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TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR. Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo EsTUDOS DE FILOSOFIA DO DIREITO Reflex6es sobre o poder, a liberdade, a justica e o direito ‘sKo paulo EDITORA ATLAS S.A. ~ 2009 Poder e direito “Portanto, estes so dois esquernas dé aiidlise do poder.'0 esquéma contra- to-opressio, que € 0 juridico, ¢ o ésquema dominagdo-represstio ow guerra- represstio, em que a oposigao pertinente ndo € entre lagitimo-ilegttimo como no precedente, mas entre luta e submissao.” (Michel Foucault: Microfisica do poder) 1. Poder: povo e massa 1.1. Fenomenologia do poder “ pressdo constante sob a, qual se,encontra a presa transformada.em.ali- mento durante sua longa peregrinagSo pelo corpo; sua dissolugéo-e.a intima relagdo que assume com quem esté digerindo, o desaparecimento total e de- finitivo, primeiro de todas as fung6es, depois de todas as formas que um dia constituram sua propria existéncia, a igualacdo ou assimilacdo ao que jé existe em quem a digere-como corpo, tudo isso pode ser considerado'como 0 que hé de mais central, ainda que também de mais oculto, no process do poder” (Canetti, Elias: Massa e poder, Brasilia, 1983, p. 232). 2. Estudos de fosofa do cicto » Fora Junior ‘Armente que lé essa frase nfo tem deseanso. O poder que no é percebido 4, de todos, o mais perfeito: aquele cujo processo chegou a um fim; alter e ego, dominante e dominado, so um sé, embora continuem como se fossem distintos, A unidade que é identidade perverte a diversidade, nao porque a suprime, mas porque a mantém como se ela no se alterasse. E quem a vé diversa a cré diversa. Af esta o mistério e a revelacéo. Diversos em um s6. Ao ‘mesmo tempo, diversos e tinicos. O fendmeno do poder é certamente irredutivel. E possivel apontar o que ha de mais central - e oculto —em seu processo. Mas dizer-lhe 0 niicleo essencial é tarefa que esbarra numa sensagdo de multiplicidade, individual e socialmente dispersa, que nos assalta a cada passo como uma descoberta adolescente, Por {sso, 0 poder se diz na politica, na economia, no direito, na cultura, no amor, na ciéncia, e se vé na forca, na violencia, na persuasao, no convencimento, na vitéria, na resisténcia @ até na fraqueza e no desamparo. A questo 6, entdo, por onde principiar. £ legitima tanto a peregrinacdo pela histéria dos conceitos ‘quanto dos fatos e suas designagées. Como é legitimo também 0 abandono do ‘tempo hist6rico em troca de concentrago no tempo légico da armacao tedrica e sistemdtica, Ou, ainda, a inquiri¢go etimol6gica ou a antropolégica. De todos osmodos, é um cerco que no cerca nem mesmo quando se utilizam todas essas cercas, que acabam por se interceptarem, mas criando inevitaveis vazios. ‘Ter poder, dar ou delegar poder, perder poder, ganhar poder. O'uso lingtistico induz a pensar o poder como substéncia, como coisa, como res, como algo que temos e detemos, como temos ¢ detemos um martelo para pregar pregos, como damos e delegamos como uma faculdade, que perdemos e ganhamos como uma situagéo e posig&o, Como algo, ele é limitado ou ilimitado, conhece fronteiras eas ultrapassa. f cometido como um comportamento; podendo tornar-se feroz ¢ desmedido. E, assim, realizador, benéfico, maléfico, justo ou injusto, tem cardter juridico ou antijuridico, legftimo ou ilegitimo. Como comportamento, ‘0 uso lingiifstico aponta menos para uma substncia, e faz. pensar antes numa relagio, a relacio de poder. Aqui se tora complexo, mostra-se em relagdes, forma redes intrincadas, é sistema, tem estrutura e conecta elementos. E assim se exerce, atua, altera-se, muda, Submete-se A temporalidade e & espacialida- de. Principia e acaba, tem um épice e, por isso, mais do que ter um processo, parece ser um processo. Nao sé tem uma histéria, é histérico. E, no entanto, que é 0 poder? Coisa? Insirumento? Substdncia ou relacao? Alguém pode, alguém tem poder: verbo ou substantivo? Como verbo, seu uso mais intuitivo nos faz vé-lo sempre conectado a outros verbos. E assim néo Fosere sito 3 designa, modaliza: poder corres, gritar, softer, ser, pensar, morrer, viver. Essa transitividade, associada a outro verbo, modaliza como condo de ser, sem ser necessariamente (possibilidade): poder subir, poder saltar; ou modaliza como condigéo de agir sem obrigatoriedade de agir (faculdade): poder casar, poder negociar; ou modaliza como estar sujeito, suportar (passividade): poder errar; ou modaliza como ter chance (oportunidade): poder, afinal, respirar; ou ‘modaliza como controle, dominio (poténcia): poder dissimular; ou modaliza como autorizar, permitir (permissao): poder sair ou entrar; ou modaliza como induzir a uma aco (sugest4o, recomendagéo, conselho); Pode me emprestar seu lépis? “Ou modaliza como estar autorizado, ter um direito (direito subje- +ivo): poder usar, gozar. Em seu uso transitivo, essas diferentes modalizagées nos levam a dizer que 0 verbo designa, ento, a modalidade, possibilidade, ou faculdade, ou passividade etc,? Ou se deve dizer que é meio pelo qual mani- festamos a possibilidade ou a faculdade etc.? Ou parece antes ter uma fungéo performativa (J. L, Austin: How to do things with words, cit. na trad. alemé, Stuttgart, 1972, p. 27), isto 6, por seu uso realiza-se a modalizagio? A resposta nfo é simples. Quem diz. “podem retirar-se” nao descreve a agdo de permitir nem, por meio dele, conduz & acdo de permitis, mas, simplesmente, permite. J4 quem diz “cuidado, segure-o que ele pode cait” ndo esté realizando ‘uma possibilidade nem uma passividade, nem esté induzindo-a, mas adescreve. E quem diz “voce pode me ajudar?” nem descreve, nem realiza, mas conduz & acho de pedir, solicitar. No entanto, tomado como modalizador, o verbo poder 0 modo pelo qual se modaliza a agdo designada pelo outro verbo. Ao usé-lo, realizamos a modalizagio. Ele no designa, nem descreve, nem manifesta; confere ou realiza um modo, Em seu uso transitivo, sua substantivacéo é um ‘equivoco, Substantiva 6, eventualmente, a agdo que ele modaliza. Ser possivel, ser permitida, ser facultada, ser capaz nfo siio substantivagbes de poder nem devem ser tomados como substincias. Sequer se deve dizer que so modos de ser, mas apenas performagées lingitisticas. Ou seja, 0 uso transitive do verbo poder, como modalizador, néo me desvenda algo, alguma coisa (uma faculdade, ‘uma possibilidade, uma autorizacGo... um poder!). Nao é mais que um modal: ser possivel, ser autorizado, ser permitido, ser capaz etc. J4 0 uso intransitivo aponta noutra diregio. Veja-se a frase “a fé pode mais que a forga”, ou esta “ele no pode comigo”. Aqui no hé modalizagao. O ver- bo nfo é um agregado modal a um verbo principal. Est usado como um ato pleno, que faz sentido em si, sem necessidade de agregar-se. Para chegar-lhe 20 Amago, podemos tentar substituigSes ou sindnimos: “ele nao pode comigo”, 4: Estudos de fla do drt + Ferae hnor “ele ndo consegue me vencer”; “a fé pode mais que a forea”, “a fé suplanta a forca”. Mas a sinonimia ¢ imperfeita. O problema, porém, no esté em entender © que se quer dizer com 0 uso intransitivo, mas 0 que ele designa. i no uso intransitivo que se oculta o mistério. Ou, pelo menos, é nele que se explicam as mais variadas substantivagées: “A fé pode mais que a forga: que tem a fé que a forca ndo tem?” “Ele'ndo pode comigo: por qué?” “Que tenho eu que ele nfo tem?” No uso intransitivo, hé um quid escondido. Possibilidade? Ca- pacidade? Faculdade? 0 simples uso intransitive do verbo poder que nos induz a pensar em poténcia e’suas detivagées substantivas. E como poder, intransitivamente, nao design nem atos nem omissées, nao designa um agir; torna-se um motivo de especulaciio, como ocorre com verbos como ser, estar, permanecer, ficar. Como estes, ditia 0 gramético, designa ui estado? Ou mera particula de ligagao? uso intratisitivo do verbo ser (Sécrates é) no é uma forma coloquial. Sempre dirlamos: “Sécrates é um filésofo, um homem, um pensador etc.” A especulacdo do ser como existéncia ou como esséncia resulta de um corte artificial: “Séerates é ...” em que h4 uma suspensdo. Desse artificio surge a interrogagao: existe? em que consiste? Ou é preferivel, simplesmente, tornd-lo cépuila, ligagto? uso intransitivo de poder, ao contrario, & coloquial e ndo parece ter 0 sentido de cépula ou ligagéo, mas designar um estado (ser poderoso: “a fé & mais poderosa que a forga”). Nao se trata, porém, de uma situa¢o neutra, como estar, permanecer, ficar..O uso coloquial - “a fé pode mais que a forca” — indica um estado privilegiado, alguma forma de vantagem. Por isso, poténcia e impoténcia ndo se opem da mesma forma que estabilidade e instabilidade, ou permanéncia e mudanga. “Quem pode pode, quer niio pode se sacode”, diz © povo. Pode o qué? A frase no exige complemento. “Quem pode” no quer dizer mais do que “quem tem poder”: um estado de vantagem, distinto em face de outro, desigual por superior de alguma forma. verbo poder, em portugués, ou em francés; italiano, espanhol, exige, em outras linguas, como o aleméo (kénnen, mégen, diirfen) ou o inglés (can, may) mais de uma palavra para sua variada expressividade. Mas aquele cerne misterioso e oculto que buscamos tem ali, dé algum modo, seu esconderijo, Isso autoriza Hannah Arendt (A condigdo humana, Rio de Janeiro, 1981, p. 212) a dizer que “a propria palavra [poder], como seu equivalente grego, dy- namis, e © latino, potentia, com seus varios derivados modernos, ou 0 alemo Podere dete 5 Macht (que vem de mégen e méglich, e nfio de machen) indicam seu caréter de ‘potencialidade”, O circuito das palavras nfo se encerra, porém, af. Arendt escreve em inglés (power) e pensa em alemio (Macht). Mas dynamis néo é a tinica raiz. que nos ‘ocupa, Quando falamos em monarquia, oligarquia, aristocracia, democracia, dois sufixos nos chamam a atengio, archein e kratein. O primeiro é um verbo que significa comecar, ser primeiro e, afinal, governar. O segundo talvez. se traduza bem por dominar. Governar tem o sentido do liderar, do estar sé principiar algo novo, Comeca como um tinico e, por isso, esté na frente. Dom{- nio é senhorio, o dominus é também o senior, o mais velho, 0 que vem antes e, por isso, igualmente, vai & frente. Kratein é, propriamente, mais que dominay, pois é um predominar, dominar antes e inteiramente. E, nesse ponto, parece- nos, governo e dominio se cruzam com poder. Gruzam-se, néo se confundem, Pois ha poder sem governo e sem dominio. Como ha dominio e governo sem poder. A questo, porém, perdura: um governo ou um dominio sem poder tém © sentido da fragilidade e do perecimento, pois Ihes falta algo: o qué? 1.1.1 0 poder na dogmética jurfdica ‘Tradicionalmente, o poder no é incorporado pela dogmética jurfdica como um elemento bésico. Em geral, ele nao é desprezado, mas encarado como um fato extrajuridico, o que ocorre nao s6 no direito privado, mas também no di- reito puiblico, em que a nogio é esvaziada por limitadas concepgées expostas nas teorias gerais do Estado. (O jurista usa a expresso poder, dando-lhe conotagées diferentes, conforme anecessidade tedrica, sem que os sentidos diferentes possam ser trazidos a um denominador comum, por exemplo: a) no Direito Puiblico, o poder é assinalado nos processos de formagéo do direito, na verdade como um elemento importante, mas que es- gota sua fung&o quando o direito surge, passando dai por diante a contrapor-se a ele nos termos de uma dicotomia entre poder e direi to, como se, nascido o direito, o poder se mantivesse um fenémeno perigoso, a ser controlado sempre em sentido de poder do Estado juridicamente limitado; b) assim, poder seria, inicialmente, alguma coisa, poder é coisa, uma substncia, no homem, na natureza. Fala-se em forga, em faculdade 6 Estudos de fosofa do ditto + Ferraz unior ou capacidade para agir, fazer. Algo que 0 homem detém, ganha, perde, limita, aumenta, Poder nessa acepcéo tem a ver com império, capacidade de produzir obediéncia, atributo essencial da autoridade politica, judiciéria, legislativa, administrativa, policial; © ‘para o Direito, 0 poder como capacidade de produzir obediéncia conceito intimamente ligado ao de direito subjetivo e, as vezes, até se confunde com ele. Nesse sentido, usa-se poder como faculdade, fa- culdade de exigir contribuigdes pecunidrias (poder tributério), facul- dade de agir ¢ reagir protegido pela lei (poder juridico), faculdade pera exerver certa fungéo (poder legal ou competéncia), faculdade de exercer livremente a autoridade segundo seu arbitrio em certas circunstancias (poder discricionério) ete.; 4) ‘mas poder 6; também, ainda no sentido substancial de algo, coisa, um instrumento, algo que serve para fazer alguma coisa: tem-se poder como se tem um martelo para pregar pregos. Assim, por exemplo, falamos do “poder ptiblico” como 0 conjunto de érgios por meio dos quais 0 Estado e outras pessoas piblicas exercem suas funcbes es- pecificas, por meio do qual o Estado mantém sua prépria soberenia. Aqui, ndo se trata bem, de faculdade, disposigdo para agiz, qualida- de derivada das virtualidades préprias da natureza humana, mas de algo objetivo, que subsiste na natureza e da qual o homem se apossa, que é culturalmente engendrado e de que nos servimos. Aqui poder € forca, vis que se obtém pelo controle da natureza (dominar ura rio, represando-o) ou pelo controle dos objetos culturais (dominar uma relagdo de troca, pela aquisigdo de dinheiro — poder aquisitivo). Em sintese, com base nessa reflexdo podem-se extrair trés associagées da idéia de poder: (1) poder como algo (substéncia); (2) poder como faculdade (humana) de produzir obediéncia; (3) poder como instrumento de exercicio de império e de soberania. 1.1.2. O poder como substancia: a metafisica do poder e as teorias normativas Pode-se dizer, sem uma generelizacio apressada, que o poder, como algo, ¢ exercido, Exercido, por exemplo, por um conjunto de homens que dispdem da “casa das méquinas”. Na linguagem ‘tradicional, o poder ora é este conjunto, Poderedieito 7 ora, por extensio, é a propria “casa das maquinas”. De um modo ou de outro, ele instaura uma relagio de comando. Por veres, entéo, ele se confunde com a prépria relagdo de comando. Em qualquer dessas acepcdes, temos pela frente um objeto de dificil configuragdo, um objeto coberto, que a prépria lingua mascara, cuja existéncia néo pode ser contestada, mas que parece néo ter como ser atingido, Um ente objeto de consideragées de ordem metofisica. Esse tipo de consideracéo, desde a Antigitidade cléssica, confunde-se com a tradicional questo a respeito da esséncia do poder. Como fato, temos a cons- tatacdo da obediéncia. Como problema, indagamos a propésito de sua razdo. Tomemos, nesse sentido, como exemplo, o ministério da obediéncia civil, ou seja, a obediéncia do grande niimero a um pequeno mimero de pessoas. Al- guém diz “vA”, e nés vamos; alguém diz. “vem”, e nés vamos. Obedecemos ao pai, ao preceptor, ao policial, a0 chefe. Nesses termos, o poder aparece como uma pequena sociedade que domina uma sociedade maior ou como alguém, inserido na pequena (0s pais), que domina alguém inserido na maior (os filhos, 0s servos, as mulheres). Por que se obedece? A medida que ambos esto inse- ridos na familia, parece que o enigma se dissipa: obedecemos a nés mesmos, como membros da mesma comunidade. Essa ¢ a explicacao usual dos juristas, favorecida pela ambigilidade da palavra Estado que designa, de um lado, uma sociedade organizada que tem um governo auténomo e da qual somos todos membros, mas, de outro lado, um aparelho que governa esta sociedade e que destr6i, de pronto, a explicacio juridica. Na verdade, o poder néo é obra de uma s6 forca concreta, pois ele existe Id onde essa forca é, as vezes, minima, mas também no é obra apenas da participagao, pois ele existe também lA onde a sociedade nao participa do poder! Para fazer frente a esse problema, faz-se mister examinar a questo de um Angulo historico. No do Angulo da histéria da manifestagio do poder, mas do modo como ele se concebeu no tempo. Pode-se dizer, nesse sentido, que a tradicdo sempre toma o poder como um fato. Ou seja, parece haver uma im- poténcia tedrica em se definir o fendmeno do poder de modo unitdrio, dadas as mais diferentes manifestagdes. Por isso, as teorias do poder sempre foram teorias normativas, mais preocupadas com a justificacao tedrica da obediéncia do que com uma explicacao geral do fenémeno, Bertrand de Jouvenal (Du pouvoir, Paris: Hachette, 1972, p. 36) nos forne- ce uma classificagdo que abarca, segundo ele, todas as teorias normativas do poder, Como teorias normativas, elas partem de um dever-ser: 0 poder deve ser obedecido, Por qué? Duas razdes: porque... (relagéo causal) ¢ tendo em Estudos de fosofia do dirsto + Ferraz unor vista... (relagio finalista). Na direcdo do porqué, busca-se a causa eficiente da obediéncia e se desenrolam as chamadas teorias da soberania: a causa eficiente residiria num direito de o poder exercer-se, & condigio de ser leg(timo em sua origem. Na diregio do tendo em vista, busca-se a finalidade e se desenvolvem as teorias da fungao estatal. A causa final da obediéncia est4 na finalidade perseguida; 0 chamado bern comum. Essas teorias stio bem conhecidas dos juristas e sao élas que, no correr do século XX, formam o pensamento jurfdico sobre o poder. Isto é, as teorias ju- ridicas, que so teorias normativas ou cripto-normativas, reconhecem 0 fato do poder e the atribuem uma propriedade misteriosa que é sua duragdo: 0 ‘que existe, pressupem elas, é a crenca humana na legitimidade do poder, a esperanca de seu bom uso ¢ o sentimento de sua forga, Daf para a frente, as teorias juridicas do poder se tornam justificagGes mais ou menos bem constru‘- das de seu-exercicio, as quais acabam por reforgar aquele mesmo exereicio. Seu problema é nio o que seria necessario para o poder ser, mas o que seria necessério para ser bom, ttil, adequado, eficiente etc. 1.1.3. Teorias da soberania ‘Trata-se das teorias que explicam e justificam 0 poder por sua causa eficien- te. A soberania, dizem os tedricos do direito (por exemplo: Giannini, Diritto amnistrativo. Milo: Milano, 1970, v1, p. 95), € a efetividade da forga pela qual as determinacdes das autoridades so observadas e tornadas de obser- vaneia incontrastével mesmo por meio de coagio. Do ponto de vista do Direito Internacional, um sentido negativo, diz-se, é a ndo-sujeigdo & determinacéo de ‘outros centros normativos. Em geral, ao conceito de soberania esté ligado, tradicionalmente, o carter original (e, por vezes, absoluto) do poder soberano. Origindrio no sentido de fundamento de si préprio. Absoluto no sentido de capacidade de determinar, no Ambito de sua atuag&o ao menos, a relevancia e 0 cardter irrelevante de qualquer outro centro normativo que ali atue. Na tradig&io ocidental, as teorias véemn na obediéncia um dever e na sobera- nia um direito, o direito de comandar em iiltima instancia. O poder usa desse direito. Mas ele Ihe pertence de principio, Eaf est o problema que é também pressuposto metafisico dessas teories: quem é 0 titular origindrio desse direito? Ou seja, por trds do conceito juridico de soberania esté um conceito metafisico: deve existir uma vontade suprema que rege a comunidade humana, vontade Poder edrsito 9 boa por natureza que deve ser obedecida. £ dessa vontade (divina ou geral) que 0 poder concreto deve emanar. A SOBERANIA DIVINA E possivel dizer que, provavelmente, 0 tinico sistema capaz de explicar todo e qualquer poder de um ponto de vista unitdrio é o da vontade divina: “Néo existe outra autoridade sendo a que vem de Deus e aquelas que existem foram instituldas por Ele” (Sdo Paulo). Essa é a explicagao metafisica mais radical e abarcante. As demais siio pseudometafisicas, pois siio meras justificagdes de poderes de fato. Isso ndo exclui o fato, histdrico, de que a frase de Sao Paulo tena sido usada muito mais para concitar os sujettos & obediéncia ao Poder do que para concitar o poder & obediéncia a Deus... Na Idade Média, porém, é o reverso que vale: a Igreja usa a concepgio para advertir os principios que seriam “protetores mas néo proprietirios” do povo. Esse apelo significa uma limitago: nao se trata de permitir ao principe fazer indefinidamente a lei, mas de vincular 0 poder a uma lei divina que o domi- na e obriga. Nao resta diivida de que isso instaurou um controle eclesidstico sobre a sociedade e a supremacia do.direito candnico sobre outros direitos, como forma de explicitagiio do poder (divino). De certo modo, 0 conceito de soberania divina, em vez de aumentar 0 poder, provocou, durante séculos, sua limitagéo. Soberania como poder/direito do soberano jé existia desde a Idéia Média. Sua raiz social estava na relagdo direta e concreta ente 0 soberano ¢ o stidito por meio dos mecanismos de apossamento da terra. Por isso até hoje soberania e tertitorialidade so conceitos préximos. B, ASOBERANIA ABSOLUTA A partir do Renascimento, 0 crescimento da atividade mercantil, o intercdm- bio com 0 Oriente, as Cruzadas, as grandes descobertas afetam esta relacdo extremamente concreta do senhor sobre a terra e sobre os que nela vivem. Introduz-se uma nova forma de relagdo, que nao é poder sobre objetos, rique- za, mas poder sobre 0 corpo e seus atos, o poder sobre o trabalho, Trata-se de um poder ~ o-poder disciplinar - que ao contrétio da soberania medieval, é mais continuo e permanente (cf. Foucault, Microfisica do poder, Rio de Janeiro, 1999; p. 179 ss). Nao pode ser alimentado por instrumentos ocasionais, mas 10 cstudos de flosoia do dito + Ferra lunior necessita um sistema de delegagbes continuas. O poder disciplinar altera‘a no- ‘cdo medieval de soberania, que se torna mais abstrata, mas, simultaneamente, mais racionalizével ¢ duradoura. Esta nogdo oculta, é verdade, a relago de propriedade da riqueza, sob a capa de direitos abstratos que se interpem ¢ contrapSem no todo social. Mas se antes a soberania emergia do apossamento da terra, agora ela 0 constitui, Eis af a idéia nova de soberania que explicard o Estado: o poder soberano como algo que constitui a comunidade politica e garante as relagbes sociais da propriedade. Foi isto que Hobbes percebeu e expés com genialidade. Ea classica figura do Leviathan: Ao descrevé-lo, Hobbes fala dele como um homem artificial, que faz. todas as leis, mas nfo se submete a nenhuma delas, que no € igual nem desigual em relagdo aos stiditos, apenas é diferente, é um outro, caracterizado pelo direito de ditar as leis e pela forga de fazé-les cumprir, Este “homem artificial”, que no se confunde com a comunidade, jé havia sido percebida também por Maquiavel. Para este, a relagdo entre o principado era de exterioridade (Foucault), donde ser 0 exercicio do poder um exercicio de manutengio, reforgo e protegdo do principado, principado, por sua vez, nao era apenas um conjunto de stiditos e ter- ritérios, mas um objetivo: trata-se de algo que ele possui e que precisa saber guardar e proteger. Em sentido semelhante, Hobbes fala que o soberano tinha or tarefa zelar pela vida boa e cémoda dos stiditos e pela sua seguranca, mes, simetricamente, o soberano é responsdvel pela ordem, retribui¢do & entrega que fizeram os homens de todos os direitos que tinham no estado de natureza. O Leviathan é um sujeito artificial, uma espécie de cimento do corpo politico, uum tereeiro em face da esfera piiblica (social) e da esfera privada, Entre essas esferas, ao contratio da Antigiidade, ndéohd mais clara distingo nem harmonia ‘complementat, Sua relacio se torna conflitual: os interesse puiblicos (sociais) afetam os privados e estes os piiblicos. Donde 0 Estado como terceiro, cuja presenga constitui a comunidade politica. G. A SOBERANIA POPULAR: SOBERANIA COMO GESTAO GOVERNAMENTAL A soberania absoluta decortia de um pactum subjectionis. Esse pactum néo deixava, porém, de ter um sentido encravado no préprio povo (como conjunto dos stiditos). Afinal, a constituigio, mediante pactum, da sociedade civil tinha por objetivo criar condigées que superavam, em Hobbes, por exemplo, as inconveniéncias do isolamento individual no estado de natureza (0 homem Foderedreto 11 como lobo do homem). Donde a idéia de que o soberano tinha por tarefa pela vida boa e cmoda dos stiditos aponta, porém, para uma segunda direcao da anélise da concepgéo do Estado na Era Moderna. Quando Hobbes nos diz que o soberano € responsdvel pela vida cémoda dos siébitos, pela sua seguranga, pela ordem pitblica, ele Ihe confere uma res- ponsabilidade que, no mundo antigo, cabia ao pater familias. Eis af um novo contomo do poder politico: o Estado como um todo responsé- vel pela sobrevivéncia. Como os individuos que compéem a comunidade, pelos préprios afazeres, ndo podem ter este cuidado, entao ocorre essa delegagéo a0 “homem artificial”. No momento, porém, em que ao poder politico se atribui esta incumbéncia, & como ocorresse uma espécie de privatizagao da esfera publica: o piiblico passa a assumir a fungio da manutengio do individuo. Daf o surgimento do que Foucault chama de o problema da gestio governa- mental ou governamentalidade (Foucault, Microftsica, cit. p. 27 ss). Pode-se dizer, pois, que o Estado Moderno surge de duas vertentes distin- tas na compreensio do poder politico. Uma € a viso juridica, com base na nogéo de império. A outra, & a visto econdmica, com base na idéia de gestéio da coisa piblica. A primeira concepgéo, juridica, do poder o vé como um conjunto de positiva- (gbes no sentido de que os objetivos do poder sao ou conduzem a uma estrutura Circular: 0 objetivo do poder & 0 bem comum, o bem comum é a obediéncia as leis que 0 poder estabelece. A visdo juridica do poder, do ponto de vista da velha soberania é eminentemente ética no sentido de que o respeito a lei & primério nas relagées de governo. JA a visio econémica do governo como arte, uma arte que, conforme as finalidades, nos ensina a dispor as coisas e as pessoas, é diferente, posto que o centro estd na idéia de célculo. Aaarte de governar est4 menos ligada.a uma sabedoria prética, isto é, a0 conhecimento da eqiiidade, do bom julgamento, da justica, muito mais a um cdlculo. A idéia é de que governar bem é adaptar-se as circunstincias que permite o exercicio do governo, Governo é trabalhar com as diferentes fi- nalidades que podem aparecer dentro de uma vida social, dentro da vida em comum, eo bom governo se identifica com a gestio medida e sopesada de meios e fins. Esta transformacio de viséo juridica para uma visio econémica do poder é ressaltada por Foucault. A alteragéo produzida pela idéia de arte de governar em oposic&o a idéia da soberania-império no ocorre, no entanto, 12 Estudos de flosofia do tet + Ferraz Junior de uma hora para outra. Mesmo tendo surgido em pleno século XVI, no século XVII (e no século XVIII) ela custa ainda por se implantar, e isto por algumas razées entre as quais esta a presenca ideoldgica forte e preponderante da soberania como problema central do governo. Tanto que, no século XVIN, um dos elementos bésicos da soberania iluminista, a idéia de contrato como fundamento do exerc{cio do governo, é ainda um elemento que manifesta a tentativa de um compromisso entre a visdo jurfdica e a visdo econémica do poder. Esse compromisso se daria, de um lado, porque no.contrato esté pre~ sente a idéia de soberania, da soberania-império que emerge dos contratantes, de um ato de vontade de cada um deles, ¢ de outro lado, posto que contrato 6 também negécio, um arranjo entre diferentes vontades que se adaptam, na forma de célculo, tems, entao presente algo da viséo econémica do poder: O aparecimento e 0 crescimento em importancia da arte de governar é devido também, no plano econdmico, ao mercantilismo, embora este no tenha tido forga para implantar definitivamente a arte econdmica de governar: Isto porque, dada a presenga das antigas teorias da soberania, de forma preponderante, 0 ‘mercantilismo, que apareceu como uma primeira tentativa de uma espécie de “economia politica” de sua época, acabou-se instaurando com instrumentos sgerados pela viséo juridica do Estado e néo por essa nova visio. ‘Afinal, 0 que provocou grande alteracdo, pode-se dizer, foi o aumento da complexidade social e aparecimento de subsistemas sociais de tal forma que pouco a pouco assistimos, j4 no século XVII, & diferenciagdo do chamado sub-sistema econémico que passa a constituir algo de per si, ¢ isso merecedor da atengdo do governo. Nesse contexto, os conceitos tebricos centrais para a descrigéo da socie- dade, do corpo social e suas vinculagées, que na filosofia antiga espelhavam um Ambito mais restrito (Falava-se em amizade, virtude, cidadio, coragem), passam a ser dominadas por uma viséo econémica. Com isso exigem-se outros instrumentos conceituais, como 0 s4o os conceitos de seguranga, administracéo, politica, cuja operacionalidade visa uma situagéo mais complexa, em que se manifesta um problema desconhecido até entio. Trata-se da compatibilizagdo Ga sociedade (burguesa), de um lado, com a politica, de outro, seguindo-se a problematizacéo do poder politico como algo que devia ser controlado pata que a vida se realizasse e se aperfeigoasse. ‘Aarte de governar néo obstante ficou bloqueada durante muito tempo pela idéia de soberania-império, Uma forma pela qual se tentou conciliar a premis- sa da teoria da soberania territorial com a emergéncia dos problemas gerados Podere diete 13 pelo crescimento populacional foi, como vimos, a idéia de contrato. A idéia de contrato, pelo menos num nivel de complexidade pequeno, permitia ajustar as exigéncias de uma teoria de soberania imperativa sobre um territério, considera- do objeto de ago do soberano, com as exigéncias de conciliagao das diferentes vontades populacionais de todos os individuos, de tal maneira que a soberania passava.a emergir do contrato-vontade-ce-todos. No entanto, a teoria contra- tualista que propiciava este ajustamento acabou se superando, o que permitiu que a teoria do governo, ou a arte de governar, se desvencilhasse desses limites, ou seja, se desbloqueasse; foi como mostra Foucault o ctescimento populacional, que se torna problema extremamente complexo e nos faz entender 0 apareci- ‘mento da estatistica enquanto arte de governar o Estado. Como? Em primeiro lugas, porque o crescimento da populacio permitiu e exigi a quantificagao dos seus fendmenos peculiares. Ao se lhes fazer a quantifica- ‘go revelou-se uma especificidade irredutfvel da populago como um todo a0 pequeno quadro familiar. Com isso a familia como 0 modelo de governo desapareceu. E, no nos esquecamos, a familia como modelo, estava na base da antiga teoria da soberania. Em segundo lugar, a populagdo comegou a ocupar lugar ambfguo dentro do governo. Simultaneamente aparecia como o sujeito das necessidades, das aspiragbes, mas também como 0 objeto nas méos do gover- no, ou seja, 0 povo frente ao governo era consciente daquilo que queria, mas inconsciente daquilo que se queria dele. Essa ambigitidade forca o nascimento de uma técnica, isto 6, de téticas e estratégias novas para que possa governar, E, em terceiro lugar, a populacio com sua complexidade faré com que se passe de uma arte de governar para uma ciéncia politica, cuja base vai ser a economia, especificamente a economia politica. Isto porque a complexidade dos problemas populacionais, que no se reduzem aos problemas de cada familia, 20 contrario as familias, com suas exigéncias, é que vo construir um problema para 0 todo social, reclama um tipo de conhecimento novo, que vai muito além de uma simples arte e exige uma verdadeira ciéncia ela propria com uma complexidade muito maior: a.ciéncia politica. Isto nao faz com que a soberania deixe de desempenhar um papel importante. A soberania nao é eliminada, mas tem que ser repensada. Aparece numa forma nova. Antes ela se colocava-como. uma relagdo de império entre o governante e o governado, e como nao havia ainda a preméncia da questo econdmica, esta relagio era exterior, isto 6, o terrt6rio ¢ o principado eram 0 objeto do pri 14. cetusos de flsofa do dito + Faz Junior governo néo se destaca, como um outro, da prépria territorialidade, de que faz parte, e, assim sendo, a soberania se torna um problema de exercicio interno dos atos de governo: gestdo soberania, Nesta nova situaco, problemas que antes no se colocariam vao tomar sentido, como, por exemplo, a questo da intervengdo do Estado no dominio econémico privado. De um lado, a palavra “ntervengo” pressupée ainda a idéia do governo como um ente externo. Mas, de outro, a expresséio conota a idéia de planejamento enquanto ativi- dade gestora global dos interesses nacionais com os quais 0 préprio governo ideologicamente se confunde. A soberania entra af com aquela roupagem nova. Nao como relagéo direta de poder entre o soberano ¢ 0 stidito, ligada a um mecanismo de apossamento da terra (prinefpio da territorialidade), mas como relagao mais abstrata, sobre 0 corpo e a atividade laborial do homem, uma forma de poder continuo que cexige delegacio, organizagio e sistema, e se exerce sobre 0s cidadiios como todo compacto. Esta é jd a soberania da grande monarquia administrativa, que no se elimina no contexto das questées da arte de governar enquanto ciéncia polttica; ao contrério, passa a ser exatamente importante, mais de tal maneira que vai se estabelecer um tridngulo: império, disciplina e gestéio econémica. Surge entéo o que Foucault chama de “governamentalidade”. Vale dizer, que este conjunto constituido pelas instituig6es, procedimentos, anélises, reflexdes que permitem exercer esta nova forma de poder soberano que tem por alvo a populagio, por forma principal de saber a economia politica e por instrumentos técnicos os dispositivos juridicos de seguranca e organizacio. D. SOBERANIA COMO ESTRUTURA HIERARQUICA. Aidéia do Estado moderno surge, pois, neste contexto. Seu pressuposto estd no reconhecimento do governo como uma unidade de ordem permanente, ndo obstante as transformagdes e as mudangas que se operam no seio da sociedade e cujo néicleo organizador estd na soberania. Estado, como vai dizer WE. Orlando (Principii di diritto ammnistrativo, Florenca, 1919), afirma-se como pessoa: é nessa afirmacéo que se contém sua capacidade jurfdica, é esse o momento que corresponde & nogéo de soberania. No entanto, a concep¢ao do Estado como pessoa juridica néio pade deixar de significar concepgéo do Estado como atualizagio perene das forgas econdmi- cas da sociedade. Neste sentido, aquela concep¢éo implica necessariamente a idéia de que o Estado subordina, via de regra, as suas atividades aos preceitos Poder edicto 15 do direito que ele declara: nao no sentido de que se circunscreve a misao de tutelar os direito’ individuais, mas no sentido de que no delimita a priori a sua esfera de interferéncia, de que fixa a priori a juridicidade de toda e qual- quer interferéncia neste ou naquele outro setor da produgao humana, com 0 intuito de realizar o bem-estar geral. Na palavra dos juristas, o Estado é, contudo, caracterizado pelo alto grau de formalizagio de sua constituicéo. Seus elementos estruturais, como a diviséo dos poderes, 0 conceito de lei, o principio da legalidade da administracdo, a garantia dos direitos fundamentais e a independéncia do Judiciério, contém em si mesmo as condigées de seu modo de atuago: reconhecidos como validos, eles devem produzir um efeito especifico, adaptavel aos condicionamentos sociais. Mas, internamente, eles obedecem a uma estrutura peculiar, implicita na nogio de soberania: a estrutura hierérquica, 1.1.4 Teorias da soberania do poder e ordenamento Aquilo que, conforme as teorias da soberania, explica e justifica a obedi- éncia civil é o.direito de comandar, que o poder tira de sua origem, divina ou popular. Nessas teorias, o poder tem uma estrutura hierdrquica, em camadas so- brepostas, que se afunilam na diresdo superior, até o vértice. A teoria jurfdica entende por poder soberano o poder acima do qual nao existe, em determinado grupo social, nenhum poder superior que, como tal, detém o monopélio da for- ca. Nesse sentido, o direito aparece, em geral, como conjunto de regras que se fazem valer pela forca, isto &, um ordenamento normativo de eficécia reforgada. ra, aquele que esta em condigées de exercitar a fora para tornar eficazes as normas é, por conseqiiéncia, o poder soberano, o qual detém o monopélio do exercicio da forca. Donde se segue que a teoria do direito como regra coativa € a teoria do direito como emanacao do poder soberano so convergentes (Bobbio; Norberto: Teoria delt’ordinamento giuridico, Turim, 1960, p. 11). A teoria da soberania permite uma concepgao do poder em camadas sucessi- vas, que sd acompanhadas por uma concepsao do direito como ordenamento. Acexpressao genética poder soberano conota, em sua acepcao modema (século XX), o conjunto de érgéos por meio dos quais um ordenamento juridico é pos- to, conservado e aplicado. Ha uma miitua implicagao entre ambos, pois, se é verdade que um ordenamento juridico definido pela soberania, também é verdade que 0 que é a soberania em determinada sociedade é definido pelo 16 cstudos de flosofia do dito + Frat Junior ordenamento, Ou seja, poder soberano e ordenamento juridico so dois con- ceitos referidos um ao outro. Isso permite inclusive a identificagéo da norma juridica como a que faz parte do ordenamento, o que significa,também, aquela que é emanada do poder soberano. 0 modo como a teoria trata 0 poder na teorfa da soberania faz com que 0 poder seja basicamente tratado como fonte do direito. A medida que os orde- namentos sao vistos como conjuntos complexos de normas, isto é, de normas que ndo nascem de um tinico ponto originério, a teoria da soberania contorna a dificuldade posta & exig¢ncia de unidade, falando em fontes reconhecidas e delegadas, As fontes reconhecidas cotrespondem a normas 4 produzidas por-um poder qualquer que recebem ambos ~ normas e poder ~ a chancela do poder soberano, As fontes delegadas referem-se a poderes criados pelo poder soberano e a normas futuras, a serem criadas pelos poderes delegados. © conceito-chave nessa concepgio de poder & a nogio de poder origindrio, isto 6, 0 poder acima do qual nao hd nenhum outro no qual se possa justificar ordenamento. O poder origindrio é tratado como fonte das fontes. Isto é uma exigéncia de racionalizagio do direito: ow o direito constitu um sistema unitério, ou temos 0 caos. Essa racionalizacao obriga o jurista, porém, a sublimar o poder, pois, de fato, ele ndo pode esconder a realidade de que nenhum ordenamento nasce num deserto. Por isso, a idéia de um poder ori- gindrio é, necessariamente, metaférica. O poder origindrio nunca é um poder ilimitado, jé pelo fato de se reconhecerem ordenamentos precedentes (fontes reconhecidas). Por isso, quando o jurista fala em poder originério, o cardter primeiro é juridico e ndo histérico. Da mesma forma que a nogio de estado de naturesa para os jusnaturalistas era um conceito racional, uma exigéncia da azo justificadora, para o jurista moderno atua a nogdo de poder origindrio, © qual é, de fato, sempre limitado — limite externo do poder soberano. Por outro lado, o poder originario, uma vez. constituido, cria, por si mesmo, para satisfazer a uma necessidade de normatizacio continuamente atualizada, nos centros produtores de normas, o que estabelece uma segunda limitac4o, interna: a autolimitagio do poder soberano ¢ outra exigéncia da racionalizagao do poder pelo justo. Nessas duas limitagées estdo, na tradi¢o jusnaturalista da soberania po- pular, duas tendéncias diferentes. Ambas explicam a passagem do estado de natureza para 0 estado civil por meio de um procedimento caracteristico: 0 contrato social, mas concebem diferentemente esse contrato. Assim, numa pri- meira tendéncia, que se poderia chamar de hobbesiana, aqueles que estipulam Podere dito 17 © contrato renunciam totalmente a todos os direitos derivados do estado de natureza, Em conseqtiéncia, o poder civil nasce sem limites. Assim, toda futura limitagAo ser4 uma autolimitacdo, A segunda tendéncia poderia chamar-se de lockiana. O poder civil vem fundado com o objetivo de assegurar melhor 0 gozo dos direitos naturais. Donde nasce originariamente limitado por um direito precedente. Na primeira hipétese (Hobbes), o poder primitivo (estado de na- tureza) é algo irracional, desregrado (homem lobo do homem) eo poder civil guarda, do primitivo, esse caréter selvagem que, para ser controlado, tem de se tornar tinico. Na segunda hipétese (Locke), 0 poder primitivo jd é racional, apenas necessita de um aperfeicoamento, 1.1.5. Direito e forca nas teorias da soberania © poder origindrio, de qualquer modo, é entendido como o conjunto de forgas politicas que, em dererminado momento histérico, se unem e instauram um ordenamento juridico. Isso coloca o jurista na condigdo de identificar direito e forga, a medida que forga e poder parecem identificados. As necessidades exigenciais da racionali- zacéo do direito fazem, contudo, com que essa identificagao seja evitada. Nao se nega certa relagio entre poder e forca (Fisica), pois se reconhece que os detentores do poder sdo aqueles que tém a forca necessdria para fazer respeitar as normas que eles emanam, Admite-se, pois, que a forga é instru mento necessério do poder, mas nega-se que seja seu fundamento, Sutilmente, vai dizer o jurisca que a forga é necesséria para exercitar 0 poder, mas ndo para Justificd-lo, © que o justifica é 0 consenso. Aaltemnativa do consenso permite ao jurista, nos termos da teoria da sobe- ania, ver 0 poder como um misto de forga e consentimento, donde o direito aparecer como uma regula¢do do exercicio da forga, fundado no consentimento (contrato). Aqui, as tendéncias variam no detalhe, mas a base é uma sé: 0 poder 6, na sociedade, uma s6: 0 poder 6, na sociedade, uma qualidade imanente aos individuos (forca, capacidade) que é limitada 2 medida que se exige seu agrupamento (consenso). Na verdade, a relaco entre direito, poder e forca, na teoria da soberania, aponta para um paradoxo: a forga est dentro e esté fora. Fora, como um elemento irredutivel a qualquer racionalizagéo. Dentro, numa forma domesti- cada (pelo direito). Essa estrutura paradoxal explica os dilemas da teoria e as teorias que fazem da soberania um conceito metaférico: por exemplo, moeda 18 Esudos de Mosofie do dieto + Feraz Junior de duas faces (Bobbio). Nesse sentido a idéia de poder como uma espécie de catalisador: um fator capaz de engendrar a norma juridica a partir de uma profusdo de possibilidades normativas. A metdfora, porém, produz um des- concerto conceitual em termos de sua racionalizagéo: ela mostra 0 conceito, mas ndo 0 demonstra. As dificuldades de uma racionalizagdo conceitual por forga do paradoxo que ela enfrenta séo passiveis de uma explicagdo, perceptivel na construcio da noggio de soberania com base em um elemento de ordem antropolégica que Ihe é inerente: a hierarquia, A nogéo de hierarquia aponta para fundamentos que se enrafzam na natu- reza animal do ser humano. Walter Burkert (“Vergeltung” awischen Ethologie und Ethik, publicaggo da Carl Friedrich von Siemens Stiftung por meio da Mayo Miesbach Druckerei und Verlag, 1994) relata, a propésito, interessantes estudos com chimpanzés. Nestes, 0 observador néo deixa de constatar contra-reagées acompanhadas de irritaco néo s6 como contrapartida direta e imediata, mas mesmo quando algum tempo decorre: um comportamento “vingativo” pode ocorrer em face de ‘um comportamento inamistoso, cometido’na presenca do chimpanzé dominante (chamado Alpha), horas depois, quando Alpha nfo est mais presente. Trata-se de reagées homeostéticas, que asseguram a permanéncia de situagbes ambientais favordveis a individuos e grupos, por meio de compensagbes e perturbagies. O animal, num primeiro momento, foge, mas a fuga nfo é a estratégia mais eficaz. Daf vem a agressdo, a contra-agressdo, a pressio. Na agressio est contida a explosio de fiiria, uma espécie de programacio bioldgica que oferece, ainda que curta e no objetiva, uma resisténcia a forcas contrétias. Mas a agressio, mesmo entre os chimpanzés, parece estar controlada pela presenga do chimpanzé Alpha. Ela é limitada por uma espécie de “hierarquia” grupal. A quebra da “hierarquia’, por sua vez é “punida’. O Alpha reage & insubordinagio, ao que se ligam fortes emogées. As emogdes submetidas a controle, dos subordinados, contrapée-se a emoc&o sem limites do “chefe”, 0 que explica as lutas agressivas em disputa da posicdo superior. Observa Burkert (em outra obra: cf. Greation of the sacred: tracks of bio- logy in carly religions, Harvard University Press, 1996. p. 83 ss) um sistema de graduagdo é bem estabelecido nas sociedades primatas. Nesses termos, a atencdo dos “subordinados” é sempre voltada para aqueles que lhes esto acima numa hierarquia. Poderedireke 19 Ora, essa idéia de um grau superior é algo que os seres humanos costumam visualizar imediata e genericamente numa dimensdo vertical muito mais que numa relagdo horizontal, por exemplo, numa forma centripeda. Na verdade, nisso nao hd propriamente uma légica: 0 que domina a imaginagdo humana é uma reminiscéncia do habitat pré-humano. Nesse habitat as drvores forneciam tanto alimento quanto seguranga, possibilidade de escapar de predadores, ¢ também possibilidade de jogar o jogo dos saltos de graus, isto é, de um galho para outro. Da drvore deriva a imagem do vertical, Daf a veneracdo, presente em quase todas as religides, da supremacia do mais alto (a montanha, donde o céu, onde habitam os deuses) e os correspondentes sentimentos de inferioridade ce superioridade, bem como nogdes como a de valores e ideais mais altos. Nos primatas, essas caracteristicas do sistema gradual ligam-se proximi- dade fisica, mas nos seres humanos, gracas ao cédigo lingtistico, elas ganham alguma independéncia do espago e do tempo, mas persistem através das dis- tancias e dos anos. Anogio de hierarquia pode ser vista, assim, como um conceito capaz de dar conta dessa independéncia, somada & persisténcia, nao obstante as dificuldades de sua racionalizagéo. Introduzida, no século V, como termo pela influente obra do neoplaténico Pseudo-Dionysius Aeropagita, ela aponta para a totalidade dos seres, dominada por uma grande e dourada cadeia de autoridade, procedente de um tinico principio: 0 Uno. Esse elemento é visivel quando se encaram diferentes formas de retribuigao, ora como indenizasdo, ora como apenagdo. Nesse sentido, Burkert prope que a nogio de retribuigdo e, por conseqiién- cia, a nogéo de pena admite dois modelos. Um visa A equiparagio de uma pretensio e de uma contrapretensio. O outro fixa-se numa hierarquia a ser protegida e mantida. O primeiro chama Burkert de horizontal; o segundo de vertical. Ambos podem aparecer numa mesma regra: “concilia-te com quem te infligiu um dano, vinga-te de quem te ofendeu” diz Chilon, um dos sete sébios, Retribuir pode significar, assim, retificar (ajustar 0 equilibrio entre uma coisa e outra, uma agio e outra), mas também descontar (no sentido vulgar de infligir um castigo correspondente: por exemplo, a crianca que, quando sofre uma ago agressiva de outra, desconta a agressio sofrida) Na prittica da retribuigio, porém, os dois modelos implicam-se, No prélogo do Cédigo de Hamurabi esté dito que o rei ali esta “para que o forte ndo esmague o fraco”. Isso indica que, de certo modo, o modelo horizontal precisa do vertical € até se subordina.a cle. Com isso, de algum modo, eles se interpenetram: a 20. Estudos deflosfia do deta + Ferraz Junior pena (em grego: poine) é quitada pela satisfagio resultante da compensacao. Dat a idéia de que se vingar de quem faz uma maldade seja algo justo. Com isso, ambiguamente, a contra-reagio enquanto contra-agresso toma também © caréter de cAmbio, pagamento, compensacio, indenizagio e reconeiliagao, Explica-se, assim, a necessidade, no direito, de distinguir, civilmente, entre multa punitiva e multa compensatéria. E também a dificuldade de esclarecer a diferenca, de natureza, entre a pena criminal e a pena civil, bem como a resisténcia em aceitar-se a indenizago pecuniéria por danos morais. Em contraste com o comportamento animal, os seres humanos desenvolvem, uma espécie de procedimentalizagéo das reacdes que, de um lado, permite a sociabilizagao dos processos (que corresponde ao sentido de sangao como es- tabelecimento cerimonial da retribuigo) e, de outro, o contacto com meios de pagamento que possibilita a indenizagéo como troca. Ambas, a sociabilizagao €a indenizacdo, pressupéem a lingua (cédigo significativo) e, com isso, uma homeostase por meio de um mundo objetivamente estabilizado (criado pela linguagem) onde ocorrem as negociagées. Assim, os procedimentos retributi- vos dos seres humanos nao sdo primitivos nem desenvolvidos. Primitivismo desenvolvimento séo conceitos impréprios ao caso. No ser humano, mesmo a vinganca, por meio de procedimentos com base lingiiéstica, torna-se orientada dirigida, no obstante o seu fundamento emocional. Com essa mesma base tedrica tornam-se compreensiveis os rituais de submis- séo, como o inclinar-se até 0 solo diante do superios, ndo olhar diretamente nos seus olhos, mas também o beija-mio e o deixar-se abencoar, ¢, mais dramatica- mente, as regras de capitulagao em assuntos de guerra. Entende-se, também, 0 sentido da expresso siplica, suplicar, corrente na linguagem juridica, que vern do latim suplex (dobrar os joelhos), donde supplicatio. Torna-se possivel, assim, aproximar submisséio e soberania, com base na mesma estrutura hierérquica. Nos jogos politicos, enquanto a dialética continua de agressdo e ansiedade é um dado evidente, pela hierarquia ela é estabili- zada por essa estrutura de poder ~ a soberania - em que a presenca concreta do superior é substitufda por um mecanismo abstrato, Esse mecanismo, de um lado, guarda a reminiscéncia da superioridade do mais alto, de sua forga efetiva e do medo que ela inspira ~ donde certa correlacio entre soberania ¢ opressio -, mas, de outro, permite o entendimento até mesmo da idéia de igualdade civil, baseada no postulado de que o poder deve operar num circulo de equivaléncia: ser governado para, por sua vez, governar. Poderedieto 21 Isso faz com que, na nogéo de soberania, forga e direito guardem uma re- lag&o ambigua. Como poder hierérquico supremo, a soberania tem na forca do superior (elemento de fundo animal) um dado incontomavel e no racio- nalizdvel e, ao mesmo tempo, mediado por metéforas racionalizadoras, como as que se desenvolveram, por exemplo, nas modernas teorias contratualistas sobre o estado de naturesa, 1.1.6 Teorias do poder soberano e sua base social Na concepgéo que chamamos de lockiana do contrato primitivo, foi dito que o poder soberano se instaura para melhor proteger os direitos naturais. Existe af uma idéia de finalidade que, no entanto, no chega a dominar 0 raciocinio, Essa idéia ndo era nova. Jé em Sfo Tomés, existe uma tendéncia em conferir mais importdncia & finalidade que é causa do poder: a revolta contra o Poder que ndo persegue sua finalidade no seria uma sedigéo. Mas a idéia de finali- dade foi, durante séculos, eclipsada pela teoria da soberania popular. Seu ressurgimento, s6 no século XIX, coincide com uma mudanga na prépria concepgio de sociedade. & interessante acompanhar esse desenvolvimento. A. ASOCIEDADE NA CONCEPGAO DA TRADIGAO GRECO-ROMANA, A ilosofia social européia constituiu-se em face de uma concreta concepgao de pélis, que representava um momento de transformagéo das sociedades ar- caicas. Na pélis, o homem se desprende aos poueos do todo magico e aparece como individuo, que pode agir em fungéo de (boas ou més) possibilidades, escolhendo racionalmente entre elas. Daf se seguia concepgao do hom individuo como ser livre na pélis, isto é, alguém que se movia entre iguais € participava do poder. A pélis era o lugar onde a agao livre do homem tinha curso. Nao se trata ainda de livre-arbitrio (nogéo erist@, que aparece mais tar- de), mas de uma qualidade da agdo do homer que vive na pélis e participa de seu governo (ser livre = agir politicamente, isto é, participar da coisa publica, entre seus iguais). A sociedade se identifica com a pélis, ela é societas civis ou koinomia, isto , conjunto de homens livres e nao livres, e o poder é algo de que participam os homens livres. Dai ser seu protétipo a familia, em que as relagbes bisicas so entre o homem-marido e senhor ~ e a mulher ¢ os filhos € 08 escravos. Nesse sentido, o uso de conceitos como governante/governado, 22 Estudos de fiosofia do dita Feraesunior dominante/dominado para descrever o fendmeno do poder dentro da pélis enquanto todo social. Aqui, as relagées todo/parte absorvem as relagées fins/ meios, pois.o homem (livre)-é 0 centro da vida social, 0 protétipo do todo e, assim, 0 enderecado dos fins sociais. Os demais (ndo livres) so suas partes e seus meios (Cf. Aristételes. Politica, 1252a, 1254a, p. 28 ss). Fora da pélis, os outros so estrangeiros, barbaros (sociedade numa concepgio racionalizada ‘como conjunto dos individuos livres e no livres). Também para os romanos, © povo romano era um conjunto de homens, ligados pelo direito e capacitados a gozar a res publica. Nao havia qualquer concepgo de sociedade como algo distinto dos seres reais (sociedade como pessoa: nesse sentido, os romanos no chegam a desenvolver uma nogio de pessoa juridica). Essa concepcdo (nominalista: real ¢ o homem, nfio o seu conjunto) torna 0 fenémeno do agrupamento um mistério (algo que surge ou por origem divina ou por contrato ~ mais tarde) donde as teorias da soberania se preocupam com © poder (social) como uma extensio do poder individual. Nessa tradigéo (mais grega do que romana - ver Arendt, Hannah: Entre 0 passado e 0 futuro, So Paulo, 1972, p. 134), ha uma antiga distingfio entre tirania e poder legitimo. O tirano governa de acordo com seu préprio arbftrio e interesse, ao paso que mesmo 0 mais draconiano governo autoritario (de autoridade) é limitado por leis. Seus atos sio limitados por um cédigo que, ou néo foi feito absolutamente pelo homem (caso do direito natural, dos manda- mentos divinos ou das idéias platdnicas), ou, pelo menos, nfo foi feito pelos detentores efetivos do poder. A origem do poder é sempre uma forga externa e superior ao proprio poder. E dessa fonte que decorre o poder legitimo, A imagem do governo autorivério (legitimo) foi dada pela piramide, a qual se ajusta a uma estrutura de poder cuja fonte de legitimidade jaz externa a si mesma, cuja sede, porém, se localiza no topo, de onde o poder se filtra para a base, graduando-se o poder até a base. Jé 0 governo tirdnico ndo conhece gradagGes. Tirano é o governante que governa como um contra todos, que oprime os demais que sio iguais por sua falta total de poder. E como se se tratasse de uma “piramide” s6 com topo e base, em que 0 topo se apoiasse sobre proverbiais baionetas, sobre uma mas- sa de individuos completamente iguais (sem poder) e desintegrados. Plato exclufa, por isso, o tirano do género humano, chamando-o de “lobo em forma humane’, por sua posigdo de um contra todos, o que distinguia seu dominio (de um sé) e que ele chamava indiscriminadamente de monarquia ou tirania, ‘em contraste com as diversas formas de soberania ou basiléia. O tirano, sendo k Poderedireto 23 ‘inico, ao contrério do basileus, néo era livre, pois se movia entre escravos (ea liberdade pressupunha igualdade na participagao do poder), isto é, nos regimes tirinicos ndo havia liberdade. Entendemos, por isso, o empenho de Aristételes em distinguir a pélis (cida- de, estado) da oikia (a casa), pois nesta havia o governo de um sé, enquanto a polis é “composta de muitos governantes”, ou seja, os patriarcas que se es- tabeleceram como monarcas antes de se juntarem para constituir o dominio piblico da cidade. Por isso, Aristételes dizia que “todo cidadao pertence a duas ordens de existéncia”, pois “a pdlis dé a cada individuo (...), além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, sua bios politikds". Ambas eram formas de convivéncia humana, mas somente a comunidade familiar se ocupava de manter-se viva como tal e enfrentar as necessidades fisicas inerentes & ma- nutengio da espécie e sua sobrevivéncia. Nela, 0 que domina as relagées é a necessidade (de sobreviver). A necessidade tinha de ser “dominada” (poder individual, despético), pois ela coagia os homens. Entretanto, esse dominio s6 era posstvel quando o homem se libertava da coacio da necessidade. E isso s6 se realizava quando o senhor controlava os demais que, como escravos, alivia- vam o homem livre de ser coagido pela necessidade. Dat, o uso da violencia do senhor sobre os demais. Libertado, o senhor constituia, entio, a vida politica, em que todos eram iguais e livres nesse outro nivel de convivéncia. Af é que homem se tornava um ser politico (e nao antes), ou seja, essa definigéo 36 valia para o contexto politico. A partir dai, 0 poder (social ou politico), como extensio do poder individual, exigia, entdo, 0 governo das leis, a discussao, a retérica, a persuasfo, a virtude, a amizade, a coragem, como qualidades do poder dos homens (livres) entre os homens. Era preciso ter coragem para abandonar a seguranca do lar e adentrar no Ambito politico, liberar-se das preocupagées com a vida para entrar na liberdade da pélis. B. AS NOVAS CONCEPGOES DE SOGIEDADE, LIBERDADE E PODER Embora essas concepgées estejam na base das teorias da soberania, hé, no correr dos séculos, importantes modificagées. Apés o advento do Cristianismo, aliberdade comecou a ser equacionada como livre-arbftrio, uma faculdade vir- ‘tialmente desconhecida pela Antigitidade. 0 livre-arbitrio & algo que o homem experimenta em solidéo, vista como a contenda dentro da prépria alma, um conflito no interior da vontade que a paralisa: o querer solitério é sempre velle et nolle ao mesmo tempo, Isso implicava algo que os antigos também desco- 24 tstudos de flosofia do dito + Feraz Junior nheciam: 0 querer-e-ndo-poder, pois, para eles, existia um saber-e-ndo-poder, A partir dai, o poder passava a ser algo ligado & vontade capaz de querer € poder; vontade, forca de vontade e poder passam a identificar-se. $6 quando ‘© quero e posso coincidem é que a liberdade se consuma. Como, entretanto, na vida social, nem sempre querer e poder se realizam, a liberdade passa a ser ‘um problema (e néo uma evidéncia) politico. Dai uma conseqiiéncia importante: © equacionamento liberdade/vontade permitiu o equacionamento do poder ‘como opressio ou, 10 minimo, como o governo sobre os outros, Explica-se, assim, como 0 ideal de liberdade se tornou soberania no senti- do moderno, isto 6, o ideal de um livre-arbitrio, independente dos outros e, eventualmente, prevalecendo sobre eles (para ser livre, é suficiente quer€-lo = Thomas Paine; para que uma nago seja livre, é suficiente que ela queira sé-lo ~ Lafayette). Entende-se, agora, que Rousseau derivasse a soberania da vontade, de modo a conceber o poder politico & imagem estrita da forca da vontade individual. Se Rousseau afirmava que o poder deve ser soberano, isto é, indivistvel, era porque seria absurda uma vontade dividida, Daf derivou, porém, uma perigosa conseqiiéncia: ou se afirmava que os homens, fizessem 0 que quisessem, nunca exam livres (e, pois, soberanos -> totalitarismo), ou que a liberdade de um sé homem, de um grupo ou de um organismo sé pode ser adquirida ao prego da liberdade, isto é, da soberania dos demais. Daf, também, uma conseqiién- cia (nao desejada por Rousseau) de que a famosa soberania dos organismos politicos sempre aparece como uma ilusdo, « qual, além do mais, s6 poderia ser mantida pelos instrumentos da violéncia (ligagdo entre poder e violéncia, entre direito e forca). Onde os homens aspiram ser soberanos, como individuos ou como grupos organizados, devem submeter-se & opressdo da vontade, seja individual, seja de todos, seja.a vontade geral. Se os homens desejam ser livres, tém de renunciar, ainda que parcialmente, a soberanial 1.1.7 Teorias organicas do poder ‘A. MUDANGAS NO CONCEITO DE SOCIEDADE ‘A partir da Revolugio Francesa, ocorre uma radical transformacao. Essa transformago tem suas raizes no perfodo anterior, mas 0 transcende. Se, an- tes, os homens se uniam em torno do rei, eram individuos que se agrupavam em torno de um chefe amado e respeitado. Depois, eles passam a se unir na ago, como membros de um todo. Essa concepedo de um todo que vive uma Foterecireto 25 vida prépria e superior a das partes estava provavelmente latente. Mas ai ela se cristaliza bruscamente (Jouvenel, p. 64), Se Rousseau percebeu esse todo como outro, em oposigao as partes, na propria idéia da vontade geral estava © todo como um nés hipostasiado, Essa transformacgo jé vinha sendo preparada na filosofia social anterior, desde 0 advento do jusnaturalismo modemo, Sea Idade Média havia traduzido 0 z00n politikon por animal sociale, ampliando o conceito de sociedade, que de comunidade politica passava a comunidade ética, ainda a concepcio de socie- tas continuava a tradigdo de entendé-la como corpo social, sede nominal de todas as vinculagdes humanas, J4 na Era Moderna (Renascimento em diante), 08 conceitos centrais para a descrigao do corpo social e suas vinculagées, que antes eram de alcance menor (amizade, virtude, homem, cidadao, coragem), passam a ser dominados pela visdo econdmica (burguesa) das relagbes. Temos, entdo, conceitos como seguranga, policia, administracéo, j4 mais “abstratos” em relacao as interagées politicas ¢ éticas da Idade Antiga e Medieval. Ou seja, a societas civilis se transforma em sociedade burguesa, criando um problema desconhecido até ento: a compatibilizagao da sociedade, de um lado, com a politica, de outro (civitas oeconomica/civitas politica) seguindo-se a problema- tizagéo do poder politico como algo que deve ser controlado para que a vida social se realize e aperfeicoe, conforme foi visto nas teorias da soberania. De qualquer modo, a civitas economica era um conceito mais amplo e abstrato. O advento, jé no século XIX, das tendéncias chamadas de conservadorismo e liberalismo provoca uma modificaggio importante. Pouco a pouco, crescendo a complexidade social, com a diferenciagao entre os diversos subsistemas (po- Iitico, ético, econémico, cultural), a sociedade ~ como um todo ~ exige, para ser concebida (ver Luhmann, Niklas, Soziologische Aufkldrung, Opladen, 1971, p. 143 55), conceitos cada vez mais abstratos (em relagéo as vinculacdes de conceitos do tipo amizade, amor, obediéncia, que so individualizados), con- ceitos, pois, mais operacionais, Pouco a pouco, podemos dizer quea situagao se inverte, pois 0 conceito de sociedade, abarcando em si a sociedade politica, a econdmica, a cultural, a ética, a religiosa, torna-se um conceito analitico, que exclui o individuo conereto, apreendido, ento, por meio de conceitos abstratos, como papel, funcdo, valores, ago social, processo, sistema, estrutura ete. A concepeéo de estrutura, processo, fungao social, por exemplo, implica certa abstragio no conceito de poder, que passa a designar algo que determina, por fungao estrutural, num processo, a obediéncia, Por exemplo, se a violéncia preenche a mesma funcdo que o poder, isto é, faz com que as pessoas obede- 26 exudes deflosfa do dite + Ferraz Janice gam, ento violéncia pode ser também poder. Ou seja, poder é tudo o que faz ‘com que as pessoas obedegam. O ponto crucial do argumento (Arendt, Han- nah: Entre o passado ¢ o futuro, cit. p. 141) 6 0 seguinte: tudo é relacionado a um contexto funcional, tomando-se a utilizaco da violéncia como prova de que nenhuma sociedade pode existir em um quadro de referéncia autoritério. Nesse quadro, a liberdade, isto é a liberdade de movimento dos homens, std ameagada em toda a parte, permitindo-se uma gradago que vai das cha- madas sociedades livres as ditaduras, sendo radicalmente eliminada apenas no totalitarismo. Mas, na esséncia, em todas elas, o poder é um instrumento funcionalmente idéntico! B, A SOCIEDADE REAL COMO CONCEITO Aquilo que Rousseau chamava de sociedade ¢ 0 conceito ainda anterior; nele os individuos so essenciais, seus interesses e fins so os mais preciosos. Donde a necessidade das instituigdes para garanti-los contra o perigo exterior € aquilo que os individuos (perigosos) representam uns’para os outros, Jé 0 que Hegel chama de “Estado” ¢ algo de novo. Da mesma forma que a familia nio € para o homem uma simples comodidade, mas 0 lugar onde ele coloca ‘seu ego, existindo apenas como seu membro, também a Nagdo exige do homem essa integragio de sua atividade na atividade geral, a encontrar sua satisfacfio na realizacio da sociedade, a torné-la seu fim. Em Hegel, essa passagem ndo é concebida temporal ou empiricamente, mas conceitualmente, O que ele busca é 0 origindrio conforme a razéo, pois sé assim realidade se manifesta em sua esséncia, na sua verdade, Nesse novo relacionamento entre o real e o racional, o “Estado” é, entéo, para ele o pri- meiro, 0 origindrio. Nao é mais familia, sociedade civil, Estado, mas o inverso. O Estado é que se divide nas esferas familiar e civil. O Bstado nao ¢ mais Estado gendarme, instituigao de seguranga, Os direitos da pessoa nao tém de ser assegurados, eles s6 existem no Estado. O Estado nao serve, ele domina, nao & meio, mas fim, fimvem si, o mais alto e final. Como 0 ESTADO domina e é fim em si, tem a si mesmo como finalidade, 0 Estado é vontade. E como as demais finalidades vitais, tanto as especificas como as singulares, esto a ele subordinadas, o Estado ¢ vontade geral. Em termos de verdadeiro, racional e real, o geral no exclui o especifico eo singular, mas 0s produz e desenvolve a partir de si. Poder ediito 27 Para entender isso, faz-se mister uma mengo A prépria dialética hegeliana. Para Hegel, saber filosoficamente algo significa saber algo em seu ser (Sein), ou seja, em sua vontade e realidade. Isto 6, saber o principio em virtude do qual algo é realmente. Assim, quando dizemos que algo é, 0 sentido deste é j nos é dado em termos de que hd uma totalidade do ser (das Ganze des Seins) dentro da qual estamos de anteméo, ainda que néo nos tenhamos tornado conscientes do que ela é. Totalidade nao significa somatéria, mas organicidade, principio a partir do qual todo especial e todo singular se determina. A tarefa do filésofo é escla- recer e, pois, tornar consciente (ver a relagdo entre filosofia e vo da ave de Minerva) 0 saber em torno do principio, isto é, do ser (Sein), em virtude do qual toda a multiplicidade pode ser unificada, O ser (Sein) é princ{pio em dois sentidos: responsével pela esséncia (Wesen) das coisas, isto é, por aquilo que o mundo (Welt) & como conexaio de aconteci- ‘mentos e devir em seus fatores; é principio responsavel pela existéncia (Dasein) dessa mesma conexio. O principio (Sein), assim, é absoluto, & medida que néo se funda em nenhuma outra coisa. A questo do ser (Sein) como questio do absoluto esté referida A nogio de idéia (Idee): “a idéia &0 verdadeiro em sio por si, a unidade absoluta do conceito eda objetividade” (Enciclopédia, § 213). Ela &, pois, o que constitui a realida- de dos objetos e, ao mesmo tempo, o que possibilita que haja representagées corretas da mesma realidade (igual & unidade do conceito e da objetividade). O absoluto é, pois, “a idéia geral e una que se especifica, pelo juizo (urteilend) no sistema das idéias especificas [determinadas], que so apenas para retornar 2 idéia una, a sua verdade”, Essas idias so “especificagdes” (Besonderungen), isto 6, momentos (fatores) da idéia absoluta, nela apenas subsistentes. Hegel afirma que a idéia se especifica pelo juizo num sistema de idéias espe- cificas. “A partir deste jutzo é que a idéia é, primeiramente, apenas a substéncia ‘inica e geral, mas (a partir dele) sua realidade desenvolvida e verdadeira é que ela seja como sujeito e, assim, como espirito” (idem, § 214). “A idéia pode ser captada como razao (Vernunyft), além disso como sujeito-cbjeto, como unidade real e ideal, do finito ¢ do infinito, da alma e do corpo, como a possibilidade que tem em si mesma sua realidade, como aquilo cuja natureza sé pode ser concebida como existente etc. porque nela esto contidas todas as relagdes (Verhdltnisse) do entendimento, infinito retorno e identidade-em si” (ibidem). A idéia absoluta é, pois, a unidade dos opostos e seu principio de emanagdo ¢ 28 Estudos de fisofa do dita + Feraz Juice anulagéo, Isto 6, ela é a forca (Kraft) que possibilita a emanacdo de todo ente ‘em suas oposigées (0 especifico e o singular). A atividade desta forca (a idéia, o espfrito, a razio, 0 sujeito absoluto) & pensar (Denken) ¢ o pensar € emitir jufzos (Urteilen) que se expressam em proposicées (Séitze). Pensar é refletir, é ato de reflexio, pensar sobre si mesmo. Na “reflexio” biparte-se o espirito absoluto, mas permanecendo num iinico e mesmo eu: na consciéncia que se tem de si e na consciéncia que faz disso um objeto (Gegenstand). Este ¢ 0 sentido do urteilen Gulgat), 0 princfpio da duali- zaco origindia (ur: originério; teilen: partir, separar em partes). Como jufzo, aiidéia se desdobra (se re-parte) no sujeito e nos seus predicados, mas volta-se, como reflextio, sobre 0 julgado: o sujeito desdobra-se e é, ai, apesar disso, um Yinico sujeito pensante, Todo jufzo nfo é, assim, uma conclusao (Schlup) mas uma decisio (Entschlup): a idéia decide-se por esta dualizagio (Entzweiung) consigo mesma. Esta relagio origindria do ser uno (Einssein) no ser separado (Getrenntsein) & a propria estrutura do pensar e do real — a estrutura dialética — na qual o espitito absoluto, pensando, se torna consciente-real. Entendemos assim como o Estado (0 Poder) é 0 geral, a vontade organiza- dora que traz em sie mantém os interesses especiais e singulares. Trata-se de um organismo ético (sittlich) ~ mais ou menos equivalente a institucional. E como as finalidade do Estado sto queridas e conscientes, ele ¢ espirito, abso- luto. “0 Estado é a tinica condigio para se alcancar os interesses e 0 bem-estar especiais”. O poder do Estado vale, assim, independentemente de qualquer arbitrio, pois seu prinefpio é vontade racionel (real). Este organismo ético é um todo vivo, que se desdobra, como espirito absoluto, isto é, como o mundo criado, unindo os varios poderes em si: ou seja, o geral (legislativo), o especial (executive) € 0 singular Gudiciério) se unem no absoluto do estado, na constituigéio do Estado (dai, sua defesa da monarquia constitucional e uma identificacao do Estado na figura do monarca como o tinico soberano: com isso ele também legitima 0 poder). O monarea no é um déspota, que rege pelo arbitrio, mas évontade racional. A partir deste ponto de unio dos varios interesses, o Estado se organiza como distribuicdo orgénica de fungdes, em que os membros sao funciondrios Beamten: aqueles que assumem um oficio ~ Amt). Distinguem-se aqui soci k dade civil (que protege e assegura, como seu dever, a vida e a propriedade dos seus membros) e Estado, em que tudo ¢ entregue e sintetizado. Por isso, a guerra é algo que pertence aos Estados ¢ nio as sociedades civis, Da relacéo Poder edisito 29 entre Estados surge a necessidade de um mais geral, o absoluto onde o geral do Estado encontra sua sintese: este é a prépria Histéria, que decide, em tltima instancia sobre o direito e os destinos dos povos. A Hist6ria se tora Histéria (proceso dialético) do Poder. C. ORGANISMO E BUROCRACIA ‘Como consegiiéncia, ainda que nao direta e imediata das teorias hegelianas, pode-se entender o desenvolvimento da concepgao do Beamtenstaat, como 0 poder burocratico, sbio por natureza e que esté persuadido de que sua vontade no € um capricho arbitrério, mas consciéncia e conhecimento do que deve ser. Isto é, de uma vontade racional que pode e deve levar o povo as maneiras de agir e de pensar que realizardo a finalidade que a razdo permite prover. Hegel ndo quis construir uma teoria autoritéria, mas em suas conseqiiéncias estdo tanto os totalitarismos como a autocracia burocréticos. Sem serem hegelianos, outros autores se deixam desvanecer por essa idéia de organismo, Durkheim nos fala nas sociedades desenvolvidas (como aquelas submetidas & idéia de organismo, em oposigéo ao mecanismo das primitivas). Spencer vai conceber esse organismo a imagem da biologia, a sociedade como ‘um organismo constituido de érgéos, unidades que nascem, crescem, morrem, enquanto o corpo total sobrevive e aumenta sia massa, complicando-se estrutu- ralmente e agindo por especificaco funcional. Donde o poder como o produto da evolugdo, um érgio cuja finalidade é a coordenacio da diversidade social ea coeréncia das partes. Mais acessivel que Hegel, sua teoria se vulgariza. Spencer, no fim da vida, talvez, assustado com suas conseqiiéncias, limita esse poder 20 diteito soberano do povo, como um dado do progresso. Mas essa conclusdo se voltava contra ele mesmo, prevalecendo a idéia de poder como 6rgéo privilegiado dentro de um organismo. Usando, extensivamente, uma imagem de Hannah Arendt (Sobre a violén- cia, Rio de Janeiro, 1994), podemos dizer que a concepgéo orgdnica do poder tem por imagem adequada a estrutura da cebola, em cujo centro, em uma espécie de espaco vazio, se acha o lider, isto é, a lideranca. E 0 que quer que a Iideranga faca, quer se integre a0 organismo politico como em uma hierarquia autoritéria ou oprima seus stiditos como um tirano, ela 0 faz de dentro, e néo de fora ou de cima. ‘Todas as partes extraordinariamente miiitiplas do movimento desse todo, as organizaghes de frente politica, as sociedades profissionais, os efetivos do Federe isto 31 estado de necessidade, ou na nogio de estado de sitio talvez se ache uma curiosa pista para nos mostrar que, na relago entre poder e direito, um néo se reduz totalmente ao outro, © modo usual pelo qual o direito lida com o poder ¢ um modo de jurisfa- Gio total, As nogGes juridicas para lidar com o poder tentam reduzir o poder a0 direito. A nocdo de soberania, examinada anteriormente, mostra isso. Mas quando se lida com nogdes como aquelas, percebe-se que hd um resto irredu- tivel. E esse resto que ndo se reduz & 0 que, afinal, se procura, quando se fala da relacéo entre direito e poder. Para o senso comum, aquilo que se convencionou chamar de situagtio kafkiana, mostra, por exemplo, certo paroxismo do préprio direito: situagdes em. que o direito levado a uma situaco extrema mostra uma outra face que nao é ele mesmo tal como pretende apresentar-se. Quando se est preso nas malhas do direito, no se est mais dentro dele e ¢ isso que a obra de Kafka mostra. $6 que ele mostra isso no como um ensaista, como um fildsofo, mas mostra como um artista, em uma histéria esteticamente construida. Nessa histéria, percebe-se um fendmeno que esté ali dentro, dentro das malhas do direito e que € 0 poder, como algo que nao se sabe dizer bem 0 que é, E também nao consegue definir juridicamente: escapa. Lidamos com esse tema a partir da nogio juridica de soberania e chegamos a perceber, nesta nogdo, que o poder nao € propriamente coisa, que ndo pode ser captado como uma coisa, mas que mais parece uma relacdo simbélica, que tem manifestacdes diferentes, dificil de ser captada como um todo homogénco. Examinamos, assim, a nogdo de soberania, com todas as suas variagGes, até chegarmos & situagdo de complexidade social em que a soberania se confun- de com disciplina e a disciplina aponta para situagdes de organizagéo social, donde a imagem da cebola, em que no meio temos, afinal, um vazio. Seré que o poder € esse vazio? Ou seja, numa relagdo entre direito e poder, realmente o poder é um micleo ainda, mas que nao consegue ser totalmente captado pelo direito. A nogio de estado de excegao mostra isso e mais do que tudo, a chamada situacao kafkiana revela bem isso, revela o fenémeno do poder dentro do Direito, subvertendo, por assim dizer, o préprio direito como poder domesticado. Ora, diante disso, como, entdo, estudar a relagio entre direito e poder de forma a entender este tipo de integracéo aparentemente paradoxal (direito é poder, mas se contrapde ao poder)? 30 Estudos de flostia do dela + Ferraz iunor partido e a propria organizagéo partidéria, as formagGes de elite e os grupos de policiamento, relacionam:se de tal maneira que cada uma delas constitui uma camada da cebola, isto é, mundo exterior para a camada interna e mundo interior para a externa. A cebola, ou o poder burocratico, proporciona a cada uma de suas camadas fiego de um mundo normal, ao lado de uma conscién- cia de ser diferente dele. A estrutura da cebola tome o sistema organizacional do poder & prova de choque contra a fatualidade do mundo real: © que quer que acontega, ele é necessério, 1.1.8 0 poder como meio de comunicacio No diréito modermo, o estado de necessidade, ou nogdes como estado de sitio, so proclamagées em que se reconhece na irrupcao da forga, seja na for- ma de necessidade, seja na forma de tumulto, seja em que forma for, alguma coisa que suspende o direito (cf. Giorgio Agamben: Estado de excesd0, Sio Paulo, 2004), Nessas nogdes acaba se escondendo perante o direito aquilo que o di- reito quer fazer parar e que se chama poder. Como se o poder conhecido pelo direito fosse o tempo todo um poder domesticado, sempre regulado. Trata-se, principalmente do poder tomado.como forga de um individuo - soberania dos reis, soberania individual ~ seja na forma de forga de uma organizagdo ~ poder popular ou da nagao, soberania popular ou nacional. Na nogéo de soberania, aquilo que aparece diante do direito como poder € sempre alguma relagdo domesticada ou, mais propriamente, racionelizada pelo direito. O direito no conhece outro poder que nao esse. Quando, no entanto, se enffentam situagées como: estado de necessidade, estado de excepfo, estado de sitio, que sao juridicamente excepcionais; percebe-se alguma coisa que nfo permite uma reduco completa ao diteito, Escapa:lhe. Ainda que se argumente, por exemplo, que o estado de sitio est regulado pela propria Constituigio e, portanto, é uma excegio juridica e nao excegio de fato, a andlise mostra que tal excegéo, no entanto, mesmo com sua roupagem juridica, ou seja, regulada pela Constituigio, na verdade, esconde um fendmeno (0 poder) que o direito no consegue capturar inteiramente. Trata-se de algo, de certos fatos que nfo se jurisfazem totalmente. Afinal, que & necessidade, na expresso: estado de necessidade? Nao € uma nogdo juridica, Estado de necessidade o é, mas a necessidade, & qual se faz re- feréncia, com toda a sua forga de fato, como algo que ninguém segura, parece Justamente de que estamos falando quando falamos de poder: E na nogio de 32 _ Estudos de flsotia do to + Fora anior Uma via posstvel seria perceber poder e direito como meios simbélicos de comunicagéo. Afinal, as teorias orgénicas do poder e da soberania nos permitem uma percepcdo de poder e direito num contexto comunicacional, particular- mente analisado por Luhmann em seu livro Macht (Stuttgart, 1975). Em que sentido, porém, a via tedrica da comunicacdo nos permite lidar com arelagio entre direito e poder de um modo fecundo? Sucede que a nogio de comunicagdo nos permite comparar as diversas si- tuagées de poder e direito, sem que tenha que necessariamente reduzir uma a outra, Isto é, a nogio de comunicagiio como uma nogio priméria permite entender um fenémeno social, como o poder, o direito, em que se pressupée a comunicagao como uma espécie de axioma fundamental: o homem é um ser ‘em comunicagio. Esse axioma pode ser percebido na medida em que com ele é afirmado que a situagéo humana é uma situagéo em comunicacao, de maneira que o ser humano estd sempre em comunicaco e a comunicagéo nao tem um contrario: nao existe a no-comunicagio. A nfio-comunicagio é uma forma de ‘comunicagdo. Nao comunicar significa comunicar 0 ndo comunicar. A nogio de comunicagio, nesses termos, tem de ser alterada para poder se tornar um universal axiomético. Por que ela tem que ser alterada? Quan- do se pensa em comunicagio, a primeira coisa que imaginamos é a troca de ‘mensagens: comunicar é trocar mensagens. E quando se diz trocar mensagens, significaria: mensagem de um para o outro, do outro para o um, Isso signifi- caria reduzir comunicagao aquilo que alguns autores (Habermas é um deles) chamam de ago comunicativa. Ou seja, a comunicacao, nesses termos, seria um registro dessa ago e o registro do que essa ago provoca nos outros. Dai seguiria a andlise dos pressupostos para que isso possa ocorrer. Adota-se, porém, nesse passo, uma posicio mais radical, para criar a base para entender a relago entre poder e direito. Uma nogio de comunicacéo mais radical € uma nogo em que a comunicacao é uma estrutura de compor- tamento que envolve desde sempre um ¢ outro, alter e ego, No é um ato de ego na diregéo do outro, o alter, nem do alter na diregdo do ego, mas é um ‘complexo que os envolve. Por assim dizer, a chamada ago comunicativa s6 é possivel porque nés estamos envolvidos nesta situacio, e nfo o contrério, Nao € ago comunicativa que gera a comunicacio, mas é a comunicagao que gera a possibilidade de ago comunicativa. Nesse sentido é que a comunicagio é um dado primitive, nesse sentido é que ‘estamos Vidando com um axioma, em que comunicacho nha é transtnitie infor: rmaghes Geum Yara CaO. Nene wo de coneegio do qe KA acomnieag Poderedireto 33 cada qual é portador de algum cabedal de informagées que um transmite para o outro, Essa é a nocdo mais tradicional de comunicacao, da qual se afasta, Na nogéo proposta, na comunicacéo como um todo que envolve os agentes, aquilo que um transmite para o outro e o outro transmite para o um é constituido por este todo. Comunicagéo nao ¢ uma relagdo entre individuos. Ao contrario, a telacdo entre eles sé & possivel porque a comunicacéo a precede. N&o existe nada em nenhum individuo, seja alter, seja ego, que seja detido fora de uma relagdo comunicativa. Isso, evidentemente, exige uma outra concepsao da propria sociedade, uma concepsdo radical, tal como a assumida por Niklas Luhmann, Exatamente por conta desta nocd de comunicago, Luhmann define sociedade de uma forma diferente da qual ela vem sendo definida talvez hé séculos: a sociedade nao € um conjunto de individuos, seres humanos; ou, mais radicalmente, o ser humano ndo faz. parte da sociedade. Sociedade uma situagao comunicacional, ‘comunicagio, nao conjunto de atos de comunicagio, Neste sentido, a socieda- de é uma estrutura (comunicacional) que permite que os individuos entrem ‘em contato uns com os outros. Ou seja, ndo é porque os individuos entram em contato uns com os outros que a sociedade se forma, mas é o contrério. Essa concepgo da sociedade como uma estrutura comunicacional inverte a nocio de sociedade. Esta inversdo significa que os individuos se valem da sociedade para entrar em contato uns com os outros. Mas nao sfo eles que constituem a sociedade, pois eles so constituidos por ela, Pense, analogamente, no fenémeno da lingua, na qual estamos desde que nascemos: a lingua nio existe porque falamos mas falamos porque estamos dentro dela, Oquendo exclui a possibilidade de, ao falarmos, alterarmos a prépria lingua que nos constitui ‘como seres falantes, Existem diversas tentativas de se definir o fendmeno do poder. Anélises essenciais ou meramente descritivas, no entanto, néo tém sido bem medidas. Muitas vezes, 0 conceito de poder é pressuposto, ou melhor, é identificado, conforme as circunsténcias, ou com a emissao de comandos, ou com a mani- festagdo da vontade, ou com o exercicio de alguma forga, ou com a obtengao de obediéncia, 0 que, na verdade, significa que ele é usado, pressupondo-se que jai se saiba o que é 0 poder. Conceps6es genéricas do tipo “poder é a atuagao de causas contra possiveis resisténcias”, isto &, “poder & uma causalidade sob condighes adversas”, tém sido tentadas ultimamente, mas conduzem, como no passado, a fendmenos isolados, toda vez, que se tenta verificé-los e demonstré-los operacionalmente. 34. Estudos deflosota do dito + Faz Junior ‘O mesmo se passa com tentativas que conceberam o poder ou como forma de ‘roca, ou como um jogo. Todas essas tentativas, porém, parecem conduzir a uma teorizagio por meio de uma teoria da sociedade. Em geral, supde-se a sociedade como um todo dotado de relagées proprias, indo redutiveis &s relacSes interindividuais, uma espécie de sistema macrosso- ciolégico de referéncia, no qual a funcdo do poder se manifeste. Esse caminho nos aponta para as seguinites etapas: proposigdes de uma teoria da formacao dos sistemas sociais e de sua diferenciagdo, uma teoria de sua evolugio e uma teoria dos seus meios de comunicacio simbolicamente generelizados. Essa tendéncia da moderna teoria dos sistemas nos conduz, assim, a ver 0 poder como um meio (medium) de comunicagio, generalizado simbolicamente (Luhmann, Macht, Stuttgart, 1975). A vantagem de se partir de uma teoria da comunicagao esté em que ela permite a comparacao do poder com outros meios de comunicagio (por exem- plo: verdade, dinheiro, direito), na medida em que a comunicagio é assumida como um fato incontorndvel do comportamento humano (v, Watzlawick et al. Pragmdtica da comunicagdo humana, Sao Paulo, 1973). Trata-se da impossi- Dilidade de nao comunicar-se como um axioma conjectural da pragmética da comunicacao. Isto é, a teoria da comunicacao permite uma visio panorémica sobre as formas de influéncia social, néo limitada ao préprio poder e no identificada com ele. Conforme as teorias sociais do século XIX, que chegaram até nés, a teoria da sociedade é também uma teoria da diferenciagao social conforme camadas e/ou subsistemas e, por outro lado, uma teoria da evolugao sociocultural, Isso permitiu a jungao de ambas, no século XX, isto é, uma teoria da evolugdo sociocultural vista como umi processo de diferenciacdo. E verdade que, em geral, nesse contexto, as questdes da comunicacio e da motivagao para aceitagéo e observancia de comunicacdo néo foram postas devidamente em relevo. Em parte, elas foram tratadas como meros fatos psi- colégicos ou com conceitos especificos e, pois, de menor generalizacéo teérica, como consenso, legitimidade, organizagio informal, comunicagéo de massa etc. Esses conceitos so de amplitude menor que os de diferenciacéo e evolu- Go e a redugio destes aqueles diminui o potencial teérico da explicagao neles baseada. Daf o protesto de concepeGes humanistas que reclamam da perda, com tais conceitos, do sentido humano das investigagées, Peder edieto 35 Seguindo Luhmann, vamos mover-nos dentro de seu quadro teérico, cha- mando a atencao para a necessidade de se evitar redugGes do comportamento humano a conceitos como “sujeito transcendental” na forma kantiana ou 2 conceitos de sujeito ligados ao individuo organicamente e psiquicamente concreto, na forma empirista, © primeiro caminho é demasiado abstrato. O segundo demasiado concreto. Partimos do pressuposto de que os sistemas sociais se formam via comunica- fo, isto é, de que comunicagéo envolve sempre uma selegao de possibilidades que, como processo, determina reagdes que se podem conceber antecipada- mente. Comunicagdo costuma ser entendida como troca de mensagens (Watzlawick), no sentido de que essa troca ocorre quando a seletividade de uma mensagem & compreendida, isto 6, pode ser usada para a selegdo de uma outra por parte do destinatério. ‘Num sentido amplo, comunicagiio equivale a comportamento. Definimos comportamento como estar em situagio. Quem esté em situacéio transmite mensagens, quer queira quer nao, Comportar-se é estar em situacéo com-08 outros, os enderegados das mensagens, os quais também esto em situagdo, De onde, comportamento é troca de mensagens, comunicagio. Essa troca de mensagem é 0 elemento basico da sociedade, do sistema social. Trata-se de um dado irrecusdvel, posto que 0 homem sempre se comporta, se comunica: € impossivel nfo se comportar, nfo se comunicar. Ou seja, a ‘comunicacgao nfo tem contrarios: mesmo que nao queiramos nos comunicar estamos comunicando que no queremos nos comunicar (cf. Watzlawick, Beavin, Jackson, 1973, p. 44). Assumindo esse postulado, podemos conjecturar em seguida que a comu- nicagdo humana ocorra em dois niveis: o nivel cometimento ¢ o nivel relato, Esse uiltimo corresponde & mensagem que emanamos, ao contetido que trans- mitimos. Por exemplo, quando dizemos: sente-sel 0 contetido transmitido é 0 ‘ato de sentar-se. O cometimento corresponde & mensagem que emana de nds, na qual se determinam as relades (de subordinacdo, de coordenagio), e que, ‘em geral, é transmitido de forma nao verbal (pelo tom da voz, pela expressao facial, pelo modo como estamos vestidos etc.). Por exemplo, 0 cometimento (mensagem sobre a relagéo) é diferente se a mensagem sente-se! é transmitida por um professor-ao-aluno, ou por um aluno-a outro aluno, ou por este 20 professor. 136. Estudos deflosofindo dreto + Ferraz Junie ‘Assim, quando nos comportamos, na troca de mensagens, esté presente, de parte a parte dos agentes, uma expectativa miitua de comportamento. Quem diz sente-sel espera que 0 outro comporte-se de certo modo (sentando-se ~ re- lato ~ e subordinando-se - cometimento). Essas expectativas podem set, por sua vez, objeto de expectativas prévias. Quem diz sente-se! nfio apenas tem a expectativa de um movimento (sentar-se) ede um acatamento (subordinacéo), ‘mas tem também a expectativa de qual seja a expectativa do enderecado (este espera de mim uma ordem, ele me vé como superior) que também pode ou no confirmar-se, e vice-versa, isto é, 0 enderegado também tem expectativas sobre as expectativas do emissor. Com isso, criam-se situagées complexas, que se confirmam ou que se desiludem, em que os homens se apresentam claramente ou escondem suas inteng6es, ou em que agem sem reflexio, des- cuidadamente ete. Daf se segue um conjunto instdvel de relacionamentos de relacdes de expectativa, os quais silo sempre, em niimero de possibilidades, maiores do que as possibilidades atualizaveis. Essa desproporcio (quem diz: ‘sente-se! espera pelo menos quatro possibilidades: sentar-se ou néo sentar-se, ‘com ou sem subordinagio) nos permite dizer que as situagées comunicativas sio, em prinefpio, caracterizadas pela complexidade, entendendo-se por com- pplexidade um mimero de possibilidades de agéo maior que o das possibilidades atualizéveis (cf. Luhmann, 1972, v. 1, p. 40). ‘No entanto, ita medida em que as situagSes comportamentais sao complexas, hénelas também uma compulséo para selecionar expectativas e possibilidades atualizdveis de interagdo: seletividade é uma segunda caracteristica do com- portamento. Quem diz: sente-se! jd selecionou uma possibilidade. Contuido, selecioné-la nao significa que ela se atualize. 0 enderegado pode néo sentar- se ou pode sentar-se sem subordinagao, por exemplo, desdenhosamente. A desilusdo, portanto, faz parte das situagées comportamentals. A possibilidade da desilusio mostra-nos que a interago humana é sempre contingente. Con- tingéncia (possibilidade de ocorrer ou néo a expectativa selecionada) é uma terceira caracter(stica da situacio comunicativa. Por isso, para a ocorréncia dos sistemas comunicativos sociais sio desenvolvidos mecanismos que garantem, num certo grati de confianga, as expectativas em jogo contra a possibilidade de desilusdes. Esses mecanismos, que conferem & rede instavel de relagdes certa estabilidade, uma estabilidade dindmica, so compostos de uma es- trutura (conjunto de regras) e um repertdrio (conjunto de simbolos). Esses mecanismos s4o, assim, uma espécie de seletividade fortalecida na forma de uma dupla seletividade: servem a ambos os parceiros em comunicagéio como Podere dite 37 ‘um céddigo ou médium (meio codificado de comunicagio). Por exemplo, uma refeigéo tomada em conjunto: se todos se atitam vorazmente ao alimento, as expectativas serio mutuamente desiludidas. A seletividade de um (icar com os melhores bocados) pode ferir a mesma seletividade do outro. A contingéncia écontrolada, por exemplo, por meio de regras de boa educagdo & mesa. Essas regras estruturam as relacdes, garantindo-lhes certa estabilidade. Os meios de comunicagéo (cédigos) aliviam, assim, os agentes da carga da complexidade e da contingéncia que se mostra na seletividade de cada um. A comunicacéo implica, portanto: a) nogéo de complexidade: como estrutura comunicacional, a socieda- de sempre admite a possibilidade de mais troca de mensagens do que as mensagens efetivamente trocadas; por exemplo, um juiz s6 deve falar nos autos, mas poderia dar entrevistas, falar aos jornais.. b) nogio de seletividade: nenhuma troca de mensagem se efetiva sem que a possibilidade maior de mensagens trocadas sofra uma deli taco, ou seja, toda troca efetiva de mensagens implica reducao de possibilidades ou escolha; por exemplo, quem fala sé nos autos e enfatiza isso exclui outras possibilidades; ©) -nogéo de contingéncia de ambos os lados, isto é, dupla contingéncia ‘ou possibilidade de seletividades nfo necessariamente congruentes de selegées diversas nas troces efetivadas (rejeigdes); por exemplo, a determinagéo de falar s6 nos autos pode enfrentar uma seletividade diferente de parte da midia. Essas possibilidades de selecao de parte a parte nao podem ser eliminadas ‘como tais, pois fazem parte da sociedade como estrutura comunicacional. Ora, a comunicacio da prépria rejeigéo ¢ a tematizagio da rejeicéo, nos sistemas sociais, é conflito. Donde, todo sistema social ser potencialmente conflitivo. O que muda, de sistema social para sistema social, é sua medida de atualizacéo (seletividade fortalecida), 0 que varia coriforme o grau de sua diferenciagao ede sua evolugio. Para 0 entendimento dessas nogdes cabe aqui uma analogia'com a lingua enquanto cédigo bésico da comunicacao humana, assumindo-se que, domesmo ‘modo.como falamos, assim se comporta uma estrutura social como estrutura ‘comunicacional. Ou seja, uma Iingua & um sistema codificado de signos que exige dos falantes escolhas diversas que ocorrem 20 falar: Como numa lingua, existem, na sociedade, muitas ¢ variadas formas de escolha (de quais sentimentos, quais aces, quais impressdes serdo mensagens a serem trocadas), as quais crescem em complexidade quanto mais complexo & o sistema social. Daf o aparecimento de muitos cédigos que se desenvolvem a partir do cédigo lingiiistico que permanece, no entanto, como sua base evi- dente, De acordo com certas condicionantes, como numa lingua, a escolha entre o sim e 0 ndo nem pode ser abandonada ao acaso nem pode ser reduzida & propria linguagem. Donde o desenvolvimento de varios cédigos, de outros varios meios de comunicacdo, sendo o poder um deles. Os s{mbolos desta conexao de seleco/motivagio assumem ento a fungéo de uma intermiediagdo, tornando clara a conexo de ambos os lados, de tal modo que qualquer conexdo possa ser antecipada pelo outro, fortalecendo e motivando em acréscimo a prépria seletividade. Por exemplo. dois amantes que trocam flores e beijos valem-se de um eédigo comunicacional em que 0 oferecimento das flores antecipa a expectativa do beijo. A. PRESSUPOSTOS E IMPLICAGOES DESTE CONCEITO Primeiro pressuposto: processos de comunicagio regulados por médios vinculam os parceiros, ambos realizando a propria performance seletiva ¢ sabendo-o um do outro, Isto é, estes processos pressupdem possibilidades de escolha de ambos os lados, donde a dupla contingéncia da seletividade. Cha- memos 0s parceiros de alter e ego. © que se quer dizer & que, para qualquer meio social (poder, direito, dinheiro, amor, verdade etc.) existe a fungao de regular os processos de transmissio de selecdio na sua seletividade. Ou seja, a diferenca eventual entre esses meios de comunicagio néo est no contetido da funco mas no modo como atuam, Por exemplo, a diferenca entre amor verdade (como cédigos comunicacionais) no esté no contetido (ambos permi- tem a transmissfio de sensagdes), mas no modo: as simbologias (possibilidade de significar) so distintas, mesmo quando alguns signos sejam comuns (a declaragéo juramentada de dizer a verdade e a jura de amor). ‘Transmissao de performances seletivas significa aqui reprodugiio de perfor- manees seletivas sob condigées simplificadas, abstraindo-se das constelagdes de condigées existentes no ponto de partida do ato seletivo (quem dé uma flor seleciona, mas transmite apenas simplificadamente sua real situagio de escolha inicial: afinal, quanto nfo estaria presente naquele gesto...). sneroopstemteet enna cr enone cee Fodere cree 39 Por isso stio necessétios simbolos, que substituem 0 inicio concreto, Dai os cédigos, generalizados simbolicamente, para a orientagdo comum. Fora clo cé- digo do amor, por exemplo, a entrega da flor é ambigua e indeterminads. Toda fase seguinte do processo permanece, por isso, sempre uma (nova) selegao. Os meios de comunicacdo combinam, assim, a comunidade de orientagao com a néo-identidade das selegdes. Isto 6, eles ordenam as situagdes sociais com dupla seletividade, Dentro do cédigo do amor, a néo-identidade da selecéo (entrega da flor: que quereria dizer isso...) se combina com comunidade da orientagio (para isso, a resposta seria um beijo...). B. O PODER COMO MEDIUM No que se refere 20 poder, como medium, o que se pode observar primei- ramente € que, em relagdo aos parceiros, para um deles, alter, existe, com respeito a sua seleco, uma certa incerteza; portanto, inseguranga. Isto é, alter, no importam os motives, dispde de mais de uma alternativa. Por isso, em relagéo a seu parceiro, ele pode produsir ou eliminar essa inseguranca (0 outro ndo sabe o que ele ird escolher). Essa é a primeira condi¢éo do poder em geral. (Luhmann). Mas, do lado de ego, a situacdo pressupée também abertura para outras possibilidades de aco. O poder/medium, assim, realiza sua performance trans- missiva através da influéncia de uma selegdo de agGes (ou omissées) sobre as, possibilidades de seleco, um do outro. Isso significa que quanto mais possi- bilidades de ago (atos ou omissées) tenha ego, maior serd o poder de alter. E vice-versa. Isto é, poder pressupée liberdade de ambos os lados (no sentido de muitas alternativas a escolha). Mas essa liberdade no nos deve enganar. Neste sentido, essa concepgio tipoldgica (poder como meédium) nos obriga a distinguir poder de coacao para fazer algo determinado e concreto, pois, na coacdo, as possibilidades de escolha do coagido sio, no limite, reduzidas a zero. No limite, a coago significa antes uma substitui¢ao da agdo de um pela agio do outro, Ora, & medida que o poder/medium se aproxima da estrutura da coago, ele perde capacidade de reduzir a dupla contingéncia. Pois coagéo significa remincia & possibilidade de regular a seletividade do outso, ainda que no de regular a sua aco concreta, pois 0 coator age pelo outro no seu ato de escolha: escolhe pelo outro, Poder de coagiio no deve, pois, ser confundido com poder/medium. Quem coage alguém a fazer o que no quer nao comunica poder: apenas forga o outro a-agir See 40 Estudos de flosofi do dria + Ferra unior Aqui se mostra a chance de precisar um conceito juridico tradicional, segun- do 0 qual o direito implica 0 monopélio da coacdo (Kelsen). $6 mesmo num sistema social muitissimo simples é possivel esse monopélio. O que sistemas sociais complexos monopolizam é a decisio sobre o emprego da coagio (e até sobre a tomada de decistio sobre as premissas da tomada de decisio para 0 emprego da coacéo). Isto significa que para que a coagéo (no sentido usual adotado pelo jurista contemporaneo) possa aparecer € necesséria a formacao de um cédigo de poder (poder/medium) e nao ao contrério. A coagéo, fora de um cédigo de poder é mera forga. Ganham sentido, assim, nogées ustiais como a de desvio ou abuso de poder. Competéncia discriciondria é, assim, um elemento (simbélico) do eédigo do poder/medium, que permite & autoridade decidir sobre 0 uso de coagio, Nesse sentido, Max Weber emprega a nocdo de staff coator como elemento importante da sua nogio de direito, Nao a coacdo, mas 0 staff coator & significativo para o direito. E 0 staff coator constitui-se inte um cédigo: 0 poder como meio codificado de comunicagio. Para Weber, uma relagio social é comportamento de varios agentes, orien- tados uns para os outros, sendo agdo social o agir (ato ou omisséo) orientado para a expectativa (presente, passada ou futura) do comportamento dos outros (Wirtschaft und Gesellschaft, p. 21 ss). O que distingue, para ele, o direito do mero costume ou de simples convengao é que na relacao social juridica aparece uma regularidade (repetigdes conforme o sentido mutuamente orientado de ambos os agentes), garantida (vinculo) pelos meios de coacéo empregados por um staff. Segue daf que toda sociedade desenvolve sucedaneos desse staff, 0 que torna possivel uma comparacao entre as diversas situagGes de poder (por exemplo, hierarquias funcionais, relagdes estamentais), os quais acabam tor- nando-se, eles préprios, novos fatores do meio codificado: poder/medium (0 que explica que a burocracia — enquanto sucedaneo ~ acresca o poder e néo © limite: isto 6, o poder burocrético ndo é um poder limitado pela lei, mas im e6digo de poder mais complexo, com mais possibilidades de exercicio). Comecamos a perceber aqui algo que Foucault menciona em suas obtas: © poder, na sociedade moderna, ao contrario do que pretendia Spencer, néo tende a diminuir, mas a ampliar-se. S6 que ele perde, aos poucos, 0 sentido de dominagao (staff coator) para tomar-se regulagdo, pois nao se limita a imposi- g6es contra a vontade (proibiedes, obrigacdes), mas faz que as vontades sejam “dominadas” antes de exercerem-se (autorizagées, permissdes expressas): a obediéncia torna-se um ato futuro e nao um ato do passado, Em termos jurf- dicos, faz-se com que a possibilidade de as mulheres, por exemplo, escolherem Podere dicta 41 entre 0 aborto e a concepgao seja néo um ato de escolha, puro e simples, mas uma decisdo de escolher tendo em vista uma concesstio do poder! Nesses termos, a liberdade, no sentido juridico, nao é fruto de uma indeterminagio de fato (poder fazer qualquer coisa), mas poder fazer o que & admitido pelo cédigo do poder/meio de comunicacéo. Poder, portanto, nao se liga, primariamente, & produgdo de determinados efeitos, mas a transmissio de performances seletivas de aco, isto 6, a selegio de aiter limita, segundo certas condigées, as possibilidades de relaco com ego. © que explica, de outro ngulo, a posi¢do de Kelsen: o homem néo ¢ submetido a normas porque é livre, mas é livre porque submetido a normas. Ou seja, numa relagéo de poder (comunicagio de alter e ego mediante um meio codificado), a relago causal ndo é suprimida (o homem sempre age causalmente determi- nado); a relago causal nfo limita nem engendra a efetividade do poder, nem mesmo quando a vontade do submetido ocorre contra a determinago do que co submete. O poder ndo é menor ou maior porque hé ages contra o comando emitido. A fungao do poder como meio codificado de comunicagao apenas coloca possiveis relagdes causais como simbolicamente independentes da von- tade do submetido. Ou seja, a “causalidade” do poder (como a imputagfio, no direito) consiste ndo em quebrar a vontade do submisso, mas em neutratizar sua vontade (que existe, mas no conta para efeitos significativos). A funcéo do poder/medium estA na regulagdo da contingéncia (possibilidade causal de ocorrer A ou B) e nao em sua supressio, O poder/medium nao € imposigio de ‘uma vontade, apenas torna significativas certas conseqiiéncias! poder se compara, assim, a um catalisador. Catalisadores apressam (ou tornam vagarosas) as ocorréncias, sem as modificar. Eles produzem ganho ou diminuigao de tempo. Assim, o poder/medium cataliza (produz, apressando ou no: conduzindo) certos efeitos, sem mudar, ou, pelo menos, sem mudar com a mesma velocidade. Podemos dizer assim, que o poder/medium é um meio codificado de transmissio de seletividades de aco, pelo qual se possibilita uma chance de aumentar a probabilidade de ocorréncia de conexGes seletivas menos provaveis ou improvaveis. Assim, da mesma forma que um contrato nfo 6um acordo fitico de vontades, mas um meio institucional de comunicacao que permite a vinculagéo de vontades, via imputac&o, a partir do qual ¢ aumenta- dae acelerada a chance de ocorréncia de certos comportamentos (obrigagdes contratuais), sem que a sua néo-ocorréncia (“quebra” do contrato) signifique a supressdo do contrato, também o poder/medium permite a comunicagao entre agentes, de tal modo que certas possibilidades de agdo (seletividade SDDS ES Bulatas pusstincnnyscehrerctcaslacarty petteveet ules te/iats 42. Estudosdeflosofa do dielto + Frraz Junior de alter) sejam combinadas com as possibilidades de ago de ego. Como no transito, quanto a0 cédigo de transito, o poder é uma espécie de cédigo que faz funcionar as relagées de submissdo e obediéncia, Como num transito de vefculos, a fungio catelisadora do poder/medium repousa, pois, em conexées causais complexas, sem se reduzir a elas. O po- der por isso 6 um medium (generalizado simbolicamente) de comunicacéio, que no depende nem da submissao concreta nem, imediatamente, do efeito obtido pelo detentor do poder. Essa generalizacio simbélica permite evitar ‘uma identificagéo do cédigo do poder (medium) com os temas comunicados (contetidos das mensagens). De certo modo, pode-se dizer, assim, que o aparecimento do poder como um produto diferenciado numa situacdo social (como um meio de comunicagéo dis- tinto de outros) depende do aumento da contingéncia das seletividades sociais, isto €, da complexidade social. Quando ela é pequena, o poder nao se distingue de outros meios (poder, moral, direito, religiéo, economia aparecem como cédigos indiferenciados). Mas quando é alta, o poder aparece (diferencia-se), até tomar-se um cédigo de estrutura prépria com uma simbélica propria. Se o poder costuma ser entendido como uma forma de influéncia, pode- se dizer que a complexidade torna o fendmeno da influéncia, em si mesmo, contingente. Com isso, as motivacées da ago (influenciar) se tornam proble- maticas, donde a necessidade do eédigo préprio. De modo anélogo, assim como se vé o aparecimento do direito num proceso de diviséio do trabalho social, em que situagSes conflitivas se tornam complexas, o poder esta ligado ao aumento de situagées conflitivas, nas quais a congruéncia dos interesses opostos nao pode ser pressuposta na situacéo mesma. Ou seja, 0 ato contra © comando'do poder nfo é a negagéo do poder, mas a sua condigo (como delito ndo 0 é do direito). Isto néo quer dizer que direito e poder, enquanto meios de comunicacéo, sejam sempre congruentes entre si, 0 que deverd ser examinado mais tarde. 1. A diferenga das teorias clssicas, portanto,o poder nao ¢ entendido aqui como uma qualidade ou propriedade de um dos parceiros da relagio entre eles (donde a equivocidade da expressio ter poder). Poder “é” uma comunicago regulada por um cédigo (medium). A suposta atribuicao de “poder” a um dos parceiros é regulada por esse cédigo (dat seguindo-se conjuntos de simbolos capazes de mediati- zar 0 fortalecimento dos motivos de observancia, responsabilidades, ' Foderedireito 43 institucionalizagées sociais etc.). Sob ese enfoque teérico néo se v8 0 poder como algo do detentor, nem se confunde o poder com o pré- prio detentor. Ambos os parceiros, detentor e sujeito submetido, so igualmente importantes. Poder nfo é coisa, mas relagdo mediatiza- da, Por isso, nao € forga, mas controle. poder/medium se diferencia de outros meios de comunicagéo na medida em que seu cédigo pressupée, de ambos os lados da relagéo comunicativa, parceiros que reduzem complexidade das possibilidades de acdo através do seu préprio agir, portanto, através de ages. Algo diferente ocorre, por exem- plo, no caso do meio de comunicagio “verdade”, cujo cédigo se tefere nao a ages, mas a vivéncias. Como o eédigo verdade se refere a vivéncias, surgem problemas recorrentes da teoria do conhecimento, referentes interferéncia das preferéncias, dos interesses nas atividades cognoscitivas dos participes e que podem alterar a comunicagéo de mensagens verdadeiras. Ou seja, na transmissio de vivéncias (sensagdes, percepgdes, apercepgées, inferéncias, conclusdes etc.) de um sujeito para outro, a verdade como eédigo/meio de comunicago preenche sua funcao de viabilizar a comunidade de conhecimen- tos. Mas, como sucede com 0 uso do oédigo basico ~ a lingua - 0s individuos falantes, ao falar, interferem na estrutura do cédigo que, assim, se altera no tempo e no espaco, Daf, paralelamente is antigas disputas em torno da lingua perfeita (cf. Umberto Eco, La buisqueda de la lengua perfecta, Barcelona, 2005), a procura da verdade como um eédigo universal. Ora, se o poder/medium & um eédigo mediante o qual a ago selecionada de alguém interfere na ago selecionada de outrem, é preciso admitir que, do ‘mesmo modo, areducéo de complexidade de possibilidades de agao mediante o proprio agir coloca para uma teoria do poder problemas tedricos peculiarmente relevantes no que diz respeito a diversidade dos eédigos (poder politico, poder econémico, poder juridico ete.), bem como a interferéncia de outros cédigos na sua estrutura enquanto proceso efetivo de comunicagao. Para enfrenté-los faz mister esclarecer em que sentido se toma o termo: ‘ado. Isso é to mais necessério quanto mais percebemos que, em nossa tradi- fo cultural, existe um entendimento persistente em tratar 0 conceito de agéo em termos da chamada agio racional. Ou seja, a hipétese do agir humano como um agir intencional, nticleo essencial a partir do qual so, de um lado, tradicionalmente classificadas, negativamente, na forma de excegdes, outras, ‘Ad Estudos de flosofa do dete » Fern Junior hip6teses de aco (aco irracional, ago inconsciente, aco involuntéria ete.).. E, de outro, a correspondente busca de um eédigo universal do poder. Defina-se, pois, ago: temos uma agdo quando um comportamento seletivo das possibilidades de agir ¢ imputado a alguém enquanto um sistema pessoal nfo ao seu mundo circundante. A imputacdo refere-se A prdpria selecdo pessoal. Sobre isso pode haver, porém, diivida e disputa. Pois a imputacao a0 sistema pessoal ou ao mundo circundante (demais sistemas pessoais) implica © problema de se saber se é possfvel supor iguais selegdes para eles, isto 6, se 0s outros sio/estio livres. Para isso serve 0 poder como cédigo (meio) de comunicacao. Para entender como funciona esse cédigo é preciso distinguir, na ago, a unidade do movimento e do sentido de orientagdo, Por exemplo: a imputagdo de uma selego, seja qual for a possibilidade se- lecionada, é imediata, pois o préprio selecionar é, em si mesmo, urna vivéncia. ‘Mas 0 agira aco - nao se reduz.4 imputagdo da vivéncia. Em outras palavras, a egio humana néo se reduz ao agir intencional, podendo ser limitada por outros cédigos, que ndo se referem a intengées, finalidades etc. Assim, motivos nfo sfo, propriamente, uma exigéncia da ago, mas do entendimento da vi- véncia das agées. Algo semelhante se passa com a idéia de livre-arbftrio, que significa a possibilidade de imputaco socialmente unitéria da vivéncia da ago, mas néo da prdpria ago. Através da noc&o de livre-arbftrio podemos supor que essa vivéncia exista para todos os homens (todo ser humano é livre), mas isso ainda néo explica a agiio livre. Alguém posto numa prisdo conserva seu livre-arbftrio, mas ndo se pode dizer que seu agir seja livre. © mesmo aconte- ce com qualquer tentativa de explicar as agdes humanas através do conceito de interesse, 0 que coloca semelhante dificuldade. £ 0 que se observa quando tentamos construir uma unidade através de conceitos como “interesse coleti- vo", “interesse institucional”, “interesse do Estado”, “interesse ptiblico”, com 0s quais pretendemos harmonizar as agées dos individuos no ambito coletivo, moral, juridico, estatal. Isso porque o interesse, sendo uma vivéncia, permite uma integragio social ao nivel do conhecimento, mas nao da propria aco, Por exemplo: quando dizemos que determinada ago de um ente piiblico ocorre por forga do interesse priblico, estamos definindo uma vivéncia (cardter puiblico do agit), mas nao a propria acéo. A aco, portanto, implica a imputacdo do comportamento seletivo a um sistema (exemplo: a um individuo enquanto um peculiar sistema, entre outros, de natureza psiquica) — 0 que Ihe dé o seu sentido da orientagdo — mais a Poder direito 45 efetividade exterior em relagdo ao mundo circundante. As ontologias vigentes no passado, porque identificavam a ago com o seu sentido (imputagio), tor- nam a finalidade a parte essencial da aco e 0 movimento um simples meio ‘ou instrumento, Donde se seguia que qualquer teoria da ago era, no fundo, uma teoria da racionalidade da ago, a qual era dada pelo sentido (finalida- de). Quando este sentido néo podia ser imputado, entéo tinhamos uma ado irracional ou um mero movimento (ex.: um louco néo age, apenas responde a certos estimulos). A partir do século XIX, esse esquema foi posto em questo pela subjetivagdo das finalidades, donde a problematica da relatividade dos valores. Numa sociedade muito complexa como a atual, esse questionamento obrigou as teorias da ago a felar de valores como entidades muito gerais (soli- dariedade, justica, sentimento de participagéo social) para manter consistente a explicagdo da ago como a relaciio entre movimento (meio) e finalidade (fins), ‘© que, conduziu, porém, a uma dificuldade prética: salvo em casos excepcionais, é dificil supo, por exemplo, que alguém que paga o Imposto de Renda esteja movido, em iltima andlise, por sentimentos (vivéncias) dessa natureza. Nao obstante essas dificuldades, toda a teoria do poder, no século XIX, partiu para explicagées teleoldgicas, buscando, em valores abstratos, a razo da integragao da agio humana em sociedade, donde as conhecidas distingdes entre poder democratico, poder totalitério etc. Ora, se a agdo no se reduz essencialmente ao seu sentido, a relagdo entre o sentido imputado e o movimento efetivado no pode ser mais tratada como uma relacdo causal (fim como causa). Ou, pelo menos, nao como uma propriedade daquilo que se chama agdo. Causa ¢ efeito sé se aplicam A ago como varidveis de possibilidades equivalentes. Assim, a agio nao é o efeito (movimento) causado por um sentido intencionado (telos), mas uma ocorténcia compacta, funcionalmente difusa, cuja explicagdo causal varia de situagao para situagio. Assim, quando se diz que um comportamento seletivo para um movimento constitui uma ago, a imputagéo dessa seletividade/movimento a alguém pode implicar uma relago causal (movimento intencional ou causado pelo motivo), mas nio essa relacio necessariamente. Isso pode ter sérias conseqiiéncias para ‘0 modo como conceitos juridicos bdsicos poderdo ser reconstruidos. f. 0 caso, por exemplo, do crime cometido por motivo fitil, que a jurisprudéncia admite também como um ato cometido sem motivo algum. Em conseqiténcia, no que se refere & questo do poder, devemos admitir 0 seguinte: pressupondo-se uma concepsio de ago que nao se reduz a vivéncia de um telos, pressupondo-se que o poder seja um meio de comunicagéo, entéo 46 Estudos de Mosofia do dito + Fras Juror ndo podemos limitar sua anélise & idéia de que o fendmeno (do poder) trata apenas da influéncia do seu detentor no sentido de mover 0 sujeito a aceitar stias orientacdes, Pois 0 cédigo poder realiza uma redugio de complexidade, de ambos 08 lados, ao nivel da ago de ambos. Ou seja, também o detentor do poder tem de ser movido para usar 0 “seu” poder. Isto provoca uma série de dificuldades. Pois uma conseqiiéncia imediata disso € que o poder néo € o instrumento de uma vontade sobre outra, mas, como medium de comuni- cacao, ele instrumentaliza, néo uma vontade jd dada, e sim uma vontade por ele (enquanto meio) produzida, vinculando-a, sujeitando-a, conduzindo-a 20 sucesso na absorcéio de riscos ou levando-a ao fracasso. Estamos, pois, diante de uma anélise mediante a qual o poder é meio para a transmissao de selecdo de agdes para outra selegio de apdes (e ndo selegiio de motivos de agées para agdes). Situagdo na qual ambos os comunicadores so sistemas aos quais se imputam selegdes como suas agées (excluir o texto entre parénteses). Esclarega-se, mais uma vez, que essa imputagao da selegdio como agdo (sen- tido + movimento externo) é diferente no caso do meio verdade, em que s6 a seleco (a vivéncia) ¢ imputada, mas néo a sua exteriorizagéo num movimento (conhecimento como vivéncia e néio como agao). J4 no poder, o problema de que se trata nfo é da relagéo comunicativa entre vivéncias, mas da relagéo comunicativa entre agdes (atos ou omissées): como a agéo de um parceiro se comunica com a ago de outro parceiro e vice-versa, gerando o que se chama de obediéncia, submissdo, conformismo, inconformismo etc. Da anélise dessa relagéo decorre que, mediante poder (como meio de co- municagéo), o submetido (sujeito “passivo” do poder) aparece, de plano, como alguém de quem se espera que escotha sua prépria aco, donde a possibilidade da autodeterminacdo. Sé neste pressuposto é que s&0 dirigidos contra ele fatores de poder, como as ameagas, no sentido de’(vivéncia ou sentido de orientacao) regulé-lo nesta escolha por ele realizada de um movimento (ago como unidade de sentido + movimento). Do mesmo modo, o detentor do poder também se autodetermina. Com isso, na relag&io comunicativa entre ambos fica postulada a possibilidade de uma previstvel e “localizada” divergéncia. A transmisstio de complexidade reduzida (seletividade) ocorre quando a selegdo da aco de um & co-determinada pela selecdo da aco de outro. O sucesso de uma ordem de poder depende assim do aumento nas diferenciagées de seletividades ainda relaciondveis, mas nao efetivadas. Isso significa que, mediante o meio de co- municagéo poder, ocorre um jogo de inclusdes e exclusdes, seletividades esco- Poderedieio 47 Ihidas/induzidas num universo de varias seletividades possiveis (complexidade contingente). Poder, nesses termos, nao significa reduzir e, no limite, extinguir possibilidades de ago, mas, aumentando-as, controlar as escolhas efetivas. Ou seja, uma determinada ordem de poder que ndo consegue aumentar as diferenciagSes (muitas possibilidades de ago), que insiste em apenas limit4- las a poucas possibilidades, poder ter que ver diminuida sua quota de poder e aumentada a quota de violéncia, para sustentar — artificialmente — a situaco, substituindo poder por coagao. Por exemplo, quem quiser limitar a participacéo politica de estudantes somente ao estudo e ao exercicio formal do voto parti- dério, mediante a exclusdo de outras possibilidades, pode ver, no limite, sua quota de poder reduzida pelo aumento correspondente de violéncia. Aqui é preciso um esclarecimento, que diz. respeito ao papel da forca no poder. Se o poder, para exercer sua fungio comunicativa, deve produzir a combinagio de alternativas escolhidas e se outras possibilidades (de escola) continuam presentes e até aumentadas, entéo a possibilidade dessa combina- gfo exige a coordenagao paralela da exclusdo de alternativas. Ambos os comu- nicadores tem de ver-se diante de altemativas, cuja realizagéo, na verdade, querem evitar. Para ambos os parceiros, tem de ocorrer um conjunto maior de possibilidades para o qual haveré uma ordem de preferéncias que tem mais 0 sentido de avaliagdes negativas. Por exemplo, faz parte da instrumentalizagéo ideoldgica do poder a conscientizagio dos riscos, dos perigos, das situagSes indesejaveis etc. que, por suposto, ninguém deseja. Ou seja, a relasdo de po- der implica no o uso da forca, mas a mensagem de que a forca ¢ indesejével para ambos os parceiros (forga como ameaca). Isso nos permitird dizer que as, relagdes juridicas, na medida em que se mostram como relacéo entre direito e poder, sfio bem mais complexas que as puras relagées entre direitos e deveres. Essas constituem apenas 0 seu lado positivo, pois mesmo elas tm uma com- plexidade prépria, muito maior do que a vista pela teoria juridica tradicional: trata-se da sutil e complicada relagio entre obrigagao e coagéo. Com esse pressuposto, podemos dizer que, na verdade, 0 cédigo do poder exige no a produgéo de relagdes (por exemplo, mando/obediéncia), mas da relacionalidade entre relagdes, pois seu sucesso est ligado & combinagéo de relagdes de ao de ambas as partes e néo, diretamente, de suas ages, Enten- Ge-se assim, a complexidade desse cédigo, pois nao basta para o exercicio do poder (pelo detentor) 0 uso de ameacas do tipo “se vocé no fizer isto, eu 0 mato”, Com isso, ele pode estar tentando mostrar 2o submetido uma alterna- tiva que ambos querem evitar (resistir/matar). Mas é preciso, além disso, que 48. estudesde fosofa do dete + Feraz Juror arelagio de cada parceiro em respeito a altenativa a evitar seja estruturada de modo diferente, de maneira que 0 submetido deseje evité-la mais que o detentor do poder. Portanto: 0 funcionamento do poder repousa sobre 0 fato de que certas possibilidades de relacdo existem, mas cuja realizacao ¢ evitada. evitar sangGes é relac&o indispensdvel para’a func&o do poder que, como meio codificado de comunicacéo, a relaciona, por sua vez, com outra relagi cumprir (positivamente) a ordem emitida: 0 eédigo do poder estabelece ~ es- trutura - relagdes de acdo. © poder, assim, de um ponto de vista estrutural (antes mesmo que de uum ponto de vista juridico) € constituido sobre o controle das excecées. Isso esclarece a relacio entre poder e coacao de um modo peculiar. Poder no se confunde com coagio, embora nao.a dispense. Na relagio entre o detentor do poder e o sujeito do poder, 0 poder como meio de comunicagéo estabelece a coacdo como excecdo a ser evitada pelas duas partes cuja possibilidade de ocorréncia positiva nao constitui um elemento essencial. Pois a ocorréncia efetiva da coagdo esgota o poder. Assim, se sangdes/castigo ndo puderem ser evitadas, se as alternativas de coagio a evitar séo realizadas, o poder se destrdi. E essa hipétese é tanto maior quanto mais complexa for uma sociedade. Em conse- qiiéncia, a pura emissfio das chamadas sangdes positivas (prémios, subvencées, vantagens fiscais) no é exercicio de poder, salvo se estiver conectada com a ameaca de sua supressiio por um comportamento do préprio submetido. Ou seja, a chamada sangdio positiva (sangéio premial) sé faz sentido, em termos de poder, se relacionada com uma sangio negativa a ser evitada, Esclarega-se, entio, a estrutura bdsica do poder: combinagéo inversamen- te condicionada de combinagées de alternativas relativamente avaliadas como negativas com outras relativamente avaliadas como positivas. Donde o poder aparece como possibilidade (poténcia, chance, disposigao). Segue-se, da, uma necesséria modalizagdo das interagées comunicativas conforme 0 poder/medium. Se poder/meio de comunicagdo media seletividades fortalecidas de ages possveis, ha de tratar-se de uma possibilidade sempre presente, donde segue que essa possibilidade nao possa ser esgotada de uma s6 vez, isto 6, 0 exerct- cio do poder 6, em relacio ao poder, também seletivo. Segue que uma teoria do poder tem de enfrentar, ao mesmo tempo, duas dimensées simultneas do poder: as condicdes genéticas ¢ estruturais de sua constituicéo enquanto po- téncia, e as condigées estruturais e situacionais do exercicio do poder. Trata-se da diferenga entre potencialidade e atualizagio. oder edirsito 49 Segue daf uma primeira independéncia entre poder e direito. Pois essa diferen- a significa, primeiro, que o cédigo simbélico do poder pode conter instrugées para 0 uso do poder, mas néo totalmente especificadas, pois isso eliminaria a potencialidade (uma total atualizagao elimina o poder como poténcia). Ora, sso coloca limites a uma jurisfagdo do poder, pois toda jurisfago do poder torna 0 poder exigivel em principio (e de forma perigosa). Donde um poder totalmente jurisdizado perde sua potencialidade, ou seja, a relaco potencialidade/atuali- zagao explica que néo é possivel uma total relacionabilidade entre poder/deves, pois isto liquidaria 0 poder como possibilidade aberta, indeterminada. Uma analogia entre poder e dinheiro explica essa relago: na situagdo ter dinheiro, qualquer gasto (atualizacdo) diminui a potencialidade do ter dinheiro (crédi- to). Se essa potencialidade se iguala A efetividade do gasto, a potencialidade (crédito) desaparece. Como numa corrida a bancos, isso significaria a faléncia do sistema financeiro. Mas isso assinala também uma dependéncia entre poder e direito. Pois nio se trata, assim, de uma diferenca entre poder potencial e atual, mas entre a ‘atuagdo do poder como poténcia e a atuagiio do poder como exercicio conereto: um poder juridicamente formalizado (metacomunicag%o do direito sobre o poder: © poder como objeto do direito) de certo modo engendra um poder perma- nentemente capaz de atuar (atuacao do poder como poténcia), ainda que nio sejam utilizados instrumentos de poder (atuaglio como exercicio concreto). Daf, uma outra conseqiiéncia importante: um poder juridicamente formali- zado (metacomunicado) permite que as decisdes de poder possam ser tempo- ralmente separadas: ndo é preciso decidir sobre tudo ao mesmo tempo, sem que a auséncia de decisio signifique colapso do poder (esta ai a possibilidade de sua institucionalizacao, isto é, de seu reconhecimento independentemente de exercicio concreto). Gria-se, pois, desse modo, a possibilidade, do lado do detentor do poder, do aparecimento de cadeias decisdrias: (1) 0 detentor esquematiza a ocorréncia desejada das agées; (2) pode verificar, entdo, se isto basta; (3) em-caso de resisténcia, pode metacomunicar, isto é, mostrar-se como poder; (4) afinal, pode decidir sobre aplicagdo ou no de sangies. Se essa cadeia (formalizagao juridica do tempo do poder) comega por um ou ‘outro ponto do processo, isso depende de cada situagio e é determinado nao pelo arbitrio do detentor, mas pelas condicGes de consisténcia do poder (estra- +tégia). O poder torna-se presente no inicio e em cada momento do processo. 50 Estudos de flosofie do dlto » Faz Junior Mas, como essas primeiras relagées entre poder e direito tém a-ver com © préprio meio de cominicagdo enquanto estrutura codificada, segue daf a necessidade de se analisarem com mais detalhes as fungies da codificagdo do poder. 2. Fungées da codificagao ‘A concepgio comunicacional do poder abre.perspectivas diferentes para a relagdoentre poder e direito, como base de uma revisto da teoria geral do direl- to como teoria da decisdo. As teorias mais tradicionais do poder, a maior parte as quais trabalha com uma teoria da ameaga pura e simplesmente, so aptas para explicar 0 fenémeno decisério no direito apenas em sociedades de pouca complexidade. Em sociedades com meios de comunicacéo diferenciados, uma teoria do direito em que poder aparece como ameaca ou exercicio de ameaca de forca ou violéncia reduz drasticamente o direito a um conjunto de formas proibitivas (ver Bobbio, Dalla strutura a la funzione). Uma revisio da teoria do direito exige, pois, a revisio da teoria do poder em bases mais amplas. Como explicar o crescimento do poder com o aumento da complexidade social? Em termos comunicacionais, a transmisséo de complexidade reduzi- da se torna tanto mais critica quanto mais complexo ¢ 0 mundo constitufdo intersubjetivamente. & aqui que entra em consideragio a nogio de cédigo do meio de comunicagéo “poder”. Para entender as fungbes do cédigo, vamos comecar analisando a nogdo bésica de generatizagio de stmbolos, 4 qual todo cédigo comunicacional esté ligado (Luhmann). Por generalisagéo entenda-se o processo de tornar comuns certas orientagdes significativas para diferentes parceiros em diferentes situagées, de tal modo que a todos se permita um sentido idéntico e a dedugao de, ao menos, conse- qiléncias semelhantes. Por meio da generalizacdo, obtém-se uma relativa liberdade situacional que reduz a necessidade de se discutir, de caso para caso, a orientago-comum. Ou seja, a generalizacdo absorve inseguranga (ver, por exemplo, a diferenca entre duas pessoas que falam a mesma lingua e duas que, falando linguas diferen- tes, tentam se comtnicar), gerando expectativas comuns e comportamentos correspondentes. Poderesieto St i Aomesmo tempo, porém, generalizacio cria o risco de que as possibilidades | oferecidas pela situagéo concreta no sejam aproveitadas; o prego da gencrali- zacéo é a inflexibilidade relativa dos cédigos. isso vale especialmente para as generalizagdes normativas, que manifestam expectativas contrafiticas, Por simbolizaco (simbolo dos cédigos) entendemos que uma situagio inte- racional construfda complexamente é expressa de modo simplificado e, assim, passivel de ser apreendida como unidade, Ou seja, na relagio de poder, suas condicionalidades esto expressas em palavras, signos nio lingiifsticos, papéis sociais, pessoas simbolicamente constituidas etc. i Assim, a constituigo do poder requer, tanto teérica como praticamente, conceitos dispositives, como forga, capacidade, poténcia ete. Ou seja, o poder j implica uma modalizagdo dos processos comunicativos (da mesma forma que as relacGes juridicas exigem a modalizacao das chamadas situagées subjetivas Jurldicas: direito subjetivo, dever, competéncia, autorizagao, faculdade etc.). Conceitos dispositivos tém, eles préprios, uma potencialidade simbélica: eles ‘obtém uma simplificacao por meio da rentincia A representaco ou antecipacdo daquilo que é possivel. Eles nao sio modelos, nem planos, nem mapas, pois no precisam ter qualquer semelhanga com o que ser possfvel. No lugar dessa. semelhanca, eles pressupdem tempo, isto é, a possibilidade estabilizada de ser produtivos, sempre que aparecam certas condicdes. Com isso, é possivel, agora, entender cédigo. Trata-se de uma estrutura (conjunto de regras que determinam relagGes entre elementos de um sistema) capaz de buscar ou ordenar, para qualquer item, em seu campo de relevancia, outro complementar (Luhmann). Existem, nesse sentido, eddigos biolégicos, inorganicos, fisiolégicos ete. Para os cddigos culturais, é de radical importancia a lingua, especialmente no sentido de comunicacio digital ou verbal, com sua capacidade para a negagdo (para qualquer ato de falar existe sempre a pos- sibilidade de sua negacdo ~ importancia do conectivo ndo ~ ver Watzlawick, Beavin, Jackson: Pragmdtica da comunicagéo humana, Sao Paulo, 1973): A negacio € bésica para todo e qualquer eédigo cultural, pois ela possibilitaes- quematizagies bindrias do tipo sim/néo, verdadeiro/also, valido/ndo valido, bem como as combinatérias subseaiientes. Do modo como vem sendo analisado, poder é sempre cédigo, isto é, genera lizacdo simbélica estruturada capaz de um processo continuo de combinagées, (agdes seletivas, combinadas, ponto por ponto, com alternativas, tanto da parte do detentor como do submetido). Ou, de modo simplificado, combinatéria en- q tre 0 querer do detentor com o nfio-querer do-submetido e vice-versa; Pode-se { 52. Etudes de filsatia do eto + Faraz Junior dizer, nesse sentido, que por meio do poder surge, a partir da impulsividade “difusa” e da espontanea busca de fins, na sociedade, uma “néo natural” di- visio do querer e do nao-querer. Na relacSo de poder, a complementaridade entre querer e no querer se torna decidivel (aqui est 0 ponto nuclear para a reelaboragio de uma teoria juridica como teoria da deciséo, com base na relagio entre direito e poder). A codificagéo bindria do poder nio Ihe é exclusiva nem é uma descoberta recente. Também 0 direito a conhece (Iicito/ilicito); 0 mesmo se diga para a economia e seu eddigo da propriedade (proprietério/néo-proprietdrio) que é trazido para complexidades maiores por meio dos cédigos monetérios, ou para a ciéncia, cujo eédigo (verdadeiro/falso) condwz a uma dialetizagéio da verdade (Bachelard). crescimento do poder tem por uma de suas condigdes as codificagées bi- nérias e sua imensa (mas limitada) possibilidade combinatéria. Aqui, é preciso acrescentar outras. Para explicité-las, faz mister trazer & consideragdo uma série de problemas, cuja solugio passa a fazer parte do préprio eédigo-poder. ‘As generalizacdes simbélicas permitem a passagem do nivel da communicagao explicita para o da implicita, isto é, o submetido obedece néo apenas ao que Ihe é ordenado, mas também ao que ainda nio lhe foi. Isso alivia 0 proceso de comunicacao, embora, concomitantemente, rediistribua o poder, pois o sub- metido, de certo modo, decide se vai ou no estimular o detentor a produzir ordens. (Aqui se coloca o problema da permissio no direito.) A comunicagao explicita (e a regulacéo positiva) se torna uma fungio residual do eddigo até ‘mesmo quanto 2 iniciativa para produ¢o de comandos, que podem necessitar de estimulos, da iniciativa do submetido. Isso traz, para as relagées de poder certas disfungdes que limitam as possibilidades de formalizagies e centrali- zaco. Assim, a generaliza¢io simbélica via conceito dispositivo forga (quem tem forga tem poder) permite a codificagio bindria (ter/nio ter force), donde se segue que quem tem orga emite comandos, mas é também obedecido por comandos que nao chega a emitir, ou seja, o submetido obedece nao apenas as alternativas a evitar que Ihe so comunicadas (comunicago explicita: se vocé nio fizer isso, apanhard), mas também ao desejo do detentor de outras obediéncias ndo expresses. Isso nos leva a uma distingo entre poder e temas-do-poder e a conseqiiente diferenca nas formas de assegurar expectativas quanto a ambos. Trata-se do duplo escalonamento na construgao de simbolos. Por exemplo, cargos e compe- téncias so simbolos do eédigo poder, mas diferentes dos simbolos referentes Poderedirto 53 aos temas do poder que podem estar ligados & pessoa competente ou encar- regado. Por exemplo, um juiz & alguém que emite juizos e prolata decisées; jé juie natural designa uma competéncia. Ou seja, uma coisa é 0 cargo como generalizagio simbélica do préprio cédigo e outra é, por exemplo, o status de ‘quem exerce o cargo, sua capacidade de transmitir confianga, simpatia, medo etc, como generalizacio simbdlica dos temas (ordens especificas) do detentor do poder. Essa distingao permite separar a formagdo do poder de seu exercicio, em como certa independéncia entre ambos e, em conseqiiéncia, a possibilidade de manutengéo do cédigo conforme suas condigdes, ainda que as condiges dos temas néo se realizem. Por outro lado, obviamente, essas diferenciagées trazem novos problemas em termos de estrutura bindria, pois independéncia no significa auséncia de influéncias miltuas. Donde essa diferenciagdo (que depende do grau de complexidade social) pressupor sempre a questo da organizagdo do poder. Organizacio significa aqui o problema de como o cddigo consegue regular 0 cdimbio dos temas. Ou seja, & condigao do poder-eédigo certa independéncia dos temas, mas estes tém de estar limitados, sob pena de o cddigo no suportar cargas muito grandes. A questo da organizagao nos conduz a formagao de cadeias de agdo (Atem. poder sobre B, que o tem sobre C etc.). Trata-se do principio da hierarquia, que manifesta a reflexividade do mecanismo do poder, isto é, a possibilidade de aplicagao do proceso de poder sobre si préprio. A aplicagio sobre o cume da pirdmide torna o mais alto detentor do poder, ele préprio, um membro ou elo da corrente, o que exige uma especificagao funcional eltamente diferen- ciada do poder. A fungao das cadeias é trazer poder a disposic&o do detentor diferente daquele que ele poderia exercer. A hierarquizagio coloca, porém, o problema da pluriformagao do poder: cédigos e cédigos complementares (também poderiamos falar de cédigos formais e informais, por exemplo, no caso do dinheiro, é o aparecimento, em situagées de crise, de outros “cédigos”, como ouro, cigarro, lenha, que pas- sam a funcionar como dinheiro). Cédigos complementares tém as seguintes propriedades: (a) maior concretude e dependéncia contextual; (b) pequena capacidade social de legitimagio, isto é, pouca “representatividade”; (c) refe- ribilidade a um funcionamento interno do sistema em relacio a conhecimento localizado, intuigées, confiancas, desconfiangas que néo podem ser comparti- Ihados pelo mundo circundante, O poder “informal” pode chegar a assumir até mais funcSes que o formal, que passa a ser sua fachada legit 534. Estudos de fosofia do cite + Ferraz nor de e6digo secundério, complementar ou informal hé de refletir-se na idéia de direito como instrumento do poder e na tematizagio do direito “inoficial”, ou seja, 0 direito como esquematismo bindrio do poder — licito e ilicito, legal € ilegal - s6 se aplica 20 oficial). 3. O direito como estrutura auxiliar Esquematismo bindrio é condi¢do constitutiva para cédigos generalizados simbolicamente. Razdo: porque 56 assim é possivel combinar universalismo e especificagdo. Por exemplo, cédigos analégicos (no digitais) ~ ef, Watzlawick ~ tém alta quota de especificagao, permitem a comunicagao concreta e de- pendente da situaco — ver a comunicagao animal ou mesmo a comunicagao analégica humana -, mas tém fntima capacidade de universalizacio. JA os cédigos digitais permitem que para cada item relevante algo determinado possa Ihe ser coordenado de forma unfvoca, Ora, o poder é “por natureza” uma relacio difusa e espalhada socialmen- te, Portanto, para a construgio de seu cédigo em termos bindrios, o poder necesita de outras estruturas de formalizagdo mais aptas para esse tipo de esquema. Aqui é que entram as estruturas juridicas e seus esquemas bindrios Aicito/ilicito, pablico/privado, deveres/direitos, proibigdes/permissées ~ ver Bobbio, Dalla struttura). Esquematismos bindrios tém por fungiio primdria nao a separagdo, mas a vinculaco dos opostos. Eles facilitam a passagem de uma definigao da situacéo para seu oposto gracas a negacio (técnica da integragéo paradoxal -_Luhmann). Eles permitem e contribuem para a diferenciagio social dos subsistemas, em- bora isto os tore problematicos e artificiais, pois implicam outorga (de algo para alguém). Mas, como so irrenunciveis, qualquer protesto contra eles s6 ocorre pela instauragéo de outros esquematismos bindrios. Isso porque os es- quematismos bindrios sao presuntivamente completas em relacéo & construgéo do possivel. E quanto mais essa presuncao é institucionalizada, mais eles per- manecem, independentemente das distribuicdes concretas que possibilitam. No caso do poder e seu cédigo, a presuncdo de um esquematismo basico na forma de jurfdico/antijuridico tem suas peculiaridades. Esse esquematismo, como se trata de ages imputdveis de ambos os lados, exige a forma normativa, Ou seja, assume uma forma de expectativa contraf- tica, em que o que se garante é a expectativa e no a aco real, Daf se segue Poder ediito 55 que o esquematismo juridico capta a realidade do poder de modo inseguro, pois também o poder antijuridico é poder (isto & diferente para o esquematismo ‘econdmico ter/néo-ter propriedade, que nao é primariamente contrafético, mas cognitivo, isto é, 0 nao-ter, salvo por um ocultamento ideolégico, nao é um ter). O poder antijuridico ¢ tao real quanto o outro e néo apenas uma forma possivel que aguardaria uma chance de negacdo para passar a ser real. Isso implica urna precariedade na construgdo da relagdo entre poder e direito, pois a distribuicdo do poder pode, tendencialmente, por em perigo a ordem juridicat Isso conduz a uma complicagdo que s6 pode ser esclarecida-do seguinte modo: na formago do poder e do contrapoder (juridico/antijuridico), a dife- renciagdo entre poder formal e informal tem de ser pensada conjuntamente. Isto 6, 0 esquematismo binério juridico/antijuridico sé se aplica 20 poder formal, o qual, aligs, se define gracas Aquele esquematismo. Mas:o poder informal, que pode até ser maior, néo se enquadra nele. Ele nfo chega a ser antijuridico, apenas no se enquadra. Isso implica entio que o esquematismo Juridico/antijuridico passa a ser controlado pela diferenga interna (ao sistema) entre poder formal e informal, & qual tém acesso apenas os iniciados (ea teoria = jurfdica ~ do poder e do direito embarca nessa diferenga e passa a pensar a teoria do poder apenas como teoria do poder estatal ¢ 0 direito como produto da atividede estatal, deixando de lado essa importante relacdo entre o poder formal e informal!). A relago entre direito e poder tem que se haver com essa complicagio es- trutural, Seria enganoso reduzir o direito a uma simples “regulamentagao” do poder, pois isso esconderia aspectos fundamentais. Para melhor entender essas, relac6es, fa2-se mister examinar em que medida o eédigo-poder se universaliza ¢ em que medida se aplica independentemente dos contextos situacionais. Universalismo significa que uma relagao significativa se atualiza indepen- dentemente da situagao e das qualidades dos parceiros. Se 0 cédigo-poder nao se universaliza, ele no se institucionaliza socialmente. Para universalizar-se, ele necessita do direito que atua, entdo, como uma forma estabilizadora, de tal modo que as decisées do poder parecem nao depender das qualidades pessoais do detentor do poder, mas das regras de seu exercicio. Ou seja, o esquematismo bindrio direito/ndo-direito permite que tanto o detentor quanto 0 submetido possam (e devam) agir juridicamente, Além disso, o esquematismo juridico permite uma reprogramagéo condicio- nal dos vinculos do poder. A vinculagio entre detentor e submetido é condicio- 56. Estudos de fsote do dite + FevazJunor nada pela miitua tendéncia de evitar as alternativas qualificadas negativamente. Pois bem, o direito reprograma essa vinculagio, regulando o estabelecimento mesmo das alternativas. Com isso, o problema da credibitidade da vontade do detentor (seré que ele usa as sangdes, as alternativas negativas?) se torna um problema de informacéo (como fazer para que ele néo tenha que usar?) Ou seja, 0 esquematismo juridico transforma a “luta pelo poder” numa luta juridica. Isso vale, no entanto, para o cédigo formal do poder. A presenga do ‘c6digo informal exige do poder formal uma consisténcia que se torna, para ele, um problema a resolver, Problema da consisténcia significa: como explicar a permanéncia do detentor do poder, no processo das relactes de poder, mesmo quando o esquematismo bindrio do direito se aplica a ele préprio, isto & mesmo quando o esquematis- mo pressuponha que o préprio detentor do poder possa (em tese) agir contra odireito. Diante disso, ganha um sentido peculiar a relacéo da soberania com a possibilidade de decidir sobre a exceco. A maneira schmittiana (C. Schmitt: Verfassungslehre, Miinchen-Leipzig, 1928) é fazer da soberania algo que tenha aver diretamente com o poder e de modo que o poder seja, a0 mesmo tempo, aquilo que define a soberania como entidade juridica e como fato politico. Que poder? O poder de deciséo, o poder de tomar a decisio sobre a excegio. Isto & o poder é fato/forga puro e simultaneamente ele gera o proprio direito. Vale dizer, a deciso soberana sobre a excegio caracteriza-se como a estrutura original jurfdico-politica, na base da qual o que é inclufdo na ordem juridica eo que é dela excluido adquire o seu sentido. Com isso, porém, o paradoxo do conceito de soberania se torna vistvel: © poder, como fato (Forca), esta fora, mas estd, também, dentro do conceit. Afinal, a excegdo (ex capere: tomar de fora) é, assim, uma espécie de exclusdi Mas 0 que é excluido, por conta de ser excluido, nao fica sem qualquer relacdo com a lei, Ao contrario, o que 6 excluido na excegio mantém-se em relacao com a lei na forma de “suspensio” da lei, O soberano, diz Schmitt, é aquele que pode “suspender” a lei (cf. Die Diktatur, Miinchen-Leipzig, 1928). E af o paradoxo: a soberania no é um fato (forga), pois s6 pode ser criada median- tea suspensio da lei. Mas, pelo mesmo motivo, no é também uma situacio juridica, pois s6 surge mediante a suspensdo da lei. Ou, como diz Schmitt, a decisio soberana “prova ela prépria, nao precisar da lei para criar a lei”. Ora, uma teoria do poder como meio de comunicagao permite uma revisio do paradoxo. Quando se fala de poder, néo se trata, propriamente, de uma Poderedicito $7 ropriedade do soberano em face do siidito, mas de uma possibilidade de acéo cuja excepcionalidade depende de ambos. Assim, a instauracdo da soberania mediante um poder constituinte néo se confunde com ato impositivo de forca, mas de uma deciso sobre o seu uso como excecio, O mero uso da forca nada constitui. Fara que 0 uso da forga caracterize poder (constituinte) preciso que a comunicagao social esteja mediatizada por uma estrutura codificada (medium): 0 poder como meio de comunicagéo, Nesses termos, soberania é simbolo codificado do meio de comunicagéo (poder) que media uma seletivi- dade fortalecida de ages conforme uma estrutura bdsica. Para isso, conforme examinado, as codificagdes juridicas (mediante esquematismos bindrios: Iici- to/ilicito, permitido/proibido) desempenham uma importante funcao, Disso segue, afinal, que soberania é jurisfagao limitada de um poder, cuja potencialidade é mantida mediante uma atualizagio normativa no totalmen- te especificada: 2o mesmo tempo, possibilidade em aberto, indeterminada, ¢ Possibilidade limitadamente especificada pelas normas em que se atualiza. Ou seja, poder soberano é potencialidade de deciséo sobre a excecdo, sem que sobre a excegdo seja necessdrio decidir permanentemente. Ou seja, se ages so manifestadas por verbos € 0 verbo, na grande maioria das Iinguas, aparece na forma imperativa ~ forma mais primitiva (pragmética) do que a comunicacéo mediante proposigdes com fungdes semanticas -, mediante uma estrutura seméntica, a soberania permite ao cédigo do poder a possibilidade de que comandos se organizem na forma de cadeias de dependéncias, criando © papel social de mensageiros do poder (ver, por exemplo, papel dos anjos como mensageiros de Deus na estrutura das religides cristis, judaicas e mucul- manas), bem como o aparecimento de sistemas de dependéncia que acabam por impedir 0 acesso do individuo ao micleo-fonte (como se Ié nos contos de Kafka: O processo e O castelo). esses termos entende-se que o conceito de soberania acaba por engendrar um problema de legitimidade, cujo cene esta na consisténcia do poder O problema da consisténcia pode ser também colocado do seguinte modo: 0 cédigo formal trabalha com dois principios bésicos: 0 da hierarquia eo da soma constante. 0 primeiro significa a possibilidade de multiplicarem-se os detentores do poder, sem que a relacio se altere. O segundo significa a possibilidade de flutuarem os detentores, sem que a perda de poder de um signifique diminuigao global, mas apenas troca do poder. Mas ambos os princfpios exigem condigdes diferentes: 0 primeiro pressupée que todo e qualquer conflito possa ser resolvido 5B _ Estudos deflosofia do dete + Ferraz Julor pela divisto (hierarquica) do poder; o segundo pressupée a possibilidade de conflito sobre a prépria organizacao hierarquica. Como concilié-los? ‘A questio da conciliagao coloca 0 problema, enfim, da soberania como autotematizagio do cddigo, isto da possibilidade mesma de se aplicar 0 esquematismo bindrio sobre simesmo ~ este é 0 problema da legitimidade do poder soberano, Como veremos, no entanto, a questio da legitimidade do poder soberano permite uma reformulagdo da soberania enquanto uma supremacia tinica (una, origindria, indivisivel), ponto culminante de uma estrutura hierdrquica, que, em termos de autotematizactio do eédigo poder, engendra o mencionado paradoxo da exclusio/excecao. Dessa reformulacio se trata a seguir. 4 = Legitimidade De um ponto de vista comunicacional, a questio da legitimidade se coloca no nivel fitico e nfio moral. Trata-se do reconhecimento, em tltima instncia, das decis6es do detentor do poder, Dificuldades: se, comunicacionalmente, definimos legitimidade como con- senso, 0 cddigo do poder sé pode ser legitimo gracas a outro meio de comuni- cago (0 poder é legitimo se moral, se verdadeiro, se voltado para o bem-estar, se baseado numa norma fundamental etc.). © problema é explicar como, por meio do esquematismo binério juridico, o poder permanece consistente, sem apelar para outros eédigos. Isto nos dard a extensao da relagdo entre direitoe poder em seu préprio proceso, o que servird de premissa para a reconstrucio de uma teoria geral do direito. Como hipétese de trabalho, vamos aceitar que as decisées do poder so legitimas 4 medida que obtém uma prontidéo generalizada para serem aceitas, ainda que indeterminadas quanto a seu contetido, dentro de certa margem de tolerdncia (Luhmann). Trata-se de uma prontidéo generalizada, isto é, os motivos, que pendem entre o medo e 0 consenso, nio se esclarecem (ao menos Por enquanto, pois serio tematizados quando investigarmos as relagdes entre poder/direito/ violencia) A idéia que se pretende desenvolver é a de que o problema da legitimidade é central para entender-se como no esquematismo bindrio juridico/antijuridico entram os eédigos informais e como eles se conciliam com 0 eédigo formal do poder. Nessa concepeao, a questo da supremacia deverd aparecer como Podere ciate 59 uma questo que permanece, por motivos funcionais, indecidivel dentro da estrutura do poder. Ou seja, o que se pretende é examinar, & luz da questao da legitimidade, uma teoria do direito que no tenka como premissa a soberania do poder, para entéo verificar as conseqiiéncias disso para a prética tedrica do direito. Isso nos obrigard a examinar também os seguintes temas: + dentro dos sistemas interacionais, rejeitando-se uma teoria da sobe- tania, como fica o problema da seguranga e da certeza; + dentro da teoria juridica, como devem,.em conseqiiéncia, ser tra- tadas as definigées de situagbes juridicas de modo persuasivo e co- mum, de modo que néo se percam de vista as relagdes.entre os meios poder/direito e o préprio sistema socials + como, na teoria jurfdica, podem ser absorvidos cédigos informais sem que sejam eles tomados nem como desuetudo/nem como costu- me negativo; + como se explicaré, nessa teoria, a manutengio do esquematismo bi- nario licito/ilfeito; se isso nfo significaré uma perda de contato da teoria juridica com sua base normativa. Inicialmente, vamos examinar 0 problema da “aceitagio” ou “reconheci- mento” como um procedimento de aprendizagem. 4.1 Poder, forca, legitimidade e procedimento Pelo que vimos até agora, poder nao é um complexo autérquico. O:poder, enquanto um sistema comunicacional, é produto da prépria diferenciacio social e dela depende. Para compreender, de um ponto de vista universal, como se dé a propria diferenciagao do poder enquanto cédigo de comunicagéo, mencionamos a importancia dos esquematismos binérios juridicos. Mas sé esses esquematismos, {sto é, limitar 0 poder a um processo de racionalizagdo que tem por restriclo co emprego do esquematismo a si mesmo, nfo o-explicam. Quando 0 cddigo tematizado, ele se submete também A negago; mas com uma conseqiiéncia indesejével e potico explicativa: o poder negado (ilegal) é ainda poder. Daf 0 problema da legitimidade. A mera distingao entre cédigos formais e informais no satisfaz, pois leva a uma identificacio idealista entre poder e direito, em 60 Estudos de flosotie do eto = Feraz Junior que 0 “poder” nao juridico deveria aparecer como “pura forca”. Para entender essa constelagao ¢ preciso colocar a questo da forga (vis). Nenhum meio de comunicago consiste apenas numa série de simbolos generalizados. Nao se pode esquecer que os participantes do proceso de co- municagio estio submetidos a condigées ¢ limitagSes comuns a seletividade em razdo de sua prépria existéncia fisica, Essas condigGes e limitagdes constituem seus “mecanismos simbidticos” (simbiose como relagées entre seres vivos). Mecanistnos simbiéticos (exemplos: para o e6digo verdade, a percepeao; para 0 cédigo amor, a sexualidade; para o cédigo dinheiro, a satisfagtio de necessidades; para o eédigo poder: a forga fisica) no podem ser ignorados, ainda que atuem de modo nao especffico, pois trazem uma base de seguranga para os eédigos. Conforme jé vimos, a forga fisica ndo constitui o poder, visto que por meio dela uma agio elimina a outra, ¢ isso impede a transmissdo das premissas deci- sbrias de um para outro, base constitutiva do poder como meio de comunicagéo. Apesar disso, embora a forga ndio seja poder, ela & constitutiva do poder enquanto alternativa a evitar. Ora, como a relago de poder é uma relagéo assimétrica, a alternativa “forga” é decisiva, pois ¢ ela que permite explicar que a alternativa & menos preferivel para um do que o é para outro participante. Além disso, a forga constitui uma espécie de ponto culminante da relagéo, em fungéo do qual um vence e outro perde. Ou seja, a forca introduz, para o cédigo do poder, outro esquematismo bindrio que jé ocorre no inicio da rela- Gio: 0 forte ¢ o fraco. Nao hé, obviamente, uma relagéo automética e direta entre os dois esquematismos: direito/néo-direito, forga/fraqueza, ainda que a identificagio seja sempre tentadora (o direito do mais forte...). Uma teoria do poder e do direito, com essa base, é demasiadamente simplista. Entre os dois esquematismos, aparecem combinatérias mais complexas, que stio percebidas jé pela temporalizagtio da forga na relagao de poder, Por exemplo, no nivel de relacdo intersubjetiva, entendemos os esforgos feitos por qualquer detentor do poder em manter a forca como uma alterativa a evitar, de tal modo que, quando ela é usada concretamente, este uso é demonstrado como paradigmdtico e nao como um exercicio continuo e normal. Mais importante do que usar a forga é demonstrar que seria uma loucura provocar seu uso, Assim, da mesma forma, nas concepgGes juridicas do poder, a forga’é alocada no inicio do sistema, conduzindo a selegio de regras cuja fungio, racionalidade e legi- timidade as separam dela, pois a forca ser colocada apenas como ocorréncia {futura, a ser evitada desde o presente (sangio como ameaca). Podere dita 61 De certo modo, a temporalizagdo da combinatdria nos faz ver que 0 es- quematismo da forga (forte/fraco) pertence as condiges necessérias & génese do poder, mas ndo de seu controle. Isso porque a forca, em seu uso concreto, aleanca muito rapidamente seu ponto de esgotamento como condigéo do po- der: para vencer uma luta, a forca é decisiva, mas néo para manter o poder sobre o vencido, 4 por isso podemos perceber que uma polaridade unidimensional do tipo forca ou legitimidade, coacio ou consenso nio pode ser aceita. Na verdade, a temporalizacdo na combinatéria dos esquematismos (forte/fraco, juridico/an- tijuridico) nos mostra que entre ambos (forga e direito, na esquematizagio do cédigo-poder) existem procedimentos que tém de ser levados em conta, para que a questio da legitimidade possa ser apreciada. Comecemos por afirmar que todo poder, enquanto cédigo, constitui objeti- vamente um ato de violencia simbélica como imposigio de certas significagdes, (selecio) que dissimulam as relagGes de forga que esto na base de sua propria forga (Bourdieu/Passeron: La réproduction, Paris, 1970, p. 18). Num primeiro sentido, poder é violencia simbélica, que funciona enquanto as relagées de forga entre os grupos ou as classes constitutivas de uma formacio, social esto na base de uma decisio arbitréria que é a condigéo de instauracéo de uma relagdo de comunicaco (esquematismo force/fraqueza). Mas, como violéncia simbélica, 0 poder no se reduz & imposigio da force, ou seja, 0 poder néo produz seu efeito se ele nfo se exerce numa relagao de comunicagio. Num segundo sentido, poder é violéncia simbélica & medida que reproduz, no duplo sentido da palavra, a selego arbitréria que um grupo ou uma classe operam objetivamente no e pelo seu arbitrario cultural. Essa selegio basica ¢ arbitréria, porque sua fungio e estrutura néo podem ser deduzidas de nenhum principio universal, mas dependem da complexidade social, e nfo da “natureza das coisas” ou da “natureza humana” etc. (esquematismo direito/antijuridico). Assim, num primeiro momento, a combinatéria dos ésquematismos forte/ fraco e licito/ilfeito nos permite dizer que o cédigo-poder tende a reprodu- zir 0 predominio de um arbitrério cultural, contribuindo, desse modo, para a reproducdo das relacées de forga que colocam este arbitrdrio em posicéo dominante. Essas relagdes de forca que, dependendo da complexidade social, podem ser relacdes de parentesco, de prestigio, de conhecimento, econdmicas etc, marcam a génese do poder e condicionam sua manutencio, embora néo a provoquem. 62 Estudos de Alosotie do delto + Frazier Num segundo momento, a combinatéria dos esquematismos bindrios nos permite dizer que 0 cédigo-poder reproduz a estrutura de distribuigéo desse “capital” cultural entre grupos e classes, contribuindo, assim, para a reproducdo da prépria estrutura social e provocando a manuteng&o do poder. Essa combinat6ria significa, pois, que o poder, enquanto eédigo, é reconhe- cido como legitimo & medida que é desconhecido como violéncia (simbélica). Assim, dizer que os sujeitos reconhecem uma instancia do poder como legitima significa que faz parte da definigéio completa das relagdes de forca, na qual 08 sujeitos esto colocados, a interdigo posta a estes sujeitos de aprenderem © fundamento dessas relagdes; isso é obtido quando se consegue dos sujeitos certas préticas que levam em conta a “necessidade” das relages de forga. Pot exemplo, o fora-da-lei concede objetivamente forga de lei a lei que ele trans- gride, ao fugir e se esconder, ajustando sua conduta as sancdes que a lei tem forga para Ihe impor, Em outras palavras, 0 poder-cédigo se revela legitimo como relago entre a combinac&o dos esquematismos forga/direito e das praticas dissimuladoras que eles engendram. Ou seja, um eédigo-poder que desvendasse, em sua propria constituigao, a forga que esté em seu fitndamento, seria autodestrutive, Nesse sentido, o exercicio do poder nunca é critico, pois sempre pressupée 0 desco- nhecimento social de sua constituicao objetiva como condigéo do exercicio. © exercicio do poder, isto é, a relagdo permesda pelo cédigo, engendra, pois, necessariamente, préticas ideoldgicas que estiio na base de todo principio de autoridade e da distingéo mesma entre autoridade e poder, em termos de poder legitimo e ilegitimo. Entendam-se por priticas ideoldgicas procedimentos Justificadores que determinam as instancias tiltimas de legitimidade dentro de uma formagio social dada, conforme as relacdes de forga entre seus grupos ou classes. 4.2 Procedimentos A medida que todo exereicio do poder ocorre por meio de um cédigo-poder constituido por esquematismos bindrios e instrumentos dissimuladotes da vio- Iéncia simbélica combinados através de préticas ideolégicas ou procedimentos justificadores, podemos afirmar que a primeira e fundamental caracteristica de uma relacdo de poder é que ele se dispensa de produzir as condigées de sua instauragio e de sua perpetuacao. Ou seja, em qualquer relacio de poder, 0s emissores (detentores do poder) so prima facie designados como dignos r Poder edieta 63 de transmitir 0 que eles transmitem e, portanto, autorizados a impor sua re- cepgio e a controlar sua inculcagéo pelas sangées socialmente aprovadas ou garantidas. Na mesma medida, porém, os receptores do poder (sujeitos ou submissos) sio dispostos, prima facie, a reconhecer a legitimidade do transmitido, isto é, a receber ¢ interiorizar as mensagens. Na mesma medida ainda, em termos de comunicagéo, na relagdo de poder se produz.a legitimidade do que é transmitido, pelo s6 fato de que é transmi- tido, por oposigéo a tudo que nao é transmitido. Ou seja, a relago do poder implica um monopélio de legitimidade do que se transmite e que est na base da distingdo entre os cédigos formais e informais ¢ de sua combinagio no exercicio efetivo do poder. Em conseqiiéncia do que vimos, toda instdncia-de poder (agente ou insti- tuigdo), exercendo 0 poder, 0 faz sempre a titulo de mandatério (dos grupos ou classes), isto &, a titulo de detentor, por delegacdo, do “direito” de violencia simbélica, Isso.ndo significa a suposigao de que existe uma convencao explicita ou um contrato, Falar de delegacio significa apenas a designacdo de condi- Ges sociais do exercicio do poder, isto é, a proximidade entre a complexidade social e as exigéncias de sua reducéio por meio de um cédigo. Assim, mesmo © poder catismético de um profeta no tem um comeco absoluto (exemplo: um milagre), mas se liga aos usos dos grupos ou classes aos quais se dirige. Ou seja, o profeta é seguido pelos discfpulos & medida que segue os discipulos (isto 6, 0 poder néio emana da magia ou “verdade” da mensagem mas de uma co-relacéo consistente entre seguidor e seguido). Por isso, a delegacéo é sempre limitada pelo modo de imposigo legitimo, por emissores legitimos ¢ por destinatarios legitimos. Essa limitaco coloca 0 principio da limitagdo da autonomia do poder como condigéo especial para juma reelaboragio da questo da soberania, que se torna um tipo de relagéo e nao uma forma de independéncia, 0 direito, como vimos, esquematiza o poder de forma bindria. Acoplan- do-se & esquematizagao forte/fraco, o direito permite, assim, a reprodugio simplificada do poder sem a necessidade de se repetirem as condigdes de sua produc. Por meio do esquematismo juridico, o poder nfo apenas se vé ali- viado da carga de reprodugdo, mas também se permite transportar para outros contextos interacionais. Isto €, através do direito (esquematismo licito/ilfcito), o esquematismo forte/fraco se transporta para relagdes de amor, relagbes €co- némicas, relacdes pedagdgicas e até para as relagbes de organizacao interna 64. Esnudos do flosofa do dito + Ferre Junior das relagdes (administragéo). Por meio do direito o meio de comunicagéo poder se faz compativel com altas diferenciacdes funcionais da sociedade, levando politizagao para setores no politizados. Assim, & medida que o controle social ocorre através do direito e é garan- tido por meio de um detentor do poder que se pée a distancia, os sistemas de interagdo social se aliviam da carga representada pela presenta e pelas formas concretas e rigidas de vinculacéo. Isto é condicdo para a diferenciago social, isto é para que se possa comprar e vender no mercado, amar e ser amado nas relagées pessoais, sem que as interagées se confundam (amor ou mero interesse?), Ao mesmo tempo, 0 esquematismo juridico reintroduz, em cada sistema, 0 esquematismo forte/ftaco numa forma controlada (que tem, porém, seus limites, como veremos). Nesse passo é possivel entender qual a funcdo desempenhada pelo conceito de soberania, simultaneamente como poder de império (forga) e como poder de legislar (lei como conjunto de normas validas), Do ponto de vista comunicacional, é preciso considerar validade ¢ impera- tividade como conceitos diferentes, ndo redutiveis um 20 outro, e 0 conceito de poder como cédigo regulado por esquematismos binérios (forte/fraco, Icito/ilfcito) como um sistema que admite no uma, mas varias hierarquias, © que elimina a hipétese de uma (tinica) fonte origindria, una, indivistvel. A posigao comunicacional (pragmatica) é de que uma norma pode ser valida e, no obstante isso, nao ter império, isto 6, forsa de obrigatoriedade, e vice-versa, ter império (forga) e néo ser valida. Assim, uma norma tem imperatividade a medida que se lhe garante a possibilidade de impor um comportamento in- dependentemente do coneurso ou da colaboragio do destinatatio, portanto, a possibilidade de produzir efeitos imediatos, inclusive sem que a verificacao de sua validade o impeca. Ademais, a posigéio comunicacional/pragmética é de que o sistema do ordenamento, néo se reduzindo a uma (\inica) unidade hierérquica, néo tem estrutura de pirdmide, mas estrutura circular de competéncias referidas mu- tuamente, dotada de coesao. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal recebe do poder constituinte originério sua competéncia para determinar em tiltima instincia 0 sentido normativo das normas constitucionais. Desse modo, seus acérdiios sao validos, com base em uma norma constitucional de competéncia, configurando uma subordinacéo do STF ao poder constituinte origindtio. No entanto, como o STF pode determinar o sentido de validade da prépria norma que lhe dé aquela competéncia, de certo modo, a validade da norma consti- oderedireto 65 tucional de competéncia do STF também depende de seus acérdaos (norma), configurando uma subordinacéo do poder constituinte originario ao STE ‘A questio da distingdo entre validade e imperatividade das normas ¢ a questo da coestio do sistema, cuja estrutura ¢ circular, esto relacionadas (cf. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdugdio ao estudo do direito, S40 Paulo, 2007, item 4.3.1.4). As relacées de validade, pragmaticamente, implicam a formagao de séries normativas de subordinagao, portanto hierarquias normativas, em ‘que o cometimento de uma norma é imunizado pelo relato de outra, e assim sucessivamente, Essa série culmina em uma primeira norma, nao sendo, pois, infinita. Néo é infinita porque 0 laco de subordinagéo nao ¢ causal, mas de imputagéo. Causalidade implica relagGes lineares que se prolongam indefi- nidamente nos dois Jados da série: toda causa produz um efeito que é causa de outro efeito, e assim por diante; e todo efeito provém de uma causa que, regressivamente, é efeito de uma causa, que é efeito de outra causa ete. Jé a imputagio é uma relago terminal: por exemplo, quando se imputa a alguém a responsabilidade por um crime, pratica-se um corte na série causal, pois a responsabilizacéo significa que deixamos de considerar as causas que conduzem alguém ao crime, tomando-as como condigao inicial da série, interrompendo-se fa regressividade. Se a regressio continuasse, a responsabilidade ndo estaria mais no ato de alguém, mas em suas condigées (por exemplo, na coagéo que alguém exercesse sobre outrem). Se essa série fosse ao infinito, jamais haveria responsabilizagao. Contudo, a série deve ter um ponto final, sob pena de a subordinacao perder sentido (uma competéncia levada ao infinito jamais se caracterizaria como competéncia, pois sua origem seria indefinidamente prolongada, ndo sendo possivel determiné-la: ao infinito ninguém seria competente como ninguém seria responsdvel). Do mesmo modo, no outro lado da série, também nao se pode ir 20 infinito, pois a responsabilidade seria transferida para outro e deste para outro, e ninguém seria, afinal, responsabilizado: igualmente, a competén- cia tem de ter um ponto terminal sob pena de nunca viabilizar-se a execucdo (final) de uma decisdo, © problema que resta é explicar quando e como inter- rompemos a série, tanto regressivamente (questo da norma-origem), quanto progressivamente (questo da deciséo final). ‘Tomemos como exemplo o famoso juilgamento do Tribunal de Nuremberg, apés a Segunda Guerra Mundial. Um dos dilemas enfrentados pelos jufzes es- tava no fato de que no havianormas superiores de Direito Internacional Penal que, & €p0ca, tipificassem 0 genocfdio como crime, sendo, no entanto, aceito 0 ete 66 Estudos de osofe do dicta + Fra unior prinefpio mullum crimen nulla poena sine lege. Como entéo responsabilizar 0s cri minosos nazistas? O Tribunal definiu o genocfdio como crime contra a humani- dade e, para escapar ao prinefpio nullum crimen, invoca-se a existéncia de certas exigéncias fundamentais de vida na sociedade internacional que implicariam a responsabilidade penal individual dos governantes e dos que executam suas determinag6es (cf. Celso Lafer, A reconstrusio dos direitos humanos, Sao Paulo, 1988, p. 169). A norma que previu os crimes contra a humanidade constou do art. 6, ¢, do Estatuto do Tribunal e acabou por se converter no momento inicial ‘que conduziu a afirmagaio positiva de um Direito Internacional Penal. Principio de uma nova série, ela interrompeu uma regressdo (que levaria & irresponsa- pilidade e a incompeténcia), devendo ser considerada norma-origem da série, Por ser norma-origem, nao hé como consideré-la valida, posto que validade exige relagio de imunizacio, o que nos conduziria a postular outra norma que Ihe fosse superior, o que ndo é 0 caso, No entanto, se néo é norma valida, € ainda assim norma? Certamente, posto que nela a relagio autoridade/sujeito (cometimento normativo) esté imune contra a indiferenca (ou se obedece ou no se obedece, exclufda a possibilidade de ignoré-la). Se, porém, nfo é por subordinagio a outra norma, como se explica esta imunizagao? Na verdade, © que ocorre no é propriamente imunizacdo, mas situagéo de fato (forga), conjunto de circunstncias favordveis, acompanhada de institueionalizacao (goza do consenso presumido de terceiros) por meio de regras que nao sdo notmas (do ordeniamento), embora fagam parte do sistema (potencialidade do poder). Essa situagéo de fato (forga), institucionalizada por regras, configura 0 que chamamos de imperatividade. No exemplo em exame, a regra invocada ade exigéncias fundamentais de vida na sociedade internacional, que permite © afastamento momentéineo de outra dessas regras, o principio mullum crimen (que retorna plenamente para as demais normas da série). Essas regras, pois, conferem & primeira norma da série (norma-origem) imperatividade, isto é, possibilidade de impor um comportamento independentemente do concurso ou colaboragio dos sujeitos e da verificagéo de qualquer forma de validade (forca). Note-se, porém, que nem toda situa de fato favordvel (forca) explica ‘uma norma-origem, mas apenas aquela situacdo (de forga) institucionalizada pelas regras, ou seja, nao sfo meras situagdes de fato (situacdes de forga), que manifestam normas-origem, mas sua institucionalizagiio por meio de regras. Assim, notmas-origem séo normas efetivas (ocorrem numa situagio de fato favordvel), dotadas de império (forga) ¢ primeiras de uma série. Como nao ‘guardam nenhuma relagéo com qualquer norma antecedente, néo sto vdlidas, apenas imperativas, isto é, tém forca impositiva. E as regras responsdveis por Poder edirsito 67 sua imperatividade so regras estruturais do eddigo poder, que podem ser denominades regras de calibragao. Dai podermos dizer que a imperatividade (esquematismo forte/fraco) expressa uma relagdo de calibragdo, ou seja, uma relagdo no com outra norma, mas com uma regra de ajustamento. A expressao regra de calibragdo provém da Cibernética (ef. Felix von Cube, Was ist Kitbernetik, Bremen, 1967, p. 23). Trata-se de regras de regulagem ou ajustamento de um sistema. Tomemos, por exemplo, uma méquina, como a geladeira, Para controle do grau de temperatura interna, seu maquinismo de producéo de frio ¢ regulado por um termostato: sem ele, a geladeira iria esfriando o ambiente (sua finalidade) ilimitadamente, o que a levaria a uma disfungio. Para evitar isso, o termostato permite manter uma temperatura, de modo que, se esta cai abaixo de um limite ou sobe acima dele, o motor volta 2 produzit frio ou cessa de fazé-lo, respectivamente. Para produzir esse efeito, estabelecemos um valor (por exemplo, 20 graus) chamado valor de dever-ser, que 0 termostato “compara” com o valor real ou valor de ser (temperatura abaixo ou acima de 20 graus). Nesse momento, se for abaixo, a produgdo de frio éretomada; se acima, é desligada. Esses valores, que compdem o termostato, no sto propriamente elementos do motor (nfio operam o esfriamento), mas 0 tegulam, isto é, determinam como os elementos funcionam, isto &, como eles guardam entre si relagées de funcionamento, Eles fazem parte da estrutura de funcionamento da geladeira, Em suma, os valores de dever-ser (licito/il{cito) e de ser (forte/fraco) correspondem a tegras de calibragio ou de regulagem (re- tas estruturais) do cédigo poder (combinatoria de esquematismos bindrios). Pois bem, nossa hipdtese é de que os ordenamentos ou sistemas normativos juridicos so constituidos primariamente por normas (repertério do sistema) que guardam entre si relagées de validade reguladas por regras de calibrago (estrutura do sistema). Como sistema, eles atuam num meio ambiente, a vida social, que lhes imp6e demandas (pede decisao de conflitos). Para essa atuacto ou funcionamento, as normas tém de estar imunizadas contra a indiferenca, 0 ‘que ocorre pela constituig&o de séries hierérquicas de validade, que culminam €m uma norma-origem. Quando, porém, uma série ndo dé conta das deman- as, o sistema exige uma mudanga em seu padrdo de funcionamento, 0 que Ocorte pela criacéo de nova norma-origem e, em conseqiiéncia, de nova série hierdrquica. © que regula essa criacdo e, portanto, a mudanca de padrio, s40 suas regras de calibragao. Gragas a elas, o sistema muda de padrao, mas nao se desintegra: continua funcionando. Essa mudanga de padrao é dinémica: 0 sistema vai de um padrdo a outro, volta ao padrao anterior, adquire um novo, 6B Estudos de flosofia do dirito + Faz Hnior num processo de cimbios estraturais, cuja velocidade depende da flexibili- dade de suas regras de calibrago. Nesse sentido, alguns sistemas so mais rigidos, outros o sé0 menos. No exemplo do Tribunal de Nuremberg, o valor de dever-ser se estabelecia para evitar desvio de poder: nao deve ocorrer a represélia descontrolada de vencedores contra vencidos, ¢ 0 valor de ser se percebia na constatagéo de uma possivel impunidade em face das normas existentes: sem julgamento, os criminosos nazistas ficariam impunes. Assim, 0 padrdo de funcionamento do ordenamento penal internacional ~ padréo de legalidade, regulado pelo principio nullum crimen — foi mudado para um pa- drdo de legitimidade, regulado pelo principio de exigéncias fundamentais de vida na sociedade internacional. Ambos os principios so exemplos de regras de calibracéo de um eédigo do poder constitufdo como um ordenamento ou sistema normativo. O cédigo de poder (meio de comunicacéo) conhece intimeras regras de cali- bracéo, que no chegam a formar um conjunto I6gico. Mesmo porque algumas constituem valores de dever-ser (imputagao: licito/ilicito), outras, valores de ser (catsalidade: forte/fraco). Assim, normas se encadeiam na forma de relacbes (horizontais) entre um antecedente e um conseqiiente, quando postas umas a0 lado das outras, mas mostram uma relagdo (vertical) de subordinac&o, quando hierarquizades. O principio nullum crimen significa: nenhum crime sem norma prévia (antecedente/conseqiiente); o principio das exigéncias fundamentais da exist8ncia humana: algum crime sem norma prévia (supremacia/hierarquia). As regras de calibracdo nfo sé estatuem relagbes dindmicas de imperatividade, mas também surgem e desaparecem na Histéria. ‘Uma classificagio das regras de calibragio ¢ tarefa dificil de ser realizada. Nao s6 pela diversidade de suas origens, mas também de suas funcées. Entre estas, podemos destacar a manutencéo global da relagdo de poder como rela- do autoridade-sujeito num processo dindmico, em que novos conflitos pedem decisées e decisées engendram novos conflitos. Assim, por exemplo, quando surge uma perturbagao externa, como um golpe militar, ela é estabilizada por sum dispositive juridico, cujo efeito calibrador ¢ significativo. Trata-se, justa- mente, da soberania, como capacidade de superpor-se & realidade, forgé-la, simplificé-la, fazendo com que o Estado, enquanto unidade de dominio, mante- nha-se numa situacio de relagées politicas e sociais efémeras e cambiantes (cf. N. Bobbio, O futuro da democracia, Séo Paulo, 1986, p. 132). Com base nisso, distingue-se entre poder constituinte origindrio e derivado, entendendo-se 0 primeiro como poder auténomo, inicial e incondicionado, reconhecido como Feder ireto 69 fonte-principio do direito que, uma vez exaurido seu efeito fundante, deixa a autoridade constitucionalmente institufda (poder derivado) a instauragéo de subseqiientes relagées de subordinagdo. Nesse caso (golpe militar como perturbagdo externa), o sistema é estabilizado por regras de calibrag#o que permitem um cémbio momenténeo de padréo de funcionamento em troca de sta manutengfo: de um padréio de legalidade passa-se a um padrao de efetivi- dade, voltando-se, em seguida, ao padrao de legalidade. O.que permite (sobe- ania como conceito dindmico) que, por exemplo, no caso do golpe militar, as forcas armadas assumam 0 poder supremo de legislar (forte/fraco) para, ato continuo, subordinar-se a ele (I{cito/ilicito). Seria preciso, nesse passo, uma consideragio sobre o conceito de revolucio, posto que, sabidamente, a ele costuma ser relacionado o conceito de soberania. Se entendermos por revolugdo uma ruptura do sistema normativo, ou seja, uma perturbagio capaz de destrut-lo, do ponto de vista comunicacional/prag- matico, revolugdo significa uma sobrecarga de informagées. Isto é, a entrada no cédigo do poder esquematizado binariamente pelo direito de normas que no conseguem ser calibradas como normas-origem, destruindo-se 0 proprio dispositivo regulador (imperatividade como sistema de calibragao). Ou seja, ‘com uma revolucéo, 0 cédigo de comunicagao poder néo troca, propriamente, de padrdo de funcionamento, mas deixa de funcionar, possibilitando o apare~ cimento de outro em sett lugar. Desse Angulo, revolucées no se confundem com meros golpes de estado ou atos de forga que substituem a constituigao vigente por outra, por eles estabelecida ou estabelecida com base em principios deles emanados. Para uma visdo kelseniana, temos uma revolugio, do Angulo juridico, toda vez que muda a norma fundamental positiva do sistema (cf. Vilanova, Teoria juridica da revolugio, Rio de Janeiro, 1976). Para uma concepgéo comunica- cional/pragmética, a revolugo sé ocorre se, com a mudanga da constituicéo, mudar também a calibracdo do sistema. Nesse sentido, sto revolugdes a Revo- uso Francesa de 1789, a Revolucio Comunista na Ruissia de 1917, a Queda do Muro de Berlim de 1990. Diz Miguel Reale (Teoria geral do direito e do estado, Sao Paulo, 1972, p. 187): “As doutrinas modernas sobre a revolugdo estdo mais ou menos acordes emreconhecer que ndo hd revolugéo propriamente dita sem alteragdo no sis- tema de Direito Ptiblico, sem instauragdo de uma ordem nova com mudanga correspondente na atitude espiritual do povo” (grifo do autor). 70. estudcsdeflosofia do rita + Feraz Junior Poder/cédigo, portanto, constitui sistemas din&micos, com varios padrées de funcionamento, conforme a variedade de suas regras estruturais. Nao se trata, assim, de totalidades homogéneas, embora mediante ele se constituam todos coesos. O cardter imperativo ou vinculante de suas relagbes relacionadas de agées depende da coesio de sua estrutura (forte/fraco, licito/ilfeito), que pode ser rigida, flexivel etc. A hierarquia do poder soberano, portanto, é, nele, tuma das estruturas poss{veis de um sistema dinamico, que pode, de momento para momento, assumir outros padrées de funcionamento, dependentes da prevaléncia (din&mica) de um esquematismo sobre outro (padréo-efetividade: prevaléncia do esquematismo forte/fraco, padréo-legalidade: esquematismo Meito/ilicito ete.). Isso tudo nos obrigaré a exeminar agora a nog&o de poder organizado, para af entender @ funcao das préticas legitimadoras vistas como procedimentos. 5 Poder e generalizagao de influéncia Vimos que a introdugdo do conceito de forga na estrutura do poder nos conduz.a idéia de violéncia simbélica, na qual se combinam os esquematismos juridico/antijuridico ¢ forte/fraco. Assim, dizer que os sujeitos reconhecem ‘uma instncia de poder significa que faz. parte da definigo completa das rela- (Ges de forca, nas quais os sujeitos estéo colocados, a interdi¢éo posta a esses sujeitos de perceberem o fundamento destas relagées. Em outras palavras, na estrutura do poder esto: (a) combinagio de juridico/antijuridico e forte/fraco; (b) préticas dissimuladoras. Nesse sentido, a primeira caracteristica de uma relago de poder & que ele se dispensa de produzir as condigées de sua instauragio e de sua perpetuacio. Quando essas condigées acorrem o poder é legitimo, isto é, est apto a trans- mitir desempenhos seletivos. Vamos chamar essa transmissio de seletividades de influéncia. Para ocorrer influéncia, é condigdo a existéncia de uma orientacio de sentido comum na base das diferentes possibilidades de selecao. Ou seja, & preciso a sgeneralizagdo de sentido, isto é, independéncia de quando, o que e por quem algo é vivenciado. Quando ocorre essa independéncia, a orientagdo comum é possivel. No caso do poder, como vimos, influéncia como transmisséo refere-se, po- rém, néo & vivéncia, mas a ages. Nao se trata de transmitir selegées para que Podere dicta 71 outro sinta, experiencie, perceba, mas aja, Ora, agdo implica um tipo especial de sentido (algo que representa unitariamente uma série de diferencas) que chamaremos de motivo. Também motivos podem (e devem, para haver poder) ser generalizados quanto ao tempo (quando), a0 objeto (0 que) e aos sujeitos sociais (quem). Uma generalizacao temporal de motivos é obtida quando as diferencas de tempo so neutralizadas (por exemplo: porque sempre foi assim, ha de ser as- sim). Uma generalizaco real de motivos é obtida quando as diferengas quanto as coisas sé neutralizadas (por exemplo: porque num caso é assim, também ‘em outro o seré), Uma generalizagao social de motivos é obtida quando as. diferengas quanto aos sujeitos é neutralizada (por exemplo: porque os outros agem assim, também agiremos assim). (Ora, quando temos influéneia com base na generalizagdo temporal de motivos, falaremos em autoridade; quando temos influéncia com base na generalizagéo real de motivos, falaremos em reputagdio; quando temos influéncia com base na generalizagdo social de motivos, falaremos em lideranga (cf. Robert Dahl: The concept of power, 1957, Behavioral science 2 ¢ Kaplan: Power in perspective in Power and conflict in organizations ~ R. Kahn, 1964). Nos termos anteriores, poder legitimo (combinatéria de esquematismos + dissimulagdo) € 0 que goza de autoridade, reputacdo e lideranca numa forma compattvel. Dizemos que o detentor do poder influencia porque “tem autoridade”. Isso ‘ocorre quando seus comandos expressam expectativas normativas (imputacao contrafética da responsabilidade pela desilusdo) consolidadas por tradigéo (ireito costumeiro) ou por positivagao (vélides por deciséo) (vdlidas, efetivas e imperativas), Note-se que, em termos de influir com base em generalizacio temporal de motivos, é fundamental a presenga do esquematismo juridico/ antijuridico, pois a relagdo de poder, baseando-se em tradigdo ou positivacao, 6 uma relagio normativa de autoridade, porque os sujeitos ou confirmam ow negam o detentor, mas néo podem desconfirmé-lo enquanto emissor de normas. Embora, porém, se baseie em tradigo ou positivagdo, nem uma nem, outra precisam ser invocadas para justificar a relagao de poder, pois o detentor, a0 contrério dos sujeitos, pode desconfirmé-los quando estes tentam ignoré- Jo como detentor. Ou seja, a relagio de poder é assimétrica, pois sé um lado pode desconfirmar, o outro sé aceita ou nega, E essa possibilidade unilateral no necessita de justificagéo (vale), pois uma autoridade que precise justifi- car-se perdeu a autoridade: por isso, 0 detentor se baseia, mas nao precisa invocar nem tradigéo nem positivagao. Entende-se assim que uma relacio de 72. Estudos de Sosfia do dreto + Ferraz Junior autoridade sempre escamoteia, dissimula as relagées de forca que esto em sua base, agregando sua prépria forga Aquelas relagées. Ela se dé por meio de normas que reguilam o uso da forca, ndo pelo uso da forga. Exemplo: pétrio- poder —> na origem, relagées de forga que passam a valer por tradigao que no precisa ser invocada na emiss4o de comandos. Na influéncia por motivos temporalmente neutralizados poder dotado de autoridade significa, pois, es- tabilizacéo de expectativas contraféticas, isto é, embora a passagem do tempo modifique as expectatives, elas séio mantidas, ainda que os fatos as desiludam, Influéncia significa, nesse caso, que os sujeitos, ainda que se comportem de modo contrério & expectativa, a respeitam no sentido de que assumem a res- ponsabilidade pela desilusio, Nesse caso, a jurisfagdo do poder & condicio bésiea para a diferenciagio de seu eédigo, A generalizagio simbélica obtida por normas permite processos de influéncia autoritéria com relativa (alta) independéncia das situagSes concretas no correr do tempo. Ou seja, por meio do esquematismo juridico, influéncia é possivel nfio s6 no passado € no pre- sente em dirego ao futuro, mas também do futuro em direcdo ao presente ¢ ao passado, Em ambas as diregdes, as expectativas do detentor do poder so garantidas como Ifcitas, em oposicéo as expectativas contrérias, qualificadas como ilicitas. As seletividades transmitidas, em caso de influéncia temporal, note-se, referem-se, porém, ndo ao qué ou ao quem, mas ao quando. O que se estabiliza é a prontidao para valer, isto &, nao aprender com desilusées (da parte do detentor) e ndo ensinar com desilusées (da parte do sujeito), isto é, ainda que as agées esperadas néio ocorram. Reputagdo (generalizactio real): tem o detentor poder que influencia, quando no importam quais sejam os contetidos das mensagens comunicadas. Reputacdo significa, pois, neutralizagio dos contetidos e se baseia na possibilidade de se oferecerem raz6es para a correcdo (cardter de ser certo, correto) das ages influenciadas. Reputagéo, em termos de poder, equivale a um sucedéneo da verdade. O detentor do poder goza de reputacio quando é capaz de transmitir contetidos de aco para um sujeito que, ento, as assume de modo relativamente acritico, A base da reputacio esta na possibilidade de um questionamento de um duvidar que, porém, ndo é praticado. Reputagio corresponde, assim, a. um momento (cripto) cognitivo do poder e se baseia em niicleos significati- ‘vos, como pessoas, valores, papéis, ideologias. Embora o poder nao seja uma relagdo cognitiva, a reputagdo motiva o poder com meios cognitivos. Aqui, € de decisiva importéncia 0 desenvolvimento de férmulas cognitivas juridicas (dogmética juridica) que associam esquematismos normativos a certas con- Poteresinito 73 dutas, neutralizando a possibilidade indefinida de seu questionamento. Essa neutralizacdo exige certa indeterminabilidade, pois uma decisio em que os contetidos fossem todos perfeita e claramente determinados provocaria a su- pressio da reputacao (e em seu lugar terfamos verdade, isto é, outro meio de comunicacao). Aqui, entram qualificagdes do detentor do poder como capaz de decisdes justas, liberais, serenas, voltadas para o bem comum etc. Ou seja, influéncia real significa generalizagdo de motivos reais (contetido) por meio de analogia, base de toda a légica juridica, Também aqui as relagées de forca so dissimuladas, pois a qualificacéo de um comportamento como licito/ilfcito ocorre, aparentemente, acima delas. Assim, por exemplo, as decisies de uma assembléia de acionistas ¢ soberana ainda que, de fato, um grupo minoritério adomine. Isto é, ele a domina no porque tem forga, mas porque outros con- tetidos foram neutralizados, isto é, néo tém como ser invocados por serem, por exemplo, injustos ou no eqiitativos. Lideranga significa, por fim, influéneia baseada no fortalecimento da pron- tidao para observancia, por meio da experiéncia de que também outros ob- servam, isto é, mediante imitagao. Enquanto autoridade neutraliza o quando, reputaco 0 qué, lideranca neutraliza o quem. Isto é, lideranga ¢ influéncia, no importando as diferencas quanto ao sujeito. Gragas a essa generalizagio, © detentor influencia de modo independente das condigées concretas de obe- diéncia para cada um. Lideranga significa, pois, manutengdo de espirito de grupo (ainda que ilusério), o que permite o isclamento do desviante numa condigéo marginal, Condigao bdsica da lideranca nao é propriamente o consenso, mas a genera- lizagio do dissenso, isto 6, a criago de expectativas supostas sobre expectativas de terceiros. Terceiro é alguém que, numa interagio social, se ocupa de outras, coisas, embora possa ser conquistado para ocupar-se das mesmas coisas. Ser conquistado porque a atencao do terceiro nem sempre é dada — escassez de atenco — donde a relagéo entre lideranga e propaganda, publicidade, mass media etc. Ora, ligado & questéo da escassez. de atengéo, consenso efetivo nunca é um fator fundante de lideranga, pois 0 consenso de fato, inteiramen- te obtido, esgota rapidamente seu potencial para garantir influéncia. Daf a idéia de que, socialmente falando, o que ocorre na lideranca é economia ou poupanca de consenso, O lider é alguém capaz de trabalhar com o dissenso, tornando relevante o sempre escasso consenso. Isso ocorre por antecipacao do consenso presumido quanto & expectativa de terceiros. Essa presuncao significa institucionalizacdo, ou seja, ndo a existéncia fética de concordéncia, mas uma

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