Вы находитесь на странице: 1из 46
eee eee tee se por outras partes do mundo e espalhando tum sentimento de desencanto em relacao as pee pene nc CO Ln ce Ce Cuore. de protestos e revoltas populares que vém ‘ocupando as ruas de varios paises, em Arte en ree kare Peer Pee ee Perec ut erent Pere ee eee fees reece an urn ee erent ete ec Re Ceeo pee ee eee Pere Cen as Em A esquerda que nao teme dizer seu nome, Pere uch Le nord eee cen cnr ee eee eed Pree og Perret eo eed populares indicam o desejo e anecessidade Peer eC ce coe Tee erred Pree uy ec eee Penne eee Tuer) eee ere et eek ou Peer CeCe Lce CeCe ae reafirmar seus principios histéricos aCe ety Due CR eee Coreen? A esquerda que nao teme dizer seu nome Vladimir Safatle A esquerda que nao teme dizer seu nome TRES ESTRELAS 12 Tes stan seo tri da Eros Flhads Mana S.A. Finds dis reserva. Shun pre dest ‘Sere duFnpesa Fl da Marfa stents do slo coil Ts Estes rovrow Aleino Leite Neto bortoma-assisTENTE Rit Palmeia DENAGAO ME PRODLEAO GRAFIC Mariana Metidien PROOUCAO GRATIC) Iris Plachini cars Felipe Kaier ROJETO GRAFICO 90 SHOLO Mayumi Okuyama ateagacio Paulo Nascimento Verano REvISKO Tio Kawata desde dene de 1000, “ i. Sumario 8 60 82 8 Introducao Igualdade ea equagao da indiferenga Soberania popular ou a democracia para além do Estado de Direito Do tempo das ideias Conclusao Sobre o autor A meu pai, que me dew um nome Ao que fez 0 ges to do general Carlos Prats, co por excelénca Melhor morrer de vodea que de tédio. Vladimir Maiakéuski Introducdo Um dos mantras preferidos dos iiltimos anos diz respeito a0 pretenso esgotamento do pensamento de esquerda. Seus sacerdotes sio de dois tipos. Os primeiros gostariam de ser vistos como 0s vitoriosos de uma época terminada de conflito ideol6gico. Eles nao cansam de afirmar que a es- querda nunca passou de um arremedo de autoritarismo mal-disfargado, demandas infantis de protegdo, ingenuidade a respeito das violéncias animadas pelo mal radical eincom- peténcia gerencial. Durante décadas, esses intelectuais nao tinham coragem de dizer claramente 0 que pensavam. Mas, animados pelo fim do socialismo real, com o consequente colapso dos partidos comunistas no Ocidente, pelo embaralhamento sistematico das politicas de sociais-democratas e conservadores, pela paranoia securitéria da primeira década do século e por doses reforcadas de fandamentalismo cristao, eles podem agora afirmar todo seu conservadorismo e sua crenga nas Virtudes curativas do porrete da policia O segundo tipo é composto de um séquito heterdclito de vidivas da esquerda. Com um olhar entristecido, eas afirmam que a esquerda esta sem rumo desde a queda do Muro de Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo. Nao da mais para sonhar com Estado de Bem-Estar Social € coisas do tipo, nem ter explicagdes angelicais a respeito da violéncia, Falar em novas configuragdes do politico & conversa de gente que no entendeu que a democracia par- lamentar 6, como costumava dizer um lider conservador, 0 pior governo, mas 0 nico possivel. As velhas agendas de critica do poder, de identificacdo dos conflitos de classe ¢ das praticas disciplinares presentes em nossas instituigBes poderiam muito bem ser trocadas por uma boa agio social em onGs ecoldgicas, de preferéncia aquelas financiadas por bancos e grande corporagdes. Varias dessas vidivas, principalmente em paises euro- peus, ndo temeram flertar com o pior do nacionalismo edo culto da identidade, travestindo tudo isso de huta do Ocidente liberal contra o Oriente islamico amedrontado pelo ineluta- vel processo de modernizagao. De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de esquerda encontrou no Brasil um terreno proficuo, Desde 0 governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), tinhamos de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam Marx para justficar o cardter inevitével da globalizagio e de nossa insergdo “dependente” e subalterna. O tinico resultado concreto desse cinismo foi impor um dito “choque de rea- lidade’, visando a acabar de vez com o pretenso fantasma do “Estado getulista”, com seus tentaculos ineficientes. Por muito pouco, nao se destréi o que restava da capacidade estatal de construgdo de politicas de imtervengio econémica, capacidade cuja importancia ficou evidente depois da crise mundial de 2008. Como se isso nao bastasse, a desconsideragao sobe- rana por movimentos sociais e por setores organizados da sociedade civil ~ a parte a Federacao Brasileira de Bancos (Febraban) ~ foi regra nesse periodo. Sé a titulo de exem- plo, lider do governo de Fernando Henrique Cardoso no Congresso nao temia chamar acdes do Movimento dos Traba- Thadores Rurais Sem Terra (mst) de “terrorismo”, Da mesma forma, a questao social era tao ausente que seu presidente do Banco Central nao via problemas em ir televisio e sugerir pura e simplesmente a supressao do pardgrafo da Consti tuigdo Federal que obrigava o Estado a garantir a universa- lizacao do servico piblico de satide. Com o governo Luiz Inacio Lula da Silva (2003-2010), no entanto, continuamos obrigados a conviver com o bloqueio reiterado da reconstrucao dos fundamentos gerais do campo do politico, como se a imersio na “pior politica” fosse uma fatalidade intransponivel. A despeito de sua capacidade de colocara questio social enfim no centro do embate politico ede compreender o necessirio caréter indutor do Estado brasileiro no nosso desenvolvimento socioecondmico, 0 -governo Lula sera lembrado, no plano politico, por sua inca- pacidade de sair dos impasses de nosso presidencialismo de coaliz40. Como sea governabilidade justificasse a acomoda- go final da esquerda nacional a uma semidemocracia imo- bilista, de baixa participacao popular direta e com eleigdes em que sé se ganha mobilizando, de maneira espuiia, aforga financeira com seus corruptores de sempre Nos dois casos, esmerou-se em utilizar um palavreado de esquerda para justificar business as usual, O que acaba por reforgar nossa impressio de que o politico na contempora- neidade seria apenas a dimensio da auséncia de criatividade e das limitagdes de nossas aspiragdes de mudanca, Porisso, somos obrigados a ouvir compulsivamente que divisdo esquerda/direita nao faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posigdes politicas¢ leituras dos impasses da vida social contemporinea radicalmente antagénicas, hd uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é.utilizada para fornecer a impressio de que nenhuma ruptura radical esta na pauta do campo politico ou, para ser mais claro, de que nao ha mais nada a esperar da politica, a ndo ser discussdes sobre a melhor maneira de administrar 0 modelo socioecondmico hegeménico nas so- ciedades ocidentais. Nao se trata mais de pensar a modificacio dos padrées de partilha de poder, de distribuigao de riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questio de gestio de modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que 0 mesmo tempo se afirmam como os tinicos possivels. ‘A funcdo atual da esquerda 6, por isso, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo politico é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que ha muito deveria ter sido ultrapas- sado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe A esquerda insistir na existéncia de questdes eminentemente politicas que devem voltar a frequentar o debate social Uma maneira de iniciar a discussio ¢ identificando quais sio as posigdes que podem caracterizar, hoje, o pensamento de esquerd; insistir que a plasticidade da poli- tica exige que a determinacao dos problemas do presente Important defina a configuragao de nossa posigao. Isso significa que © pensamento politico deve ter uma dimensao profunda- mente “estratégica”. Ele se move de acordo com os proble- mas postos pela vida social. Muitas vezes, varias correntes da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em ‘uma espécie de “petrificagao do discurso” que acabou por afasté-los da capacidade de pautar a opiniao piblica Essa reflexdo sobre as posigées que caracterizam a esquerda pode nos mostrar como a politica é, em seu funda- mento, a decisio a respeito do que serd visto como inegocidvel. Ela nao ésimplesmente a arte da negociagao e do consenso, mas a afirmagdo taxativa daquilo que nao estamos dispostos a colocar na balanga. O que falta hoje & esquerda é mostrar que, segundo seu ponto de vista, é inegociavel. Por exemplo, quais processos e resultados sio fundamentais para uma verdadeira coesdo social que nao seja submersa por clivagens c desigualdades. Este livro pretende falar, pois, do inegociavel, ou s disso que, normalmente, éa primeira coisa que a esquerda esquece quando assume o governo e comeca a ficar fas- cinada por ser recebida em casas de escroques na Riviera Francesa, por ser convidada para vernissages de publicitarios travestidos de artistas plisticos e por comesar a ler mais so- bre vinhos caros do que sobre a alienagio do trabalho nas linhas de montagem da Ford. Vale a pena insistir nesse ponto, porque o principal pro- blema que acomete a esquerda atual é sua dficuldade em ser uma esquerda popular. Isso significa duas coisas: saber expor problemas sociais a partir da perspectiva dos que so mais vulneraveis eles e, sobretudo, serum enunciador crivel para tais camadas populares. No primeiro caso, a esquerda deve saber encamar a urgéncia daqueles que sentem mais claramente © sofrimento social advindo da precariedade do trabalho, da pauperizagao e das miltiplas formas de exclusio. Mas é dificil encarnar tal urgéncia quando se comeca a viver em apartamentos de 6,5 milhoes de reais. No segundo caso, a esquerda deve mostrar que é ca- paz de governar sem produzir novas modalidades de sofri- mento ¢ inseguranga social. Ela deve ser capaz de detalhar 0 extremo suas ages € os cendrios possiveis que estas en- gendrariam. Ela deve mostrar estar ciente das dificuldades eda melhor maneira de vencé-las, isso sem ter que apelar para ideias vagas como: “tudo se resolve por meio de vontade politica”, Ou seja, ela deve ser, ao mesmo tempo, capaz de sentir 0 softimento social e capaz de tera inteligéncia técnica para resolvé-lo no cotidiano AGIR PARA NAO PENSAR Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por que perder tempo com teoria e discussio sobre principios se as urgencias priticas da politica parecem tao prementes. Nesse sentido, valeria a pena lembra-lo dos paragrafos ini- ciais de Carta sobre o humanismo, em que Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relacao entre pensamento e praxis. Marx ja dissera que a fungio da filosofia era transformar 0 mundo, e nao simplesmente pensi-lo, Heidegger faz. um adendo de rara preciso: o pen- samento age quando pensa. Na verdade, esse agir proprio ao pensamento étalvez © agir mais dificil e decisivo. Nao se trata da velha crenga de 0 pensamento, no fundo, ser um subterfiigio para a agdo, uma compensagao quando nao somos capazes de agir. Se podemos dizer que 0 pensamento age quando pensa, é porque ele é a Gnica atividade que tem a forga de modificar nossa compreensio do que é, de fato, um pro- blema, qual é 0 verdadeiro problema que temos diante de nds e que nos impulsiona a agir. £ 0 pensamento que nos permite compreender como ha uma série de ages que sio, apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado ja est decidido de antemao. Asociedade capitalista contemporanea procura dar aos sujeitos a impressio de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco comoas decis bes de consumo, cada vez mais “customizadas” particularizadas, No entanto, talvez seja correto dizer que essa ago nao é um verdadeiro agir, pois ¢ incapaz. de mu- dar as possibilidades de escolha, que ja foram previamente determinadas. Ela nao produz seus proprios objetos, apenas seleciona objetos ¢ alternativas que ja foram previamente postos na mesa, Por isso, essa ago nao é livre, Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redugio da liberdade a um simples livre-arbitrio que me faz escolher no interior de um quadro que me éimposto sem que cu possa produzi-lo, Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda acao nao efetiva pare, a fim de que © verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para nao pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar forga critica ea forca radical do pensamento. do a forga critica do pensamento comeca a agir, Qua entio todas as respostas comecam a ser possiveis, alterna- tivas novas comegam a aparecer na mesa, Nesses momentos, é como se 0 espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas aparecam, é necessario que saibamos, afinal de contas, quais s20 os verdadeiros pro- blemas. E talvez devamos colocar novamente esta questo simples: para uma perspectiva de esquerda, quais sio os verdadeiros problemas? Igualdadeea equacao da indiferenga Quem ignora efetivamente que 0s lobos andam em matilha? Talvez a posicao atual mais decisiva do pensamento de es- querda sejaa defesa radical do igualitarismo, Juntamente com a defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo fornece a pulsagao fundamental do pensamento de esquerda, Tal defesa do igualitarismo traz orientagdes muito claras a respeito de questoes centrais no campo social e econdmico. Por “igualitarismo” devemos entender duas coisas. Primeiro, quealuta contra a desigualdade social e econémica éa prin- cipal luta politica. Ela submete todas as demai Nossas sociedades capitalistas de mercado sto socieda- des “paradoxais” por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperizacao de largas camadas da populagao. Quebrar esse paradoxo é tarefa da politica Por outro lado, “igualitarismo” refere-se também a uma idea ligada as demandas de reconhecimento. Ela significa que a esquerda deve ser “indiferente as diferengas”. De certa forma, a politica atual da esquerda s6 pode ser uma politica da iniferenga. a ‘Vejamos 0 primeiro ponto para depois explicarmos melhor o segundo. A partir do inicio dos anos 1980, 0 impulso fornecido pelos modelos liberais implementados por Margareth ‘Thatcher (1979-1990) ¢ Ronald Reagan (1981-1989) levou a economia a um desenvolvimento exponencial nos paises centrais, sso enquanto ia deixando de lado as expectativas daquilo que ainda chamavamos nos anos 1960 de“sociedade do Bem-Estar Social’. Se riodo oportunidades miltiplas de investimento, oferecendo , por um lado, “o capital conheceu durante esse pe- taxas de lucros em geral mais clevadas que em épocas anteriores”,' por outro, a flexibilizacao do trabalho, o de- senvolvimento tecnoldgico eo declinio das politicas esta- tais de protegio provocaram uma situacao potencialmente explosiva. Apenas para ficar em um exemplo: enquanto © Produto Interno Bruto (erB) norte-americano por habi- tante cresceu 36% entre 1973 € 1995, 0 salério-hora de nao executivos (que sio a maioria dos empregados) caiu 14%." No ano 2000, 0 salario real de nao executivos nos Estados Unidos retornow ao que era ha cinquenta anos. Dados como estes demonstram que, diante dos modelos liberais, ou seja, sem forte intervengao de politicas estatais de redistribuigio, 1 Boktanski, Luc. Le nouvel esprit du captalisme, Paris: Gallimard, 1999, p.19, 2 Ver: Thurow, Lester: Les fractures du capitalie, Paris: Village Mondial, 1997. nossas sociedades tendem a entrar em situagao de profunda fratura social por desenvolverem uma tendéncia radical de concentragao de riquezas. O problema da desigualdade s6 pode ser realmente minorado por meio da institucionali- zagio de politicas que encontram no Estado seu agente. Pode-se dizer isso porque, de outra forma, elas nunca terao aescala e a universalidade necessérias para funcionar. O Estado a tinica instituigdo que garante o estabelecimento de processos gerais capazes de submeter toda a extensio da sociedade. Por outro lado, ele é resultado de uma rede de normas sociais cuja configuracao é sensivel 4 pressao da sociedade organizada. Tal pressdo péde, em varios momentos da his- toria do século xx, transformar o Estado em forga capaz de limitar interesses de concentragao de riquezas vindos dos setores mais afluentes da sociedade. Nao ha outra institui- ‘sao capaz. de desempenhar papel semelhante. Por isso, em nome do combate a desigualdade econdmica, a esquerda no pode abrir mao do fortalecimento da capacidade de intervengao do Estado. As criticas contra o Estado, vindas da propria esquerda ¢ animadas pelo saldo libertario de Maio de 68, nao tém res- posta adequada para o problema da luta contra a desigualdade econdmica. Ela é forte na dentincia das estruturas disciplina- res do poder estatal, mas esquece que o Estado moderno nao pode ser reduzido a um aparato disciplinar, nem mesmo, se aum quisermos retomar essa tematica marxista cléssica mero aparelho de interesse de classe. Os iltimos trinta anos demonstraram claramente como dinamicas de redistribui- gio e de luta contra fraturas sociais nao se realizam sem a forga de intervencao do Estado, Hegel jé havia insistido com precis Por outro lado, arautos do pensamento conservador jo nesse ponto desde sua Filosofia do dreto. procuram desqualificar a centralidade da luta contra a de- sigualdade, afirmando que a diversidade de talentos e de capacidades de engajamento deve ser respeitada. De fato, nerhuma pessoa sensata poderia ser contréria 4 meritocracia ¢ a recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais valores apenas encobrem 0 pior cinismo quando nao vém associados a luta contra a desigualdade de oportunidades ¢ condiges. A diversidade de talentos é, muitas vezes, a capa que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas é um. problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento indi lual por mérito. Um exemplo do tipo de ago que uma defesa radical do igualitarismo pode produzir foi sugerido pelo candidato de uma coligacao francesa de partidos de esquerda & elei- & proposigao de um “sakirio maximo", com um teto que im- » presidencial de 2012, Jean-Luc Mélenchon, Consiste na pediria que a diferenca entre o maior eo menor ganho fosse superior a vinte vezes. Uma lei especifica também limitaria © pagamento de bonificagdes ¢ stock-options. 24 Em uma realidade social de generalizagio mundial das situagdes de desigualdade extrema, outra face daquilo que certos socidlogos chamam de “brasilizagao”, tais propostas tem a forga de trazer, para 0 debate politico, a necessidade de institucionalizacao de politicas contra a desigualdade. No Brasil, onde a diferenca entre o maior eo menor salério emum grande banco chega a mais de cem vezes, discusses dessa natureza sio absolutamente necessérias. Elas permi- tema revalorizagio de atividades desqualificadas economi- camente e a criagdo da consciéncia de que a desigualdade impoe uma “balcanizacao social” com consequéncias pro- fundas. Discussées como esta s6 uma esquerda que nao teme dizer seu nome pode apresentar. Note-se ainda que o argumento liberal referente a des- motivagio ea quebra do empreendedorismo que agdes dessa natureza trariam é simplesmente falso. Entre os vinte paf- ses com maior indice de inovagao, encontramos Islandia, Noruega, Suécia e Dinamarca: pai cuja diferenga entre ‘© menor € o maior saldrio em empresas, muitas vezes, nado chega a ser de um para quatro. Ou seja, ndo ha nenhuma relagdo direta entre diferenca salarial ¢ iniciativa profissional Garantido um salario digno, as motivagdes para a iniciativa passam por outras dimensdes. Naverdade, o argumento liberal é apenas uma estratégia para nao deixar evidente um clissico processo de espolia de classe. No primeiro semestre de 2on, um estudo mostrou 2s como 0 0.1% mais bem pago no Reino Unido recebia, em 1979, 13% dos salérios. Hoje, recebe 5% em 2030 deve receber 14%.’ Costuma-se dizer que uma das maiores astiicias do diabo é nos convencer de que ele mio existe, Uma das maio- res asticias do discurso conservador é nos convencer, diante de dados dessa natureza, de que conflito de classe é um de- litio de esquerdista centenario. Mesmo que vejamos um processo brutal de concentrago de renda completamente institucionalizado e intocado por qualquer partido que esteja no poder, mesmo que vejamos a tendéncia de espoliagdo dos recursos de paises industrializados por camadas mais ricas da populagio, tudo deve ser um complé dos incompetentes contra aqueles que bravamente venceram na vida gragas ape- nas a seu entusiasmo e sua capacidade visionaria. Por isso, a esquerda deve meditar um pouco sobre esta afirmacio de Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo: “E verdade que ha uma guerra de classes, mas éa minha classe que esté fazendo a guerra e ganhando". ADEUS A DIFERENGA Sea primeira dimensio do igualitarismo diz respeito luta contra a desigualdade econdmica, a segunda se refere 4 Ver editorial “Mais desigualdade’,Folha de Paulo, 3/6/20n, p.2 4 estrutura das demandas de reconhecimento na vida social. Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos cha- mar de “necessidade de uma politica da indiferenga”. Uma maneira de compreender tal necessidade é partir da consta- tagao do esgotamento da diferenga como valor maior para a acdo politica. Durante certo tempo, embalada pelos ares libertarios de Maio de 68, a esquerda viu na “diferenca” o valor supremo. de toda critica social e ago politica. Assim, os anos 1970 € 1980 foram palco da constituigao de politicas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daque- les que exigiam o reconhecimento da diferenga no campo sexual, racial, de género etc. Uma politica das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa politica -gerou, no seu bojo, as exigéncias de tolerancia multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim, Sabemos como multiculturalism diz. respeito, inicial- mente, a uma légica de agao politica baseada no reconhe- cimento institucionalizado da diversidade cultural propria as sociedades multirraciais ou as sociedades compostas por comunidades linguisticas distintas. [sso implica transfor- mar problema da tolerincia & diversidade cultural, ou seja, © problema do reconhecimento de identidades culturais, no problema politico fundamental. Dessa forma, abriram-se as port para certa secundarizacao de questées marxistas tradicionais vinculadas A centralidade de processos de re- distribuigio e de conflito de classe na determinagao da acao politica, No limite, os conflitos fundamentais no interior do universo social foram compreendidos como conflitos culturais, Por um lado, tal dinamica teve sua importancia por dar maior visibilidade a alguns dos setores mais vulneraveis da sociedade (como negros, mulheres ¢ homossexuais). No entanto, a partir de certo momento, comegou a funcionar de maneira contraria aquilo que prometia, pois podemos atualmente dizer que essa transformacao de contlitos sociais em conflitos culturais foi talvez um dos motores maiores de uma equacio usada a exaustio pela direita mundial, em es- pecial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as classes pobres europeias serem compostas majoritariamente por imigrantes arabes ¢ africanos e, assim, patrocinarem uma politica brutal de estigmatizagao e exclusio politica travestida de choque de civilizagdes. Desse modo, posso estigmatizar pobres aproveitando- -me do fato de eles serem culturalmente diferentes, criando com isso situagdes de profunda precarizagio do trabalho, de continua inseguranca de trabalhadores, que so espo- liados de todo e qualquer direito por serem imigrantes. Um classico conflto de classe e espotiagio transformou-se em chaque civilizatério, (Ou seja, hd uma linha reta que vai da tolerancia multi- cultural & perpetuacao racista da exclusao daqueles para quem nossos valores nunca deram prova de incluso moder- nizadora. Afinal, rata-se de dizer que 0 Gnico lugar onde a diferenca pode florescer em liberdade é em nosso Ocidente defendido por mega-aparatos securitérios contra terroristas. Talvez 0 saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que nao se adaptam a nosso “campo de diferencas” nao so diferentes, mas simplesmenteirrepresentéves, objetos de perpétua exclusio. Este é um ponto importante por nos mostrar como a organizagio discursiva do campo social das diferencas é sempre soli- déria d exclusio de elementos que ndo poderao ser representados por esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que nao serio mais ouvidos, elementos cujas palavras serdo definidas por nds como desprovidas de racionalidade e de possibili- dade de reconhecimento. A tnica maneira de evitar isso éndo organizar o campo social a partir da equagio das diferencas. A equagaio das diferencas, t2o presente nas dinamicas multiculturais, parte da seguinte questdo: até onde podemos suportar uma diferenga? Esta é, no entanto, uma péssima questio, Parte-se do pressuposto de que vejo 0 outro primei- ramentea partir da sua diferenga 4 minha identidade. Como se minha identidade jé estivesse definida e simplesmente se comparasse a identidade do outro. Nada mais falso. Por isso, a boa questo talvez seja: em que condigdes a diversidade pode aparecer como a modulacio de uma ‘mesma universalidade em processo tenso de efeivacaa? Na ver- dade, a diversidade nao é foco de desestruturagdo social apenas quando ela aparece como uma oportunidade para que a universalidade deixe de ser meramente abstrata. Por universalidade abstrata entendamos a universalidade da- queles que falam minha lingua e conjugam meus valores da maneira que acho que eles devem ser interpretados Um belo exemplo do que pode acontecer no interior dessa logica foi dado por Tony Blair, atual consultor do JP Morgan ¢ fiel escudeiro de George W. Bush. Lembremo- -nos de sua declaragao a respeito do “dever de integracao” gue cai sobre os ombros de todo mugulmano que resolveu emigrar para a Gra-Bretanha, discussao sobre a integragao motivada pela eterna querela a respeito do porte de véus em lugares pablicos: “Nossa tolerancia’, disse Blair, é parte do que faz, da Gra-Bretanha, Gra-Bretanha. Conforme- -se a isso ou nao venha para ca, Nés no queremos os hhate-mongers independentemente de sua raga, religiao ou credo”. “Conforme-s¢ a isto ou nao venha para ca” 6, de fato ¢ como todos podem perceber, um exemplo muito ilustrativo de tolerancia. Por outro lado, é bem provavel que essa estratégia de esvaziamento de conflitos sociais por meio da cultura seja responsével também pela inacreditvel onda de nacionalismo 4 The Guardian, g[12/2006, x0 requentado que invade a Europa. Desde a criagio do “Minis- tério da Imigragao, da Integracao, da Identidade Nacional e do Desenvolvimento Solidario” pelo marido de Carla Bruni até o recente apoio europeu a declaracio da independén do Kosovo e 0 recrudescimento do separatismo na Bélgica, vemos 0 mesmo tipo de regressio politica, que consiste em identificar Estado, nagao e povo. Acesse respeito, lembremos que uma das maiores inven- «des politicas da modernidade foi o imperativo de que nem anagao como construgdo imaginaria, nem o Estado como aparato juridico-institucional podem estar relacionados ao povo como identidade, pois isso significa colonizar a poli- tica com uma légica que bloqueia o que ha de determinacao universal em todo e qualquer sujeito. Nagao e Estado devem ser assim absolutamente indiferentes is diferencas, no sen- tido de aceité-las todas ¢ esvaziar a afirmacio da diferenca de qualquer contetido politico, O espaco do politico nao deve ser marcado pela afit- magio da diferenga, mas pela indiferenga absoluta em relagéo a qualquer exigéncia identitaria. No limite, isso nos leva a criticar a existéncia de uma nagao e um Estado francés, kosovar, judeu, flamengo, ingles, brasileiro etc. Condigao maior para discutir a possibilidade de constru- ‘do de Estados pés-identitarios, que nao precisem repetir compulsivamente identidades ilusérias construidas pelos interesses politicos do dia. u ee Para termos uma ideia de quao explosivo pode ser esse dispositivo, recordemos as consequéncias possiveis da chegada de mais um ator de peso nesse cendrio de contlito cultural: Joseph Ratzinger e sua igreja. Desde suas primeiras declaragdes racistas contra a violencia inerente a0 Isla, 0 jogo estava claro, Descontadaa ironia em ouvir o papa, que beati- ficou padres que apoiaram o regime fascista e assassino de Franco, criticar a violéncia religiosa, nao havia dividas de que a operagio consistia em insistir na posigao central do cristianismo catélico para configuragao da “ideia espiritual do Ocidente”. Com isso, abriam-se as portas para o pior de todos 0s amalgamas: a constituigdo de uma fortaleza iden- titaria patrocinada pela “tradicao judaico-crist Para tanto, Ratzinger nao teme sequer cometer o impro- pétio de citar Adorno ¢ Horkheimer em suas bulas, como se a critica frankfurtiana aos processos de interverséo na modernidade levasse diretamente as suas pregagdes por abs- tinéncia sexual fora do casamento, pela excomunhao dos que abortam, dos que defendem familias homossexuais e outras pérolas do biopoder e da culpabilizagao. A tinica coisa que se pode dizer a esse respeito é que, se Ratzinger se interessa pela Escola de Frankfurt, talvez ele pudesse comegar lendo “Tabus sexuiais e direito hoje”, de Adorno, ou, quem sabe, Eros e civlizagio, de Marcuse. Construir aliados por meio de falsos amélgamas é uma antiga estratégia para fazer proposig&es intoleraveis parecerem accitaveis. Contra aqueles que nao veem relagio alguma entre fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais reacionaria do catolicismo e politica multicultural das di- ferencas, valeria a pena fazer aqui algumas consideragdes. Nao podemos perder de vista que se trata, no fundo, de impor uma escolha forcada. Ou um modo de experién- cia social da diferenga que se realiza na multiplicagao de maneiras de ser coerente com os imperativos da moderni- dade capitalista. Ou a procura pela reconstituigao social de vinculos identitérios substanciais patrocinada pela policia e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nacao, familia ete) Diante dessa situagao, devemos lembrar que a verda- deira mola do poder nao & imposigao de uma norma de conduta, mas a organizagio das possibilidades de escolha. transforma Trata-se de operar uma redugao da escolha qu ‘0 movimento no circuito limitado de um péndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pen- dulo,o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de nao andar. Nossas formas hegeménicas de vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a geografia mental da liberalizagao e da restrigdo. B A EQUACAO DA INDIFERENGA Tal contexto deixa clara a urgéncia da esquerda em colocar novamente suas lutas sob a bandeira da igualdade radical e da universalidade, abandonando qualquer tipo de veleidade comunitarista ou de entificagao da diferenga. Voltemos a estratégia de deslocar o eixo do politico para uma dindmica de afirmacao das diferencas e das minorias. Esta era uma forma de universalizar direitos para grupos social- mente marginalizados (negros, homossexuais, imigrantes etc.). Mas note-se que a questdo central aqui era a constitu deuma universalidade verdadeiramente existente na vida social, nao o reconhecimento de que a sociedade é composta de grupos distintos muito organizados do ponto de vista identitario. A politica descentra os sujeitos de suas identidades fixas, abrindo-os para um campo produtivo de indeterminagao.* Isso significa que nossas sociedades devem ser completamente indiferen- tes as diferencas, sejam elas religiosas, sexuais, de género, raca ou de nacionalidades, pois o que nos faz. sujeitos politi- cos esta para além dessas diferencas. E isso que significa nao organizar 0 campo social a partir da equaco das diferengas. 5 Sobre o conceito de “experiéncia produtiva de indeterminagio”, ver: Safatle, Vladimis, Grande Horel Abismo: por uma reconstrugio da teoria do reconhecimento. Sao Paulo: Martins Fontes, no prelo; e Dunker, Christian, Estrtunaeconstituigo da cinicapsicanalitica, S20 Paulo: Annablume, 201. 4 Note-se quea critica a sociedade multicultural aqui pro- posta nada tema ver com o medo de que 0 cosmopolitismo co relativismo cultural vio provocar uma erosio das ba es de nossos valores ocidentais. A critica a sociedade multicul- tural ea sua “permissividade” democratica, bem exposta por Jacques Ranciére em um pequeno livro intitulado La haine de la démocratie” ¢ apenas uma deriva conservadora. Ha, no entanto, uma critica esquerdista as sociedades multiculturais que consiste em dizer que elas, de certa forma, no sio suficientemente multiculturais, Elas procuram, apenas, atomizar a sociedade por meio de uma légica es- tanque do reconhecimento das diferencas que funciona, basicamente, no plano cultural egnora os planos politico ¢ econémico, Uma sociedade verdadeiramente multicultural 6 uma sociedade radicalmente universalista e indiferente as diferencas. Hoje ¢ 0 momento de lembrar que a grande invencao da esquerda foi o universalismo eo internacionalismo. Nao temos nada o que fazer com nacionalismos e com delirios identitarios que tentam nos fazer crer, por exemplo, que os “valores ocidentais” esto correndo risco toda vez. que uma jovem muculmana vai a escola com um véu na cabeca. Melhor seria se perguntar por que tal jovem sente os ditos valores ocidentais” como uma farsa vazia, como palavras 6 Ranciére, Jacques. Lahaine dela démacate. Pari: La Fabrique, 2005. 8 sem efetividade, que servem apenas para mascarar a mar- ginalizagao cada vez mais brutal de imigrantes pobres sem direito a voto e sem representagao politica (apenas a deputados da Assembleia Nacional Francesa, apenas dois tém origem titulo de exemplo, poderia lembrar que, de 57 abe ~ isso em uma populagio em que os descendentes de drabes sdo cerca de 10%). Nessas horas, a esquerda precisa se lembrar de que a ‘inica maneira de esvaziar 0 contetido politico da afirmagao das diferengas 6 aceité-las todas, pois as diferencas se voltam contra o Estado quando elas dao vazao ao descontentamento de grupos sociais contra uma universalidade excludente, ou seja, contra uma universalidade falsa 6 Soberania popular ee 1na psicologia social, é superdimensionado. ou a democracia aoooeaoHKo para além do Estado de Direito Mas o Estado democritico excede os limites tradicionalmente atribuidos a0 Estado de Direito. Experimenta direitos que ainda nao lhe estdo incorporados, 0 teatro de uma contestacio cujo objeto no se reduz.& conservagio de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder no pode dominar inteiramente Quem diz isso nao é um adepto da esquerda revolu- cionéria que estaria a procura do melhor momento para solapar as bases do Estado de Dircito, Quem o diz é Claude Lefort, em A invengio democrdtica, um livro, ao contrario, lar- gamente dedicado a critica das sociedades burocraticas no antigo Leste Europeu. i Nessas frases estao sintetizadas algumas reflexdes maiores sobre a relagao intrincada entre Justica ¢ Direito. Relagdo que 7 Lefort, Claude, A invengio democtitica, S20 Paulo: Brasiliense, 1983, p46. 39 a uiltimamente tendemos aignorar, como se tudo aquilo que acon- tecesse & margem do Estado de Direito fosse necessariamente ilegal e profundamente animado por premissas antidemocrati- cas, Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar qual osen- tido dessa democracia que “excede os limites tradicionalmente atribuidos ao Estado de Direito” um ponto de excesso que a esquerda soube mostrar, ao longo da historia contemporanea, como motor fundamental das dinamicas do politico. Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a de- mocracia como ponto de excesso em relagio ao Estado de Direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora do Estado de Direito s6 poderi ter parte com 0 mais claro totalitarismo, Quem esta fora do Estado de Direito parece se colocar em uma posigio soberana, posigao daqueles que poderiam nao se submeter lei, modificé-la continuamente ao bel-prazer dos casuismos e circunstancias. Vemos ape- nas dois candidatos a ocupar tal posigao: o criminoso que viola abertamente a lei que garante a seguranga do Estado de Direito ou (e ai as coisas comegam a se complicar) le- sgislador que afirma que, em situacdes de excecio — como em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada vez mais complicado distinguir estado de guerra e estado de paz), de crise (mas sabemos hoje como ha sempre uma crise grave & espreita) -, certos dispositivos legais podem ser suspensos. No entanto, € possivel que exista um terceiro caso de excesso em relagdo ao Estado de Direito, um excesso muito bem posto por Jacques Derrida por meio da seguinte afirma- do, que encontramos em Forga de lei:“Quero logo reservara possibilidade de uma Justiga, ou de uma lei, que néo apenas exceda ou contradiga o Direito, mas que talvez nao tenha relagdo com o Direito, ou mantenha com ele uma relagao to estranha que pode tanto exigir 0 Direito quanto exclui-lo”. Pode, poi a Justiga ndo apenas exceder Direito, mas man- tercom ele uma relacdo tdo estranha que pareca se colocar em uma indiferenga soberana? Gostaria de insistir que essa possibilidade, longe de solapar e fragilizar a democracia, 6 o quea funda ca fortalece, uma vez que essa possibilidade é um outro nome para aquilo que normalmente chamamos de “soberania popular” ESTADOS ILEGAIS Conhecemos situagdes nas quais a Justi¢a se dissocia do Direito, Trata-se de situagdes em que nos deparamos com sum “Estado ilegal”, Mesmo a tradigao politica liberal admite, a0 menos desde John Locke, o direito que todo cidadao tem dese contraporao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impde um estado de terror, de censura, de suspensio das garantias de integridade social 8 Derrida, Jacques. Foca ki Sao Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 58. Nessas situagées, a democracia reconhece o direito a vio- lencia, jé que toda acdo contra um governa ilegal é uma aio legal Vale a pena insistir nessa questo. Podemos dizer que um dos principios maiores que constitui a tradicao de moderni- zag politica da qual fazemos parte afirma que o direito fun- damental de todo cidadao é0 direito & rebelido e a resistencia. Nao creio ser necessario aqui fazer a genese da consciénei da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito a violencia contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Oci- dente, é bem provavel que sua consciéneia nasca da Reforma Protestante, com a nogio de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematizagio e critica, ‘que exige a institucionalizagao da liberdade. Ja em Calvino encontramos uma afirmagio como: (Os governantes de um povo devem envidar todo esforgo a fim de que a liberdade do povo pelo qual slo responsiveis nao de vvaneca de modo algum em suas maos. Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou.a enfraquecerem, devem ser considerados, traidores da patria? E fato que ele evita generalizar tal consideragao sob a forma de um dircito geral de resisténcia. No entanto,a nogdo 19 Calvino, Jodo, A institugdo da religido ris 2009, p. 882, tomo I Sto Paulo: Editora Unesp, calvinista mostra claramente a possibilidade de uma critica do poder feita em nome de exigéncias de institucionalizacao da liberdade. Essa critica sera radicalizada por setores do pensamento reformado, como Thomas Miinzer e alguns reformadores puritanos ingleses. A partir deles,o direito de res isténcia aparece como fundamento da vida social. Essa abertura do pensamento reformado ao problema da resistencia alcangaré o pensamento politico. Ela serd radi- calizada pela tradigao revolucionéria francesa (que nao deixar deser influenciada pelos huguenotes). Assim, encontraremos 0 artigo 11 da Declaragao Universal dos Direitos do Homem edo Cidadao, de 1780,em que selé “O objetivo de toda associagio politica ¢a conservagao dos direitos naturais e imprescritiveis dohomem. Tai direitos sio:a iberdade,a seguranga, a proprie- dade ea resisténcia a opressiio”. O preambulo da Constituigao francesa de 1958 ainda reconhece seu vinculo a tais principios. A Declaragio dos Direitos do Homem e do Cidadio, de 1793, escrita sob influéncia jacobina, apresenta, como direitos naturais e imprescritiveis,aliberdade, a igualdade,a segurancae a propriedade. Seustrés tiltimos artigos (33,34 € 35),nnoentanto, tratam claramente do direito& resistencia. Depois de afirmar, no artigo 27, que todo individuo que usurpe a soberania seja assas- sinado imediatamente pelos homens livres”, a Declaracao dir » artigo 33: A resisténcia a opressdo é consequéncia dos outros direitos do homem, » artigo 34: Hd opressao contra o corpo social quando apenas um de seus membros é oprimido. Ha opressio contra cada membro quando 0 corpo social é oprimido. + artigo 35: Quando 0 governo viola os direitos do povo, a insurreigdo 6, parao powo e para cada parte do povo, omais sagrado dos direitos e o mais indispensavel dos deveres. Ainda hoje, encontramos, no artigo 20, parigrafo 4,da Constituigao alema, a enunciacao clara do “direito a resis- téncia” (“Recht zum Widerstand"). Da mesma forma, tal enunciagdo esta presente em varias constituigdes de Estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennessee, Carolina do Norte, entre outros).'” um dado interessante: a primeira Declaracio dos Direitos Humanos colocava o direito a resisténcia como um dos seus quatro fundamentos, Ja a Declaracio feita pelas Na~ ces Unidas em 1948 evita enunciar diretamente tal direito, escolhendo uma formulacio tangencial em seu preambulo. Nele, lemos: “Considerando essencial que os direitos hu- manos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o 10 Deman sintomética, isso demonstra como aqueles que procuram val formar os que pariciparam da kata armada contra o regime militar brasileiro em "terrorists" colocars-se aguém de um conceito substancial ddedemocracia. Sobre esse ponto, remetoa:Safatle, Vladimis. "Do dieito 20 uso da violencia contra o Estado ileal’: Safatl, Viadimsir: Teles, Edson (orgs) que esa da ditadura a excego brasleina. Sto Paulo: Boitempo, 2030, 44 homem nio seja compelido, como titimo recurso, rebeliao contraa tirania ea opressao...". Ou seja, algo como: para que 0 direito de resisténcia nao seja um fato, convém respeitar r expde o mal-estar da politica contemporanea em relagio 4 ‘os seguintes direitos positivos. Essa enunciagdo tangen assungao clara do cardter de excegio da soberania popular. O cariter de excecao fica evidente ao lembrarmos que, se aquele que usurpa a soberania dos homens livres deve ser punido, é porque tal soberania precisa ser conservada como atributo direto do povo em qualquer de suas formas de expres- si0. Com isso, a Revolucao Francesa abre uma das questdes fundamentais para o pensamento politico moderno,a saber, como dar forma institucional para o poder instituinte proprio i a soberania popular, pois, porque soberano, esse poder na situacio de excegao de se colocar ao mesmo tempo dentro ¢ fora do ordenamento juridico. Ele esta dentro porque, em condigdes normais, a ele se submete. Ele esta fora porque, como todo poder soberano, pode suspender o ordenamento juridico a partir de sua vontade, ou seja, a partir da conscién- cia da inadequacao entre a vontade popular e a configuragao juridica atual, Essa suspenso, que nao implica destruigao do nomios, éfeita por meio de uma certa “violagio politica da lei”. Antes de analisar a natureza dessa violacdo, lembremos ainda que nao devemos compreender a ideia fundamental do direito a resisténcia apenas como 0 nticleo de defesa con tra a dissolucao dos conjuntos liberais de valores (direito 6 propriedade, afirmagao do individualismo etc). Essa estraté- gia liberal é equivocada. Na verdade, no interior do direito de resistenc encontramos a ideia fundamental de que o blogueio da soberania popular deve ser respondido pela demonstragao sobe- rana da forga. Que a democracia deva, por meio dessa questao, confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben chama de“o problema do significado juridico de uma esfera de acdo em si extrajuridica”, ou ainda, com a “existéncia de uma esfera da aco humana que escapa totalmente ao direito’,"! que ela deva se confrontarcom uma esfera extrajuridica, mas nem por isso ilegal -eis algo claro. Devemos insistir aqui que, mesmo em situagdes nas quais nao estamos diante de um “Estado ilegal”, © problema da dissociacdo entre Justiga e Direito se coloca. UMA SOCIEDADE QUE TEM MEDO DA POLITICA Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violacao contra o Estado de Direito é inaceitavel. Mas e se, longe ser de um aparato monolitico, o Direito em sociedades democraticas for uma construcao heteréclita, em que leis de varios matizes convivem, formando um con- junto profundamente instavel e inseguro? A Constituigio de 1988, por exemplo, nao teve forca para mudar varios 41 Agamben, Giorgio. Estado de exces, S40 Paulo: Boitempo, 2008, p. 24 46 ispositivos legais criados pela Constituigao totalitaria de 1967, Ainda somos julgados por tais dispositivos, Ness: sentido, "do Estado de Direito condigdes no seriam certas “violagé para que exigéncias mais amplas de justiga se fagam sentir? Foi pensando em situagdes dessa natureza que Derrida afirmava ser o Direito objeto possivel de uma desconstrugio que visa a expor as superestruturas que “ocultam e refle- tem, a0 mesmo tempo, os interesse econdmicos ¢ politicos das forcas dominantes da sociedade”."? Quem pode dizer em s& consciéncia que tais forgas nao agiram e agem para criar, reformar e suspender 0 Direito? Quem pode dizer em s@ consciéncia que o embate social de forgas na deter- minacgo do Direito termina necessariamente da maneira mais justa? Por isso, nenhum ordenamento juridico pode falar em nome do povo. Ao contrario, o ordenamento juridico de uma sociedade democratica reconhece sua propria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposicao plena e permanente da soberania popular, A democracia admite, por essas raz6es, 0 cardter “des- construtivel” do Direito, e ela o admite pelo reconhecimento daquilo que poderiamos chamar de legalidade da “violagao politica”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afron- tando assim a liberdade de circulacao), ecologistas que 12 Derrida, Jacques, op. cit, 9 seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fabricas para criar situagdes que lhes permitam negociar com mais forga exigencias de melhoria de condigdes de trabalho, cidados que protegem imigrantes sem-papéis, ocupagdes de prédios publicos feitas em nome de novas formas de atuacao estatal, trabalhadores sem-terra que invadem fazendas improdutivas, Antigona que enterra seu irmao: em todos esses casos, 0 Estado de Direito é que- brado em nome de um embate em torno da justiga. No entanto, é gracas a agdes como essas que direitos sio ampliados, que a nogao de liberdade ganha novos matizes. Sem clas, com certeza nossa situagao de exclusdo social seria significativamente pior. Nesses momentos, encontramos 0 ponto de excesso da democracia em relagao ao Direito. Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que no é mais capaz. de compreendé-los, é uma sociedade que pro- cura reduzir a politica a um mero acordo referente as leis que temos ¢ 20s meios que dispomos para mudé-las (como sea forma atual da estrutura politica fosse a melhor possivel—se se levaem conta o que é0 sistema politico brasileiro, pode- -se claramente compreender o carater absurdo da colocagao). No fundo, essa é uma sociedade que tem medo da poli: tica e que gostaria de substituira politica pela policia. A viola- gio politica nada tem a ver com a tentativa de destruigao fisica ou simbélica do outro, do opositor, como vemos na violencia estatal contra setores descontentes da populagio ou em golpes de Estado. Ela é, antes, a forga da urgencia de exigéncias de justiga. E claro que se faz necessario compreender melhor o que devemos chamar aqui de “justiga”. Nao se trata de alguma forma de principio regulador posto. Certamente,a “justiga” estd mais ligada a experiéncia material do bloqueio de reco- rahecimento e do sofrimento social em relagio as imposigées produzidas pelas condigdes socioecondmicas e disciplinares de nossas formas de vida. Ha de se perguntar qual a natu- reza do softimento social em questo. No proximo capitulo, gostaria de fornecer uma interpretagdo para um regime de sofrimento social que tem forte importancia politica. Essa interpretacdo visa nao a reduzir todas as dimensdes do pro- blema, mas a fornecer uma dimensio muitas vezes negligen- ciada e incompreendida, De toda forma, notemos como a suspensao da lei em nome do sofrimento social e do bloqueio de reconheci- mento é qualitativamente distinta da suspensio da lei feita por priticas totalitarias. A suspensio politica é a maneira de dizer que Direito se enfraquece quando nio mais capaz.de reconhecer suas proprias limitagdes. Esso é feito 4 partir de outra espécie de “direito” (as aspas sao de rigor) cujo fundamento, como dizia Lefort, “nao tem figura”, 6 marcado por um “excesso face a toda formulagao efetivada”, © que significa que sua formulagao contém a exigéncia de sua reformulagao. £ $6 assumindo esse excesso que a demo- cracia pode existr. Esse ponto de excesso em relagao ao ordenamento juri- dico s6 conhece um limite: 0 limite de sua autodissolucao. E uma das maneiras de soberania popular se dissolver € por meio da estigmatizacao de partes da propria populacio. Por exemplo, a nogio de plebiscito tira sua legitimidade da ideia de que a soberania popular se manifesta como tota- lidade. Ou seja, a totalidade da sociedade, que se organiza de maneira igualitaria, exprime sua vontade. Leis discrimina- trias contra grupos religiosos, raciais, nacionais ou sextais, no entanto, quebram a nogao de totalidade igualitéria da vida social, inaugurando uma légica de massacre de minorias pela maioria. Por isso, tais leis nunca poderiam ser objeto deum plebiscito Um exemplo tragicamente interessante aqui foi dado pela Suiga, ao aprovar por plebiscito uma lei que proibia a cons- trucdo de minaretes em mesquitas muculmanas. Segundo os helvéticos, esses minaretes representavam o desejo expan- sionista e belicista do Isla. Cartazes associando-os a misseis foram espalhados pelos Alpes. Com isso, a Suiga quebrava a ideia de que todas as religides e todos os crentes devem ter 0 mesmo tipo de tratamento pelo Estado (¢, se for para falar em belicismo religioso, nenhuma religiéo passa no teste). Inaugu- rava-se assim uma légica da soberania popular que se volta contra sua base, ou seja, contra a representacao igualitaria da sociedade. Quando tal representago desaparece,a soberania H Feita a ressalva, devemos insistir em que a esquerda nao popular vira apenas uma maquina de destruigao soc: pode permitir que desapareca do horizonte de acao uma exigéncia profunda de modernizagao politica que vise & reforma, nao apenas das instituigdes, mas do processo deci- sério e de partilha do poder. Ela nao pode ser indiferente queles que exigem a criatividade politica em diregio a uma democracia real Nao deixa de ser dramatico ver membros de certa es- querda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituigdes fortes: a democracia nao exige um poder insti- tuido forte ¢ nao deve depender de instituigdes que sempre funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a demo- crac tem uma plasticidade natural. Ela depende, e isso totalmente diferente, de um poder instituinte soberano ¢ sempre presente, Ou seja, depende de um aprofundamento da transferéncia do poder para instancias de decisio popular que podem e devem ser convocadas de maneira continua. Estamos muito acostumados com a ideia de qu a democracia realiza-se naturalmente como democracia par- lamentar. Isso, no entanto, é falso. Uma esquerda que nao tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverizagio de mecanismos de poder de participagao popu- Jar direta. Lembremos apenas que, com o desenvolvimento das novas midias, é cada vez mais vidvel, do ponto de vista ‘material, certa “democracia digital” que permita a imple- mentacao constante de mecanismos de consulta popular. Contra ideias desse porte, costumam-se afirmar duas coi- sas. A primeira é a acusagdo classica de assembleismo e de imobilismo, Uma acusagao desse quilate chega a ser hilariante Dado, por exemplo, que o Congresso Nacional brasileiro gasta até dez anos para votar certos projetos e implementar deci- sdes, a pergunta que fica é: quem & mais imobilista? A segunda acusagao, esta muito mais absurda, é sem- pre feita pelos “defensores da democracia", temerosos que uma democracia participativa seja, na verdade, uma forma de “totalitarismo plebiscitario”, Até citagées ao nazismo e 20 fascismo sio evocadas nesse contexto. No entanto, clas sio totalmente ridiculas, ou alguém imagina que Hitler fazia plebiscito popular para decidir como funcionariam os campos de concentragao? Em uma democracia participativa,a propria nogio de lideranca e conducao (Filer) é contestada, jé que as instancias de decisdo passam, gradativamente, para as mos de um poder que ndo é nem o Executivo, nem o Legislativo. Por isso, qualquer acusagdo de “chavismo” perde.o sentido quando ‘vassuinto é uma reflexdo aprofundada sobre a modernizacio politica exigida pela superagao da democracia parlamentar, O verdadeiro desafio democratico consiste, desse modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinamica plebiscitéria de participacdo popular. Tal dinamica é desacreditada pelo pensamento conservador, pois ele pro- cura vender aideia inacreditavel de que o aumento da participa- ao popular seria um rsco di democracia ~como seas formas atuais de representagio fossem tudo o que podemos esperar da vida democratica. Contra essa politica que tenta nos resignar as imperleigdes da nossa democracia parlamentar, devemos dizer que a criatividade politica em direcao a realizagao da democracia apenas comecou. Ha muito ainda por vir. Como dizia Derrida, eis a razao pela qual so podemos falar em democracia por vir,e nunca em democracia como algo que se confunde com a configuracao atual do nosso Estado de Direito. Contra os arautos do Estado democratico de Di- reito, que procuram nos resignar as imperfeigdes atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma democracia por vr, que s6 poderd ser alcangada se assumirmos a realidade da soberania popular. Estas so, pois, as duas pernas de toda politica de esquerda que nio teme dizer seu nome: igualitarismo e soberania popular. Garantidos esses dois valores, o resto, como diz o Evangelho, vird por si mesmo. PARA INTRODUZIR © NOViSSIMO DICIONARIO DOS LEGALISTAS DA ILEGALIDADE Vale a pena terminar este capitulo discutindo uma situagao recente a partir da qual podemos relletir sobre os usos atuais 3 do “Estado de Direito”. Trata-se do golpe de Estado em Hon- duras. Foram varias as vozes criticas 4 decisio de dar asilo na embaixada brasileira ao presidente hondurenho deposto, Manuel Zelaya, assim como a decisdo de nao reconhecer nem © governo que o sucedeu nem aquele que foi eleito depois. “Ingeréncia indevida”, “apoio a um rascunho de ditador”, ubvengao a tentativa de destruir o Estado democritico de Direito” foram apenas as acusagdes mais leves contra a atuagao brasileira, Segundo tais criticas, tudo se passou da seguinte forma: influenciado pelo caudilhismo populista de Hugo Chavez, 9 presidente hondurenho decidira afrontar de maneira deliberada a Constituigio e as instituigdes democraticas de seu pais, tentando fazer passar um “golpe plebiscitario” que permitiria sua reeleicao, Contra tal atentado ao Estado democratico de Direito, o Congresso Nacional, juntamente com as Forgas Armadas, depuseram o presidente Zelaya, empossando o presidente do Congresso hondurenho até novas eleigdes. Que esse novo governo tenha assassinado € perseguido jornalistas e opositores, fechado radios ¢ ca- nais de comunicacdo que apoiavam o presidente deposto, reprimido violentamente manifestagdes, nada disso muda sua natureza democratica, pois tudo vale para a defesa da “normalidade democratica”. Seria interessante lembrar, no entanto, quea democracia reconhece claramente a possibilidade de dissociagio entre 4 Justiga e ordenamento juridico atual, ou seja, entre Direito ¢ Justiga. Ela admite que leis atuais podem ser injustas e pas- siveis de modificagao por meio de mobilizagao popular, No caso de Honduras, poderfamos perguntar quo democratica é uma lei constitucional que eleva & condigao de clausula pétrea a impossibilidade de o povo modificar amaneira como ele proprio é governado. Se a vontade po- pular é 0 poder instituinte de toda Constituicao democra- tica, tal lei equivale a dizer algo contraditério como “nés, © povo, reconhecemos que nés, 0 povo, nao poderemos mais decidir sobre a maneira por meio da qual nés, 0 povo, seremos governados”. A questo relativa a Honduras diz muito a respeito da ‘maneira como certos setores da vida nacional compreendem o que é, afinal, a democracia, Digamos de modo claro: aver dadeira democracia nao é medida pela estabilidade de suas instituigdes e suas regras. Afinal, quantas vezes a Franca (s6 para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema eleitoral e de seu sistema de partilha de poder? Quantas vezes aquele pais modificou o funcionamento da instituigao pres dencial? Lembremos como mesmo a “estavel” Inglaterra de- bate hoje modificagdes profundas em seu proprio sistema. A verdadeira democracia é medida, na verdade, pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifes- tar-se e criar novas regras ¢ instituigdes. Nao é s6 em eleigdes que tal poder se manifesta, H4 uma plasticidade politica 5 propria a vida democratica que s6 arautos do pensamento conservador compreendem como “inseguranga juridica” O plebiscito é simplesmente a esséncia fundamental de toda vida democritica, e falarem “golpe plebiscitério” é uma das maiores aberragdes que se possa imaginar. O dia em que um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, entio nossa nogio de democracia estar completamente esvaziada. Ela perderd todo seu valor: De toda forma, é sintomatico que boa parte daqueles que se insurgiram contra o plebiscito hondurenho nao tenha gritado “golpe de Estado” quando 0 governo de Fernando Henrique Cardoso passou, por meio de compra de votos no Congreso Nacional, uma emenda constitucional aprovando a reeleigao. Eles também fizeram questao de nao lembrar como muitos dos golpes militares na América Latina foram feitos sempre a partir da mesma acusagao de que o presi- dente estava colocando em risco a legalidade democratica, Foi assim no Chile de Salvador Allende, foi assim no Brasil de Jodo Goulart (quando o Congresso Nacional declarou vazio 0 cargo de presidente, empossando, inicialmente, 0 presidente da Camara, Ranieri Mazzilli, que “governou” de 2a15 de abril de 1964, antes de passar o governo aquele que foi “eleit pelo Congreso, o marechal Castello Branco). Nao se trata aqui de usar tal problema jui ico para apresentar uma defesa de Manuel Zelaya ou de seus patro- cinadores, como Hugo Chaver. Talvez seja 0 caso de dizer claramente que a alternativa chavista é apenas uma deriva populista e bonapartista da esquerda. De fato, 0 conceito de “popuilismo” existe endo ¢ apenas um dispositive de desqualificagio politica, embora muitas vezes seja usado apenas para isso, Populista é um governo profundamente personalista e centralizado cuja figura do mandatario do Executivo encarna o ideal de condugio e, por isso, confunde-se coma figura do poder;'*é um governo incapaz de permitir 0 desenvolvimento de mecanismos de transferéncia do poder em diregio a democracia direta, pois, nesse caso, a demo- cracia direta é subordinada ao poder central. © populismo esquece que o verdadeiro lider democratico 6 aquele que nao tem medo de expor sua propria efemeridade, sua propria contingéncia. O lider democratico é aquele que nos ensina como a contingéncia pode habitar o cerne do poder. © exemplo hondurenho serve, na verdade, apenas para glosar uma bela expresso que Theodor Adorno uma vez cunhou para designar aqueles que se aferravam a leis 13 Por isso hé algo de piada de mau gosto na afirmagao de que o Brasil conheceu, entre 1945 € 1964, uma “replica populista’. SG mesmo uma historiografia revisionista, que visa a desqualificar o nico momento na historia brasileira em que a participacio popular foi efetiva, poderia dizer algo dessa natureza, Nesse caso, nota-se como “populista” nao é usado como descrigdo analitica, mas como injria, Gostaria que alguém cplicasse, por exemplo, em que Dutra Juscelino eram "populistaseem que Jodo Goulart encarnava o ideal de condugdo que se confunde coma figura do poder estatal. claramente injustas, bradando-as quando setores da vida nacional procuravam anulé-las: “legalistas da ilegalidade” Aeexpressio, certamente, cabe para boa parte daqueles que criticam a postura da diplomacia brasileira no caso. Por fim, valea pena lembrar que a nogio de soberania popular implica processo institucionalizado de transfe- réncia de poderes em dirego a democracia direta. Ele nao éuma simples arma utilizada pelo Executivo em situagdes de conflito de poderes, Sua melhor figura é a institucio- nalizagio de decisbes que s6 poderiam, a partir de entao, ser tomadas por meio da manifestacao direta da soberania popular: Isso significa transferéncia de poder tanto do Legis- lative quanto do Executivo. Um exemplo valioso sto as declaragdes de guerra. Na 6poca da Guerra do Afeganistao, enquanto a maioria da popu- lagao era contréria a iniciativa, o Parlamento espanhol apro- vou o envio de tropas aqucle pais. Ou seja, naquele momento, © Parlamento espanhol nao representava o povo—o mesmo povo que morreria devido as consequéncias da decisto do Parlamento. Em situagées como esta, a decisio deveria pas- sar para a democracia direta, Outro exemplo ilustrativo sto as questes ligadas a decisdes de orgamento da Unido, contragao de dividas em situagdo de grave crise (como o caso da divida grega), que também deveriam passar para processos decis6rios ligados 4 democracia direta. Nesse caso, podemos pensar em uma maneira de politizar a economia gragas 4 recuperagio da nogao de soberania popular. A Islandia tem algo a nos ensi- nar sobre isso. Um dos primeiros paises atingidos pela crise economica de 2008, a Islandia decidiu que o uso de dinheiro pablico para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado foi o apoio macigo ao calote, Mesmo sabendo dos riscos de tal decisao, o povo islandés preferiu realizar um principio basico da soberania popular. Se a conta vai para a popu- lagdo, é ela quem deve decidir o que fazer, e nao um con- junto de tecnocratas que terao seus empregos garantidos. nos bancos, tampouco parlamentares cujas campanhas si0 financiadas por esses bancos, Como disse o presidente islandés, Olafur Ragnar ima democracia, nao um sistema Grimsson, “a Islandia é financeiro”. Alguns poderiam contra-argumentar que absurdo que decisdes de inegavel complexidade técnica pas- sem para a democracia direta, Bem, outros diriam apenas que quem paga a orquestra escolhe a mtisica, Esta é uma boa ‘maneira de se perguntar:afinal, no caso de nosso Parlamento ede nosso Executivo, quem paga a orquestra? 30 Do tempo das ideias Um homem é uma coisa em que se atira Até que o ser humano emerja das ruinas do ser humano, He knew that the price of his intactness was incompleteness. Uma das quest6es mais delicadas sobre a esquerda diz. res- peito a sua maneira de lidar com o passado recente. Alain Badiou compreendeu bem que poderia enuncié-la de uma maneira sucinta: o que significou o século xx? Ou seja, como compreender as experiéncias de ruptura que marcaram a especificidade do século que passou? Longe de um simples problema histérico, tal questo expde a maneira como nos vinculamos aos processos de efetivagéo de uma ideia que, com certeza, ainda guarda seu contetido de verdade. Porexemplo, um dos mantras preferidos do pensamento conservador éa dentincia do século xx como aera da violén- cia brutal feita em nome das promessas de redencao da vida social, Como se houvesse uma linha necesséria e inevitavel que iria da critica da individualidade moderna e da reificagao 6 aos massacres de Pol Pot, linha que iria das lutas sindicais por justiga social aos gulags. Trata-se de impor, com isso, uma estratégia da resignacio, que tem o propdsito de nos fazer acre- ditar que toda agio visando a ruptura com formas de vida que aparecem, em certos momentos, como naturalizadas s6 poder produzir catistrofes, Trata-se ainda de uma tentativa de desqualificar radicalmente a forga produtiva das ideias de renovacao e seu movimento tragico. Sobre essa natureza tragica do movimento proprio as ideias de renovacao, valeria a pena se perguntar se aqueles que desqualificam o século xx como era da violencia des- medida em nome do novo estariam dispostos a respondera uma questio fundamental, a saber: quantas vezes uma ideia precisa fracassar para poder se realizar? A efetivacao de uma ideia nunca é um processo que se realiza em linha reta, Por exemplo, durante séculos, o republicanismo foi conside- rado um retumbante fracasso. Ser republicano no século xitt significava defender uma ideia que havia apenas produzido catastrofes ¢ enfraquecimento do Estado. Hoje, dificilmente encontraremos alguém para quem o republicanismo nao seja um valor fundamental. Ou seja, o republicanismo precisou fracassar varias vezes para encontrar seu proprio tempo, para forcar o tempo a aproximar-se de sua realizagao ideal. Isso apenas demonstra como, gragasa internalizagao de seus fracassos, ao fato de ela ter aparecido “cedo demais’, a ideia pode efetivamente se realizar. o Nao se trata aqui de ignorar os crimes e massacres que culo XX, nem de relativizé-los, lembrando que, se for para contar cri- foram feitos em nome dos ideais de esquerda no s mes e massacres, a esquerda certamente nao fica na frente de seus oponentes. As duas estratégias Sao equivocadas. Trata: -se, na verdade, de dizer que a melhor maneira de evité-los é compreender 0 que deve ser conservado ¢ reconstruido no interior de nossos ideais, aquilo que neles nao se reduz a figura do crime e do massacre. Como nos lembra Hegel, 0 conceito, ao tentar deter- minar a efetividade, produz, necessariamente 0 contrario de sua intengdo inicial. Essa inversdo, no entanto, pode aparecer nao como perda, e sim como momento tragica~ mente necessario para o desenvolvimento da capacidade do conceito em internalizar a contingéncia, orientar-se ¢ assegurar sua realidade. Talvez possamos dizer 0 mesmo das lutas revolucionarias que animaram o século xx, pois uma das maiores caracteristicas desse século foi aluta pela abertura do que ainda nao tem figura, luta pelo advento daquilo que nao se esgota na repeti¢ao compulsiva do ho- mem atual e de seus modos, Nao se tratava apenas de um processo conflituoso de am- pliag vacio de demandas de redistribuigdo de riquezas. Embora ce universalizacdo de direitos individuais ou de efeti- tais aspectos sejam essenciais para compreendermos as lutas revoluciondrias do século xx, perderemos uma dimensio 6 importante de seu impulso se nao compreendermos também que, “até o final, o século foi de fato o século do advento de > homem, outra humanidade, de mudanga radical do que E é nesse sentido que permaneceu fiel ds extraordinarias rupturas mentais de seus primeiros anos”.!* Talvez seja o caso de lembrar aqui dessa crenga que per- passa os movimentos mais relevantes no campo da politica, da filosofia ¢ da estética do século xx, a saber, a crenga de que algo como 0 *homem novo" estava ao alcance. Ha uma espécie de estranho acordo a respeito da necessidade de um tempo capaz.de nos livrar do esgotamento da determinagao essencial do homem. Tudo se passa como se, para além da defesa de uma sociedade mais justa, livre e igualitéria, pul- ssasse, no interior da demanda revoluciondria que animou 0 sécullo xx, este obscuro desejo de nos ivrarmos de nds mesmos, desejo de anular nossa propria imagem. Talvez seja 0 caso de dizer: nao ha luta revolucionaria sem esse desejo. E possivel afirmar que essas lutas podem ser encon- tradas nas discussdes proprias aos campos da estética, da politica, das clinicas da subjetividade, da filosofia. Em varios ‘momentos de nossa historia recente, elas mostraram grande forca para mover a historia, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos hoje um grande esforco em apagar essa hist6ria, isso quando nao 14 Badiou, Alain, Oséeulo, Aparecida: Meias eLettas, 2007, p.2 64 se trata de apenas criminaliza-la, como se as tentativas do passado em escapar das limitagées da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrigao de processos que necessariamente se rea- lizariam como catastrofe. Como se nao fosse mais possivel olhar para trés e pensar em maneiras novas de recuperar os momentos nos quais © tempo para ¢ as possibilidades de metamorfose do humano sao miltiplas. Assim, somos apresentados a cartilha do pasado, que cheira ao enxofre da destruicao, ¢ do futuro, que nao pode ser muito diferente daquilo que jé existe. Talvez seja 0 caso, entio, dedizer que tudo 0 que, brandos ou nao, os defensores de tal cartilha conseguirdo é bloquear nossa capacidade de agir a partirde uma humanidade por vir, acostumar-nos com um presente no qual ninguém acredita e do qual muitos se cansaram., Ou seja, clevar o medo a afeto central da politica Para responder a tal cartilha, devemos dizer que, se nao ha politica sem o desejo de nos livrarmos de nds mesmos, de nos livrarmos de nossas limitagGes, sem 0 desejo de ex- plorar o que ainda no tem figura, é certo que a historia > campo no interior do qual esse desejo aprende a se orientar melhor. Que esse aprendizado nao seja em linha reta, que le se equivoque e muitas vezes se perca, sso é apenas uma maneira de insistir em consequéncias proprias a todo e qual- quer aprendizado. Com o aprendizado a respeito da forga de nossa liberdade e nossa inventividade, no seria diferente. © INDIViDUO NAO £ A MEDIDA DE TODAS AS COISAS. Notemos ainda um ponto. Talvez seja correto alirmar que ndo poems nos livrar do desejo de nos livarmos de nds mesmos, pois essa luta por um homem novo nao é um delirio arbitrario de“recomegar tudo do zero” sem levar em contaa violencia que 0 zero parece implicar. Na verdade, ela é a realizagao mais bem acabada de uma inquietude e desenraizamento que determinam, de maneira essencial, a experiéncia moderna da subjetividade. A palavra “novo” no interior do sintagma homem novo" nao significa algo como uma nova esséncia, mas o movimento interno ao sujeito moderno de nao se deixar esgotar no circulo de suas determinagées identitarias atualmente postas. Essa é uma caracterfstica maior do conceito de sujeito desde sta definigao moderna. Sartre, por exemplo, ndo teve muita dificuldade em encontrar nessa impossibilidade de esgotamento o trago fundamental do conceito de liberdade."* 35 Ver: Sartre, Jean-Paul, Situations philosophigues. Paris: Gallimard, 1990, pp. 7¥-2, Sartte insiste em que a liberdade moderna exige um momento -m Descartes. Como ele de liberdade negativa que pode ser encontrada mesmo dina a respeito da transcendéncia cartesiana: Reconhecemos neste poder de escapar, dese mover, de se rtirar para tris, uma prefigaragio da negatividade hegeliana. A duivida aleanga todasas proposigbes que afirmam algo fora de nosso pensamento, ot sea, posso colacar todos os existentes «em parénteses, estou em pleno exercicio de minha liberdade quando eu, mesmo vazio e nada, nadifico tudo 0 que existe” [tradugio do autor] 66 Nesse sentido, nada mais tradicionalmente enraizado em nossas formas de vida que a procura pelo “homem novo" Nada mais tradicional que a necessidade de uma revolugao social que seja, ao mesmo tempo, revolugio subjetiva, O pensamento liberal teme a reflexio sobre a impossi- bilidade de esgotar o sujeito nas determinagdes identitarias atualmente postas, porque isso quebra sua tentativa de de- fender, custe o que custar,a primazia do individuo, Uma das bases da teoria liberal sobre o politico é a compreensio do vinculo social como uma espécie de contrato entre indivi- duos. Nesse suposto contrato, os individuos fundariam ins- tituicdes como o Estado mediante a garantia de que poderio agir, em larga medida e por meio de uma negociagao astuta, em fungio de seus sistemas particulares de interesse."” Ou seja, sob a forma contratualista, o vinculo social aparece como uma associagao entre individuos. Algo muito pro- ximo da maneira como 0 livre mercado aparecerd para © pensamento liberal como o espago onde individuos podem trabalhar na defesa de seus sistemas particulares e egoistas de interesses. 16 Para uma analise sistemtica da ndeterminagio propria a uma certa tradigio da eflexdo moderna sobre sueito, tomo aliberdade de remete as rs primeitos capitulos de: Safale, Vladimir, Grande Hotel Abioma: por tama constr da teoria do reconhecmem, op. 17 Ver, por exemplo: Lebrun, Gerard, “Contrato social ou negocio de ‘trio? In: A filosfiae sua histria, Sa0 Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 236. Um dos tracos fundamentais da esquerda, entretanto, esta na recusa em compreender a sociedade como uma associago entre individuos que entram virtualmente em acordo a fim de realizar, da melhor maneira possivel, seus interesses particulares, Para a esquerda, a consequéncia fun- damental dessa distorgdo é a compreensio da “liberdade" simplesmente como © nome que damos para o sistema de defesa dos interesses particulares dos individuos, de suas propri Em tiltima instancia, toda extensio do conceito de liber. Jades privadas e de seus modos de expressio, dade acaba por ser pensada como modulagio do direito de propriedade. No entanto, essa nocio de liberdade talvez seja uma forma muito difundida de patologia social, pois, a0 impor uma atomizagio social desagregadora, nos impede de ver como, no interior do meu proprio interesse, pulsa algo mais do que a mera emulagao de um sistema parti- cularista. Ela impede a compreensio de como o sujeito & sempre habitado por algo que ndo se deixa pensar sob a forma do individuo.. O pensamento conservador procura criticar tal ideia a tentar nos fazer acreditar que toda ditadura é necessa- riamente baseada na critica do individualism. Como se nossa democracia estivesse segura lé onde o individua- lismo impera. A prova disso seria 0 fato de situagdes de anomia, familias desagregadas e crise econdmica serem pretensamente o terreno fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lé onde a familia, a prosperidade ea erenga na leindo funcionam bem, ld onde os esteios do individuo entram em colapso, a vor sedutora dos discursos totalit- ios esta A espreita. Se realmente quisermos pensar a extenso do totalita- rismo, sera interessante perguntar por que personalidades autoritérias aparecem também em familias muito bem ajus- tadas ¢ sélidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas sociedades ¢ a nosso padrio de prosperidade. Te jamos sur- presas interessantes se estudassemos o perfil psicolégico daqueles que votam em governos que criam sistemas globais de fichamento ¢ controle de populagées, rondas contra imi- grantes, alimentam a xenofobia ea l6gica da fronteira, Isso explica por que nao foram poucos aqueles que, no século xx, insistiram que o individuo moderno é,na verdade, produzido pela internalizagao de profundos processos dis- ciplinares e repressivos. A boa questao é: com o que preciso me conformar para poder ser reconhecido como individuo dotado de interesses “proprios”? O que preciso perder e fazer calar para que tudo o que se apresenta a minha experiéncia 56 possa ser pensado como experiéncia de um individuo? Sofre-se muitas vezes por nao ser um individuo, ou seja, por nao ter & sua disposicao as condigdes sociais neces- sairias para a afirmacdo de uma individualidade almejada. No entanto, sofre-se também por ser apenas um individuo, Hé um sofrimento vindo da incapacidade em pensar aquilo 69 que, dentro de si mesmo, nio se submete a forma coerente de uma pessoa fortemente individualizada com sua iden- tidade compulsivamente afirmada. Esta é uma das ligoes mais importantes de Sigmund Freud, com sua ideia de que o proprio processo de formagao da individualidade, de cons- tituigdo do Eu ¢ indissociavel de experiéncias patoligicas de sofrimento.'* Nesse caso, sofre-se exatamente por ser um individuo, A esquerda deve ser sensivel a tal modalidade de sofrimento social Infelizmente, esse sofrimento, em vez de funcionar como motor de desenvolvimento subjetivo, muitas vezes se exterioriza e se transforma em medo social compulsive contra tudo 0 que parece colocar em xeque nossa “iden- tidade”, as “crengas do nosso povo". Ele acaba por servir como causa de um sistema paranoico de defesa contra toda alteridade real Nao é por outra razdo que onde hé a insisténcia em compreender a sociedade como um mero conjunto de indi- viduos surge sempre o outro lado da moeda: a necessidade de expulsar, de levantar fronteiras contra tudo 0 que nao porta a minha imagem. O que nos explica por que socie- dades fortemente individualistas, como aquelas que encon- tramos nos EUA ¢ em certos paises europeus, sdo sempre 18 Freud, Sigmund, O mal-estar na civilizagdo, Sao Paulo: Penguin Compania, 201. assombradas pelo fantasma do corpo estranho que esta prestesa invadi-las, a destruir seus costumes e habitos arrai- gados. Nao ha individualismo sem légica social da exclusao. Por outro lado, como todos sabemos que o atomismo de ser apenas um individuo ¢ dificilmente suportivel, esse isola- mento tende, muitas vezes, a ser compensado com alguma forma de retorno a figuras de comunidades espirituais e reli- giosas, A vida contemporanea nos demonstrou que indivi- dualismo e religiosidade, liberalismo e restrigdes religiosas dogmaticas, longe de serem antagénicos, transformaram- -se nos dois polos complementares ¢ paradoxais do mesmo movimento pendular. Muito provavelmente, teremos de conviver com os resultados politicos dessa patologia social bipolar. Cada vez fica mais claro como o pensamento conser- vador se articula, em escala mundial, por meio da restriga0 da pauta do debate social apelando ora para as“liberdades individuais”, ora para “nossos valores cristaos”. PARA ALEM DE UMA DICOTOMIA Feita essa digressio sobre o desejo de nos livrarmos de nds mesmos e sobre a reagao liberal-conservadora pela hipés- tase da figura do individuo, talvez possamos introduzir uma questo classica para a esquerda, Ela concerne a maneira de se relacionar a dois modelos de acao politica, um que pulse 2 partir das rupturas e outro que desloca com mais vagar as pecas no tabuleiro politico. Esses modelos se cristalizaram nas palavras “reforma” e *revolugao”. Dar conta da expe- rigncia politica do século xx é, em larga medida, responder sobre qual destino devemos dar a essa dicotomia tao usada no passado recente. E possivel que tenha chegado a hora de dizer com cla- reza que dificilmente encontraremos uma dicotomia mais empobrecedora e equivocada para a reflexio politica do que esta que separa “reforma” e “revolugio”, pratica reformista ¢ pensamento revolucionario. Nao foram poucas as vezes, no entanto, que essa dicotomia foi pressuposta em andlises de as nuances de discussao tio rica, que perpassa a historia da Jtuagdes politico-sociais. Nao se trata aqui de retomar esquerda desde, ao menos, a querela de Lénin contra Kautsky. Trata-se simplesmente de lembrar dois equivocos comple- mentares que ainda hoje parecem nos guiar. primeiro consiste em elevara revolugio a condigio de modelo tinico de acontecimento dotado de verdade. O que nao tiver seu potencial disruptivo e instaurador nao vale uma luta politica, nao deve mobilizar nosso engaja- mento. Se revolugdes saem do horizonte historico de uma época, ento esse tempo sera visto necessariamente como ‘um tempo morto, desprovido de acontecimentos. Ele sera a desctigao inelutavel da mortificagdo da existéncia. O re- sultado de tal clevagao da revolugdo a modelo tinico de acontecimento dotado de verdade é, no entanto, a ineapa- idade de operar distingdes, Um dos sinais da inteligencia consiste na capacidade de saber operar distingdes. Pensando em algo parecido, Pascal costumava dividir os homens entre aqueles que tém “espirito de finesse ros eram capazes de se fixar ¢ imergir nos detalhes, encontrar e aqueles que tém “espirito de gedmetra”. Os primei- distingoes sutis, mas corriam o tisco de se perder em suas sutilezas. Jé os segundos conseguiam apreender rapidamente totalidades, como um ge6metra que desenha figuras, No en- tanto, eles corriam 0 risco de cegar-se para aquilo que nao era tdo grande. Era claro que a verdadeira inteligéncia estava na capacidade de iver entre dois espiritos, como se um pre- cisasse a todo momento corrigir a hipéstase do outro Se quisermos ser pascalianos, podemos afirmar que os que s6 tém olhos para revolucdes talvez estejam muito fas- cinados pelo seu proprio espirito de geometra. A falta de {finesse na analise politica, entretanto, pode ser catastréfica por levar processos acumulados de transformacao a serem simplesmente perdidos. Diga-se de passagem, os primeiros ‘ano cometer esse equivoco so exatamente os socialmente mais vulneraveis. Eles tém bastante clareza a respeito do que nao estao dispostos a perder ¢ de quanto vale 0 que ja foi conquistado. Ignorar essa consciéncia tacita dos mais vulneraveis éa maneira mais segura de a esquerda caminhar para o raquitismo eleitoral. ¢ esse é um dos equivocos sempre A espreita quando se aceita a dicotomia entre reforma ¢ revolugao, 0 outro consistiré em recusar todo e qualquer processo revolu- cionario, como se estivéssemos diante de alguma forma de momento de desvario da historia, No limite, toda revolugao simplesmente criminalizada, ou seja, 56 analisada pelos seus erros, pelas suas mortes, peas suas distorgdes, Para tais pessoas, é dificil compreender que wm acontecimento verdadero indo garante a sequéncia de suas consequéncias."” Mais do que um projeto claro, as revolugdes foram o ato violento de abertura de novas sequéncias ~ um ato que mobiliza expectativas contraditérias, que coloca em circulagao valores cuja deter- minagao de sua significado sera objeto de embates também violentos. Por isso, uma revolucao é uma causa a partir da qual no é possivel calcular, com seguranga, qual série de consequéncias vird, 1g Esta €a base de minha divergéncia de fundo em relagio as anslise de ‘meus amigo Ruy Fausto sobre a histiria revoluciondria do sécilo Xx, a8 Jaa criminalizar toda a extensio da historia das revolucdes. A esse respeito, ver: Fausto, Ruy. A esquerda if sim como em relagio a sua tend So Paulo: Perspective, 2007. Possoconcordar coma necessidade de critica 0 fracassos das revoluges em implementar uma estrutura politica de insttucionalizacio da iberdade, mas no se segue dai que a s revolugdes tenham sido projetos. em sua esséneia, toalitérios. Flas eram projetos ides estavam pastas. Que as pos- sibilidades totaitérias tenham na maioria das vezes, ditado osrumos das no interior dos quais virias possbilid revolucdesapenas demonstra, mais uma vez, quea esqueria democritica no sabe como governat e intervir nas tendéncias da governabilidade Talvez.seja importante dizer, no entanto, que uma revo- lugdo nao deve ser um objetivo politico. Essa afirmagio no se deve ao fato de as consequéncias dos processos revolu= cionérios serem incalculiveis, imprevisiveis. Em alguns momentos, raros, dispomo-nos, devemos ¢ precisamos confiar no incalculavel. Na verdade, uma revolugao nao deve ser objetivo politico simplesmente porque nio sabe- mos como produzi-la, ndo ha uma linha causal entre um conjunto de condigdes sécio-histéricas e uma revolugao. Quantas vezes uma revolugao parecia as portas, suas condigdes pareciam completamente dadas e, no entanto, ela fracassou? E quantas vezes revoltas absolutamente imprevistas acabaram por acontecer, como as que vemos agora no mundo arabe? Revolugdes so sempre improva- veis, fruto de uma série contingente de acontecimentos. Seria mais honesto reconhecer que a histéria € 0 proceso que transforma contingéncias em necessidades. Uma trans- formagio que s6 é visivel a posterior. Assim, o que devemos fazer é nao recusar e: ‘Ses processos contingentes e inespe- rados que tém a forga de romper o tempo. Nao recusar jé é muita coisa, Por outro lado, deve-se entender que uma sequéncia de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para tras. Este era 0 caminho de uma das mais impressionantes experiéncias da esquerda no século xx, experiéncia sobre a qual ainda temos muito 0 que meditar.a saber, 0 socialismo democratic de Allende. Hoje, defender uma sequéncia substantiva de reformas & muito mais dificil do que defender rupturas radicais de molde revolucionétio, pois mais perigosa é uma mudanca que esté a0 alcance de nossas maos do que a que esti fora do alcance de nossa visdo, Lutar por reformas sem perder de vista o fato de que processos incalculveis podem acontecer ~ mais do que um conselho politico, isso talvez seja uma forma de vida, UMA TEORIA DO PODER NAO £ UMA TEORIA DO GOVERNO [As discussdes sobre como pensar a historia das revolugdes sempre acabam por se confrontar com um problema classico a respeito da distingdo entre processo revolucionario e gestio da revolucao, Slavoj Zizek colocou bem o problema ao lem- brar que a questi espinhosa sempre se refere 20 dia seguinte A revolugdo. Esta é uma maneira de lembrar que hé algo de profundamente verdadeiro, embora por outras razies, na ladainha direitista de que “a esquerda nao sabe governar’. A esquerda conseguiu desenvolver uma teoria clara eso- fisticada do poder. Sabemos como funciona o poder soberano. Da mesma forma, sabemos como a biopolitica vai se estabe- lecendo como poder disciplinar em esferas institucionais relativamente auténomas quanto a um poder central. Temos uma critica extensa aos processos de interversao da racio- nalidade em dominagdo. Em suma, sabemos como fazer uma critica do poder, assim como sabemos como transformar tal critica em mola de desenvolvimento da politica No entanto, como lembra Giorgio Agamben, aesquerda raramente viu como tarefa pensar uma teoria do governo. Foi Michel Foucault quem primeiramente lembrou que nao ha teoria do governo, a nao sera teoria liberal.” Varios pro- blemas se seguem dai. Ter uma teoria do poder nao implica ter uma teoria do governo. Por isso, muitas vezes acabamos caindo em verses de algum “decisionismo” fascinado por um conceito quase teolégico como 0 de “vontade politica’. Um pouco como um candidato de esquerda & Presidéncia que, na eleigao de 2010, propunha mudangas econdmicas radicais, calote na divida puiblica etc. Ao ser perguntado sobre como faria isso sem maioria no Congresso e como evitaria a desarticulagao da economia, sua resposta foi ‘Com vontade politica forte Dificilmente alguém ficou convencido com aquela resposta, endo sem razao. Da esquerda espera-se um detalhamento minucioso dos processos governamentais que devem ser postos em pratica para realizar suas propostas. Espera-se 20 Ver: Foucault, Michel. Nascimento da biopol Editora, 2008. a. S20 Paulo: Martins também capacidade de se antecipar as dificuldades e apre sentaralternativas criveis. O que nao se espera sio diatribes genéricas contra o capitalismo e auséncia de reflexio sobre praticas de governo. Ha uma historia instrutiva a respeito do governo de Salvador Allende. Num dia de 1973, em meio as graves cri- ses que © governo chileno estava enfrentando, o ministro Carlos Matus foi conversar com Pablo Neruda. Ja 4 porta da casa do poeta, ele foi recebido com as seguintes perguntas: ~Afinal, o que esta acontecendo com nosso governo? Por que nao conseguimos fazer as coisas funcionarem?”. O ministro, comumar de desolagao, disse: “Vocé é escritor. Para escrever basta vontade?”. Neruda respondeu: “Nao. £ preciso saber fazer e, sobretudo, saber romper com formas gastas”.“Sim”, disse 0 ministro, “é necessario técnica, Pois bem, em politica a mesma coisa’. O escritor baixou a cabeca em silencio e tristeza, como quem dissesse: “Agora é muito tarde, agora é muito tarde”, Infelizmente, no entanto, quando nao € o decisionismo que reina, encontramos na esquerda uma ingenuidade maior, a saber, a cena de que priticas do governo sio um conjunto neutro de técnicas ¢ técnicos que podem “funcionar bem” quando ditigidos de forma adequada. Um belo exemplo nese sentido foi fornecido pelo finado Partido Comunista Italiano (ci), 0 maior partido comunista fora do bloco soviético. Du- rante anos, ele esteve a margem do governo, conquistando 8 prefeituras importantes (como Bolonha) a fim de se creden- iar para comandar o Estado nacional Quando isso ocorreu, e seu secretério-geral, Massimo DiAlema, assumiu o cargo de primeiro-ministro, tudo o que passou em sua cabeca foi provar que era capaz de gover- nar e de realizar os ajustes fiscais exigidos para que a Itélia participasse da zona do euro. Ajustes que a direita nunca conseguiria fazer devido a oposigao dos sindicatos, mas que pct fez. (ea banca financeira europeia agradece com a mao no lado esquerdo do peito). O resultado foi a impressio de indistingdo fundamental entre alogica de governo da direita eda esquerda. $6 que a conta pelo descontentamento com 08 ajustes foi paga pela esquerda (que hoje simplesmente no existe na Italia). De fato, é preciso lembrar que nenhuma técnica é new tra. Por isso, uma das questdes abertas que ainda merece resposta é: quais sdo as técnicas de governo a altura das aspiragoes de modernizacao politica proprias a esquerda? Quando assumimos a logica ¢ 0 discurso de certa eficacia tipicos da direita, jé perdemos o jogo. Pois i precisaremos jogaro jogo completo, um jogo cujas regras foram feitas para serem transgredidas “em silencio”, Nesse caso, a pior técnica é aquela que mimetiza a logica do adversario. Quando isso acontece, vemos ou o patético esperaculo de um lento processo de degradagao da governabilidade, com a famosa transformacao dos governantes de esquerda em figuras que mimetizam as praticas de corrupgao € os valores da direita, ou a guinada em direcao ao centralismo totalitario (Gnica forma de conservar o governo quando nao se sabe como govern). Lembrar isso é uma forma de criticar a defesa de que “a decisio politica nao pode ser constrangida pela economia” maneira erronea de defender o espaco do politico contraa lagica administrativa que visa a impor modos de gestdo da vida. Tal equivoco levow Alain Badioua retomar esta frase fa- _mosa de Robespierre, pronunciada a ocasiio da condenagao de Lavoisier: “A repiiblica nao necesita de cientistas”. Badiou chega a afirmar que cla apresenta a esséncia do politico, na medida em que “a repuiblica nao tem necessidades', ou seja, “a politica, quando existe, funda seu proprio principio quanto ao real e nao tem necessidade de nada a nio ser dela propria’. Afirmagdes dessa natureza ignoram a necessidade de pensar em uma teoria do governo. Elabori-la supde, por dio politica a certos cons- exemplo, ter de submeter a de: trangimentos vindas da economia (o que implica resgatar a economia politica) ¢ das necessidades. Até porque, por mais dbvio que isso possa parecer, o homem é este ser divi dido que, por um lado, é sujeito de um desejo de ruptura, de reconfiguracio de sua forma de vida e, por outro, precisa de geladeiras cheias. Anular as geladeiras, ou seja, instaurar a politica no ervico dos bens”, dizer que solo de uma cruzada contra 0“ 80. a reptiblica nao tem necessidades e simplesmente ignorar 0 peso dos sistemas particulares de interesse s6 vai nos fazer perder as condigdes de realizar nosso desejo de reconfi- guracio do campo do politico e de nossas formas de vida. Afirmar que 0 individuo nio é a medida de todas as coisas nio sig- nificaafirmar qu ele nao é medida de coisa alguma, Esse é um erro comum que encontramos em certa tra- digdo da esquerda. Até porque vale a pena lembrar que 0 individuo nunca é apenas o individuo. Em certos momentos, ele €0 ponto de reflexio a partir do qual a vida social se volta contra si mesma, Nesses casos, o sofrimento do individual serve para mostrar os impasses de um conceito abstrato de universal, pois desvela o ponto cego de processos que justi- ficam sua violéncia servindo-se da perspectiva onisciente da realizacao da historia. O individuo sabe que a violéncia da jus- tificagao é a maneira mais segura de tais processos nao se realizarem. Talver este seja 0 verdadeiro sentido de uma afirmacao capital de Lénin: “Comunismo é: todo o poder aos sovietes, mais a eletrificagao de todo o pais". Seria o caso de acres- centara seguinte idea: com a eletrificagao de todo o pais, ou seja, com o reconhecimento da necessidade dos individuos, € possivel que a populagao acredite nos sovietes; sem isso, 08 sovietes virardo palavra morta, pois nao exist socalismo na miséria, Na miséria, existe apenas miséria, st > Conclusao Este pequeno livro nao tinha por objetivo fornecer andlises completas de processos politicos, mas oferecer uma cartogra- fia inicial de questdes que podem orientar o pensamento na definigao da pauta de uma esquerda renovada. A insisténcia no igualitarismo e na recuperagao do conceito de soberania popular foi apenas uma estratégia para lembrar que nao ha esquerda la onde se abandonam ideias como a centralidade dos processos de redistribuigao institucionalizados como politica de Estado, a indiferenca em relacao as diferengas identitarias, o universalismo que exige a criagio de Estados pés-identitarios, a crenca no cardter produtivo da violagao politica do Direito, a defesa incondicional do direito de resis- téncia como direito humano fundamental, Por outro lado, a experiéncia historica do século xx deve nos servir para reconhecer que os fracassos de uma ideia no implicam seu abandono, mas maior consciéncia de sua fali- bilidade. Nesse sentido, poderiamos lembrar aqui de Adorno cia de nossa afirmar que agir tendo em vista a consc & falibilidade € a primeira condigao para uma ago moral. Nao hd ideia que nao precise inicialmente fracassar para poste- riormente poder se realizar: Isso pode nos abrir a uma agao feita a partir da consciéncia de nossa falibilidade, que por isso mesmo é capaz de implicar modificagao radical nos modelos de engajamento e na nossa capacidade de compreender 0 sentido das contingéncias e das situagdes empiricas. Todas essas quest6es, no entanto, foram postas tendo em vista apenas um objetivo, a saber, a necessidade da esquerda de sair de um comodo e depressivo fatalismo. E bem possivel que dentro de alguns anos a configuragao do embate pol tico esteja tio mudada, a demanda por valores de esquerda esteja tao presente da Grécia a Franga, do Brasil ao Egito, que teremos dificuldades em explicar como era possivel que, pouco tempo antes, acreditéssemos que s6 nos restava nos acostumarmos ao pior. Se hé algo que a hist6ria nos ensinou é um pouco de humildade diante do acontecimento. A imprevisibilidade doacontecimento ea instabilidade da historia deveriam nos economizar a tentativa de legislar sobre aquilo de que um sujeito é capaz, sobre o que pode ser uma humanidade por vir. Até porque, como dizia Hegel, cuja filosofia da histéria foi tio malcompreendida e cuja recuperacdo ¢ tao urgente: Na historia mundial, por meio das agdes dos homens, é pro- duzido em geral algo outro do que visam e alcangam, do que 84 imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isso é produzido algo outro que permanece no inte: rior, algo ndo presente em sua consciéneta e em sua intengao." Neste exato momento, nao sabemos o que fazemos, mas sabemos que ha um mundo que lentamente desaba, Muito desse desabamento é gracas exatamente a essas acdes que fazemos sem saber 0 que fazemos, pois o proceso historico que destr6i os limites de uma época é sempre animado pelo que ainda nao encontra forma para ser posto como repre- sentagao da consciéncia ou da intencao. No entanto, em certos momentos, estamos dispostos a confiar nesse “algo outro” cujo contetido ainda permanece subterraneo, ainda nao realizado na “existéncia presente” (‘gegenwartige Dasein’) e que, por isso, bate violentamente contra o mundo exterior como o que se bate contra uma casca. Tal confianga descobre a forca de transformaro que Ihe aparece inicialmente como opaco, como pathos cujo objeto desconhece o regime de presenga da consciéncia e da in- tengo, em acontecimento portador de uma nova ordem possivel. £ nesses momentos raros em que essa confianga sobe a cena do mundo que a histéria se faz. 21 Hegel. Vorlesungen aber de Philosophy 1986. p der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp, 2. tradugio do autor] 85 Sobre 0 autor Vladimir Safatle é professor livre-docente do departamento de filosofia da Universidade de Sao Paulo (UsP) e bolsista de produtividade do cxeg, Foi professor visitante das universi- dades Paris vu, Paris vin, de Toulouse e de Louvain (Franca). E colunista do jornal Folha de S.Paulo e um dos coordenadores do Laboratério de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Ps canilise (Latesfip) da usp. £ autor de, entre outros, A paixdo do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006), Lacan (Publifolha, 2007), Cinismo ¢ faléncia da critica (Boitempo, 2008), Fetichismo: colonizar o outro (Civilizagao Brasileira, 2010) e Grande Hotel Abiseto: por uma reconstrugio da teoria do reconhecimento (Martins Fontes, no prelo). Snot rn ue cnr One tac eed er tues processos de exclusao social. CeCe On Or eee read errr nce acd recs eee een CC Prt ee ee ees eee con ey contrapor o desejo dos individuos ao Peer iar er ee eee On ad Searcy peers COR eee Ry troque seus temores ordindrios pela Renny eee ey Pere ener Pecan a Ok ry SOUL ed departamento de filosofia da Universidade PSC trom e eg S.Paulo. E autor de, entre outros, A paixéo do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006), Lacan (Publifolha, 2007), Cinismo e faléncia da BE Ca oe ea ere ee ORT cod Hotel Abismo: por uma reconstrucao da teoria Cee Ce ea ee SU uC e ck Ly grande Cea CUE ann Cet een eee historicamente o pensamento da esquerda e tam- Pe OR CULO eee Pe Cu ACCC CMTS POG C ORCC rE WC Mie tt Ea oe EMC Roe CCL eee Ckat (ets BS ees a OCCU OOO Rie Sule a quando no governo, seduzida pelos confortos do 4 Sao eae eR ae GR nao HIN) BOE Oko ae q Pree Conon citrate tty Re CMU CaM OME CoORCC Ce tte TOU Eee CR me i Ge er tite PUTO Ut er Orr CRC ee om PAPC Cok Co ere diferente as diferencas” e retomar o universa- . mo. A esquerda que nao teme dizer seu nome é eg lana eptonag daar NAAM AMIN ee eet oe WAN AIC Tee ed ais CSTW Pitan

Вам также может понравиться