela rem de histérico como naquilo que ela cem de trans-histérico — «o eterno encanto da arte grega» —, trata a obra como tim sinal * intencional dominado e regulado por qualquer coisa de diferen- te, de que ela é também sintoma. © analista procura a inten- io objectiva escondida por debaixo da intengio declarada, 0 querer-dizér que é denunciado no que ela declara. E supse que nela se enuncia um sentido profundo, uma pulsio expeessiva, biolégica ou social que a alquimia da forma imposta pela necessidade social do campo cende a tornar isreconhecivel, sobretudo obrigando a pulsio a negar-se ¢ a universalizar-s, Ao contritio do angelismo do interesse puro pela forma pura, a anilise que apreende num movimento tinico a pulsio expressi- va, a censura ¢ a sublimagio garantida pelo trabalho de dae forma di uma visio realista, quer dizer, a0 mesmo tempo mais verdadeira, e, por fim, mais cranquilizadora do trabalho colec- tivo de sublimagio que esti na origem das conquistas. mais altas da acco humana historia s6 pode produzie a universali- dade trans-historica produzindo, por meio das lutas tantas vezes impiedosas dos interesses particulares, universos sociais que, por efeito da alquimia social das suas leis histéricas de funcionamento, tendem a extrair da defrontagio dos interesses particulares a esséncia sublimada do universal.s A exaltagio hagiografica € © rebaixamento redutor tém isto de comum: procurar nos grandes homens 0 principio das grandes obras; ¢ ignorar tudo 0 que, nas priticas € nas peodugées mais subli- mes, resulta da légica desses mundos paradoxais em que — entre oucras razdes, porque pode-se ter interesse em se mostrar dlesinceressado —-certos homens podem encontrar uma incita- io para se superarem ou, pelo menos, para produzirem actos ou obras que vio para além das suas intengdes e dos seus inceresses. 5 a trans ese ON. CAPITULO IV Le mort saisit le vif* As relagits entre a historia reificada ¢ a bistiria incorporada AA filosofia da histéria que esta inscrita no uso mais corrente da linguagem corrente e que leva as palavras que designam instituigdes ou entidades colectivas — Estado, Burguesia, Patronato, Igreja, Familia, Justica, Escola — a constituirem-se em sujeitos histéricos capazes de originar e realizar os seus préptios fins («o Estado — burgués — decide...», «a Escola — capitalista — elimina...», «a Igreja de Franca combate...», etc.) encontra a sua forma mais acabada na nogio de Aparelbo (ou de «dispositivo»), a qual voltou a estar em moda no discurso com maitisculas denominado «conceptual». Enquanto operador meciinico de finalidade, Deus (ou Diabolus) in machina, © «Aparelho», méquina divina ou infernal, consoante o humor ideolégico, bom ou mau funcionalismo, esta preparado para funcionar como Deus ex machina, «asilo da ignorincia», causa final capaz de justificar tudo, e com menor custo, sem nada explicar: dentro desta légica, que é a da mitologia, as grandes figuras alegsricas da dominacio sé se podem opor outras petsonificagdes miticas, tais como a Classe operitia, o Prolea- iado, os Trabalhadores, até mesmo as Lutas, encarnacio do Movimento social ¢ das fiirias de vinganca'. ‘+ Férmula jutidica consagrada em direito civil para exprimir 0 diteito que cabe a0 herdeiro legitimo de entrar na posse imediata da heranca do defunto. Nao hi expressio correspondence na ngua porcuguess mas poders traduzit-se por «O morto apodera-se do vivo» (N.T.) E, sem divide, no trabalho de mobilizagio e, mais preciamente, no trabelho de unificagéo e de universalizacto que se gera uma grande parte das rpresentayées (90 sentido da psicologia, e também no do direito e do teatro) ‘que os grupos (e, em particular, as classes dominantes) dio de si préprics © 76 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA Se esta versio da filosofia teleolégica da histéria, sem diivida menos afastada do que parece do «tudo isto é de propésito» da indignagio moral, pode e pode ainda aparecer como intelectualmente aceitavel, € porque ela encontra ¢ expri- me as atitudes constitutivas da «postura filosofica» tal como a da sua unidade as quae cles condensam, paras exigencies da lute CCompletamentedifrences das da aie) em sda organ ou em sinus de reurupamento (case operas, sproeratadon, square, «PME, cc) fequentement retomados tlc ual peo diccso, mesmo cerait>, Sobre © mundo cial Asim quando, pot eo dee epic de inclinata pate o rommancismo socal qu inspira anes vests hist socia, fal movimento operiion,fazendo dea etiade 0 sufi colecvo de wma Calcraiedioament pelted, 9 oreo Tico de enc «genie e+ funcao socais dese designaio ccenogisics de cepesentagio mediante = thu a clase opera consibu pars se pedurie como ta (pemese em peru de aluimia sci io complet com a diga menor) cde que far pte, na qualidade de condo e de prodwo,aqulo aque se Charme por vers'0, movimento opertios, quer die, @ Conjunto dat ongnizastes sindicas ou polities que erecamam da clase opera © cut Fungo ¢ representa a clase pean. Quanto miclogi pesimita x0 ma fancioalisnoquc a ovens, eu soca advém, evuentemente, de teem tm ato tendienco nn polemic: aplicndo-e, com ef, i mil mara Thus a adversiios que € prec descredita expo 0 pinto dos seus discard se eon 0 das as a. epi de epiicopadon,slnao do captain). Sendo cub vlgos cota int Gite com gt conebie plo antlers comusn com an Srganisno corm ml lho ail Bago, rod ele wna paras relia dos seus fins ebjetivos, quer der, tempor polcicn, Enguanto qu, come tentaremos mostrar nem primo eal; as na interns —-e por meio {ardor lego las em que o que them ogo do & mem min pordecd sr enchsivamente © explicamente tempor, que les meses Froduzem —- sem necssaramente a pesacm cmos a estas, dcquadas a ssegurr a condigier ccondmics © sch de sun propia reprolio socal. Para compreesder, por exemplo, 0 que se dscteve cm tim delta da ges (ou do scalicors) part a exqurdae, € precio Aipor dos meios pur interpreta a ners one indviuais oe 8 Ugo (tambo logs evra de realia para are ena «plies na Sun definigo ce religt;sendoo papel dos clerigor ces propio een dow neste salallo te tonteain, 9 de acorpanhar ‘ese movimento, de 0 suc, o que ea tanto ous fil pa les quanto ext, como bore protons da pues religion, pepaador par far dee, guano 2 eruues das suas dvsbesreprocn, mics utnoma do camp lena SS cxperigncas, as trsformagbes © a opie do uo tm lon CAPITULO IV ” definem em dado momento os processos de seleccio ¢ de formacao daqueles que fazem da filosofia uma profissio. De facto, ela savisfaz tanto a exigéncia de elevacio «tedrica», que estimula 0 sobrevoar dés factos ¢ a generalizagio vazia ¢ apressada”, como a pretensdo hermenéutica que manda procurar a esséncia por detrés da aparéncia, a estructura para além da histéria e tudo o que a define em exclusivo, quer dizer, todas as realidades vagas, misturadas ¢ ambiguas que pesam sobre as cigncias sociais, disciplinas auxiliares ¢ ancilérias que apenas servem para «tema de reflexio» ¢ sempre suspeitas de cumpli- cidade com a realidade que elas se esforcam por conhecer — assim que Althusser, com 0 pretexto de restauracio te6rica, reavivou a condenacdo que a ortodoxia marxista sempre fez pesar sobre todos aqueles que, pelo facto de procurarem, revelam que nem tudo esta encontrado; matando de uma cajadada dois coelhos, ele reforcava, se necessério, 0 desprezo — inquieto — que a ortodoxia filoséfica nunca deixou de ptofessar em relacéo as «ciéncias ditas sociais», disciplinas plebeias € importunas. Reduzir os agentes a0 papel de exe- cutantes, vitimas ou cimplices, de uma politica inscrita na Esséncia dos aparelhos, é permitirmo-nos deduzit a existéncia da Esséncia, ler as condutas na descrigéo dos Aparelhos ¢, 20 mesmo tempo, fugir & observacio das priticas ¢ identificar a pesquisa com a leitura de discursos encarados como mattizes reais das préticas. Se é verdade que @ propensio para tratar um universo social * 40s sibios, 0s fildsofos muito propensos & generlizaslo, a classficagio, muito fecundos na criagio de novas palavras ou de novos réulos para os iRéneros © as classes que imaginam, ndo sdo os que mais fazem progredir as Ciéncias e a filosofia. E preciso, pois, que 0 principio verdadeiramente activo, © principio de fecundidade e de vida, em tudo 0 que diz respeio 20 esenvolvimento da razio e do espiito filos6fico, nfo resda na faculdade de abstrair, de classficar e de generalizar. Conta-te que 0 grande geémetta Jean Bernouilli, desgostoso por ver que © sea contemporineo Varignon Pparecia querer apropriar-se das suas descobertas, a pretexco de nelas introdu- vir uma generalidade que o auror descurara, ¢ que no exigia grande esforco Inventivo, dizia muliciosimente, ao terminar cada memérie que fazia: Varignon Iuide nox geneeilizar isto» (A.A. Cournot, Oevire comptes, rome I, edlitudo por J.-C. Parente, Paris Vein, p. 20) 78 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA como Aparelho € proporcional distancia, que condena 20 objectivismo, e & ignorincia, que simplifica a visio, ‘compreende-se que os historiadores, de resto dados a designios teéricos menos ambiciosos, pela sua posicéo no espaco universi- tério, sejam menos levados a heroicizar entidades colectivas. A verdade é que a sua relagio com 0 objecto determina ainda amitide a sua visio do objecto. Primeiro, porque as tomadas de posigio sobre o passado radicam frequencemente (sendo o exemplo da Revolucéo Francesa o mais evidente) em tomadas de posigio latentes sobre 0 presente ou, mais exactamente, contra os adversirios intelectuais do presente (segundo a légica do «duplo resultado» * que se inscreve na autonomia relativa dos espagos de producio cultural). Além disso, os historiadores nem sempre escapam a uma forma subtil de mistificacéo: primeiro, porque nio s6 a ambicio, legada por Michelet, de essuscitar 0 passado e de restituir o real como também a desconfianga em relagio aos conceitos os incita a utilizarem intensivamente a metdfora, a qual como sabemos desde Max Miiller, esta repleta de mitos; depois, porque toda a sua postura de especialistas das fontes ¢ das origens os leva a situarem-se na légica mitica das origens e do primeiro comeco, is causes comuns, que levam a pensar a histéria como procura das responsabilidades, junta-se no caso deles uma espécie de habito profissional: a busca da superagio distintiva incita os historiadores a recuarem cada vez mais no pasado, a mos- trarem que tudo comegou mais cedo do que se julgava, a descobrirem predecessores dos precursores, a revelarem pre- niiincios dos sinais anunciativos — ao invés dos artistas de vanguarda que sio levados por ela a acelerar o processo que Thes pode escapar’, Basta-nos pensar em questes como as do + scoup double» no texto original (N.T.) > Um exemplo, entre muitos, € 0 da autobiografia. Nio podemos apresentar as Confises de Rousseau Sem nos perguncarmos se esta obra criou (0 género autobiogrific, e evocar imediatamente Montaigne ou Benvenuto Cellini ou, indo mais longe, Santo Agostinho. — para sermos de imediaro tultrapassados pelo erudito (alemdo) que, em algume historia monumencal dda autobiografia (0 exemplo nio ¢ imaginirio) mostrar que as origens lo [nenero se devem procurar no Priximo ox no Médio Oriente ¢ encontrar om CAPITULO IV i) nascimento do capitalismo ou do aparecimento do artista moderno, cujo sucesso infalivel s6 se explica porque elas dio & regresio ad infinitum uma superacao erudita. Estes efeitos da l6gica propria do campo de producéo combinam-se muitas vezes com os efeitos do humor politico para inspirar os derra- deiros investimentos que se escondem por detris das tomadas de posicio sobre problemas de tal forma mal postos que sé podem dar origem a debates, intermindveis, como a questio de saber se 0 aparecimento das primeiras medidas de proteccao social se deve atribuir a boa. vontade dos «filantropos» ou as «lutas dos trabalhadores»; ou a questio do papel, benéfico ou maléfico, que teria desempenhado 0 poder régio na pintura francesa do século XVII, podendo os veredictos, tao bem argumentados e documentados do rigor académico, sancionar a hostilidade ao absolutismo régio por parte dos professores republicanos de fins de século X1X ou, hoje em dia, a referéncia tacita 20 Estado_soviérico*; ou ainda 0 problema do limite entre a Idade Média ¢ 0 Renascimento, que encheu bibliotecas © que sempre opés os «liberais» aferrados em delimitar a ruptura entre as Trevas ¢ a Luz, e os defensores das origens medievais (e, em especial, franciscanas) do Renascimento. De facto, a propensio para a visio teologico-politica que permite censurar ou louvar, condenar ou reabilitar impucando a vontades benéficas ow malignas as propriedades aprovadas ou reprovadas do passado, depende do geau em que 0 passado das instituigdes em causa é considerado como algo que esté em jogo primeiros esbocos na 7.4 Carta de Platio ou no Bratas de Cicero, E 6 ppoderemos escapar A reressia ad infinitum substituindo a questio das origens absolucas pela questio das origens da autobiografia «moderna. Porém, como dar inicio & «modernidade» 01 a0 «modernismo» com Rousseau sem que vvenha de imediato a mente que o titulo de «primeira dos modernos» pode set reivindicado por Santo Agostinho ou Petrarca, para nio falar de Montaigne, apesar do seu «modernismo» ser diferente? © que nos obriga a perguntar tquando comega 0 modernismo moderno. E assim vai a vida erudite " Hseas probleméticas subterrineas sio evocadas no estudo de Nathalie Heinich sobre a vonsticuigio do campo da pineura francesa no sécwlo XVI: La perspective acaletnique. Peintuce et tradition leterée», Acer de la onde cm unmer sana, 1, 1988, pp. 47-70. 80 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA € como instrumento de luta, através dessas préprias institui- ‘Ses, no espaco social em que se situa o historiador, isto é, no campo das lutas sociais ¢ no campo de produgio cultural, ele préprio mais ou menos aut6nomo em relacio a essas lutas®, A tendéncia para pensar a pesquisa histérica na légica do proceso, quer dizer, como, uma pesquisa das origens ¢ das ysponsabilida. des, © até mesmo dos responsaveis, esti na origem da ilusio teleolégica ¢, mais precisamente, dessa forma da ilusio recros- pectiva que permite atribuir aos agentes individuais ou aos colec- tivos personalizados intengdes ¢ premeditagoes. F facil, de facto, quando se conhece a palavra final, transformar o fim da histéria ‘em fim da accéo histérica, a intengio objectiva sé revelada no seu termo, apés a batalha, em intencio subjectiva dos agentes, fem estratégia consciente e calculada, deliberadamente orientada pela procura daquilo que acabari por dai advir, constituindo assim 0 juizo da hist6ria, quer dizer, do historiador, em juizo final. Desta forma, contra a ilusio teleolégica que domina tantas obras consagradas & Revolugio Francesa®, as anélises de * Uma das vicrudes da objectivagio da relagéo com 0 objecto que se impée, tanto 20 historiador como ao socidlogo, é a de os prover dos meios para combarcr a filosofiaespontinea da histéra (e da privica) que orienta as ‘opsOes cientificas mais elementates: € aqui que a sociologia e a histéria da sociologia ¢ da histra (e, em particular, das problemacicas obrigatrias que clas adopram, dos conceitos que elas empregam, dos métodos que poem em pritica, e das condigies sociais em que elas fazem funcionar esta herancs) desempenham um papel determinance. Se bem que esta potémica da razio cientifica se possa também exercer contra certos adversétios, prestando-se assim a mal-entendidos inceressados quando ss «vitimas» se protegem idencificando-se com as vitimas de uma polémica, até mesmo de um teror politica, ela é dirigida, em primeiro lugar, contra aquele que a exerce, contra ‘tudo 0 que Ihe permite participar naquilo que descreve — e de que $6 se poderd libertar pela critica obstinada da cigncia, quer dizer, dos limites inscritos nas condicbes sociais da sua producdo. (Esta exploracio dos limites que est no centro do projecto racionalsta tal como Kant o pensava esti 00 extremo oposto 20 da leicura relattiitz que amide se fax — com rods os t6picos sobre a historicidade do historador — dos esctitos neokantianos sobre a cincia istics). ° Seria preciso analisar tudo 0 que eseé implicado unicamente no facto de se escrever Revolugio no singular (e com maiiscula) e, em especial, a hipétese de que houve uma revolucio uns ¢ indivisivel onde se poderia, da mesma forma, ver um conjunco de revolucdes (insureicdes dle cienpsmiess, CAPITULO IV 81 Paul Bois mostram bem que, no caso dos campos da Sarthe, as medidas mais generosas (como a aboligio de muitos dos impos- fos que pesavam sobre 0s camponeses) foram sendo contorna- das, deformadas ¢ viradas do avesso pela légica do campo em que elas intervinham ". Que o carécter abstracto, formal e, por assim dizer, sidealista» de medidas tomadas na mais completa ignorincia das condigées da sua concretizagao tenha contribui- do, & revelia, para a inversio paradoxal que as fez reverter, por fim, a favor dos seus autores ou — 0 que jé ndo é a mesma coisa — da sua classe & um facto em que nio podemos ver 0 resultado de um célculo cinico €, menos ainda, de uma espécie de milagre do inconsciente «burgués». O que € necessério compreender € a relagéo entre estas medidas (ou 0 habitus, caracteristico de uma classe, que ai se exprime em termos, por ‘exemplo, do universalismo ¢ do formalismo das suas intencies) € a légica do campo em que se geram — em funcio de habitus ‘que nunca se circunscrevem completamente a ele — as reaccées por elas suscitadas.'A razao ¢ a razio de ser de uma instituigio (ou de uma medida administrativa) e dos seus efeitos sociais, no esti na «vontade» de um individuo ou de um grupo mas sim no campo de forcas antagonistas ou complementares no qual, em fungao dos interesses associados as diferentes posigdes € dos Aabitus dos seus ocupantes, se geram as «vontades» © no qual se define e se redefine continuamente, na luta — e através da luta — a realidade das instituigoes ¢ dos seus efeitos sociais, previstos e imprevistos.¢-- A forma particular de ilusio retrospectiva que conduz a iluséo teleolégica leva-nos a conceber como produto de uma ‘estratégia consciente e calculada, ¢ até mesmo cinica, a accéo com finalidade objectiva do habitus, estratégia objectiva que, revolta da fore, actos de forga de notives, etc) pacialmence sinconizadas € limperfeicamene encadeadas (0 que leva a evieat a questi da nature da relagio entre estas diferentes revolucées) *B. Bois, Puysan ae [weit es ractursKemamiqns tials aux options policqus dep [epnue nvtatinaie, Pats-Haia, Mouton, 1960. (& digno de hota que este ivy de historadoe se inspite no defgnn explode da conta Ihstoricarmente de um facto sal do presente seje assim levado a object var eilominar ot efi orzelativos muito mais do eve € correne), 82 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA muitas vezes, 6 tem sucesso devido a sua inconsciéncia e 20 seu «desapego»: & assim que os que sio bem sucedidos, em politica ou mesmo nas artes ou na literatura, podem aparecer retrospectivamente como estrategas inspirados, enquanto que 0 que era objectivamente um investimento* racional péde ser vivido como uma aposta arriscada e até como uma loucura. A illusio, que a pertena a um campo exige € produz, exclui o cinismo, ¢ os agentes quase nunca dominam explicitamence aqueles mecanismos cujo dominio pritico € a condigio do seu éxito; assim, por exemplo, no campo literério ou artistico, as reconversies — de um género para outro, de um estilo para outro, etc. — sio vividas — ¢ devem, sem duivida sé-lo para terem éxito — como conversies. Em suma, 0 recurso & nogio de estratégia que permite romper com a ilusdo bem fundamentada do desinteresse € também com todas as formas de mecanicismo — ainda que se tratasse do mecanicismo finalista do Deus in machina — nao implica 0 regresso a uma forma ingénua de finalismo (e de interaccionismo). ara escapar as alternativas mortais nas quais se encerrou a historia ou a sociologia € que, tal como a oposigéo entre 0 acontecimento** e a longa duracéo ou, noutra ordem, entre os «grandes homens» ¢ as forcas colectivas, as vontades singulares ¢ 08 determinismos estruturais, assentam todas na distingio entre o individual e 0 social, identificado com 0 colectivo, basta observar que toda a accio histérica pée em presenta dois estados da histéria (ou do social): a histéria no seu estado objectivado, quer dizer, a histéria que se acumulou ao longo do tempo nas coisas, méquinas, edificios, monumentos, livros teorias, costumes, direito, etc., € a histéria no seu estado incorporado, que se tornou habitus. Aquele que tira 0 chapéu para cumprimentar reactiva, sem saber, um sinal convencional herdado da Idade Média no qual, como relembra Panofsky 03 homens de armas costumavam tirar 0 seu elmo para manifesta- rem as suas intengGes pacificas®. Esta actualizagio da histéria € + eplacement» no cexto original (N.T), # da posi¢ao. Esta dialéctica nunca se mostra tio bem, paradoxal- mente, como no caso das posigdes situadas em zonas de incerteza do espaco social e das profissées pouco «profissionali- zadas», quer dizer, ainda mal definidas em relagio tanto as condigées de acesso como as condigées de exercicio: estes % Vemos o que se ganha em substicuir o eu pesoal-impessoal que oferece cantas facilidades 3s projecgBes fantasméticas por um sujeito social- ‘mente caracterizado (0s empregados de comércio, ot quadros do sector privado). "Como centei mostrar noutro lugar, esta propensio para dar a relagio intelectual» com a condigéo operiria’ pela relagio operiria com exta condigio nio desaparece necessariamente pelo facco de se ocupar, pot um momento, como observador ou como actor, a posigio do opetirio (a excepsio €, para mim, o livro de Nicolas Dubost, Flin: sant fin, Paris, Maspero, 1979 — documento notivel, entre outeas coiss, sobre a Idgica da mistificagio © da desmistificacio da classe operiti) caPtruto tv 9 postos, a fazer mais propriamente do que feitos — feitos para serem feitos —, sio feitos para aqueles que sio € se senter feitos para fazerem 0 seu posto, que nao se sentem feitos para 08 postos ja feitos ¢ que, entre as velhas alternativas, escolhem contra 0 jf feito © por o que se faz, contra o fechado e pelo aberto*#. A definicio destes postos mal definidos, mal deli- mitados, mal garantidos, reside, paradoxalmente, na liberdade que consentem aos seus ocupantes de os definir e de os deli- mitar introduzindo-Ihes os seus limites, a sua definigio, toda a necessidade incorporada que é constiutiva do seu habitus. Estes Postos serio 0 que sio os seus ocupantes ou, pelo menos, aqueles que, nas lutas internas da «profissio» e nas confronta- ‘GBes com as profissdes afins € concorrentes, consigam impor a definicio da profissio mais favorével aquilo que eles so. Isto no depende somente deles ou dos seus concorrentes, quer dizer, da relacdo de forgas no interior do campo em que se situam, mas também do estado da relagio de forcas entte as classes que, fora de qualquer estratégia consciente de «recupera- cdo», decidir acerca do sucesso social partilhado pelos diferentes bens ou servicos produzidos na luta e pela luta com 0s concor- rentes imediatos ¢ da investidura institucional concedida aqueles que os produzem. E a institucionalizacio das divisdes «espon- ‘neas» — que se opera pouco a pouco, a prova dos factos, quer dizer, das sancies (positivas ou negativas) de toda a espécie de sestes postoss até eaberto» a tradugio esté feta, quase exacta- mente, @ era — sublinhads notio (N.T.) 2 Temos sempre uma filosofia espontines da hist6ra; ¢ filosofia da histéria da sua histéria, quer dizer, da sua posicio e da sua trajectéria oo fespaco social. Esta espécie de wintuicio central», que permite que nos sitaemos em relacio as grandes alteenativas ateSricas» ou ~polcicas» do momento (determinismo/liberdade; «estruturalismor espontaneismo; PClesquerdismo, etc.), e em que se exprime muito directamente a relagio ‘com o mundo social, esté na origem da visio do mundo social e das tomadas de posicio politica, como também das opgdes aparentemente mais elemen- ares ¢ mais inocentes da peitica cientfica. (A cientificidade da ciéacia social mede-se pela sua capacidade de constituit ettas aleemativss como objecto e de apreender as decerminantes sociais das opgdes que se determi- ‘nam em relagio a elas. E uma das dificuldades da escrta advém, no caso das cigncias socias, de que ela deve center iudir e detmentie de antemio as leituras que apliquem 2 wnilise as yeelhas que ela se esforga por objectivan), 92 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA que a ordem social inflige aos empreendimentos (subvengdes, encomendas, nomeagies, titularizagdes, etc.) — conduz ao que se revelaré posteriormente como uma nova divisio do trabalho de dominagio, mas cujos designios nao poderiam ser concebi- dos pelo mais consciente ou pelo mais inspirado dos tecnocra- tas, O mundo social esté assim povoado de instituigdes que ninguém concebeu nem quis, cujos «tesponsiveis» aparentes no s6 nao sabem dizer — nem mesmo mais tarde gracas & ® Seria se) pecino alsa nese igi toa x taafermgi das relages entre as faegoesdominantes © as fracgbes da classe dominante que fe operou em Franca desde bi vince anon, quer diver a reduglo progres, peo chia de diferentes factors, da antononia rates do camp foes Ena, redosio cup indoor mus sgnifativo €, wea divi, © ape tento de tm mwneo Devon, conelatvamente,o peso crescent (clo tmenos mumericamente) des intelecuais ligndos direcumentee, por ves, tdminiscativamente, «uma procura buroeritiea. © eleo principal de un Finuociamearo recto da pesquisa controle por funcioniriseopecalizadcs poderi sro de ter inbitoad os ivestigadoe a reconbcre orm for Ale dependéncindincta em rclagio a autoridaes © 4 exigeniasexrnar 20 proprio cimpo de producio. Este efeco 36. podia ser obtido com Camplicidade dos investigadores ou, nis eactamente, gras compli ade entre os investigadores (ou pelo meno, aqueles que, entre eles, nha mai irene noni esa el et terion 4 vingunea du tcnoraca da Gtcia caja opi (talaente Fandamentada) os secrores dominantes da burecacia predispunka a favorecer 2 insteuraglo, peace 0 discus cecnocreico, de um sdiscaro tecnoc or (como diz Jean-Clande Chamboredon). Para passar mais lém © romper om as ilosofias da historia que, ao siunrem o process hstrco muito alco {ou muito profundo), produsem oefeito de pi fora de jogo os agentes ¢08 eur despendicnentos insensveis frequentemente impercpeies, ia precio scaler so mesmo emp at modanpee esaturis (Come #8 Ge Erontecerum oo campo di excola superiors ema ceproducto das dvisbs no dso cle diane) ei don erm 0 Scumuleremse impereepivelmente, dio origem a um extado toulmenre ttovo do campo inccervrl e doe sues relopbes com 0 campo, do. podet cconémico e politico. Seria preciso analisar os delies insensveit que Conduriram, em menos de trata anos, de um estado do campo ineectval cau to mei ee cman gu to es Freo seae foarte a um etalo era que ert a hiqucSeese arena eels pl “leer Mars, para se chegar au extado em que tina palava da mod € de se ser diferente tudo, em pimelto Toga, ap mars, (Quant historias de vida nesta hiscia! Quanta necetidade nesta liherdals sucesivs) CAPITULO IV 93 ilusio retrospectiva, como se sinventou a férmulay, — como também se supreendem que elas possam existir como existem, to bem adaptadas a fins™ nunca formulados expressamente pelos seus fundadores, ‘Mas os efeitos da dialéctica entre as propensées inscritas nos habitus © nas exigéncias implicadas na definicéo do posto nao so menores, embora sejam menos apareates, nos sectores mais regulados ¢ rigidos da estrutura social, como as profissdes mais antigas e as mais codificadas da fungao publica. E assim que algumas das caracteristicas mais marcadas da conduta dos pequenos funcionérios, quer se trate da tendéncia para o formalismo, feiticismo da pontualidade ou da rigidez em relacéo a0 regulamento, ao invés de ser produto mecinico da organizacao burocritica, sio a manifestacio, na légica de uma situacéo particularmente favordvel & sua paitagen ao acto, de um sistema de atitudes que se manifesta também fora da situagio burocratica © que bastaria para predispor os membros da pequena burguesia as vireudes exigidas pela ordem burocratica € enaltecidas pela ideologia do «servico piblico», probidade, miniicia, rigorismo e propensio para a indignacio moral”, Esta hipétese encontrou uma espécie de verificacio experimen- tal nas transformacdes surgidas, desde ha alguns anos, em diferentes servicos piblicos, e em particular nos Correios, Jigadas ao aparecimento, entre os jovens funcionarios subalter. nos — vitimas de uma desqualificagio estrutural —, de acitudes menos conformes 3s expectativas da instituigéo”*. $6 se pode, pois, compreender o funcionamento das instituicdes burocriticas se se ultrapassar a oposicio ficticia entre uma visio sestruturalista», por um lado, que tende a procurar nas carac- teristicas morfologicas ¢ estruturais 0 fundamento das «leis de bronze» das burocracias, consideradas como mecanismos capa- * £ 0 que mostra bem, por exemplo, Jean Tavarés a sua anise (a publica da génese edo fencionamento do «Centre catholique dt inte lectus fangase °* CE. P. Bourdieu c J.C. Passeron, La reproduction, élements pour une tioned orton denuigmoet, Pass, Minuit, 1970, pe 227 “Ct B. Boutdiew, Lor divintin, critique silt te gent, Pats, Minuit, 1979, pp. 159163 94 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA zes de estabelecer os seus proprios fins ¢ de os impor aos agentes ¢, por outro lado, uma viséo «interaccionistar ou psico-sociolégica, que tende a considerar as priticas burocréti- cas como produto das escratégias e das ineraccdes dos agentes, ignorando tanto as condigdes sociais de producéo dos agentes (dentro da instituicéo mas também fora dela) como as condi- Ges institucionais do exercicio da sua fungio (como as formas de controle sobre o recrutamento, a promogio ou a renumera- 0). E verdade que a especificidade dos campos burocriticos como espagos relativamente auténomos de posicdes institucio- nalizadas, reside na capacidade, que constitui essas. posigdes (definidas na sua categoria, na sua alcada, etc.), de conseguir que 0s seus ocupantes produzam todas as priticas inscritas na definigao do posto, através do efeito directo ¢ visivel — logo geralmente associado ideia de burocracia — dos regulamen- tos, das directivas, das circulares, etc., ¢, sobretudo, por intermédio do conjunto de mecanismos de vocacio-cooptacio que contribuem para ajustar os agentes 20 seu posto ou, mais precisamente, as suas atitudes as suas posicdes; e, em seguida, de conseguir que a essas priticas, © somente a essas, seja reconhecida uma certa autoridade estatutéria, Mas, mesmo neste caso, é to errado tentar compreender as priticas partir da logica imanente do espaco das posicdes.(definidas, em dado momento, quer dizer no termo de uma certa histéria, no seu ‘niimero, no seu estatuto juridico, etc.), como tentar explicé-las unicamente a partir das atitudes «psico-sociolégicas» dos agen- tes, sobretudo separadas das suas condigées de produgio. Na realidade, erata-se aqui ainda de um caso particular de encon- tro, mais ou menos «bem sucedido», entre a5 posicdes € as atitudes, quer dizer, entre a histéria objectivada ¢ a histéria incorporada: a tendéncia do campo burocritico para «degene- rat» em instituicio «totalititiar, que exige a identificacéo completa e mecinica (perinde ac cadaver) do «funcionétio» com a fungio, do apparatchik com o aparelho, néo esta ligada de maneira mecanica aos efeitos morfoldgicos que a dimensio e 0 nimero podem exercer sobre as estruturas (através, por exem- plo, dos constrangimentos impostos & comunicagio) ¢ sobre as fungdes; ela s6 se poders realizar se contar com a colaboragio CAPITULO IV 95 consciente de certos agentes ou com a cumplicidade inconsci te das suas atitudes — o que deixa um lugar para a eficicia libercadora da tomada de consciéncia. Quanto mais nos afasta- mos do fancionamento normal dos campos como campos de utas para passar a estados-limites, sem duivida nunca atingi- dos, nos quais, com o desaparecimento de toda a luta e de toda a resisténcia a dominacéo, 0 campo se torna rigido, reduzindo- -se a uma «instituicio totalitéria» no sentido de Goffman ou, tem sentido rigoroso, a um aparelbo, que esta a altura de tudo exigir sem condigdes nem concessdes € que, nas suas formas extremas — quartel, prisio ou campo de concentracio —, dispée dos meios para aniquilar simbolicamente ¢ praticamente © «velho homem», tanto mais @ instituicio tende a consagrar agentes que tudo dio & instituigio (ao «Partido» ou a «lgrejan, por exemplo) e que realizam esta oblacdo de maneira tanto mais facil quanto menos capital possuirem fore da instituicéo, logo, quanto menos liberdade tiverem em telacio a ela ¢ em relagio a0 capital e aos ganhos especificos que ela oferece””. O apparatcbik, que tudo deve ao aparelho, € 0 aparelho feito homem € podem-se-lhe confiar as mais altas responsabilidades pois ele nada pode fazer em prol dos seus interesses que contribua ¢ ipso para defender os interesses do aparelho; tal como 0 oblato, ele est predisposto a proteger a institui¢éo, com a mais firme convicgio, dos desvios heréticos daqueles a quem um capital adquirido fora da instituigéo autoriza ¢ impele a distanciarem- -se das crencas ¢ das hierarquias internas”*. Em suma, nos © CE. J. Verdés-Leroux, «L'art de parti; le parti communiste francais lec ses peintres (1947-1954)», Actes de la recherche en sciences sociales, 1979, ‘8.9 28, pp. 33-35, € os seus trabalhos (a publicar) sobre as relages entre 0 Partido Comunista ¢ os «seus» inteleccuas. [CE., por exemplo, «Une institution torale auto-perpécuée: le parti communiste francaise «Les invariants du parti communiste francais, ‘Actes de la recherche en scewes suciales, 1981, 0° 3637, pp. 33-81] 2 As comadas de posigio dos diferentes partidos e & sua evolugio no decurso do tempo compreendem-se tanto melhor, « partir unicamente da histéria interna do corpo dos membros permanentes € da lei que tende a subordinar 0 éxito no aparelho & conformidade com a légica do aparelho, ‘quant, mais importance for — como no caso do Partido Comunista Francés sctuulmente — a parte das mandantes inertes e inoperantes por estarem 96 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA casos mais favoriveis a uma descricio mecanicista das pritic 4 andlise descobre uma espécie de ajustamento inconsciente das Posies ¢ das atitudes, verdadero principio do fancionamento fa instituicéo justamente naquilo que the confere a aparéncia trigica de miquina infernal fre # apa epee 2 8 cigs de rabaho mais linens, mais yugaantes, mais préximas do trabalho forcado, si0 ainda apreendidas, assumidas e suportadas por eae oe pereebe, as aprecia, as ordena, as acomoda e se Ihes acomode em fungio de toda a sua histéria propria e até mesmo da da sus descendéncia. Se a descrigio das condigées de trabalho mais alienantes € dos crabalhadores mais alienados son frequente, mente a falso — e, antes de mais, porque ela nlo permite que se compreenda que as coisas sejam ¢ continuem a ser 0 que sto — € porque, funcionando na légica da quimera, ela nio consegue explicar 0 acordo ticito estabelecido entre as condi. ses de trabalho mais desumanas e os homens que estio preparados para as aceitar por terem condigées de existéncia desumanas ‘As atudes inculeada pela experincia inca do mundo social, a qual, em certas conjunturas spor iogeutpembiuadecenve atcierra ete pes ° entrada no mundo do trabalho, identificado com o mundo dos adultos, sio reforcadas pela propria experiéacia do trabalho ¢ por todas as etansformacées das aticudes que ela implica (e nas quais se pode pensar por analogia com as que Goffman descreve como constitutivas do processo de sasilizagio»): seria preciso evocar aqui todo 0 processo de investimento que leva os trabalhe. dores a contribuirem para a sua propria exploragio pelo prs. prio esforco que fazem para se apropriarem do seu trabalho © concdenados fides implica e &esceg des pripio, ou stances, oriros (f. P. Bourdieu, oct. p. 500 ss a smacra senate mesmo tempo real e auscate, € 4 gas de um sobrcramo> quc és aine om que sonbam — sobretudo no seu uso conta entica elu oe ‘membros permancats de origem opera ou peque burgess, bo le tuais que, segundo a le fndamental,propendern tno masa putipr com Gln eo de etiam ano mea 0 cal a spe, encontrado, a0 mesmo fempe, mes gan oben subpetivs ne repreio dor necis mats innubt t aromas CAPITULO IV ” das suas condicdes de trabalho e que os faz apegarem-se a0 seu oficio (em todos os sentidos do termo) por intermédio das proprias liberdades (infimas muitas vezes e quase sempre «funcionais») que Ihes sio concedidas ¢, também, claro, sob 0 efeito da concorréncia que se gera nas diferencas (em relagio aos OS®, aos emigrantes, as mulheres, etc.) constitutivas do espaco profissional que funciona como campo, Com efeito, exceptuando as situacdes-limites, proximas do trabalho forcado, vemos que a verdade objectiva do trabalho assalariado, quer dizer, a explora- Gio, se corna possivel, em parte, porque a verdade subjectiva do ‘trabalho nio coincide com a sua verdade objectiva. A propria indignagio que ela suscita ¢ testemunha disso, ja que @ experiéncia profissional, na qual 0 trabalhador s6 espera do seu trabalho (e do seu meio de trabalho) o salério, é vivida como mutilada, parolégica e insustentivel porque € desumana”. © acto de forca objectivante necessério para constituir 0 trabalho assalariado na sua verdade objectiva de trabalho explo- rado, fez esquecer Aquele que 0 cometia que esta verdade teve de ser conquistada contra a verdade subjectiva do trabalho a ‘qual s6.no limite se encontra com a verdade objectiva. E este limite que 0 préprio Marx evoca quando observa que 0 desapa- recimento das disparidades encre as taxas de lucto supoe a mobilidade da forca de trabalho, a qual por seu lado supée, entre outras coisas, «a indiferenca do operirio em relacio 20 contetido (Inbalt) do seu trabalho; a reducio, levada aos extre- mos, do trabalho a trabalho simples, em todos 0s dominios da produgi0; 0 abandono, por parte de todos os trabalhadores, de todos os preconcetos de vocacao profissional»”®, O que deste modo se lembra, € que existe um investimento no préprio trabalho que faz com que 0 trabalho proporcione um ganho especifico, irredutivel ao lucro monetitio: este «ganho» do trabalho, que constitui em parte o «interesse» pelo facto de trabalhar e que é, * OS = operitio especializado ©, Bourdiew e al,, Travail of travailleurs en Algérie, ParisLa Haye, Mouton & Cie. 1963; € P. Bourdieu, Algérie 60, Paris, Minuit, 1977 "Karl Mara, Le Gapital, UL, 2 seegio, cap. X, Paris, Gallimard 1968 (Bibl, de la Pléiade), tome’ I, p. 988, 98 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA Por ourra parte, efeito da ilusio constitutiva da participagio ‘um campo, contribui para tornar o trabalho aceitivel para o trabalhador apesar da exploracio; ele contribui até, em certos casos, para uma forma de auto-exploracio. Este investimento nna propria actividade, que faz com que esta possa (no caso do artista ou do intelectual, por exemplo) ser vivida como livre € desinteressada em referencia a uma definicio restrita do interes- se, identificada com 0 ganho material, com o salirio, supde de facto um acordo ticito infraconsciente entre as atitudes © a posicéo. Este ajustamento pratico”', condicio do investimento, do interesse (por oposicdo a indiferenca) pela actividade exigida pelo posto, acha-se, por exemplo, realizado quando atitudes como aquelas a que Marx chama «os preconceitos de vocacio Profissional» e que se adquirem em certas condigées (a heredi- tariedade profissional, por exemplo), encontram as condicdes da sua actualizacéo em certas caracteristicas do préprio traba- tho, como uma certa liberdade de jogar com a organizagio das tarefas ou certas formas de concorréncia no espaco do trabalho (prémios ou simples privilégios simbélicos, tais como os que so atribuidos aos operirios mais velhos nas pequenas empresas familiares)”, As diferencas nas atitudes, tal como as diferencas de posicio (3s quais elas se acham frequentemente associadas) estao na origem de diferencas de percepgio ¢ de apreciacdo ¢, por isso, de divisées bem reais”. E assim que a evolugio recente * Esta correspondéncia entte as atitudes © a posigéo nada tem, evidentemente, da subsmissio «psicoligica», por vezes descita como =frui- ‘Glow (adesfeurar do fascismo») que permite imputar 20s dominados a sresponsabilidade> da opressio que eles sofrem (+o pacer vem de baixo»). A lopica da mobilizagio a qual leva privilegiar aquilo que une ema detrimento daquilo que divide nao explica completamente a tendéncia das lorganizagées de erabalhadores para ignorae as diferengasligadas i erajecsria, E toda a Logica da politizaiio como esforco para =desprivatizate a experiencia dda exploracio e também a habituacio a um mado de pensamento mecenicita que levam as anilises mais subtis e mais rigorosas das condigies de trabalho (Cf., por exemplo, CFDT, Les digits du props, Pacis, Ed. du Seuil, 1977) a reduzitem 0 crabalhador a0 seu posto de trabalho, ignorando tudo 0 que cle deve ao seu passado € tudo o que ele é fora da sua existencia profisional % «Como pode um OP de manutencio, que pensa no seu tribal « que, por vezes, gosta dele, censurar o crabalho capitalisca pelax mestis CAPITULO IV 99 do trabalho industrial no sentido limite indicado por Marx, isto é, no sentido do desaparecimento do trabalho «interessan- te», da «tesponsabilidade» © da «qualificagio» (com todas as hierarquias correlativas) é percebida, apreciada e aceite de modo muito diferente, consoante se trate daqueles que, pela sua antiguidade na classe operitia, pela sua qualificacio © os seus «privilégios» relativos, sio levados a defender «as conquis- tas», quer dizer, 0 interesse pelo trabalho, a qualificagéo mas também as hierarquias e, deste modo, uma forma de ordem estabelecida; ou daqueles que, nada tendo a perder por néo serem qualificados € jé estarem préximos de uma realizagéo popular da quimera populista (como os jovens que passaram ‘mais tempo no sistema escolar do que os mais velhos), sio mais dados a radicalizacdo das Iutas e a contestagio de todo 0 sistema; ou ainda daqueles que, também eles totalmente des- provides — como os operirios de primeira geragio, as mulhe- res e, sobretudo, os imigrantes™* —, tém uma capacidade de tolerincia a exploragio que parece ser de outra época"®. Em suma, nas mais extremas condigées de constrangimento, as coisas que wim operiiopreo & sia cada de producto durance dex ano? Fyono entano, 0 OP também se revolt» (N. Dubwst, op. hs P. 69) “Rinda este cso, em seas diferentes sepuro. asa origem cogrficae sca © 0 tempo de tngeagio (fA Sof =Les toh “Ig de Timmigrtion algeenne em Eracers in Ace le reer on oes vane, 1917, 0° 13, Pp. 39-79). * As dives apices ete o sndicatosencobrm requentemente aqucas divises com que se debater ov diferentes sine © que sirigenes apreendem etm de one ferent em fang da sun prope Istria sobretado em fungi da eadigio ma sum organiago. Nh divide de que « percepsio a aprecigio dav diferentes faces do se opera e, em particular, do proerarae edo subproleariao — da sea psivelcontbuigan pre # aio reveconsiadependem esetamente da onic c da erajcria scat caguces que ntelecaisou ilitante, tem te rome posiiorlacvamene sees problemas, «da afiaade que les tim com a case opera sxableidase corn ns sat reivincagies ou com 4 ‘lane operiia sintvel» com © sae revoles; de mado Gue ov debater Sobre o wemburgaetmento> da clase opriria¢ outa quests de Hota citi evelam mai scera daqucles que nels se enelvem do que seen tio objeco aparence do seu discus (cP. Bourdieu, sLe parson da Silage, Slot ae, Xl Ail de 1999, pp. 8599). 100 HISTORIA REIFICADA E INCORPORADA mais favordveis aparentemente & interpretagio mecanicista que reduz 0 trabalhador ao seu posto de trabalho, que o deduz directamente do seu posto de trabalho, a actividade é bem o relationar de duas histérias, ¢ 0 presente 0 encontto de dois passados"* Wesen ist was gewesen ist. Podemos compreender que 0 ser social é aquilo que foi; mas também que aquilo que uma vez foi ficou para sempre inscrito nko $6 na historia, o que é dbvio, mas também no ser social, nas coisas e nos corpos. A imagem do porvir aberto, com possiveis infinitos, dissimulou que cada uma das novas opgdes (mesmo tratando-se das opgdes nao-feitas do deixar-fazer) coneribui para restringir 0 universo dos possi- veis ou, mais exactamente, para aumentar o peso da necessida- de instituida nas coisas € nos corpos, com a qual deverd contar uma politica orientada para outros possiveis e, em particular, para todos aqueles que foram, a cada momento, afastados. O ‘L proceso de instituigéo, de estabelecimento, quer dizer, a 4} objectivasio e a incorporacio como acumulagio nas coisas € n0s | corpos de um conjunto de conquistas histéricas, que trazem a | marca das suas condigdes de producdo e que tendem a gerar as | condigées da sua propria reprodugio (quanto mais nao fosse pelo efeito de demonstracio e de imposicao das necessidades 2 | que um bem exerce unicamente pela sua existéncia), aniquila | continuamente posstveis laterais. A medida que a historia | avanca, estes possiveis tornam-se cada vez mais improvaveis, mais dificeis de realizar, porque a sua passagem & existéncia 2 Poder-se-ia, da mesma forma, descrever nesta logica a relagio encre 10s operirios e as orgenizagies sindicais ou politicas: também aqui o presente c € 0 porem-presenca de dois passudos que sio, eles proprios, em parte, produto da sua interacclo pastada (é assim que, por exemplo, quando se imede empiricamente a conscigncia que os operirios de uma dada sociedade ppodem tet, em dado momento, da divisio em classes ou da representacio ‘que tém do trabalho, dos seus dieeitos — em matéria de acidentes de trabalho, de despedimentos, etc. — se regisca 0 efeivo da acgio passada dos sindicatos e dos partidos e se pode pensar que uma histéria diferente ceria produzido representagdes ¢ — num dominio em que a representagio ontribui largamente para constituir a realidade — realidades diferentes) PPor outras palavras, a representacio que eles tém da sua posigio depende da reagent a radix gure renin (sae ve ofrec = CAPITULO IV 1 suporia a destruicéo, @ neutralizagio ou a reconversio de uma arte maior ou menor da heranca hist6rica — que ¢ também um capital —, e mesmo mais dificeis de pensar, porque os esquemas de pensamento ¢ de percepcao sio, em cada momen- (0, produto das opcées anteriores transformadas em coisas”, Qualquer accéo que tenha em vista opor o possivel ao provivel, isto é, ao porvir objectivamente inscrito na ordem estabelecida, tem de contar com o peso da histéria reificada e incorporada que, como num processo de envelhecimento, tende a reduzir 0 possivel ao provavel Nio ha diivida que é preciso ter sempre presente — contra todas as formas de determinismo eecnologice que as poten cialidades oferecidas pela légica relativamente auténoma do desenvolvimento cientifico s6 podem advir a existéncia social enquanto técnicas — € intervir, se for caso disso, como motores da mudanga econdmica e social na medida em que os seus efeitos econémicos © sociais parecerem conformes aos interesses dos detentores do poder econémico, quer dizer, apropriados a contribuirem para a valorizagio maxima do capital nos limites da reprodugio das condigdes sociais da dominacao necessiria & obtengio dos ganhos*. Mas nio deixa 2” Assim, as irrupcoes, através das revoltasestudantis, de novas formas de luta, attibuindo maior relevo as manifestagbes simbolices, fer aparecet ferospecivament os fimites (at ets) que © movimento ope, de algum modo prisioneiro da sua confianga em formas de acco experimenta- das, nha imposto aos seus projects. Devemos abster-nos, mais uma ver, de ler este processo numa ogica puramente teleoldgica, como faz certa critica ingénua ¢ falssmence radical da cigacia: a ciéncia nao serviria tio bem a industria (e até, sendo «as0 disso, a industeia de guerra) se todos os investigadores (e sobretudo aqueles que, pela sua force competéncia, quer dizer, pelo seu capical cespecifico, sio levados 2 uma grande distancia em relagio as pressoes externas) estivessem directamente orientados para os fins que as suas descobertas poderio vir a servir (de mesma forms, devemos absternos de sobrestimar, como faz a visio cripcocrtica, a capacidade dos drigentes para avaliarem racionalmente os efeitos econémicos e sobrecudo soviais das invengdes bem recebidas). Os investigadores ndo conhecem nem reconhecem fins a mio ser os smerses (vivides como desinteressados ¢ implicando, frequentemente, a indiferengu em relagio as utilizagbes técnicas possivels) jque se geram na concorréncin 10 seio do campo telativamente auténomo da

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