A jogada do Éter

O gordo ergueu a vista observando o infinito no

horizonte feito de mar e céu que se estendia para lá das
vidraças. Fim de tarde, bandos de pássaros esvoaçam
desaustinados e sem rumo numa inquietude mal
percebida.

A namorada, uma negra de rosto longo, feições finas

e cabelo frisado está de “jeans” e veste uma camiseta
branca de algodão por detrás da qual espreitam os seios
bem torneados com pontas húmidas espetadas, gulosas.
Não tira os olhos do tabuleiro. Parece concentrada,
decidida a vencer.

“És tu a jogar, Aníbal”

Cofiou a barba branca e analisou a situação.

“Tens a certeza? Ia jurar que tinha acabado de mover

a peça…”

Ela sorriu. Já jogavam há vários milhares de anos e

conhecia-lhe bem as manhas. Tudo o que ele queria
naquele momento era ganhar um pouco de tempo para
usar a mente, explorar as alternativas. Levantou-se, sorriu
com ar provocador e enlaçou-o pela cintura

“Querido… acho que estás a necessitar de um café e

um digestivo”

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 Aníbal fitou o olhar no vazio e, mantendo a
preocupação em ganhar tempo, respondeu

“Pode ser. Ainda temos Logan?”

“Não. Só resta um pouco. Não dá para nada. Mas tens

Grants ou JB…”

“Hum… pois. As porcarias que nos oferece a tua

família…” respondeu, tentando manter a função fáctica.

Bebeu o líquido de um só golo e desviou o olhar. De

repente sabia o que fazer. A mão avançou decidida e
moveu a peça.

***

Estou cansado, os pés tremem e a minha vista turva-

se, o que é pouco apropriado para a minha condição e
situação actuais. Inclino um pouco para a frente o meu
corpo negro e salto de uma assentada para a descida
rápida no vazio. Tento em vão mas as asas recusam-se a
bater. Ainda penso em como tudo é efémero e estúpido.
Durante um segundo antes de não pensar mais, não
querer mais, não ser mais (que a imagem da aniquilação)
olho para o alto, para cima. Parece-me ver ao longe o
sorriso triunfante do ser de cabelo loiro e asas e túnica
alva.

“Pronto. És tu agora a jogar”

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 Aníbal comandava as brancas, a jogada acabara de
enviar o “peão negro” para fora do tabuleiro.

Sara olhou e ficou sem palavras. Não se espantava

mas não podia igualmente deixar de admirar a capacidade
do adversário, a sua destreza mental. Tinha no entanto,
uma carta na manga, algo que iria fazer pender
definitivamente o resultado a seu favor. Proferiu

“Aplique-se a determinação XYZ-4123. A partir de

agora, todos os movimentos serão regidos por ela.”

Aníbal deixou cair a cabeça para trás e soltou a

gargalhada. Disse

“Está bem, está bem. Mas vais ter de me deixar

pensar. Tenho de adaptar-me. Vou dar um mergulho,
comemos qualquer coisa e já voltamos ao nosso assunto.”

Ela seguiu-o de pronto. Após dois biliões de jogos já

tinha acontecido por várias vezes. Premiu o botão,
fazendo deslizar a parede que escondia o acesso para a
piscina interior. Desabotoou e despiu a camiseta, livrou-se
dos “jeans” e da calcinha. Aproximou-se do rebordo e
lançou o corpo para a frente, mergulhando de rompante
na água morna.

Ele deixou-se estar na beira, com água pela cintura

enquanto via o ir e vir das braçadas rápidas. Mais tarde
enquanto, ainda dentro dela, a enlaçava pela cintura e
sentia o aconchego do calor do corpo moreno, disse

“Sabes… amo-te tanto que, desta vez, estou até

disposto a perder.”

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 Ao que a voz feminina respondeu docemente mas de
forma implacável

“Jogo é jogo e nada tem a ver com amor. Acho que

não queres admitir que estás num beco sem saída.”

E tinha razão. Dessa vez as pretas venceram devido

ao uso habilidoso e no momento apropriado da
determinação escolhida.

Determinação que dizia claramente, sem margem

para dúvidas

A partir deste momento, elimine-se o éter como meio

de suporte à propagação da luz e da matéria. Tal hipótese
deverá poder ser comprovada como impossível usando os
meios que a mente humana tem ao seu dispor para
teorizar.

Aníbal sorveu o amargo da derrota mas não se

preocupou muito com isso. Amanhã será outro dia –
pensou. E, afinal de contas, eles têm toda a eternidade à
sua frente para jogar ao jogo de Deus e de Diabo.