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m Plural, Revista do Programa de Pés-Graduago em Sacologia da USP, Sao Paulo, n® 14, 2007, pp. 119-132 a Verossimilhanga e formacao como projetos incompletos: literatura e histéria em Nove Noites* Mariana Miggiolaro Chagur?” Mdrio Augusto Medeiros da Silva"* Resumo Este artigo recorre ao romance Nove Noites (2003), de Bernardo Carvalho, para discutir 0 problema da verossimithanga em literatura, Para tanto, propde que Nove Noites seja lido como uma espécie de romance de formagio (Bildungsroman) no qual diferentes cisculos de meméria se sobrepdem para organizar 0 material narrado. Tal leitura & norteada pela discussao das relagdes estabelecidas entre a literatura e a sociologia. Ao final, propdese uma compara- io com outro romance brasileiro (Quarup, 1967, de Anténio Callado) para se observar, a partir de outra obra que se vale do mesmo espaco geogréfico e narra- tivo, o sentido de incompletude da formagio social no Brasil contemporaneo. Palavras-chave: Litcratura brasileira. Literatura e Sociedade. Literatura e His- toria, Literatura e Sociologia. Abstract This paper uses the novel Nove Noites (2003) written by the Brazilian writer Bernardo Carvalho to discuss the issue of verisimilitude on literature. We propose that Nove Noites can be read like a coming-of-age novel (Bildungsroman] in which different memory paths overlap to organize the narrative, Such a reading. 110 presente antigo surg apbs a discusses estabelecidas no curso “Antropologia no Brasil”, ministrado no primero semesite de 2007, no Programa de PésGraduacéo em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e ‘Ciancias Humanas da Unicamp, pela Profa. Dra. Heloia André Pontes, Gostariamos de manifests n0ss0 aradecitnento pels dscuséestravadas 4 ocasito, bem como 0 apoio e incenivo recebidos da docente para a publicagio dest eso. * Mestre em Sociologia, doutorands do Progrums de Pos Graduago em Sociologia pelo Lnsttuto de Filosofia ¢ Gitncas Humanas/Unicamp e pesquisadora do Centro de Estos Brasileiros (FCH/Unicamp). * Mestre em Sociologia, dautorando do Programa de Pés Gradvaczo em Sociologia pelo institut de Filosofia Ciéncis Humanas/Unicampe pesquisador do Centro de Estudos Braicizos (IFCH/Unicamp) 320 w plural 14 w is guided by a discussion of relations between literature and sociology. In the end, we propose a comparative reading between Nove Noites and another Brazilian novel (Quarup, 1967, Anténio Callado), seeking to observe, from the perspective of the second novel, situated on the same geographic and narrative space, the sense of incompleteness of the social formation of contemporary Brazil Keywords: Brazilian Literature. Literature and Society. Literature and History. Literature and Sociology. Tado 0 meu trabalho &0 de proteger uma fragilidade. Pee- ciso construir um ambiente, uma espécie de muralha contra 48 coisas cotidianas. Criar um ambiente ideal onde eu soja quase anulado (Bernardo Carvalho). Bernardo Carvalho é um dos mais premiados escritores contemporineos do Brasil. Dono de um estilo enxuto ¢ de uma linguagem limpa e precisa, ¢ possivel reconhecer no autor uma preocupagio recortente na maioria de seus romances: a linha ténue entre a verdade ea mentira, ou, em outras palavras, entre o real ¢ o ficcional’. Em entrevista concedida recentemente ao jornal Folha de So Paulo (SIMOES, 2007), a propésito de seu novo romance O sol se pde em Sao Paulo (CARVALHO, 2007), Bernardo Carvalho reclamou a seu entrevistador que um dos problemas de interpretasio sobre seus livros anteriores € 0 efeito de verossimilhanga causado por eles. Ou seja: a experiéncia de leitura de seus romances provocaria no leitor uma busca pela confirma- 20 de fatos reais referentes 4 vida do autor, bem como dos fatos histdricos narrados’, “O que interessa agora é 0 autor, Se 6 indio, mulher, negro, gay etc. Literatura s6 interessa ‘como meio de expressio de uma voz, que representa uma classe, estrato social, origem etc”, diz Carvalho. "Em "Nove Noites', resolvi que ia brincar com isso: uma armadilha, como uma autobiografia, em que as pessoas se interessariam pela dimensio de realidade. Achei que estava criando uma coisa como um labirinto, que também fiz em ‘Mongdlia’. De repente, me dei conta de que a coisa & mais potente, E as pessoas leram como realidade.” Carvalho conta que, Jogo apés 0 langamento de “Nove Noites’, uma professora universitiria chegou a apontar que, * 0 exctitor e jornalista Bernanlo Carvalho ji ganhou divessos prémios literérias, entre os quais destacamse dois Jabutis por Nove Noites (2002) Mongolia (2004), alem do Prémio Portugal Telecom em 2003 pelo ‘romance analisado neste artigo. Cabe destacar que a mensio 20 autor ¢ a seus prémios nio & casual; devemos lemabrar que © nome de ur autor nio ésiraplesmente um elemento de um discutso, antes exerce umm determi nado papel em relacio 20: discursos: um determinado nome permice reagrupar um certo nitmero de textos, delimitilos, selecionélos, opirlas a outros textos. Em outras palavras,“o nome préprio ¢ 0 nome do autor ‘encontramse situados entre os polos da deserigio ¢ da designagio [..] 2 ligacdo do. nome préprio com 0 individuo nameade ea figagio do name do autor com o que nomeia, n30 sio isomérficas e no funcionam da ‘mesma mancira” (FOUCAULT, 1992: 42). 2 Em entrevista sobre o romance Nove Noites concedids a Flévio Moura, Bernardo Carvalho ao responder a seguinte pergunta do entrevistador “o que éfato eo que é ficgdo em Nove Noites”, diz: "a indistingdo entre favo ¢ ficgio faz parte do suspense do romance [..] hé um dispositivo labirintica, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narragio. Nesse css, iso fice mais nitido porque existem referéncias « pesvoas resis, ‘Mas mesmo as partes em que elas aparecem podesn ter sido inventadas. Em shia instincia, € eudo fiecdo” (CARVALHO, 20023). se 0 personagem principal dé livro era um gay enrustida, isso significava que ele também o era. E que o livro era expressio dele mesmo. "E bvio que, se eu trato de temas homossexuais, isto ‘tem respeito intrinsecamente a quem eu sou. Mas hé empobrecimento dz compreensio da literatura quendo voce reduz a percepcio a quem o artista é Entéo resolvi fazer um livro em que seria impossivel me reconhecer. Todos sio japoneses. E queria que fosse sobre literatura: sobre 0 que é ser um escritor, 0 que significa e para que serve escrever ui livro. Fiz um negécio que nao tem pegada”. (SIMOES, 2007: E1, grifo nosso). Partir dessa auto-reflexo do autor parece ser um bom ponto inicial para discutir seu sexto romance, Nove Noites (CARVALHO, 2002). Pretendemos, assim, discutir 0 efeito de verossimilhanga' neste romance, aventando a hipdtese de este efeito ser provo- cado nio apenas por um procedimento equivocado da experiéncia leitora, mas também pelos procedimentos narrativos empregados pelo escritor, cuja intencao possui feito estético e soctoldgico que nos parece interessante’, Em linhas gerais, podemos considerar que a busca por uma inteligibilidade de sentido suporta narrativamente o romance tanto no plano dos fatos narrados, quanto na propria constitui¢ao do discurso ficcional. Assim, “a busca de um sentido €0 fio condu- tor da efabulagio e da propria escrita” (VIEIRA, 2004:196). Anarrativa de Nove Noitesé composta pelo entrelagamento de duas temporalidades: a que transcorre seis anos apés o suicidio do antropélogo norteamericano Buell Quain (em 1946) ¢ outra, que se passa em 2001 depois que 0 narrador-personagem (um jomal ta) [2 0 artigo de uma antropéloga (Mariza Corréa) no Jornal de Resenhas (CORREA, 2001) ¢ inicia sua investigacio sobre a vida ¢ o suicidio de Quain. Esta construgio narrativa permite que sejam contadas duas historias a0 mesmo tempo: aquela que transcorreu no pasado ¢ aquela de seu investigador no presente do narrado. O processo de recuperagio da historia passada acaba por conferir inteligibilidade {ou mesmo a provocar transformagées) no narrador-personagem do presente. Temos, assim, a histéria do antropélogo noste-americano Buell Quain que, em 1939, durante sua pesquisa de campo, se suicidou em meio aos indios krahés no Mato Grasso ¢ a do jornalista que, sessenta e dois anos depois, decide se lancar na investigagio das causas objetivas que motivaram o suicidio até entio nao elucidado. O elo entre as duas hist6rias ¢ encontrado em passagens da vida pessoal do narrador- personagem: quando seu pai estava hospitalizado ja beira da morte, foi o companheiro “ Lembrando a discussio de AntSnio Candido sobre o aparecimento de género do romance no século XIX, no Brasil, quando aquele autor diz que: “Esta nacio de que os acontecimentos © as paixdes "se encadeiam” & propria Ici do romance ¢ & razdo profunda da verossimilhangal..Juam ponto de vista, uma posiio, ama dovtrine (politica artistica, moral), mediante a gual 0 autor opera sobre arealidade,selecionando e agrupando os seus viios aspectos segundo uma diresig” (CANDIDO, 1975: 111) EB bom, como precausio, lembrar um argumento importante de Antonio Candido, 20 afitmar que “[-J convém notar que por vezes¢ilusria # declaragio de um criador s repeito de sua propria cragio. le pode pensar que copiou quando inventou: que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou, ‘quando se confersou, Umma das grandes fontes para o estudo da génese das personagens sio as declaagoes do romandista: no entanto, precisa consider-los com precaugées, devidas a cea circunstancis" (CANDIDO, 2004: 69) 2007 w 121 122 m plural 14m de quarto do pai quem faleceu primeiro. Tratavase de um velho fotdgrafo norteameri- ‘cano que passou seus Ultimos dias a espera da chegada de um certo “Bill Cohen” com quem o narrador-personagem foi confundido pelo fotégrafo moribundo. ‘Anos mais tarde, ao ler 0 artigo no Jornal de Resenhas que fazia uma répida men- ge 20 suicidio de Buell Quain, o narrador-personagem se d& conta da semethanga entre 08 dois nomes e inicia uma investigagao obsessiva dos motivos que levaram o antropélo- g0 a0 suicidio. O contato do leitor com a primeira historia - 0 suicidio de Quain - se da por meio de uma terceira hist6ria contada por um narrador fantasma, Manoel Pena, engenheiro da cidade de Carolina (préxima & aldeia krahd) ¢ com o qual Quain trocou confidéncias 20 longo de nove noites (as de suas visitas & cidade).” Para Erich Auerbach, 0 recurso a um elo como este corresponde a um trago co- mum do romance moderno, cuja intenglo é se aproximar da realidade auténtica e obje- tiva mediante muitas impress6cs subjetivas obtidas por diferentes pessoas em diferentes instantes, Assim, acontecimentos exteriores que podem ser insignificantes liberam “idéi- as ¢ cadcias de idéias, que abandonam o seu presente para se movimentarem livremente nas profundidades temporais” (AUERBACH, 1994: 484), ou seja, confere-se menos im- portincia aos grandes pontos cruciais ou aos grandes golpes do destino, ¢ se insiste na crenga de que em “qualquer fragmento escolhido a0 acaso, em qualquer instante, no curso da vida esta contida e pode ser representada a substincia toda do destino” (AUERBACH, 1994: 493). O romance moderno forja, portanto, uma espécie de unidade entre sentido vida, contudo, a projeta no pasado ¢ a transforma em objeto de recordagio: “o processo da meméria langa, portanto, 0 resistente mundo exterior para dentro da subjetividade, 1s, no pasado, reconstituindo uma espécie de unidade com ele” (JAMESON, 1995: 140). “Nas primeiras piginas do romance, o Ieitor reebe algumas pistas que Ihe permitem infer que, ée algum modo, o nome de Buell Quain era familiar 20 natrador-personagem: “ningvém munca me perguntou, E por isso também nunca precise’ responder. Nio porto dizer que nunca tivesse ouvido falar nee, masa verdade & {que nio fazia a menor idtia de quem ele era até lero nore de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal, na manhi de 12 de maio de 2001, um sibado, quase sessenta dois anos depois de sua morte [.} Li virias vezes 0 mesmo parlgrafo e repeti o nonie em vo? alta para me centfiar de que no estava sonhando, 6 entender - ov confirmat, ji nfo sei - que o tinha ouvido antes” (CARVALHO, 2006: 11). Apenas nas iltimas piginas do romance, a histéria do fot6grafo que dividi o leita de morte com o pai do narrador ~ personagem & revelada: “abr as cortinase perguntei se precisava de aiguma coisa, E cle repetiu 0 nome. Me chamava ‘Bill, ‘ou pelo menos foi isso 0 que entendi. Tentava estender o brago ne minha diregio. Segurei a mao dele, Ble apertou a minha com a forca que Ihe resava ¢ comegou a falar em inglés, com esforco, mas 20 mesmo tempo ‘nur tom de vou de quer esth feliz ¢ admirado de rever um amigo: ‘Quem diria? Bill Cohen! Até que fin! Rapaz, voc® nfo sabe ha quanto tempo estou esperande™ (CARVALHO, 2006; 130), * Pena excreve: "se fag0 2s contas, veo que foram apenas nove noites. Mas foram come-a vida toda. A primeira, na véspera de sua partida para a aldeia, Depois mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio € jumbo, quando vinha & minha casa em busca de abrign, 2 lima quando 0 acompenhe pelo primeiro trecho de sua volts 3 akdeia, quando pernoitamos no mato, debsixo do céu de esteias” (CARVALHO, 2006: 41) leilico ne original NOVE NOITES COMO ROMANCE DE FORMAGOES E CIRCULO DE MEMORIAS O romance de Carvalho pode ser lido também como um duplo romance de forma- $40, possuindo diversos planos narrativos - que implica diversos narradores, citados nominalmente ou nao ~ que se interferem mutuamente, provocando o que nos parece set, descritos enquanto metifora espacial, circulos concéntricos de memoérias que se penetram. © seu carater duplo refere-se ao fato de o livro dar conta tanto da formagio de ‘um estilo de se fazer Antropologia Social no Brasil - narrado por meio da trajet6ria do petsonagem de Buell Quain ~ como da formacao de um outro narrador - um jornalista que estuda a trajetoria malograda de Quain no Brasil - cuja descricdo leva 4 identificagao com o préprio autor. Enquanto romance de formagio ~ cujas caracteristicas técnices podem ser resumi- das no recurso 4 meméria, na narrativa que se da em trajetéria do passado rumo 20 presente, objetivando justificar 0 momento narrado -, Nove Noites complexifica-se, produzindo a interpenetracao de uma série de personagens-fantasmas, que aparecem no decorrer da narrativa, moldando suas duas historias principais (a de Quain e a da busca do jomalista). Cabe explicar este procedimento para entender seu efeito, O livro se abre com uma das séries de cartas cujo comego invariavelmente é “Isto é para quando vocé vier”. O destinatario destas cartas jamais é claramente mencionado (constituindo-se num dos personagens-fantasmas); nossa hipétese é de que, na realidade, © Unico destinatirio efetivo do discurso de Manoel Pena ¢ 0 proprio Jeitor. Sobre quem as escreve, saber-se-a aos poucos, enquanto 0 enredo se desenvolve. Para marcar grafica- mente a distingo dos planos narrativos destas cartas com o restante do livro, a grafia da fonte de impressio ¢ alterada, dando-se em itdlico*, O remetente destas cartas nos conta, em pouquissimo tempo, sobre algo trigico que ocorreu na regido do Brasil que posteriormente se tomaria o Xingu: o suicidio no coragio da floresta do jovem antropélogo norte-americano Buell Quain, aluno de Ruth Benedict, em missdo no pais para estudar indios. De fato, estes personagens existiram, enquanto sujeitos reais: Benedict havia enviado ao pais pelo menos trés de seus jovens orientandos de doutorado, Ruth Landes, Charles Wagley e 0 proprio Quain, com desti- nos ¢ objetos de pesquisas distintos, mas todos sediados no Museu Nacional no Rio de Janeiro e tutelados por Heloisa Alberto Torres e equips, diretora da instituigio, em plena década de 1930, tendo em vigéncia a ditadura varguista. No mesmo Museu, encontra-se "Tendo 0 leitor como tinico destinatirio efetive de seu discurto, as cartas de Manoel Pens possuem a fungio, dentro da estrutura narrativa, de inserir 0 leitor dentro do complexe jogo daquilo que & lembrado ¢ daquilo que & esquecido, isto é, a8 catas colocam claramente a questio da meméria e operam como elo entre presente «pasado, um langando luz sobre o outro num movimento continuo. Logo ne primeira plging, o leitor & avisado: “quando vier a procura do que o pussade entertou é preciso saber que estatd as portas de uma terra em ‘que a meméria nio pode ser exumada, pois 0 segredo, sendo o nico bem que se leva para o tirnulo, € também 2 Gnica heranca que se deixa aos que ficam, como vacé e eu, 4 especa de umn sentido, nem que seja pela suposigio do mistério, para acabar morcendo de curiesidade” (CARVALHO, 2006: 6) Itilico no original 2007 w 123 124m plural 14 outro personagem do romance, igualmente sujeito real, que é Claude Lévi Strauss, entio jovem professor de etnologia da também jovem Universidade de S40 Paulo (USP) e que se tornaria um dos pais da Antropologia contemporinea. Um primeiro momento, portanto, do romance de formagio esta colocado: a formagio do campo antropol6gico brasileiro. O recurso a sujeitos reais transmudados cm personagens é um requisito da histéria a ser contada; mas, também, um procedi- mento narrativo com intengées precisas, uma vez que no seria necessatio recorrer a nomes ¢ descrigdes reais dos sujeitos hist6ricos para construir seus personagens literé- rios. Anunciariamos, neste ponto, uma sociologia da recepsio, para comprovar poste- riormente, que isso tem a ver com a relagio com o publico-teitor ideal? para o roman- ce: antropblogos ¢ cientistas sociais. Neste aspecto, até mesmo fotogratias reais ¢ co- nhecidas, sejam de Quain, como Torres, Landes, Lévi-Strauss, Edson Carneiro e outros sfo inclusas no liveo, Note'se, aqui, que as fotografias em preto e branco apresentadas no romance (de Quain, dos antropélogos do Museu Nacional na década de 40 ¢ do autor) proporcionam uma sobreposigio de imagens: a do jornalista refletida na de Quain e vice-versa! © outro circulo memorialistico do romance de formagio a narragio em primeira pessoa de um personagem jornalista. O jornalista, que apés ler um artigo com répida mengio a morte de Quain, interessa-se pelo assunto e parte rumo as res- postas do porqué daquele suicidio. A interpenetracéo aqui nao € somente de duas historias, mas do real e do ficcional, O artigo e o Jornal de Resenhas realmente existi- ram, A antropéloga, Mariza Corréa, de fato o escreveu e nele citava brevemente os mistérios que rondavam a morte de Buel] Quain. E também, o que se saber’ mais tarde, ea, de fato, foi procurada por um jomalista que lera seu artigo c ficara intrigado com 0 assunto Neste ponto, importante destacar que a literatura representa uma transposico do real para o ilusorio por meio de uma estilizagio formal que propde um tipo arbitrario de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um clemento de vinculacio 4 realidade natural ou social, ¢ um elemento de manutengio técnica, indis- pensivel a sua configuracio (CANDIDO, 2002:53). Tratase de criar um mundo novo na ficsio, o qual confere inteligibilidade a reali dade originaria. Assim, a verossimilhanca em literatura nao esta dirctamente referida 4 sta comparago com o mundo real (ficcio igual 4 vida). Antes, depende da organizagio * Sobre esta idéia de leitor ideal, ver: ECO, 1994, Em linhas gersis, Umberto Heo postuls que o autor, 30 elaborar um livto faz sob determinades protocols nerrativos, que pressuporiam através do acordo fccional, estabelecido entre © leitor ¢ 0 narrador, uma experincia letora ideal. © piiblico letor ideal poderia, até ‘mesmo, extrapolar os limites do acordo fccionsl, levsdo 2 formular que o livro nio & uma ficg30 ou uma realidade fiecional, mas, sim, un mundo teal hipertofriado, passando 2 leo assim. "aba do romance apresenta uma foto enveecida em preto e branco de Beznardo Cervaiho na infincia 20 Iado de um indio nu no Xingu. Parecenos que ese procedimento néo & inocente. Ao se equiparar is ovtras foros (de Buell Quain e dos antropblogos do Museu Nacional), o autor se arvoge © mesmo estatuto dos personagens, Nese sentido se estabelece com mais forga + colagem da figura do autor a0 univerto Becton, enced no decorrer da nsrrativa estética do material, sendo em referéncia a ela que uma obra é verossimil ou no. Deve mos, portanto, analisar a composicio do romance e nao compari-lo com o mundo real. Atendose ao mundo ficcional, no correr do romance de Carvalho, temos a busca daquele jornalista-personagem por mais dados para iniciar sua pesquisa sobre Quin". Passase, entio, a conhecer um terceiro momento de formasio, que se dard a0 longo de todo o livro, pois, em sua busca, este jornalista-personagem nos revela fatos de sua propria trajetoria, da infancia 4 fase adulta, Fatos estes que, na trama de sua meméria, mesclam-se com elementos da propria trajet6ria de Buell Quain, seu objeto de pesquisa e - como se revelara mais tarde ~ de obsessio. Assim como Quain, 0 jomalista também teria ido 20 Xingu, s6 que quando crianca, Assim como seu objeto de pesquisa, ele também possuia uma relagio distanciada com seu pai — igualmente beberrio, bonachZo, mulherengo ¢ com uma morte melancélica como a de Quain'?, Da mesma forma que o personagem-antrop6- logo, ele possui tracos de homossexualidade no assumida, Partilha também de opinides pouco amistosas sobre os indigenas ¢ seus rituais que encontra no Xingu. E, por fim, tanto © jomalista como o antropélogo, ambos de origem abastada, desde muito cedo sio dados 4 aventura de viajar pelo mundo, em busca de no se sabe bem o qué. Intimeras passagens do romance permitem entrever que o jornalista-personagem no toma essas coincidéncias como meras arbitrariedades do destino; antes, para ele, ha uma série de pontos tangentes na trajet6ria de ambos que sio arranjados pelo narrador de modo a produzir um efeito de similaridade entre as duas trajetérias. O que nos permite aventar a hipdtese de que, ao reconstruir a trajetéria de Buell Quain, o narrador- personagem deseja, na realidade, atribuir sentido & propria trajet6ria, buscando na bio- srafia de Quain os elementos que Ihe permitam se explicar a partir de um outro S4o muitas as passagens que nos permitem construir tal argumento. A mais signi- ficativa talver seja a que se refere as lembrancas que 0 narrador carrega do Xingu ¢ que so rememoradas a partir de seu retorno, ji adulto, para uma visita a uma aldeia krahd na companhia de um antropélogo de Sio Paulo e de seu filo"; "Para Yara Fateschi Viera, Nove Noiteslexicalira uma desconfianga (comum no mundo conternporineo) em selagio 20 dado fiecionsl Comtudo, 0 auter 0 fz de mado tornotarente irénico una vex que eapropria na Jiteratura, de. 1r508 originados de registrs supostamente comprometidos com o real: a reportagern jornalistica € 2 invesigario académies, Reproduzindo no texto fiecional wis recursos (que se diluem numa efabulagio proposiudamente complicaa e até folhenesa), Bernardo Carvalho “etia ume expécie de armailhe para pblico medianamentelewado, que procua cada vez mais se informe por meio de reveas de opinito, report gens dirs [-] O resultado € que o leitor de un livro desis sti com a sensagio de ter fido algo “intligenie™ “Wcido"e*modero” (ou pds), mastamben com a incomoda vnsagdo deter perdido alge, que aestta lvsea 0 acémulo de inforraasioe de intrgs novelesca deformam ou ocultam" (VIEIRA, 2002; 196). Este argumento encontra grande ressondneis na seguinte delaragio de Bemardo Carvalho em entevista a Flivio Moura: “todo mundo ets procura de um pa, pois de alguma mancira aio brfiot da cviliagz0. O Quan na uma relacdo complicadissima com o pai e 20 mesmo tempo faz 0 papel de psi com o: Indios. O narador, do mesmo modo, contapie a historia do antropétogo com a do prépio pa. Tudo gira em torno da Finkager paternal, E curioso, & uma ficgio que tem a ver com Antropologis © que aciba send sobre at relagBes de parentesca” (CARVALHO, 2002a). Devese notar que se trata de uma lembranga pouco feliz da infancia do narrador: “ninguém aunca me perguntou, ¢ por isso nunca precise responder que a representagio da inferno, tal como a imaging, também fica ou, ficava, no Xingu da minha infancia” (CARVALHO, 2006: 53). 2007 9 125 126 m plural 14 Buell Quain também havia acompanhado o pai em viagens de negécios. Quando tinha catorze anos, foram a uma convenséo do Rotary Club na Europa. Visitaram a Holanda, a Alemanha e os paises escandinavos. E dai em diante nunca mais parou de viajar. Mas, se para Quain, que sala do Meio-Oeste para a civilizagio, 0 ex6tico foi logo associado a uma espécie de paraiso, & diferenga ¢ 4 possibilidade de escapar a0 seu pré- prio meio ¢ aos limites que Ihe haviam sido impostos por nascimento, para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de tudo uma visio ¢ uma consciéncia do exdtico como parte do inferno (CARVALHO, 2006: 57). Em linhas gerais, as atitudes de Quain diante dos indios, conforme rlatadas por Manoel Pena, bem como registradas em cartas enderecadas especialmente a Ruth Landes, sio reencenadas pelo jomnalista, tingindo a narrativa com as cores de uma demanda pessoal. Procedendo dessa forma, o autor insere na narrativa o tema da identidade, construindo um discurso conctitualmente cindide entre a derrota da sacionslidade ¢ a apreensio intima, ainda que s6 pressentida, do duplo movimento das fronteiras da identidade, Ao transformar sua interpre: tagio em demanda pessoal, o narrador simultaneamente glosa o trabalho antropolégico de Quain, deixando-o, porém de lado para focalizar aspectos existenciais da passio do american entre os indigenas brasilciros (VIEIRA, 2004: 200). A partir deste momento, far-se-d a descoberta de que estes dois personagens - os pais de Quain e do jornalista - também sio fantasmagoricos, assombram as memérias de seus filhos, pois conformam uma série de escolhas e problemas em suas vidas Futuras. Espectros que rondam a narrativa ¢ os personagens centrais, como icones de relacdes familiares fracassadas. Formas espectrais que, a0 fim, unirio as personagens centrais. Contudo, 2 medida que 0 romance caminha para seu desfecho, a investigacio do jomalista acaba por atropelar a narrativa; 0 tom obsessivo que até entio marcava esta personagem é rebaixado, provocando no leitor a sensaco de um progressivo esvaziamento. Para Yara Frateschi Vieira, a permeabilidade dos discursos, as sobreposiges de imagens, a importincia das fotografias, dos desenhos e das pinturas corporais e, por fim, certa displi- céncia nas ltimas paginas acabam por produzir um efeito de esvaziamento da narrativa, como se o narrador (ou o autor, no caso) tivesse se cansado e jf nao encontrasse energia para encarat as reagdes do jomalista a certos aspectos sérdidos da historia que conseguira resgatar -, tudo isso, sendo maquinaria destinada a desqualificar fronteiras entre identi- dades discursos, dé simultaneamente ao leitor a sensagdo de estar numa casa de espe- thos, cuja montagem inteligente permite criar um ponto simultaneamente central ¢ cego ~ como se Narciso, afinal, se contemplasse num espelho que nao reflete nada (VIEIRA, 2004: 201). Todas essas observacdes nao podem perder de vista que a verossimilhanca de um romance nio depende apenas da possibilidade de comparar 0 mundo do romance a0 mundo real, Depende, antes, da organizacio estética do material ficcional. Dito de outro modo, o aspecto mais importante para o estudo do romance ¢ 0 que resulta da anslise de sua composigio: “mesmo que a matéria narrada soja cOpia fiel da realidade, ela s6 pare- ceré tal na medida em que for organizada numa estrutura coetente” (CANDIDO, 2004: 85). Na estrutura de um romance de formacio, com as peculiaridades que possui Nove Noites, isto é decisivo para o encaminhamento narrativo. Ou para o seu descarrilamento a0 final: a matéria memorialistica nio pode ser atropelada, a nao ser que tal procedimen- to houvesse sido anunciado como estratégia narrativa - uma memoria fragmentada, por exemplo. Ou uma estrutura em que o acaso fosse o determinante. Em Nove Noites, nio & isso que é anunciado no principio: existe uma organizagio deliberada para que os circulos de memérias se entrelacem compondo uma narrativa que justifique um a0 outro, No entanto, a obsessio do jornalista-personagem" em conferit sentido objetivo a um suicidio danifica a estrutura do mundo ficcional criado até ali. Leva-o a ir atris de uma hipotese fraca ~ 0 sussurro de um fotdgrafo estadunidense moribundo - que desen- cadeia todo o romance, quando ligado ao artigo de uma antropéloga ¢ o leva aos Estados Unidos, mas nio o fecha de maneira convincente ficcionalmente. UM PARALELO NO ESPACO: QUARUP E NOVE NOITES B interessante notar como, na historia da literatura brasileira moderna e contem- poranea, 0 espaco geogrifico e a meméria so formadores de percepgdes sobre a realida- de social do pais. Como exemplo, podemos citar o sertio, sobre © qual boa parte da literatura de 30 se debrugou (Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, por exemplo), além do universo mistico criado por Guimaries Rosa em scu romance mais famoso (Grande Sertio: Veredas) e em seus contos. Em termos de romance de formacio, na sua acepsio precisa, José do Lins do Rego figura como autor singular, uma vez que constr6i a0 menos cinco romances" sob o tera da decadéncia de uma classe social, valendo-se de procedimentos camuflados e caracteris- ticos de uma narrativa memorialistica (Cf. CHAGURI, 2007). Podemos citar, ainda, 0 caso da historia da nossa mais recente ditadura civil-militar. Aqui, 0 espaco do exilio Para Jorge Cali, © que chammamos aqui de obssto se assem, no livo de Bernardo Carvalho, 2 uma esxruruia de romance polical. “Tem muito de um romance de mistio, as pace de urna busca verdadeca sobre um fato acontecido. Bernardo Carvatho quis riber por que dabos Buell Quain, entropblogo ores americeno de 27 anos, se matou de mancirasbominive, na aclvabrasicra, entre os indios Krad em 1959. Como um deteive, fo aris de documents, fotografia, cartas; enrevitowtertemunhas, erubrenhoase na Alorestacem anropélogos. De repent, porém, a memoria da infncia comeya ase craar com eta procua, Na aretha do lv se enconte fotografia de um mienininho que da mo a um indio enone e nu, A leenda ize “O autor, 205 sts anos, no Xingu”, & que seu pai comprare teas no centro do Brasil levava pa lo saroto, em viagens atrscada de avio monomotor.| Em Nove Noits, tatoo autor quanto 0 narador se em a pele do dettive. Hi, asim, uma investigasio “real” e outra “imaginiia”. A partir do texto, € ‘impossivel tragar uma linha diviséria entre arnbas, Por sua vez, diante dos acontecimentos tao extraordindrios aque livo vai desdebrenda,o tor ¢ lead, ee proprio, 20 papel do dettve,inconformado por ndo poder separarveladee meni, pesonagem rl einvenado, staagio ocortida ou imaginada, Ese lugar incommodo se mostra come a ponta apztene de ums inquictagio mis profunda, que Bernardo Carvalho explomou em todos os seus escritos. Nees, a convengio que separa 0 “eu” do “rmundo", sem a qual seria impossvel a cexisténcia cotidiana, ¢ ultrapassada: um se funde no outro, um é impossivel sem o outro” (COLI, 2002). "CE. Menino de Engenho, Bangé, Deidinho, Moleque Ricardo. Urina. 1m 2007 m 127 128 w plural 14 das prisdcs serve come elemento explicativo das alteragées de uma realidade para uma geracio, que narraré suas desventuras politicas mesclando a técnica do romance de for- magio com a literatura de testemunho. O que une ambas, uma vez mais, é a meméria, a um s tempo, social ¢ individual (CE. SILVA, 2006). Com esse preimbulo, pretendemos finalizar o artigo com uma comparagio entre aspectos de Nove Noites ¢ outro romance que se passa também no Xingu: Quarup, de Anténio Callado. Publicado cm 1967 ¢ escrito no biénio anterior, Quarup trata de duas historias simultaneamente: a criasio do Parque Nacional do Xingu, nos anos 1950 e as transfor- mages envolvendo um jovem padre, Nando. Callado constréi estas narrativas tendo dois marcos fundamentais: 0 suicidio de Vargas em 1954 - gito anos, portanto, depois do suicidio de Quain - ¢ 0 golpe de estado civil-militar em 1964, Essas marcas temporais dao conta das transformacSes que se dao no pais e, em particular, numa fiagio geracional, que nao passara inocente as transformagdes politicas. Quarup é menos ousado em termos formais que Nove Noites. Nao existem planos de meméria superpostos ou personagens fantasmas. As vozes do romance se constroem numa narrativa linear, seguindo um roteiro bem definido. Entretanto, existe aqui uma distancia fundamental entre estes dois romances que se da nas suas conseqiiéncias socio- légicas e na maneira como ambos lidam com a historia. E, por que no dizer, da maneira como scus autores operam a construcao de seus narradores. Callado, jornalista veterano nos anos 1960, nio se pée, tal qual Carvalho, em cena na construcio de Quarup. Ele nio artificializa a construgdo de um personagem que seja jornalista e que acompanha o decénio narrativo. Ao contrario: embora tenha acompa- nhado pessoalmente os fatos de que trata, ele os coloca enquanto vivéncia dos persone- gens que constréi. Mas, para tanto, também se vale de personagens reais. Estio 14 os irmaos Villas Boas, Vargas, Miguel Arraes, Francisco Julio, os golpistas de 1964 ¢ as Ligas Camponesas. Contudo, também estio moldados enquanto personagens vivas, agindo ¢ interagindo com outros entes ficcionais da narrativa. O Xingu, nascendo como reserva de protesio aos indios, atua também como perso- nagem. Menos que um inferno, como visto em Nove Noites mais como um elemento transformador: um lugar onde o encontro com um certo outro nfo & apenas uma conse- giiéncia cliché do oficio do cientista social, mas certamente uma discussio existencial. E sera esta discussio que moldara nao s6 o titulo do romance de Callado como as conseqiiéncias politico-existenciais para uma fracio geracional: Quarup, um ritual indi- ' Usiizamos a idtia de fragdo geracional de mancizasemethante a itia de fracio de clase, expresia por Karl Marx no 18 Brumirio de Louis Bonaparte ou de Nicos Poulantzs, em Poder Politico e Classes Sociais. Uma {getasi0, assim como una clase social, ndo pode se considerada como homogines. Divesos so 08 interesses ‘nvolvendo uma determinada classe ou gezagio sociel, que culminario em atirudes diferentes dentzo do seu ‘grupo de origem. Nesse sentido, a idéia de fragao geracional nos serve para precisar que nem toda a classe tmédia (intelectalizada ou nio} ou clase proletirialutou conte o golpe de 1964. Muito pelo conteiio, como if € sabido, interests diversos mobilizaram individuos dentro dessa classes sociais. Nio podesiam, portanto, ser alocados sob uma idéia conciliadora © homogeneizante de gerasio (Cf. SILVA, 2006). gena de transformagio. Transformagio esta que significari, na narrativa de Callado, a metifora do homem novo. O personagem simbolo desta metifora sera padre Nando que, ao final do romance, apés passar por uma série de transformagées que tém 0 foco no Xingu, assume a identidade de Levindo, para se engajar na luta armada. De Nando a Levindo, o autor cria um roteiro de opgGes existenciais de uma frasao geracional, cujas conseqiiéncias jé nos sio familiares. Nove Noites se encarsega de tarefa completamente diversa. Mais modesta, talvez. E possivel dizer que a principal preocupagio do seu narrador ¢ procurar entender as causas objetivas do suicidio de Buell Quain. De forma obsessiva, & verdade, que o leve a compre ender a si mesmo enquanto individuo. E neste roteito obstinado, o narrador jornalista, bem orientado por seu autor, mescla a sua historia & de seu objeto, criando um paralelo entre si eo outro. Neste sentido, serve de comparagao com aspectos do método etnogrifico, explicative da antropologia social. Descrigio densa, por vezes também obsessiva, na tentativa de explicagio objetiva daquilo que lhe é um estranho. Por vezes ocorre o fracas- so, tal qual se sucedeu com Quain, em suas tentativas de estudar grupos indigenas em outras partes do mundo ¢ também no Brasil. Fracasso este que alcanga também o jorna- lista-personagem de Nove Noites, que nfo acessa as causas objetivas que levaram Quain 20 suicidio. Das subjetivas, possui um conjunto grande de suposigdes. ‘© Xingu, em Nove Noites, opera como um inferno. A regio se toma fato explicativo de fracassos recorrentes. Callado a retratou num momento de nascenga, também assom- brado pelo fracasso da visita de Vargas, que deveria criar o Parque Nacional, mas que se suicida antes. Carvalho opera com seus narradores de forma a que a regiio Ihes scja indspita, insinuando, no limite, que a criagdo do Parque Nacional, décadas antes, seria 0 retrato de mais um fracasso: o das agdes governamentais em relagao a questdo indigena. Entretanto, em termos de operagio narrativa, Callado & mais ousado, talvez pelo mo- mento histérico, ao conseguir retirar do inéspito politico, social ¢ regional, algo que scia novo, Seu retrato de guerrilhciros rurais, baseado na situacio seal de efervescéncia politica do pais, é literariamente feliz. E antes que 0 acusassem de ufanismo clementar, no inicio da década de 1970, ele publicaria Bar Don Juan, colocando em xeque a experiéncia anterior, tentando analisar as causas da derrota de aspectos da experiéncia retratada em Quarup. © nartador jornalista de Nove Notes no tem condigées de fazer 0 mesmo. Sua busca é pelo destino de um individuo, ¢ nao pelo destino social. Sua busca pelos fracas- sos de um individuo leva-o a explicar sua propria trajetéria, O suicidio de Quain nao é um ato politico, com significado mais evidente ou tao perene quanto o de Vargas ou da morte da identidade de Nando em Quarup”, Neste sentido, o suicidio de Quain "" Ae enveredar elas expeculagies das causa subjtivas que poderiam ter levado Quain 20 suicidio,o nasrador de Nove Noites sugere a0 letor que ese seria 0 destino do antropélogo quer estivesse entre of krahs, quer ‘estivesse permanecido entre os nativos das ilhas Fiji local de sua primeira pesquisa de campo). & Manoel Fena quem acaba por confirmar esta impresio: “numa das vezes em que me falou de suas viagens pelo mundo, perguntei sonde queria chegar¢ ele [Buell Qusin] me diste que exeava em busca de um ponto de vist. Eu Ihe perguntei “Para olhar 0 qué” Ele respondeu: ‘Um ponto de vista em que eu jf nio esteia no campo de visio" [a Viase como ur esirangcro 6 20 visia, procurava apenas volar para dentro de si, de onde nfo estas mais condenado a se ver. Sua Fuge foi resultado de seu fracasso. De certo modo, ele se matou para sumit do seu campo de visio, para deizar de se ve” (CARVALHO, 2006: 100). Islico no original. 1m 2007 1129 130 m plural 14m encarado como um fracasso individual, cuja ressonancia ecoa pouco. Impactou ao me- nos alguns antropélogos que souberam do fato ¢ que the eram proximos, tornandose um elemento exotico na historia das Cigncias Sociais no Brasil, em particular da Antro- pologia Social. Mobiliza a curiosidade de um piblico leitor especifico ~ aprendizes ou praticantes do oficio de cientista social - que conbecem partes da historia narrada, a partir dos trabalhos de Mariza Corréa. Entretanto, ganha os prémios Jabuti ¢ Postugal Telecom, quando bem narrado em romance. Diferentemente, Quarup se toma uma metifora dos destinos de uma fragio getacional, com impacto que vai muito além da histéria de um individuo ou de uma disciplina académico-cientifica, Seu nico prémio, no entanto, & o de ser a fotografia essencial de uma epoca. ‘Obviamente, 05 interesses ¢ as posicdes dos autores so distintos. Mas também o pais retratado por ambos. Um elo os une, entretanto: a regifo, que um elemento explicativo do fracasso de Quain ¢ também do ritual de transformagio que nfo se com- pletou, nio criow homens novos, nio gerou uma sociedade diferente. Nove Noites,lido apés Quarup, opera muito bem aquilo que parece ser apenas o possivel para uma parte do romance brasileiro contemporineo: o exercicio doloroso da meméria individual, social ¢ politica, assombrada por sucessivas fraturas e fracassos. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Fabio de Souza. “As Vozes da Meméria”. Folha de Sio Paulo, 31/03/2007, plo. AUERBACH, Erich. “A Meia Marrom”. 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