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A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO a A) eed estudos estudos estudos Wy), —_s Z <= = PERSPECTIVA Ms S7/EL Titulo do original em alemao Die Entdeckung des Geistes Copyright © 1955 Claassen Verlag GmbH, Hamburgo Dados Internacionais de Catalogagdo na Publicagéio (CIP) {Camara Brasileira do Livro) Snell, Bruno, 1896-1986 A Cultura Gregae as Origens do Pensamento Europeu / Bruno Snell ; firaducdo Pérola de Carvalho], -- So Paulo : Perspeetiva, 2005, -- (Estudos ; 168) Titulo original; Die Entdeckung des Geistes. I reimpressio da |* edigdo de 2001 ISBN 85-273-0262-9 1. Cultura -Grécia 2, Filosofia antiga 3. Grécia - Religifo 4. Grécia - Vida intelectual 5. Literatura grega - Historia e critica 6. Pensamento 1. Titulo Il, Série 01-3484 CDD-306.420938 ee teal indices para catélogo sistemitico: |. Grécia Antiga ; Cultura ; Vida intelectual : Sociologia 306,420938 2. Grécia Antiga : Vida intelectual : Cultura: Sociologia 306.420938 I‘ edigio—1* reimpressio Direitos reservados em Iingua portuguesa A EDITORAPERSPECTIVAS. A, Av. Brigadeiro Luis Anténio, 3025 01401-000—-Sio Paulo - SP — Brasil Telefax (11) 3885-8388 wwweditoraperspectiva.com,br 2005 Ed. TOMBO BC/ AS TTY > PROC. do. f. 5%b. ea D PRECO 25 00 DATA 13 :-04.045 3 COD. TIT. Gobo ze 404505 Nota de Edicao Para respeitar as transcrigdes constantes do original ¢ facilitar 0 acesso imediato a elas, as palavras gregas foram devidamente trans- literadas para o portugués pelo revisor técnico da tradugiio, Luiz Alberto Machado Cabral, autor destas. NORMAS PARA A TRANSLITERACAO, DE TERMOS E TEXTOS GREGOS Letra Nome Prontinciaerasmiana —_‘Transliteragdo grega AO alfa a (longa ou breve) a: GotBeun: asébeia BB beta b b: Baémew: biépein Ty gama g & wyvooxu: gigndsko A6 delta d di Spéxwv: drdkon Ee €psilon e[breve, fechada(é)] —_e: etwAov; eiddlon Ze dzeta dz Z: Zebc: Zetis Ha eta e [longa, aberta (&)] & 80g: ethos eo teta th (inglés this) th: Ovpodc: thymds It iota i (onga ou breve) i: etv: idein K« capa k k: Kantor: kakia A lambda I |: Aetooenv: letéssein M, my m m: pévog: ménas * Og (gama) é sempre pronunciado como em guerra, mesmo diante dee, 1, t. Ex yryvdoxw: gui gndsko (conhecer). No entanto, diante de y, «, x, ele € transliterado e pro- nunciado como o nosso n. Ex.: dyyehog: dnguetos (mensageiro). x A CULTURA GREGA EAS ORIGENS DO PENSAMENTO... N,v ny n Nn: VOLO}: némisma ae csi x(semprecom x: Eévog: xéntos (csénos) som de cs) 0,0 émicron o[breve, fechada (6)]_ 0: SABtog: dfbios In pi p p: moaSeto: paideta Pp 6 r(comoem duro) rh inicial):p foc hana F: b@pov: daron Za, or sigma s (nunca com S: okANpSS: sklErds som de z) Tt tau t UT time Y, ee hipsilon ti longa ou breve) y: DBprg: hyibris u: vods: natis hae phi ft ph: price philia XxX khi ch (alemio machen) —_ kh: godpe: khaire wy psi ps ps: worn: syKhe Qa émega © [longa, aberta (6)] 0: @¢: hds ** Essa ditima forma do sigma (1) é empregada apenas quando ele se encontra no final de uma palavra. Bx.: A6yo¢: ldgos (palavra, discurso). Em posigao intervocdlica, a forma é sempre (6): podeo: modsa (pronuncia-se muga): musa © OY, v (hipsiton) pronuncia-se como o ti do alemio (ex. Miiller) es6 pode ser transliterado por y quando estiver em posigao voedlica. Ex. Bpt¢: hybris (ultraje), Sovaytic: dyinamis (Forga). Nos outros casos, deve ser transliterado pelo u: ebtdy: autin nots (mente, espirito). NOTA [-E preciso marcar a distingao entre as vogais longas /@ das breves correspondentes e/o, sem o que torna-se impossivel distingitir a diferenca entre palavras transliteradas como yépag: guéras (privilé- gio) e yhpas: guéras (velhice). Desta forma, na transliteragdo, devemos assinalar as vogais longas (n/w) pelo sinal ~: nd: Gs (aurora). NOTA 2 — Os ditongas sio formados pela adigao das semivogais 1 ¢u as outras vogais. NOTA 3 — Os espiritos sio sinais ortograficos colocados sobre toda vogal inicial das palavras e sobre o 0 (fpsilon) ¢ 0 p (r6) iniciais (sempre marcados pelo espirito rude ¢ transliterados por hy e rh). Hé 0 espirito doce ou brando (’), que niio tem influéncia alguma na prontincia, mar- cando apenas a auséncia de aspiragao, ¢ por isso nfio é leyado em conta na transliteragio: &peth: arefé (exccléncia, virtude); e 0 espirito rude ou Aspero ('), que marca a aspiragao ¢ é pronunciado como o h do inglés: iSovi}: Aédoné (prazer), Se uma palavra comeca por um ditongo, 0 espf- rito deve ser colocado sobre a scgunda vogal, seja ele rude ou brando. NOTA DE EDIGAO XI Ex.: oi8ag: aidds (sentimento de honra, vergonha); etptoxa: heuriské (encontrar por acaso, descobrir). NOTA 4 — Os sinais de acentuagdo sao colocados sobre cada pa- lavra para indicar a silaba acentuada. Ha trés acentos: 0 agudo (’ ), 0 grave (*) € o cireunflexo (~), sempre transliterado por (*). O acento agudo pode ser colocado sobre as trés tiltimas sflabas de uma palavra, 0 circunflexo (perisp6meno) somente sobre as duas tltimas € 0 acento grave apenas sobre a tiltima (quando a palavra seguinte for acentuada). O acento, assim como 0 espirito, € sempre colocado sobre a segunda letra dos ditongos e é desse modo que os termos gregos devem ser transliterados para o portugués: monde: paideia (educagao, instrugao, cultura do espfrito). NOTA 5 — Quanto aos sinais de pontuagdo, a virgula e 0 ponio gregos tém o mesmo valor que em portugués. No lugar dos nossos dois pontos ¢ do ponto ¢ virgula, os gregos empregavam um ponto alto (‘) eo ponto ¢ virgula cm um texto grego (;) corresponde ao nosso ponto de interrogagao. O ponto de exclamag&o nao cra conhecido, embora seja empregado em algumas edigdes. NOTA 6 — Algumas vezes 0 i (iota) € subscrito, isto é, € colocado embaixo da vogal que o precede. Ex.; &, 1,0, S40 por oa, M, @t. $6 se coloca o iota subscrito sob vogais longas mas ele nao é pronunciado (prondncia erasmiana). Quando a vogal precedente for maitiscula o iota nao é subscrito, mas adscrito (no entanto, continua nao sendo pronun- ciado nem acentuado): “Ai5ng: (Hades). Na transliteragao o iota € sem- pre adscrito ¢ 86 a indicagio de que a vogal final ¢ longa € que permitira a correta identificagao da palavra grega. Ex. para diferenciar gthou: philoi (amigos), de pip: phildi (a0 ami- g0). THLGg¢: timats (pelas honras, dativo instrumental), de T)H166: timais (tu honras, verbo). 1. O Homem na Concep¢ao de Homero Com Aristarco, o grande fildlogo alexandrino, estabeleceu-se um principio fundamental para a interpretagiio da lingua homérica: o de evitar traduzir os vocdbulos homéricos segundo o grego clAssico ¢ pro- ‘curar escapar, nessa interpretagao, da influéncia das formas mais tardias da lingua. Principio esse que se revelou de uma utilidade ainda maior do que previta Aristarco. Se interpretarmos Homero atendo-nos puramente a sua lingua, poderemos também dar uma interpretagdo mais viva e original de sua poesia e permitir que, entendidas no seu verdadeiro sig- nificado, as palavras homéricas recuperem © antigo esplendor. O fildlogo, a semelhanga do restaurador de um quadro antigo, poderd ainda hoje Tfemover em muitos pontos a escuta patina de poeira ¢ verniz ali deposita- da pelo tempo ¢ assim devolver as cores aqucla luminosidade que osten- tavam no momento da criagio. Quanto mais distanciamos o significado das palavras homéricas das da era classica, mais evidente se torna para nés a diversidade dos tempos ¢ mais claramente entendemos © progresso espiritual dos gregos ¢ sua obra. Mas a essas duas diregSes ~ a da interpretagaio estética, que busca a intensidade da expressio ¢ a beleza da lingua, e a hist6rica, que se interessa pela hist6ria do espfrito — uma ainda se acrescenta, especial, de cardter filoséfico. Na Grécia nasceram concepgGes relativas ao homem e ao seu pensa- mento claro e diligente que influfram de modo decisivo na evolugéo eu- ropéia dos séculos posteriores. Temos a tendéncia de considerar 0 que foi acrescentado no século V como valido para todos os tempos. Prova do quanto Homero esta longe disso é sua linguagem. Jé de hd muito se des- cobriu que numa lingua relativamente primitiva as formas de abstragao ainda nao estéo desenvolvidas, mas que em compensagio existe uma 2 ACULTURA GREGAE AS ORIGENS DO PENSAMENTO. abundancia de definigdes de coisas concretas, experimentaveis pelos sen- tidos que pareceriam estranhas numa lingua mais evoluida. Homero emprega, por exemplo, uma grande quantidade de verbos que descrevem 0 ato de ver: épév (horan), iSetv (idein), Aebooew (levissein), &@petv (athrein), Ce&oPat (theasthai), oKéntecOar (sképtesthai), dooea00. (Sssesthai), SevdiAAeLv (dendilein), dépKkeodat (dérkesthai), nontotvew (paptainein). Destes, varios cafram em desuso no grego subseqiiente, pelo menos na prosa, vale dizer na If ngua viva, por exemplo dépxecban, Aebocery, dooeoGat, mantoiverv', E para subs- titui-los encontramos apenas duas novas palavras depois de Homero BAémevvy (Blépein) c Gewpetv (theorein). Pelas palavras caidas em desuso. podemos ver quais as necessidades da lingua antiga que se tornaram estranhas 8 lingua mais recente. 6épxeoBo1 (dérkhesthai) significa: ter um determinado olhar. 3pé:ceav (drikon), a serpente cujo nome deriva de SépKeotan, € assim chamada porque tem um “olhar” particular, sinistro. E chamada de “vidente” nao porque veja melhor que as outras e sua vista funcione de modo especial, mas porque nela o que impressiona é 0 ato de olhar. Assim a palavra 6€pKeo@on indica, em Homero, nao tanto a fungao do olho quanto o lampejo do olhar, percebido por outra pessoa, Diz-se, por exemplo, que Gorgé tem um olhar terrivel, que 0 javali enfu- recido expele fogo pelos olhos (dp dp8oApotat Se6opKis). E uma ma- neira muito expressiva de olhar; ¢ a prova de que muitos trechos da poesia de Homero readquirem sua particular beleza somente quando nos damos conta do verdadeiro valor dessa palavra, nés a encontramos na Odisséia, V, 84-158; (Odisseu) noviov én’ dtpbyetov SepxécKeto Scxpvc AeiPov. Sépxeo8at significa “olhar com um olhar particular’, resultando do conjunto que se trata de um olhar cheio de saudade, que Odisseu, longe da patria, langa de além mar. Se quisermos traduzir em sua plenitude todo 0 significado da palavra depKéoxeto (e é mister tra- duzir também 0 valor do iterativo), cis que nos tornamos prolixos e sentimentais: “olhava sempre com saudade...”, ou entdo: “seu olhar per- dido vagava sempre” sobre o mar. Tudo isso est4 contido pouco mais ou menos numa tinica palavra ~ Sepxéoxeto, verbo que di uma imagem exata de um modo particular de olhar, como por exemplo, em alemio, as palavras glotzen (= arregalar os olhos) ou starren (= fixar) que determi- nam um particular modo de olhar (pelo menos de maneira diferente da costumeira). Também da dguia se pode dizer: d&0torov SépKetoa, “olha 1. A palavra conservou-se na Arcédia: Keboes 5p& € reportada como glosa Khettopiov no Diogenien-Exerpt (linha 26), editado por Kurt Latte in “Philol:”, 80, 1924, 136 ¢ ss. Latte apoia-se também no documento de Tegea (IG, V, 2, 16, 10,cf. XVI, 25), Poderiamos ainda citaras palavras abyStowar e Ade = BAER, mas clas sio dema- siado raras para que possamos dar-nos conta de seu exato significado (ef. Friedrich Bechtel, Lexilogus, 27 € 74), O HOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 3 com olhos muito penetrantes”, mas também aqui se faz referéncia nfo tanto a fungao dos olhos, na qual costumamos nds pensar ao dizer “olhar agudamente”, “fixar algo com um olhar agudo”, quanto aos raios do olho, penetrantes como 0s raios do sol, que Homero chama de “agudos”, visto que atravessam todas as coisas como arma afiada. dépxeodoa é em seguida usado também com 0 objeto externo, ¢ entéo o presente signi- fica aproximadamente “seu olhar pousa sobre um objeto” ¢ 0 aoristo, “seu olhar cai sobre algo”, “dirige-se para alguma coisa”, “ele langa a alguém um olhar”, o que se patenteia sobretudo nos compostos de Sepxeo@an. Na /lfada, XVI, 10, diz Aquiles a Patroclo: “tu choras como uma menininha que quer que a mae a pegue ao colo”, Saxpvdecon SE py momiGépKetoa, Gop’ d&véAnton. Chorando, ela “volta o olhar” para a mae para que esta a pegue ao colo. Nos, alemaes, podemos traduzir a contento esse significado com a palavra blicken. Blicken significava originariamente “irradiar”; a palavra tem afinidade com Blitz (= re- lampago), blaken. Mas 0 alemiio blicken tem um significado mais amplo do que a palavra grega Baémew, que, na prosa mais tardia, substitui a palavra S£pKecbo1. De qualquer modo, na expressio homérica SépKeoGon, nao se considera tanto 0 ver como fungo quanto como a faculdade parti- cular que tém os olhos de transmilir aos sentidos do homem certas impressdes. O mesmo vale também para outro dos verbos citados, caidos em de- suso na lingua subseqiiente. noutoivew (paptainein) é, ele também, um modo de olhar, de olhar em torno procurando alguma coisa com olhar circunspecto ou com apreensio. Também ele indica, portanto, como SépxecOo1, um modo de olhar; n&o se apdia na fungao do ver como tal, Caracteristico é 0 fato de que esses dois verbos (a excegao apenas de SépxeoGon, em echo de época mais tardia) jamais sio encontrados na primeira pessoa: SépxeoOo e moatortverv sao, portanto, atos que se obser- vam nos outros e ainda n&o se sentem como ato préprio. Jé com o verbo hetoow, o caso é diferente. Etimologicamente, tem afinidade com AeuKic, brilhante, cdndido, e, de fato, dos quatro exemplos da Ilfada nos quais 0 verbo tem objeto no acusativo, trés referem-se ao fogo e as armas luzentes. Ele, portanto, significa: olhar alguma coisa que brilha. Significa, ade- mais: “olhar ao longe”. A palavra tem, portanto, o mesmo valor do ver- bo alemao schauen (= olhar) no verso de Goethe: “Zum Sehen geboren, zun Schauen bestellt” (“Nasci para ver, olhar é minha tarefa’’). Eummodo de olhar com mirada altiva, alegre, livre. Aebooetw encontra-se com bas- tante freqiiéncia na primeira pessoa, distinguindo-se, por isso, de S€pxecbon e nomtaivev, “atos” de ver que se captam sobretudo nos outros. Aebooew (letissein) indica evidentemente determinados sentimentos que experimen- tamos no ver, sobretudo no ver determinadas coisas. Confirma-se isso tam- bém pelo fato de em Homero encontrarem-se expressdes como teprdpievor 4 ACULTURA GREGAE AS ORIGENS DO PENSAMENTO... hevooovow (Od., VII, 171), tetépneto Aetaouv (II., XIX, 19), xoripav otvexa... Aeboae (Od., WIL, 200), nas quais se expressa a alegria que acompanha o Aetaoeuw; nunca o verbo Aebacet € usado com referéncia a coisas aflitivas e assustadoras. Também essa palavra recebe, portanto, seu sentido especifico do modo de ver, de ver algo que esta além da fun- ao do ver e da énfase ao objetivo visto e aos sentimentos que acompa- nham o ver, O mesmo podemos dizer do quarto verbo relativo ao ato de ver € que caiu em desuso no perfodo pés-homérico: Socecbon (6ssesthai). Esse verbo significa ter alguma coisa diante dos olhos, mais particular- mente, ter algo de ameagador diante dos olhos; passamos, assim, ao sig- nificado de “pressentir”. Também aqui, 0 ver é determinado pelo objeto e pelo sentimento que 0 acompanha. Observamos que, em Homero, também outros verbos que significam “ver” recebem o significado auténtico da atitude que acompanha o ver, ou do momento afetivo, GeGo801 (thedsthai) significa, aproximadamente: ver escancarando a boca (como gaffen ou schauen, no alemao meridional; as- sim na frase: da schaust Du etc. = ficas ai olhando). E por fim os verbos Opa (hordn), iSetv (idein), Gyeobor (épsesthai), mais tarde reunidos num Gnico sistema de conjugagao, demonstram que antes nio se podia indicar com um sé verbo o ato de ver, mas que existiam varios que ocasionalmente designavam um modo particular de ver*. Até que ponto seja possivel deter- minar, também no que diz respeito a esses verbos de Homero, 0 significado Primitivo, nao é assunto que possamos resolver aqui, pois exigiria exposi- ¢G0 mais ampla. Uma palavra mais recente para “ver”, isto é, Gewpety (thedrein), nao era, na origem, um verbo, mas deriva de um substantivo, de @ew@pdc (theords), e deve, portanto, significar “ser espectador”, Mais tarde, po- rém, refere-se a uma forma do ver e significa entdo “ficar olhando”, “observar’. No se enfatiza, por conseguinte, neste caso, o modo de ver, @ sentimento que 0 acompanha, ¢ nem mesmo o fato de que se vé um determinado objeto (ainda que num primeiro momento talvez se tratas- se exatamente disso): em geral, com Gewpetv nao se indica um modo determinado ou afetivo de ver ¢ sim, uma intensificagéio da verdadeira eauténtica fungao do ver. Isto é, enfatiza-se a faculdade que tem 0 olho de captar um objeto, Esse novo verbo exprime, portanto, exatamente aquilo que nas formas primitivas ficara em segundo plano, mas que constitui o essencial. ‘Os verbos da época primitiva formam-se prevalentemente segundo os modos intuitivos do ver, ao passo que mais tarde é a verdadeira e auténtica fungao do ver que determina exclusivamente a formagio do verbo. As diferentes maneiras do ver séio, mais tarde, indicadas por meio de 2. Sobre esse ponto, cf. O. Seel, Festschrift Dornseiff, 302 e ss. O HOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 5 adjuntos adverbiais. naxtatve transformar-se-A em nepiBremopon, “olhar em torno” (Etymol. Magnum) etc, Naturalmente, também para os homens homéricos os olhos serviam essencialmente para “ver”, isto ¢, para captar percepgGes dpticas; mas 0 que nés acertadamente concebemos como a verdadeira fun¢io, como a parte. ‘‘positiva™ do ver, nao era para eles o essencial; mais que isso: se nao tinham um verbo para exprimir essa fungdo significa que dela nem sequer tinham conhecimento, Afastemo-nos por um momento dessas consideragGes para nos per- guntarmos que palavra usava Homero para indicar 0 corpo e a alma. J4 Aristarco observava que a palavra o@.c. (soma), que mais tarde significara “corpo”, jamais se refere, em Homero, aos viventes’: 6@j10. significa “cadaver”. Mas que palavra usa Homero para indicar 0 corpo? Aristarco’ achava que Séog (démas) seria, para Homero, 0 corpo vivo. Mas isso s6 vale para certos casos. Por exemplo, a frase “seu corpo era pequeno” estd assim redigida em Homero: puxpos fv Sépac; e a frase “seu corpo assemelhava-se ao de um deus” é expressa deste modo: d&g ABavdroroww d010¢ fv. Todavia, S406 ¢ um paupérrimo substituto da palavra “corpo”: encontra-se apenas no acusativo de relagio. Significa “de figura”, “de estrutura”, limitando-se, por isso, a poucas expressdes ‘como ser pequeno ou grande, parecer-se com alguém, ¢ assim por diante. Nisto, porém, Aristarco tem razdo: entre as palavras que encontramos em Homero a que, mais que todas, corresponde a forma mais tardia oGpa ¢ a palavra 5éjtac, Mas Homero também tem outras palavras para indicar 0 que chamamos de corpo ¢ que os gregos do século V designam com o@0. Se dizemos: “Seu corpo enfraqueceu”, isso equivale, traduzido em lingua homérica, a A€AvVtTO yoio; OU entéo “todo o seu corpo tremia”: yuto, tpowéovtar; ¢ ainda: a nossa expressdo “o suor trans- pirava do corpo” corresponde em Homero: tépwc x pergwv Eppeev. A frase “seu corpo encheu-se de forga” é assim expressa por Homero: TAfjodev & Gpo. ot were’ Evtdc GAKTc. E aqui temos um plural, ao passo que, segundo os nossos conceitos lingiisticos, seria de esperar um singular. Ao inyés de “corpo”, fala-se de “membros”; y vio (giifa) si0 os membros enquanto movidos pelas articulagées*, j4 wera. (mélea), os membros enquanto recebem forga dos mtisculos. Além disso, existem em Homero, sempre dentro dessa linha, as palavras éyeo. (hdpsea) e peGeo (rhéthea). Mas podemos aqui pé-las de lado; Gwea encontra-se apenas duas vezes na Odisséia em lugar de yuta; 3. Karl Lehts, Aristaich, 3° d., 86, 106. 4, Idem. 86 @ $8.1 Plut, Poes. Hom.,€. 124. 5. Aristarco entende por yuTet os bragos e as pernas (K. Lehrs, Avistarch, 119) 6 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO... éGec é, de resto interpretado erroneamente nesse significado, como se poderd ver em seguida. Prosseguindo no jogo de transportar nao a lingua de Homero para a nossa, mas a nossa lingua para a homérica, descobrimos outros modos de traduzir a palavra “corpo”. Como devemos traduzir “ele lavou o proprio corpo"? Homero diz: ypda. viteto. Ou entio, como diz Homero, “‘a espada penetrou em seu corpo”? Aqui Homero usa ainda a palavra xpég (khrés): Eiog xpodg StijA0e. Nas referéncias a essas passagens. Acreditou-se que XP significasse “corpo” e nao “pele”. Mas néo ha dtivida de que xpis, na verdade, seja a pele; nfio, natural- mente, a pele no sentido anatémico, a pele que se pode destacar e que seria 0 S€ppicr (dérma), e sim a pele como superficie do corpo, como invélucro, como portadora da cor, e assim por diante. Na realidade, xpiog assume numa série de frases, ainda mais decisivamente, 0 significado de “corpo”: Tepi xpoi Sdoeto YuAKOv, isto 6, “ele cingiu em torno ao bustoacouraca”’ (literalmente, em tomo a pele). Parece-nos estranho que nao haja existido uma palavra que expri- misse 0 significado de corpo como tal. Das frases citadas que podiam ser empregadas naquele tempo para corpo em lugar da expresso mais tar- dia c@pa (s6ma), somente os plurais yute (ptita), péAex (mélea) etc, permanecem indicando a corporeidade do corpo, visto que xpwg € ape- nas 0 limite do corpo ¢ 5€jrag (démas) significa estatura, corporatura, e 86 0 encontramos no acusativo de relagiio, A prova de que, nessa época, © corpo substancial do homem foi concebido nao como unidade mas como pluralidade aparece até mesmo no modo como a arte grega arcai- ca delineia a figura do homem. 8, Fig. 1 Fig.2 6. Essa parece ser uma antiga interpretagho de Homero. De fato, ao que parece, j4 Pindaro, quando menino aprendia na escola que xp%g correspond, em muitos lugares, a duet. Quando (Pind. 1, $5) diz de Filotetes: &e¥evet 2v xpari Boi vow, “aqueles que se ia com sua débil pele”, jé tem a nogio do “corpo vivo”, e também conhecera, portanto, a palavra correspondente odie, mas evita-se (nfo sé aqui como em outros trechos), por no estar consagrada péla diego poética. Se uma interpretagao tardia de Homero diz que xpd, em Homero, é sempre a “pele”, ¢ jamais o "corpo" (K. Lehrs, Quaest. ep., 1837, p. 1935, isso significa que a palavra fora anteriormente interpretada como “corpo". Mesmo 0 fato de que Pindaro use (Nem, 7, 73) yviov no singular demonstra que ele ja possufa a concep- gio de “corpo”. Tambérn essa é uta substituictio postica de oGji. OHOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 7 S6 a arte classica do século V iré representar 0 corpo como um complexo organico, unitario, no qual as diversas partes estao relaciona- das umas com as outras. Anteriormente, 0 corpo era de fato construido juntando-se as partes isoladas, como foi Gerhard Krahmer o primeiro a demonstrar’. A figura desenhada do corpo humano ao tempo dos poe- mas homéricos difere, porém, notavelmente, da que nos é dada, por exemplo, pelos desenhos primitivos das nossas criangas, embora tam- bém elas outra coisa nado fagam além de juntar membros isolados. Em nosso pais, as criangas, quando querem desenhar um homem, geralmen- te orepresentam como a Figura |. JA nos vasos gregos da fase geométrica, o homem € representado como na Figura 2. Nossas criangas poem no centro, como parte principal, o tronco, ea ele acrescentam a cabega, os bracos e as periias. As figuras da fase geo- métrica, ao contrdrio, falta exatamente essa parte principal; isto é, elas sio autenticamente péAeo. Koi yoio (mélea kai giifa), membros com misculos fortes, distintos uns dos outros por juntas fortemente acentua- das. Nao ha dtivida de que, nessa diferenga, também 0 ornato desempe- nha seu papel, mas importancia ainda maior tem aqui aquela particular maneira de ver as coisas de forma “articulada”’, prépria dos gregos da primeira era. Para cles, os membros distinguem-se muito claramente uns dos outros, as articulagdes sfio acentuadas em sua particular sutileza que se contrapée & exagerada grossura das partes carnosas. O desenho grego primitivo capta a mobilidade do corpo humano, o desenho infan- tl representa sua compacidade. O fato de que os gregos dos primeiros séculos no concebem 0 corpo como unidade, nem na lingua nem nas artes pldsticas, confirma o que nos haviam demonstrado os diversos verbos de “ver”. Os verbos primitivos captam essa atividade nas suas formas evidentes, através dos gestos ou dos sentimentos que a acompa- nham, ao passo que na lingua mais tardia é a verdadeira e auténtica fungao dessa atividade que é colocada no centro do significado da pa- lavra, E claro que a tendéncia da lingua é a de aproximar-se cada vez is do contetido; 0 préprio contetido, porém, € uma fun¢do que nao est4 ligada, nem em suas formas exteriores nem como tal, a determina- dos e bem definidos movimentos do animo. Mas a partir do momento em que essa fungio é reconhecida e Ihe é dado um nome, ela adquire existéncia, e a consciéncia de sua existéncia rapidamente se torna pro- priedade comum. No tocante ao corpo, as coisas provavelmente se de- senvolvem da seguinte maneira: quando o homem dos tempos primi- tivos quer indicar uma pessoa que a ele se apresenta, basta que pronun- cie o nome dela, que diga: este é Aquiles, ou ent&o: este é um homem. ‘Quando se quer fazer uma descrigo mais precisa, indica-se, antes de 7. Figur und Raum in der agyptischen und grieshisch-arhaischen Kunst, 28. Hallisches Winckel manns programm, Halle 1931. CF. mais adiante, p. 91. 8 ACULTURA GREGAE AS ORIGENS DO PENSAMENTO.. tudo, aquilo que impressione aos olhos, a saber, os membros; sé mais tarde é que a relagaio funcional desses membros passa a ser teconhecida como essencial. Mesmo nesse caso, porém, a fungao é algo de real, mas essa realidade nao se revela de modo tao claro e, ao que parece, nao é coisa que se sinta em primeiro lugar, nem mesmo pela propria pessoa. Uma vez descoberta, porém, essa unidade, até entio nao revelada, im- poe-se de forma imediata. Esse elemento real existe para 0 homem somente enquanto é “vis- to”, e sua existéncia reconhecida enquanto é ele determinado por uma pa- lavra e, portanto, pensado. Naturalmente, até mesmo os homens homé- Ticos tiveram um corpo como os gregos da época mais tardia, mas nao o sentiam como “corpo”, e sim, como um conjunto de membros. Pode-se, portanto, dizer também que os gregos homéricos ainda ndo tinham um corpo na verdadeira acepgio da palavra: corpo, ope (soma), é uma in- terpretagdo tardia do que inicialmente se concebia como pean (mEélé) 0 ‘yot. (giifa), como “membros”, e, de fato, Homero fala sempre de Ageis pernas, de méveis joelhos, de fortes bragos, visto que esses membros re- presentam para ele uma coisa viva, o que impressiona aos olhos'*. O mesmo se pode dizer a respeito do espirito e da alma. Também para “alma” e “espirito” falta a Homero a palavra correspondente. yoy) (psykhé), palavra usada para “alma” no grego mais tardio, nada tem a ver, na origem, com a alma pensante e senciente. Em Homero, woxt sé é a alma enquanto “anima” o homem, isto 6, enquanto o mantém vivo. ‘Também aqui, num primeiro momento, parece-nos descobrir uma lacu- na na lingua homérica, mas, 4 semelhanga da palavra “corpo”, pode ela ser preenchida por outras palavras que, embora no tendo os mesmo valor das expresses modernas, podem substituir a palavra “alma”. Para indicar “a alma”, so usadas em Homero particularmente as palavras Woxn (psykha), Oupds (thymds) © voos (ndas)’. 8. Na verdade, tampouco encontramos em Homero um vocibulo que corresponda a brago e perna, mas apenas palavras que indicam mio, antebraco, braga, pé, parte inferior e parte superior da perna, Falta igual mente uma palavra que designe o tronco em seu conjunto, 9. Essas palavras foram exaustivamente estudadas na dissertagao de Gittinga de Joachim Bohme, Die Seele une das Ich bet Homer (1929). Foi também Bohme quem observou que em Homero nao existe um vocdbulo que indique o conjunto da vida do sen- timento, isto é, a alma co espirito, segundo nossa concepgao. Esses pensamentos foram expressos por mimnuma apreciagio do livro de Béhme in “Gnomon”, 1931, 74s. Sobre as palavras vos € voetv, cf. Kurt von Fritz, “Class. Philol.”, 38, 1943, 79 e ss., e 40, 1945, 223 e ss. Sobre o subsegiiente desenvolvimento da discussao acerca do conceito de alma em Homero, ¢f,, antes de mais nada, Hermann Friinkel, Dichiung und Philosophie des frtithen Griechentums, 1951, 108 e ss,. Eric Robertson Dodds, The Greeks and the Frrational, 1951, ¢ ~ bastante estimulante mas nem sempre convincente — o livro de R. B. Onians, The Origin of European thought about de body, the mind, the soul, the world, time and fate, 1951 OHOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO. 9 Sobre a yoy, diz Homero que ela abandona o homem no momento da morte, que vagueia no Hades, mas nada diz ele de como a yoy se comporta no vivente. As diferentes teorias sobre 0 que possa ser a yoxT) enquanto se encontra no homem basciam-se apenas cm suposigdes € ana- logias, mas nao sao atestadas nos poemas homéricos. Cumpre-nos ter presente que bem poucas sao as coisas que Homero nos diz sobre a yxt{ do homem vivente ¢ no momento da morte. A saber: 1. que ela abandona o homem no momento da morte ou quando ele des- maia; 2. que no combate expomos a propria yuxh, que na luta esté em jogo a wy), que a meta é salvar a propria yuxn e coisas do género. Nao encontramos af nada que nos autorize a atribuir dois significados diferen- tes a palavra yuyn; por exemplo, o significado de “vida” no segundo caso, mesmo se aqui traduzirmos a palavra yoy? por vida. Mas quando se diz que alguém combate pela prépria yoy, que empenha a propria woxn, que procura salvar a yoy", faz-se sempre referéncia a alma, que, na mor- te, abandona 0 homem. Esse afastar-se da alma em relagao ao homem € descrito por Homero ¢m poucos tragos; ela sai pela boca e é emitida com a respiragao (ou tam- bém através do ferimento) e yoa para o Hades. Ali, torna-se espectro, leva a existéncia das sombras, como “imagem” (i8wAov) do defunto. A pa- lavra tem afinidade com yoxetv, “expirar”, e significa 0 hélito de vida, e portanto a yx7 sai pela boca (a safda através do ferimento é, ao que parece, uma forma secundaria), Esse hdlito vital é quase um Grgio fisico que, até que o homem esteja vivo, nele vive. Mas sobre onde essa yoy?) se situa e como age, Homero nada diz, e assim tampouco a nés é dado sabé-lo. Com a palavra yoy indica-se, evidentemente, nos tempos de Homero, “a alma de um defunto”; uma vez, de fato, diz-se em Homero: “Nele ha somente uma yoy)”, cle € mortal (7l., XX1, 569). Homero nao usa, porém, essa palavra se tenciona dizer “até quando o espirito vital permanece no homem”, Assim vem claexpressa na Iifada, X, 89: cig 6 x’ av Ev oT|Pecot pévy Kal por tha yoovat’ opapn, “até quando permanece a respiracéio em meu peito € moyem-se-me os joclhos”. Fala-se aqui em “respiragao”, mas o verbo “permanece”’ demonstra que cabe também, em parte, a idéia da yuxn e, mais precisamente, a idéia do alento vital. Ainda encontramos em Homero duas palavras que significam espi- Tito, a saber, @uj1d¢ (thymds) & vOog (ndos). @ypds é, em Homero, o que Pprovoca as emogGes € vooc o que faz surgir as imagens; assim sendo, 0 mundo espiritual, da alma, fica de certo modo dividido entre esses dois diferentes Grgdos espirituais. Em muitos pontos, ao falar da morte, diz cle que 8updg abandona o homem, daf a suposicao de que também a palavra 816g estivesse indicando uma forma de “alma” que provavel- mente tenha disputado terreno com a palavra yoy". Sete vezes apresen- ta-se-nos a frase: Aime 8" dotex: upc, isto é, “o Bvpds abandona os 10 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO... assos” e duas vezes @kor SE Ovpds diyet” Gnd LEAEwv, “logo o Bvpos destacou-se dos membros”. Se dermos a Buj1dc 0 significado de “érgo do movimento”, a frase explica-se facilmente. Sabemos que esse 6rgao também determina os movimentos do corpo, dai ser natural dizer que, no momento da morte, ele abandona os ossos ¢ os membros com seus miusculos (este é, basicamente, o significado da palavra pédn). Entre- tanto, nao se diz com isso que 0 6updg continua a viver apés a morte; quer-se dizer apenas que 0 que punha em movimento os ossos ¢ os mem- bros se foi. Mais diffceis de interpretar sio aqueles trechos em que aparen- temente se emprega sem distingdo tanto 6vjdg quanto woxy. Na Iiada, XXM, 67, encontramos: énei Ké tg O&€t YOAKO coyas He Boddy pebiov Ex Bvpdv Ayton. “Se alguém golpeando como ferro tira 0 Bupds dos péOn”. E impossivel darmos aqui a pé6n outro significado que nfo o de membros, 0 que nos leva a uma imagem semelhante & do verso acima citado, isto é, que o 6vjL6¢ abandone os membros ~ e essa é a interpreta- ¢40 mais antiga da palavra'’. Outras dificuldades, porém, apresentam-se em outros pontos onde aparece, em Homero, a palavra péOn: Ilfada, XVI, 856; XXII, 362: wot 8’ &x peGéwv ntapévy ’ Aidoode BeBnxet, a “psique partiu dos 6€8n ¢ foi para o Hades”. Isso nos parece estranho, visto que costumciramente a yoy abandona o corpo através da oo¢a (IL, IX, 409) ou entdo da ferida (IL. XIV, 518, cf. XVI, 505); sempre, portanto, se imagina que a yvyx?) saia através de uma abertura do corpo. Em confronto com estas, a expressiio: “dos membros partiu a alma e foi para 0 Hades” nao sé parece muito mais desbotada, como pressupde também que a alma se situe nos membros, coisa a que nio se alude em outros lugares. Presentemente, porém, a palavra pé9og continua viva no dialeto célico, no qual, todavia, ela absolutamente nfo significa “membro”. Os comentarios ao verso acima citado"" ja o demosntram, 0 que nos faz deduzir que, para Safo ¢ Alccu pé8oc tivesse o significado de “rosto””, S6focles (Antigona, 529), Eurfpides (Héracles, 1204) e Tedcrito (29, 16) tomatam a palayra péOog da lirica edlica com o signi- ficado de “tosto”, Daf, j4 Dionisio Tracio, como vemos no escélio cita- do, tira a conclusio de que, também em Homero péQog teria o signifi- cado de “rosto”, mas em oposigiio a isso, observou-se na Antigiiidade que, em Homero, yox) pode abandonar o corpo também através da 10. Apoldnio, 138, 17: p&Oy t& wEAn 108 oepextog; ese, I, XXII, 68: peOr SE tix Lavra féAn Bu' wv péopév te 11. Qesedlio acima indicado continua: Aioheic 8% td xpbcwnoy (pé0g), Ke pedowadiBo todg edepoodnous pact. 12. Cf. Safo, fr. 33, c Emest Diehl; pedopoais deve ter tide, portanto, o mesmosig- nificado de jy moncperog na frase de Tedcrito: “Com a carasemelhante a uma maga”. Ver, aléin disso, 0 comentério de Pfeifler a Calimaco, fr. 67, 13, 0 HOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO u ferida. E nao é facil resolver o problema, JA que na Iliada (XXII, 68)", como foi observado, vemos que Ovj16¢ sai pelos PéOn, s6 que entdo a palavra deve ter o significado de p€\n, dado que, se for exata a inter- pretagdio de “movimento” para a palavra @vjdc, esse movimento pode sair dos membros, mas nao do rosto ou mesmo da boca. Mas na Iliada, XVI, 856, fala-se, pelo contrario, de yoy e, nesse caso, é natural que ela saia através da boca'*. O problema resolve-se mais facilmente se pesquisarmos a época a que pertencem essas passagens da Iliada. O trecho da dliada, XXII, 68, ¢, sem duivida, recente!’, como me demons- trou E. Kapp, ¢ provavelmente até derive de Tirteu. Quem o compés, portanto, nao conhecia a palavra edlica pé00g e, de modo geral, j4 nao entendia bem a Ifngua homérica. Encontrou na Jliada os trechos (XIII, 671) “o @vpdc logo se afastou dos membros” (uéAn) (XVI, 856), “a wox saiu voando dos pé6n ¢ foi para o Hades”, ¢, em conseqiiéncia, estabeleceu a correspondéncia de 6updg = woyri ¢ de éAn =péOn; em seguida, baseando-se em passagens semelhantes Aquela a que nos re- ferimos (V, 317) ... wm TG... XOAKOV Evi OTHBEGOL Bohdv Ex BvLdV €antoa, formou desta maneira o seu verso: émei Ke Tig CEEL YOAKO ThYaG Te Paddy pebEov Ex Gopdv ZAntou. Se se quiser, porém, inter- pretar o verso no sentido da lingua homérica, obtém-se um resultado absurdo'®. Também em outras passagens podemos ver que os signifi- 13. Bree Yop pUETpaV Hf otdcLT0g Exmveopev (esc. B ad II, XXII, 68). 14. A palavra homérica pé@n devefia, portanto, ser interpretada como “boca”; esta atestado que, para os poetas edlicos, bé8og = mposwnov, mas no podemos prova-lo; a palavrapeBoucdig demonstra-nos, porém, a exatiddo da interpretacio ¢ também Séfocles, Euripides Tedcrito empregam a palavra (iéG0g para “rosto”. Otto Regenbogen (Synopsis, Fesigube fiir Alfred Weber, 1949) interpreta novamente pé8n como “membros”, sem levar cm conta as razGcs aqui adotadas contra tal interpretagdo, mas prometende tratar de novo ¢.a fundo a questdo. A dificuldade de explicar 0 plural pé6n = boca, ao lado do singular pé80c = rosto, parece-me, em tado 0 caso, menor do que a que surge se interpretarmos péan como “membros”. Cf. M. Leumann, Homerische Worter, 218 € s.,¢ Eduard Fraenkel, “Glotta”, 32, 1952 15. Wolfang Schadewaldt, Von Homers Welt, nota | dap. 238, erra a0 afirmar que 0 interpolagdo s6 comega no v, 69. 16. Einteressante notar que € exatamente dessa interpretagio homérica que Crisipo se vale para demostrar que Homero j4 conhece a psicologia estéica; conclustio que ele extrai da frase: nvetud goty } yoy} Kata mavtds oikoby 16 cdc (esc, BL AJL. XVI. 856; cf. também o escélio acima citado na il., XX, 68: Beikvwot 6 Kat mavtids LEAOUS 1 Comkdv Kod yuytKdv gorty; sobre essa interpretagdo, cf., por exemplo, Cris. , fr. 785, IL, 218, v. Arn: woh... rvebpoe Aextopepés got Ger mavtdg Bifikov tod guytyou ad.atog). Esta servird de base, portanto, para interpretar-se o fr. 338 emAmim. Também a etimologia: péOn t& COvro én remonta certamente a Crisipo ou, pelo menos, tem relagdo com sua interpretagiio, na medida em que o queria demonstrar era justamente que é6n tem o significado de membros viventes. Se o trecho, como ficou demonstrado, no fosse recente, deveria ser corrigido, colocando-se jieAéuv em lugar de pedéw. 12 A CULTURA GREGAE AS ORIGENS DO PENSAMENTO... cados de @vpdc e de yuxn sao amitide confusos. Na flfada (VII, 131), temos: BvpLov Gnd per€av 5dvor S60v" Ardos cise, ou seja, “o Bypds foi-se dos membros (én) para o Hades”. Jd de hd muito se tem obser- vado'’? como uma contradigao em relagio as concepgdes homéricas dizer que 0 @updg vai para o Hades. O verso sofre a influéncia da passagem XIII, 671 es. xo 58 Gupds yet’ dnd peAtave III, 322: tov 80g Gnopsipevov Sdvo1 Sdp0v" Aidog eicw. E possivel que também essa alteragdo seja atribuivel a um poeta tardio desconhecedor da lin- gua homérica. Mais provavel, porém, é que, aqui, a alteragdo se deva a um rapsodo, 0 qual, como acontece na tradigao oral, tenha confundido. na mente um amontoado de varios fragmentos de versos. Terfamos entao de corrigir 0 verso, e paderiamos facilmente, na verdade, por tudo em seu devido lugar, valendo-nos de outro fragmento de um ver- so de Homero: com base no trecho XVI, 856 — XXII, 362, reconhece- mos como valido e exato o significado do verso: wuxr 8 ék pebsav mropévn’ Avddode BeBrixet. Segundo esse trecho, pode-se reconstruir 0 verso VII, 131: yugny €k pebéov S0va1 ddpov" Ardog etow. Restam ainda a ser considerados alguns pontos nos quais 0 @updc € aalma do morto ¢ onde se diz que 0 @upd¢ saiu voando no momento da morte'*, mas trata-se sempre da morte de um animal, de um cavalo (/1., XVI, 469), de um cervo (Od,, X, 163), de um javali (Qd., XIX, 454) e de uma pomba (/i., XXIII, 880). Trata-se aqui, sem dtvida, de uma ima- gem derivada. No homem, é a yoxh que foge, mas ¢ evidente que a um animal nao se poderia atribuir uma yvxt; € assim se achou para ele um @vjL6g que 6 deixa no momento da morte. A isso ter-se-4 chegado por afinidade com aqueles trechos onde se diz, numa referéncia ao homem, que 0 @vj16¢ abandona os membros e os ossos. Por outro lado, essas passagens que falam do Bod dos animais. teraio contribuido para aumentar a confusao entre os conceitos de Gup16g © yoy}, Mas se a expressiio “Yo 8u}iég saiu voando” aparece quatro vezes, € portanto, de maneira relativamente freqiiente, sempre relacionada, po- rém, a animais, e a animais sempre diferentes, isso demonstra que nos. Primeiros tempos as duas palavras nao cram usadas indistintamente. Portanto, yoxn e GvpLd¢ sfo, pelo menos no primeiro momento, claramente distintas. E impossivel determinarmos com a mesma preci- sao os limites entre 6updg ¢ voog,. Se, como ficou dito, @vpds é aquele Orgao da alma que suscita as emogdes e véog 0 que percebe as imagens, entio voog é, de modo geral, a sede do intelecto, ¢ Ovup6g a das emogoes. No mais das vezes, porém, os dois significados so confundidos. Nés, por exemplo, consideramos a cabega como sede do pensamente, o cora 17. Cf, J, Bohme, op, cit, 103, 18. Idem, ibidem. OHOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 13 ¢&0 como sede do sentimento, ¢ todavia, podemos dizer: “cle traz no coracdo © pensamento da amada”, pondo no cora¢ao a sede do pensa- mento, mas em relagao ao sentimento do amor; ou entao: “ele sé tem em mente a vinganga” (mas com a palavra vinganga entendemos, aqui: pensamento de vinganga). Essas excegées sao, portanto, ape- nas aparentes, poderemos, entretanto, deparar com frases como: “ele tem a vinganca no coragdo” ou “ele tem em mente a vingan¢a” que possuem um significado quase igual. O mesmo se pode dizer de @up.d¢ (emogao) e vdog (imagem); as excegdes a essa correspondéncia de significado sio aparentes, mas a palavra 8vj16¢ ndo se pode separar nitidamente de voog como o faz de wuxn. Daremos um par de exem- plos. A alegria tem, em geral, sede no @vj16g. Mas na Odisséia (VII, 78), quando Aquiles ¢ Odisseu entram em luta, afirmando cada um seus proprios direitos, diz o texto: “Agamémnon yaipe vow”. Ora, Agamémnon nao se alegra porque os dois mais valentes herdis esto em luta — o que seria de estranhar — e sim, ao lembrar-se de que Apolo lhe predissera que Trdia seria tomada quando os melhores herdis estives- sem em luta. Ele se alegra, portanto, “a esse pensamento””’. Além disso, & geralmente 0 6vj16g que faz o homem agir. Na Iliada (XVI, 61 ess.) diz, porém, Nestor: tpets 8 gpatdpev’ Sra Eotor téde Epya et ti vooc péet, “Queremos ver... se o véog pode levar-nos a alguma coisa”: Empregar, nesse caso, a palavra 6uj1dg seria absurdo, visto que o que Nestor quer € ver se a “reflexao” e, portanto, o “pensamento”, pode levar a alguma coisa. Embora @ujidg seja, geralmente, a sede da alegria, do prazer, do amor, da compaixdo, da ira, e assim por diante, e, portanto, de todos os movimentos do animo, também 0 conhecimento pode, toda- via, encontrar por vezes lugar no @vp16g. Na Iliada (II, 409), diz-se que nao houve necessidade de chamar Menelau para o concilio, "Bee yop Kote. Ovpov ddeAQEdV cag Enovetto, “visto que ele no seu @vj16¢ sabia de tudo quanto fazia 0 irmao”. Ora, nao é que disso estivesse ciente por ouvir falar ou porque soubesse verdadeiramente do fato: sabia por instinto, ¢ até mes- mo por simpatia fratema’*. Dai porque se diz que a coisa lhe é revelada por um “movimento” do “animo”. E poder-se-iam citar muitos outros exemplos do género. véog tem a mesma raiz de voetv, ¢ voety significa “entender”, “‘penetrar”; mais tarde, ao contrario, voetv sera traduzido por “ver”. Por exemplo, na Iiada (V, 590), tobs 8""Extwp évonoe xaté otiyac: “Heitor viu-os nas fileiras’’. Freqiientemente ele acompanha iéetv, 19, J, Bohme, op. cit., 53 € K. von Fritz, op. cit., 83.~ vow ndo € portanto, para ser entendido em sentido locativo mas instrumental, cf. J. Bohme, op. cit, 54,2. Sobre todo esse conjunto, cf. Peter von der Mull, éstdsliche Abbandlungen (Festschrift R. Tschudi), 1954, Less, 20. Como acertadamente observa J. Bohme, op. cit., 72. 14 ACULTURA GREGA EAS ORIGENS DO PENSAMENTO... mas é um ver que niio indica somente o puro ato visual, e sim também a atividade espiritual que acompanha o ver. Aqui, ele se aproxima do significado de ytyvaoxew. Mas yryvdoxev significa “reconhecer’ e sendo, portanto, usado sobretudo quando se quer identificar uma pes- 80a, a0 passo que voetv se refere mais a situagdes determinadas ¢ significa ter uma representagdo clara de alguma coisa. Isso deixa claro o significado de vooc. Ele é 0 espirito entendido como sede de representag6es claras e, portanto, como érgaio que as suscita. Assim naliada (XVI, 688), GAA’ aiet te Ads Kpeicowv voog TE mep &vSpav: “o voog de Zeus é sempre mais poderoso que o do homem”, vias ¢ quase um olho espiritual que vé com clareza”!. Com uma ligeira trans- posigao de sentido, vOog pode também referir-se A fungao. Como fun- Gao duradoura, véog é a faculdade de ter idéias claras; corresponde, Portanto, a entendimento; assim, na Iliada (XIII, 730), Aw pév yOp SAKE Bed¢ modep ra Epye... dA S° Ev orBecor Tet voov etptonn Zevc éoOhov: “a um, Zeus destina a agao guerreira, ao ou- tro, Zeus coloca no peito 0 nobre véog”. Aqui passamos do significa- do de “mente” para o de “pensamento”, significados esses muito pré- ximos um do outro. Em alemao, podemos empregar a palavra Verstand (a mente, intelecto) tanto para designar o espirito quanto para in- dicar a fungao e as faculdades do espirito. Daf a dar a palavra v6og a tarefa de designar a fungao isolada, a Tepresentagao clara considerada isoladamente, o passo ¢ outro; assim, por exemplo, quando se diz que alguém excogita um wooc (cf. I., IX, 104: ob yop tig Woov GALog Gpetvover toO8e voroe1; Od., V, 23: od yap di tobt0v pEv EBovevaas voov orbri). Esse significado ja ultra- Passa, portanto, o significado das nossas palavras espirito, alma, inte- lecto e assim por diante. O mesmo se pode observar a propdsito da palavra @vidg. Quando se diz que alguém sente alguma coisa, yore. Bvpdv, @vpi6¢ é, nesse caso, um 6rgio e podemos traduzir a palavra por “alma”, mas devemos ter presente que se trata da alma sujeita as “emogées”. Porém @upi6g vird também em seguida determinando uma fungao (e ent&o poderemos traduzir a palavra por “vontade” ou “card- ter”) ¢ também a funcao isolada: também essa expressiio, portanto, tem um significado muito mais amplo do que as nossas palavras “alma” ¢ “espirito”, Isso aparece de modo bastante claro na Odisséia (IX, 302), onde Odisseu diz: &tepog 36 pe Gvpdg Epvrev: “um outro 8vp6g me retém”, e aqui, portanto, Ovpds se refere a um particular movimento do 4nimo. Temos, assim, um significado claro e preciso, tanto para Byj16¢ quanto para voog, 21. Tambem Platio vé 0 voi como dua Tig WuLtis: O Banguete, 2199; Rep..7,5334: Teeteio, \64a; Sofisia, 254a (Cf. Rudolf Bultmann, “philologus", 97, 1947, 18 ess.) O HOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 15 \ Mas que valor tem tudo 0 que dissemos ante a concepgao que tem Homero do espirito humano? Poder-se-ia, num primeiro momento, pen- sar que 8ypidg € vO0g sAo algo semelhante aquelas partes da alma de que fala Plato. S6 que isso pressup6e a unidade da alma, e é exatamente essa unidade que em Homero se ignora™. @upds, voog e yuxn sao, por assim dizer, 6rgaos separados que exercem, cada um por seu turno, uma fungao particular, Esses érgaos da alma nfo se distinguem substancial- mente dos 6rgdos do corpo. Também nés, quando queremos determinar os 6rgios do corpo, temos de passar do 6rgio para a fungao e desta para a fungao isolada. Dizemos, por exemplo, “ver algo com outros olhos” e, neste caso, 0 olho nao é 0 Grgio, visto que a frase naturalmente nfo quer dizer que se usam, neste caso, outros olhos; “olho” indica aqui a fungao do olho, o “ver”, e a frase significa, portanto, olhar alguma coisa “com um olhar diferente”, ‘com diferente disposig¢io de inimo”. Da mesma maneira também se deve entender 0 Etepog AujLog de Homero, As duas frases hd pouco citadas, que contém a palavra voc, fazem-nos ir mais algm. Aqui 0 significado de voog jd passa da fungao para o efeito do voetv. De qualquer modo, a frase voov dyeivove: votjoe: também pode ser traduzida assim: “cle teré uma representagéio melhor”, mas aqui “re- presentagaio” nao mais significa o ato de representar e sim, a coisa repre- sentada. O mesmo podemos dizer da frase todtov ¢Pothevans voov. De qualquer modo, é importante o fato de que voog, em ambas as passagens (e estas so as tinicas em Homero onde esse termo tem 0 significado de vonjic, “pensamento”), apresenta-se como objeto interno dos verbos voetv e Bovketew. Muito vizinha ainda se sente a influéncia do verbo voetv, isto é, a fungao. Propositalmente evitamos dar 6nfase, nestas pesquisas, 4 diferenga entre “concreto” e “abstrato”, visto ser, em si mesma, pouco segura; mais titil nos serd atermo-nos, também, para o futuro, A diferenga entre 0 ¢ fungao. Nao se deve, por exemplo, pensar que Ovpdg tenha em Homero um significado “abstrato” apenas porque uma vez aparece na forma &@ypos. Entio também se deveria dizer que “coragio” ou “cabe- ¢a” so formas abstratas, ja que podemos dizer que uma pessoa nfo tem coragio ou que perdeu a cabega. Se digo que alguém tem boa cabega, refiro-me com isso 4 sua inteligéncia, assim como quando digo que al- guém tem bom coragio estar-me-ei referindo a seu sentimento; também nesses casos, 0 érgio est no lugar da fungo, As expressdes “sem cora- 22. muito mais proviivel que Plato derive sua concep edo sobreas diversas partes da alma das concepgdes homéricas use a imagem do @vp6¢ apenas com escopo “pedagdgico”; de fato, adiferenga entre vos ¢ Oy6g manteve-se Viva exatamente nas médximas que convi- dam A moderagdo (a respeito, cf. pp. 187-188). 23. Onde falta, no entanto, como sublinha acertadamente E. R. Dodds, ap. cit., 16, ja de um organismo supra-ordenado em relagaio ds partes. 16 ACULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO... a0", “sem cabeca’’, &Bujloc, indicam a auséncia da fungao, O uso “me- taf6rico” das palavtas que indicam o érgiio, uso que se poderia conside- rar uma abstracao, verifica-se nas linguas mais primitivas, pois é na lingua primitiva que 0 Grgdo nao é encarado como coisa material, mor- ta, e sim como portador da fungio. Se quisermos com os conceitos de “érgiio” ¢ de “fungao” determi- nar a concepgao que Homero tem da alma, iremos de encontro a dificul- dades terminoldgicas, contra as quais se chocam todos aqueles que que- rem definir as particularidades de uma lingua estrangeira com os ter- mos da sua prépria. Se digo: 0 8updc € um 6rgiao da alma, € 0 Grgiio que suscita os movimentos da alma, recorro a frases que contém uma contradictio in adiecto, visto que, segundo nossas concepgées, as idéias de alma ¢ de érgo nfo podem combinar. Se quisesse falar com maior preciso, eu teria de dizer: o que chamamos de alma, 6, na concepgio do homem homérico, um conjunto de trés entidades que ele interpreta por analogia com os 6rgaos fisicos. As perifrases com as quais buscamos definir yoxn, voog ¢ 6vjide como érgiios da vida, de Tepresentagao e dos movimentos do espirito, si, portanto, abreviagdes imprecisas e inade- quadas, decorrentes do fato de que a idéia de “alma” (mas também de “corpo”, como ficou visto) é dada somente na interpretagao concreta da lingua: e nas diversas Ifnguas essas interpretagdes podem, por conse- guinte, diferir. Houve quem acreditasse que afirmar que para Homero ainda mui- tas coisas cram desconhecidas seria diminuir-lhe a estatura; daf porque Se procurou explicar a diversidade que existe entre a coneepgdo homérica da alma e a nossa, imaginando que Homero tenha estilizado proposital- mente seu pensamento e que, por razdes estéticas ou outras, tenha evita- do pdr em relevo a interioridade dos seus herdis, pois isso teria podido menoscabar-Ihes a inquestiondvel grandeza. Mas terd Homero, na yer- dade, preterido propositalmente as repre: sentagGes de “‘espirito” ¢ “alma”, além daquela relativa a “corpo”? Isso suporia no velho poeta um refina- Mento psicolégico que se estenderia até as mais diminutas particularida- des. Além do mais, aquilo que Homero “ainda nado conhece” é tao bem completado pelo que nele sobeja em relacdo ao pensamento moderno, que, certamente, nao se pode falar em estilizagéio propositada, embora, na verdade, essa estilizagao nele exista em outras circunstincias. Por ventura querem ver em Homero um Senhorzinho Microcosmo, semelhante ao que foi alvo dos motejos de Goethe’? Nao se trata aqui de esti fase primitiva na evolu gO, Mas mais precisamente de uma io do pensamento curopcu, ¢ sobre isso também podemos apresentar outras provas. Quiio proxima esté a concepcao que tem Homero de @vp16¢, voog c yyy da dos drgias corporais, evidencia- se exatamente onde essa analogia foi superada. O HOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 17 Os exemplos que nos fazem conhecer 0 uso das palavras o@pa ¢ yoxn, no periodo que transcorre de Homero ao século Y, siio obviamen- te demasiado escassos para permitirem-nos acompanhar em minicia a evolugao dos novos conceitos de “corpo” e “alma”, E provdvel que te- nham surgido como conceitos reciprocamente ccomplementares, deven- do, precedentemente, ter ocorrido a evolugdo da palavra yoy, na qual deve ter influfdo a idéia da imortalidade da alma, Pois, se justamente a palavra que indicava a alma do morto passou em seguida a definir a alma em geral, ¢ a definigao usada para a alma do morto passou a indi- car a do corpo vivente, isso significa que 0 que dava ao homem viverite emogoes, sensagdes e pensamentos era considerado como sobrevivente na woxi}". Dai pressupor-se a idéia de que no homem vivente existisse algo de espiritual, uma alma, embora esta nao pudesse num primeiro momento ser definida com uma palavra correspondente. E nessa altura que surge a lirica grega arcaica. Atribui-se ao morto um o@Lo% como contraposto 4 yuxh, ¢ quase espontaneamente se passa em seguida a usar essa palavra também em relagZio ao vivente, para contrapé-la a wou. Mas qualquer que tenha sido 0 desenvolvimento do processo em suas particularidades, 0 fato é que, com essa distingo entre corpo e alma, “descobriu-se” algo que se impde de modo evidente A consciéncia, algo que passa doravante a ser considerado como ébvio, fazendo com que a relagdo entre corpo ¢ alma e a auséncia da alma se torne objeto de sempre novos problemas. Foi Herdclito 0 primeiro a dar-nos esta nova concepgado da alma. Ele chama a alma do homem vivente de Wyn; para ele o homem & Constituido de corpo e alma e a alma possui qualidades que se distin- guem substancialmente das qualidades do corpo e dos érgiios fisicos. Essas novas propriedades da alma diferem (io radicalmente do que. Homero podia pensar, que lhe faltam até mesmo as formas lingiifsticas adequadas para exprimir as qualidades que Herdclito atribui 4 alma: essas formas lingiifsticas formaram-se no periodo que vai de Homero a Herdclito; mais precisamente, na lirica. Diz Heraclito (fr. 45): woxfis Teipate idv obk Ky EEedpor0, noo EmuTopevdpievos OS6v, ot Badvv AOyov Exer (“Nao poderias encontrar os confins da alma nem mesmo 24. Cf. o mais antigo documento da doutrina dametempsicose de Pitigoras (Xen6fanes, fr ‘T,ed, Diehl) e que ¢,a0 mesmo tempo, o mais antigoe: seguro exemplo da interpretagao particular dada por Homero a palavra yorph, Até porque nao se poders negar que Pitégomas use essa palavra neste sentido. (Cf, também Anquil,,r.21:epigrama de Eretriado século V1 (Friedliinder n. 89]; Sim, 29, 13; Hipon., 42; Safo, 68, 8; Alem., 10, 34; Aristea, fr. 1, 4; Anger. Fr. 4. cf, sobre esse ponto, (0. Regenbogen, Syiopsis, 389).— oto. no novo significado também ern Senof., 13, 4,—Walter Miiri, Festschrifi ftir Eduard Tiéche, Bema, 1947, observa que Os escritos mais. antigos do Corpus Hippocraticun no conhecem a palavra yy, mas usam, em lugar dela, ywaxmn, 18 ACULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO. que os buscasses por todos os caminhos, tao profundo é 0 seu logos”). Para nds, essa concepgdo da profundidade da alma humana é coisa co- mum, e nela ha algo de totalmente estranho a um Grgao fisico e a sua fungaic. Nao tem sentido dizermos que alguém tem mao profunda, ore- lha profunda e, se falarmos de olhos “profundos”, teremos um significa- do distinto (relativo a expressao, nao A fung4o). A representacao da pro- fundidade surgiu exatamente para designar a caracteristica da alma, que €ade ter uma qualidade particular que nio diz respeito nem ao espago nem A extensio, ainda que em seguida sejamos obrigados a usar uma imagem espacial para designar essa qualidade anespacial. Com ela Herdclito quer significar que a alma se estende ao infinito, exatamente ao contrério do que é fisico. Essa representagao da “profundidade” do mundo espiritual da alma nao surge apenas com Herdclito, mas jé na lirica precedente*, como o demonstram as palavras Badbqpav, Badong, “de mente profunda”, “de pensamento profundo”, usadas na lirica arcaica. Geralmente encontramos com freqiiéncia, na Era Ar- caica, a expresso “profundo saber”, “pensamento profundo”, “sentido profundo”, mas também “profunda dor” c, em toda parte, a idéia de “profundidade” refere-se dquela “‘ilimitagao” do mundo espiritual que o distingue do mundo fisico. A lingua de Homero ¢ ainda estranho esse uso da palavra “profundo”, que é algo mais que uma metdfora consueta, € por meio do qual a lingua busca sair de seus confins para entrar num campo a ela inacessivel; e estranho Ihe ¢, por conseguinte, 0 conceito propriamente “espiritual” de um saber profundo, de um profundo pensamento, e assim por diante. As palavras Babippev, Badvyritns sao certamente formadas por analogia com as palavras homéricas, s6 que estas significavam TrOMopav © TOM nts (“de muito sentido”, “de muitos pensamentos”) c assim como sao carcteristicas da lirica as patavras compostas com Pabu-, também caracteristicas de Homero sio aquelas compostas com mov- para indicar uma intensificagio do saber ou do sofrimento: moAtprg, TONVILXOWOS, TMoLUTeVvOrig, ¢ assim por diante (“muito sébio”, “muito astuto”, “muito aflito”). Também em outros casos, cm lugar da intensidade expressa-se a quantidade, “Devo superar mil dores”, diz Priamo (/I., XXIV, 639) ao chorar por Heitor. noAAK aitety, tOAAG Stpbvew (“exigir muito”, “esti- mular muito”) também se usam quando alguém suplica ou admoesta somente uma vez". Jamais cncontramos uma express&o que transmita a particularidade do que nao se apresenta apenas como extcnso, nem no campo das representagdes nem no dos sentimentos. As representagGes 25. Aesse propésito, cf, Friedrich Zucker, “Philologus”, 93, 1948, 52 ¢ ss. 26. Cf.H. Frinkel, Homerische Gleiclnisse, 55,2. Além disso, ef. a interpretagaio Turvy doc, &duver oteverxery, wEYO XaipELy ¢ oUtras. O HOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 19 so dadas pelo voog, e esse Grgiio espiritual é concebido com base na analogia existente entre ele ¢ 0 olho; daf porque “saber” & expresso por ei8évon: a palavra deriva de {Setv, “ver”, e significa propriamente “ter visto”. Também nesse caso & 0 olho que é usado como modelo, quando se quer falar de recebimento de experiéncias, Nesse campo, a intensidade coincide verdadeiramente com a extensiio: quem viu muito e repetida- mente possui um conhecimento profundo, Tampouco no campo do Oypds existe a representagao da intensidadc. Esse ‘‘6rgao da emogao” é, por exemplo, sede da dor; ora, as vezes se diz, em Homero, que a dor réi ou dilacera o Ov16¢, ou ent&o que uma dor aguda, violenta ou intensa atinge 0 BupLdc. Prontamente vemos aqui em quais analogias se baseia, neste caso, a lingua para chegar a tais express6es; assim como uma parte do corpo pode ser atingida por uma arma cortante, por um objeto pesado, assim como pode ser corroida ou dilacerada, o mesmo acontece também com 0 Guid. Também aqui a representagzio da alma nao se diferencia da do corpo, nem se da relevo A caracteristica da alma, a intensidade. O conceito da intensidade nao aparece em Homero nem mesmo no significado original da palavra, como “tensao”. Nao se fala, em Homero, de um dissidio da alma, assim como nio se pode falar de um dissidio do olho ou da mio. Também nesse caso 0 que se diz da alma nao sai do campo do que se pode dizer dos Grgios fisicos. Nao existem, em Homero, sentimentos opostos em si: apenas Safo ira falar do “doce-amargo” Eros; Homero nao podia dizer “queria e nao queria”, e em vez disso, diz exXdy déxovtl ye Ovpd, isto é, “querente, mas com o Bvpog nao- querente”. Nao se trata aqui de um dissidio interno, mas de um contras- te entre o homem e¢ seu érgio, como se disséssemos, por exemplo: mi- nha mio estendeu-se para agarrar, mas cu a retraj. Trata-se, portanto, de duas coisas ou dois seres distintos, em luta entre si. Por isso, em Homero jamais encontramos um verdadciro ato de reflexfio nem um coldquio da alma consigo mesma, e assim por diante. Uma segunda propriedade do Aéyog em Herdclito é a de que cle é um xotvov: tema propriedade de ser “comum”, isto é, de poder permear todas as coisas e de acolher em si todas as coisas. Esse espirito esta em tudo. Também para cssa concepgao faltam em Homero as formas lin- gilisticas correspondentes: Homero niio pode falar de seres distintos ani- mados pelo mesmo espirito; ndo pode dizer, por exemplo, que dois ho- mens tém o mesmo espirito ou a mesma alma, assim como nao pode dizer que dois homens tenham em comum um olho ou uma mao". 27. A respeitoe para as formas iniciais da concepgio mais tardiaem locugSes como ondqpove. bopdv Exovres, cf. “Gnomon”, 1931, 84. O que nds chamamos de “simpatia”, “concordincia reefproca das alas” surgeem Homero sob a forma de ter o mesmo escopo ow saber a mesma coisa; quanto acsta tiltima expressio, ef., por exemplo, as palavras de ieee, * yeh 20 ACULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTE 2 ee Também a terceira qualidade atribufda por Herdclito ao espirito € que contrasta com as qualidades que se podem atribuir ao érgao fisico, & ignorada pelo pensamento ¢ pela lingua homérica. Diz ele (fr. 115): wurfig Eot. Abyog Eowrbv aGwv “é proprio da alma o légos que por si mesmo cresce”. Qualquer que seja o significado que se queira dar A frase, Herdclito aqui atribui & alma um Ayog que pode estender-se ¢ aumentar. Vé-se, portanto, na alma, a possibilidade de um desenvolvi- Mento, enquanto seria inoportuno atribuir ao olho ou A mao um Idgos que “cresce”. Decididamente, Homero nao conhece™ uma possibilidade de desenvolvimento do espirito. Todo aumento das forgas fisicas ¢ espi- Tituais vem do exterior, sobretudo por intervengio da divindade, No li- vro XVI da Jliada, Homero fala de Sarpédon, que, moribundo, pede socorro ao amigo Glauco que no pode vir, pois esta ferido, Glauco implora entéio a Apolo que Ihe tire a dor do ferimento ¢ Ihe devolva a forga do brago. Apolo atende a seu pedido, faz cessar a dor e pévog 8¢ of GuBohe Ov: “pe forga em scu Ovpd¢”, Também aqui, como em outras passagens, o fato motivado por Homero com a intervengiio da divindade nada tem de sobrenatural ou de antinatural. Para nds seria mais natural que Glauco ouvisse o chamado de Sarpédon e, superando sua dor e reu- nindo suas forgas, voltassse ao combate. Mas o que irfamos introduzir na descrigao, isto é, o fato de que Glauco retine suas forgas ou, dizendo de outra maneira, se concentra, jamais aparccem em Homero. Nés inter- pretamos esse fato imaginando que um homem supere scu estado por suas préprias forgas, com um ato de vontade, mas quando Homero quer explicar-nos a proveniéncia dessa nova massa de forgas, s6 sabe dizer que foi um Deus que as concedeu, O mesmo vale também para outros casos. Toda vez que o homem faz ou diz algo a mais do que dele se poderia esperar, Homero, para explicar o fato, atribui-o a intervengiio de um deus”. E é 0 verdadeiro ¢ auténtico ato da decisfio humana que Homero ignora; daf porque, mesmo nas cenas em que o homem reflete, a intervengio dos deuses sempre tem uma parte importante. A crenga nesta ago do divino é, portanto, um complemento necessario as represen- tagdes homéricas do espirito e da alma humana. Os 6rgdos espiritua Teétis a Aquiles, Il., 1., 363: eoeb8er j1i) Kedee Vom, Tver etBopev expe: "dize-me da tua dor, nfo a escondas na tua mente, para. que ambos saibamos dela”, — Uma excegiio é repre- sentada pela frase de Nestor, y 127: &yd kai 810g ‘OSuscets otite tor! eiv cyopH Sige BéLouev ove" Evi PoUAA, GAA’ Ever Ovpdy Exovte ~ com que se entende “toda vez 0 mesmo impulso”, isto é, toda vez a mesmia opinido, baseada no discemimento. 28. Confrontem-sea respeito, sobretudo as locugdes das quais Herdclito deriva pro- vavelmente as dele: Il., XVII, 139: Mevéhaog éyee névBog é&ov, XVIN, 110: 26205 aéferat; Od, Il, 315: Kai 84 por ceéEeron Bujidg (Forma passival) onde ele se refere a sentimentos, 29. Cf. H. Frankel, Dichtung und Phifosophie, 91 e ss OHOMEM NA CONCEPCAO DE HOMERO 21 Gvpds e vG0g, nao passam de simples érgios, tanto que neles nao se pode ver a origem de nenhuma cmogao. A almaentendida no sentido de TPOTOV kwvodv, de primeiro movente, tal como a concebe Aristételes, ou como Ponto central do sistema organico, ainda é estranha a Homero. As ages do espitito ¢ da alma desenvolvern-se por obra das forgas agentes do exterior, e o homem esté sujeito a miltiplas forgas que a cle se impdem © conseguem penetrd-lo, Daf a freqiiéncia com que Homero se refere as forgas, ¢ dai porque dispée de tantos vocabulos todos eles traduzidos por nés com uma tinica palavra; “forga” (wévog, o6évoc, Bin, KIKUG, ic, KpétOS, ddch, Sbvoyc). Essas palavras, porém, tém um significado conereto, de rigorosa evidéncia, ¢ esto bem longe de indicat a forga sob forma abstrata, como mais tarde as palavras Sovoyu (d¥namis) ou eoveta (exousfa) que podem ser atribuidas a toda e qualquer fungao. E cada uma das formas assim indicadas recebe, da maneira particular da ago, © seu modus particular, o scu cariter proprio. pévog 6, por exemplo, a forga que a pessoa experimenta nos membros, ao sentir o impulso de agregar-se a uma agdo, GAKn, a forga defensiva que serve para manter 0 inimigo a distincia; of€vog, o pleno vigor das forgas fisicas, mas tam- bém a poténcia do dominador; xpétog, a violéncia, a forga de opressao. Em algumas expressdes pode-se ainda detectar o primitivo significado religioso de tais forgas, como por exemplo quando Alcinoo é designado com a expresso “a sagrada forga de Alcinoo”: iepdv pévog *AAKivOoL0 ¢, similarmente: Bin ‘HpoxcAnein, ieph ig THAeudxou. E dificil exararmos um juizo sobre essas expressées visto serem elas expressdes ja cristalizadas, das quais nem mesmo cabe dizer se, exatamente, Bin ou is ou pévog seria a forma originaria, Muitos pensam, e com toda a raziio, terem sido clas escolhidas em parte por necessidade métrica. Nomes prdprios, como Telémaco e Alcinoo, nio podem estar no nominativo em fim de verso, onde Homero costuma colocd-los; daf 0 poeta valer-se, neste caso, de uma circunlocucio, Também se tem observado que for- mas adjetivadas como Bin ‘HpaxAnein também se apresentam com no- mes que nao fazem parte do mundo troiano e, com razio, concluiu-se terem sido eles extraidos de épicas mais antigas. E visto que, em tempos passados, deviam ter tido um sentido particular, foi lembrado™ que, nos chamados povos primitivos, era fi reqiientemente atribuida ao rei ou ao sacerdote uma especial forga magica que o elevava acima dos homens de sua estirpe. E provavel que essas expressdes tivessem servido origi- nariamente para indicar reis e sacerdotes dotados de tal forga. Mas é um etto acreditar que tais forgas magicas ainda estejam vivas nos poemas homéricos, porque s6 0 fato de que as formas de circunlocugio, as quais nos referimos, t8m uma forma rigida ¢ sio evidentemente usadas por tazGes métricas, j4 nos faz entender que seria absurdo af buscarmos 30. Friedrich Pfister, Pauly-Wissowes Recil-Encyclodidie, verbete “Kultus", 2117, 33. 22 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO... Tepresentagoes vitais dos poemas homéricos. Embora na Ilfada e na Odis- séia 0 poeta fale em forgas, jamais alude ao sentido “magico” delas; e geralmente nao encontraremos alusdes magia senéio em residuos isola- dos que agora ja perderam sua vida originaria. Os homens homéricos, que ainda nao sentem a alma como lugar de origem das préprias forgas, niio atraem para si, contudo, essa forga com praticas magicas, e sim recebem- na — dom natural — dos deuses. E certo que, nos tempos que precederam Homero, reinavam magia ¢ feitigarias; certo é, também, que a concepgao homérica da alma e do espirito esta relacionada com esses tempos “magicos”, visto que érgios da alma como voog ¢ Ovjidc, destitufdos que sao da faculdade de pensar © mover-se por si, devem forgosamente estar 4 mercé do poder magico, ¢ homens que tém uma tal concepgao de sua vida interior devem natural- mente sentir-se expostos ao poder de forgas arbitrérias e tencbrosas. Daf podermos inferir qual teria sido, no tempo que precedeu Hometo, a con- cepgao que tinha o homem a respeito de si ¢ do seu agir. Mas jd os herdis da fliada nao mais se sentem & mercé de forgas selvagens ¢ confiam em seus deuses olimpicos, que constituem um mundo bem ordenado ¢ sig- nificativo, Ao evoluirem, os gregos completam seu autoconhecimento e, Por assim dizer, absorvem em seu espirito humano essa acdo divina, E certo que em todos os momentos a fé na magia se manteve viva entre eles, mas ela no existia para aqueles que contribuiram para essa evolu- go, assim como nao existia para Homero; esses homens, com efeito, prosseguem no caminho apontado por Homero. A concepsiio que o ho- mem tem de si no tempo de Homero, e que podemos reconstruir através da Ifngua homérica, nao ¢ puramente primitiva mas tem os olhos volta- dos para o futuro e constitui a primeira etapa do pensamento europeu.

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