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FIGURAGOES DA PERSONAGEM REALISTA: OS BIGODES E OS RASGOS DE TOMAS DE ALENCAR Carlos Reis CLP — Universidade de Coimbra 1. Sempre constituiu para mim um desafio quase perverso aquilo que se passa (e também 0 que ndo se passa) num episédio bem localizado d’ Os Maias. Tal episédio niio nos é dado a ver, no sentido figurado em que 0 narrador do romance 0 ndo relata em primeira instncia; em vez disso, é uma personagem que conta a outra o que se passou. Recordo: Pedro da Maia sai para uma cagada, organizada para obsequiar um italiano exilado, que exibe a aura romantica de ter sido condenado A morte por conspirar contra os Bourbons. Pois bem, as coisas quase acabam mal (melhor: vo mesmo acabar mal, mas ainda é cedo para o saber). Cito: Nessa tarde, Maria jantava s6 no seu quarto, quando sentiu carruagens parando porta, um grande rumor encher a escada; quase imediatamente Pedro aparecia-Ihe trémulo e enfiado: — Uma grande desgraca, Maria! — Jesus! — Feri o rapaz, feri o napolitano!... — Como? Um desastre estipidol... Ao saltar um barranco, a espingarda disparara-se-Ihe, ¢ a carga, 24s, vai cravar-se no napolitano! Nao era possivel fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo @ Lisboa. Ele naturalmente no consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o médico, duas enfermeiras para o velar, e ele mesmo lé ia passar a noite... —Eek —Um herdit... Sorti, diz. que nao é nada, mas eu vejo-o pélido como um morto. Um rapaz adorével! Isto s6 a mim, Senhor! E entio o Alencar, que ia mesmo ao pé dele... 92 | CARLOS REIS. Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz intimo, de confianga! Até a gente se ria. Mas niio, 24s, logo 0 outro, o de ceriménia.* Sabe-se 0 que acontece a seguir: o italiano é levado para Arroios, passa a frequentar a familia e um dia, como era de esperar, foge com Maria Monforte. Depois, é 0 que se sabi tarde, a tragédia do incesto. As minhas questdes so estas: como se desenrolaria a histéria d’Os Maias se 0 tiro tivesse acertado, como Pedro deseja, no Alencar, amigo disponivel que para isso bem serviria? Iria Alencar para Arroios? Haveria adultério e fuga de Maria Monforte? Com Toms de Alencar? Haveria incesto? Em resumo: existiriam Os separagio dos irmaos, 0 suicidio de Pedro e, muito mais, Maias? Talvez, mas certamente nao como os conhecemos. Nao pretendo reescrever 0 romance, como é evidente. Mas parto desta hipé- tese (desta ndo histéria) para o que se segue. E centro-me nas figuracées da per- sonagem, tendo em atengio o que elas implicam num determinado quadro perio- dolégico, que é 0 do realismo. E esse quadro periodolégico que de certa forma determina, constrange e rege a figuracdo da personagem, tragando-lhe limites e demarcando comportamentos que fazem dela uma entidade pouco menos do que previsivel. Noutros termos: mesmo que levasse um tiro, Alencar nio se atreveria por certo a levantar olhos gulosos para a bela Monforte. fi certo que o poeta da Flor de Martirio nutre pela mulher do amigo uma paixio, mas, diferentemente de outras que entdo afloram, é essa uma paixao inocente, expressa através de uma retérica em principio inofensiva: «E nada havia mais extraordindrio que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que ele pronunciava este nome — MARIA!»". A virilidade do poeta de Alenquer nao est aqui em causa. O que digo é que, no cenario ficcional em que existe como personagem, Alencar nao pode ir além de arroubos liricos que os seus bigodes e os seus rasgos pré-determinam. De certa forma, os bigodes, os rasgos e o olho turvo sao as marcas emblematicas de uma personagem que se configura como Alencar ¢ no de outro modo, porque uma certa légica de figuragao ficcional isso mesmo impée. Outra questdo sera sabermos se aquela légica e aquele retrato em esbogo consentem extensdes enderecadas a entidades outras, que ndo comparecem formal e expressamente na ficg’o. E ainda outra coisa: de que modo essas extensdcs se processam, em clave realista ¢ num século que afirmamos ser o do romance. Dizendo-o interrogativamente: até onde 1 Obras de Eca de Queirés. Os Maias. Porto: Lelio & Irmao Editores, 1958, Il, p. 31. Todas as citagdes do romance referir-se-do a esta edigdo. 2 Os Maias, p. 29. FIGURAGOES DA PERSONAGEM REALISTA: OS BIGODES E OS RASGOS DE TOMAS DE ALENCAR | 93, podem chegar os rasgos ¢ os bigodes de Tomas de Alencar? Mais: quem é, por fim, Tomas de Alencar? 2, Parto para o que se segue de uma reflexo acerca daquilo a que chamo a pre- cariedade inelutével da imagem, num sentido amplo que cobre também a imagem das personagens configuradas nas ficgdes narrativas. Diz Jean Burgos, num livro conhecido sobre a poética do imaginario: «Para ser a melhor figurago possivel, a imagem nunca é senao aproximagio, na medida em que a realidade que ela chama permanece para sempre ausente, secreta e esquiva; ¢ a ponderagio da sua fungao simbélica ensina-nos, deste modo, que a imagem é essencialmente inadequada remete, por esse facto, para uma multiplicidade de qualidades no figuraveis»’. E avanco desde jé para o seguinte: provavelmente sio essas gualidades nao figu- réveis que explicam perguntas ¢ equivocos muitas vezes patentes na leitura que fazemos das personagens ficcionais. Numa carta de 1870 a Mme. Hortense Cornu, Flaubert aludiu a isso mesmo: Quando compus Madame Bovary, perguntaram-me varias vezes: ‘Foi Madame xxx que quis retratar?” E recebi varias cartas de auténticos estranhos, entre outras ade um cavalheiro de Reims, que me felicitava por té-lo vingado/ (de uma mulher infiel). Todos os farmacéuticos do baixo-Sena reconheceram-se em Homais ¢ quiseram vir esbofetear-me.* Equivocos e interrogagdes como estas so especialmente draméticos (e, de outro ponto de vista, impeztinentes) quando a precariedade da imagem envolve a linguagem verbal em que so plasmadas as ficcdes narrativas verbais. E ao con- trério do que & primeira vista seria de pensar, so as narrativas ditas realistas que suscitam com mais frequéncia aqueles mal-entendidos e aquelas perguntas. Volta- rei a isto, mas antes devo notar 0 seguinte: se associamos, como parece aceitavel, a quest’io da imagem a da representago, entio podemos falar verdadeiramente em paradoxos como aquele a que Félix Martinez Bonati se referiu: «A representaco ou imagem funciona adequada e eficientemente s6 quando é confundida com 0 seu objeto.» E depois: «A representagio é uma entidade cuja eficiente atualidade, paradoxalmente, coincide.com o seu colapso. Quando uma representacdo funcio- nar como representagdo, ela no é entendida como representagio, mas como 0 3 J. Burgos, Pour une poétique de I'imaginaire. Paris: Seull, 1982, p. 81. 4 Apud M. Allott (ed.), Los novelistas y la novela. Barcelona: Seix Barral, 1966, pp. 349-350. 94 | caRLos REIS proprio objeto representado»®. Nao estamos aqui longe, como parece evidente, de uma perspetiva fenomenolégica de matriz ingardiana, segundo a qual dizemos: 4O representante ‘imita’ o representado, oculta-se a si mesmo como representante para se mostrar ao mesmo tempo como o pretensamente representado e assim tra- zer, por assim dizer, da distancia o outro que de facto apenas representa e deixé-lo aele mesmo falar na sua propria figura»*. Além de outras j4 formuladas e que a estas conduzem, as questdes que me interessam so, portanto, as seguintes: 0 que nos é dado a conhecer quando lemos a representacdo, tanto quanto possivel realista, de uma personagem ou de um cend~ rio de ficco? Para que auséncia remete essa representagio? Temos legitimidade, numa tal busca do ausente, para reconhecer entidades empiricamente existentes, sem derrogagio da légica da ficgao? De forma mais clara: em La Regenta, Vetusta é mesmo Oviedo? Tomas de Alencar é mesmo Bulhao Pato? Perguntas diferen- tes, estas tiltimas, de outras, porventura mais frequentes e menos melindrosas, tais como: D. Joao V do Memorial do Convento é 0 mesmo D. Joao V da Historia de Portugal? O Rio de Janeiro de Memérias Péstumas de Brds Cubas € 0 mesmo Rio de Janeiro de um cidadao chamado Machado de Assis? Aquelas primeiras interrogagées conduzir-me-do em tempo préprio a um outro paradoxo, o da eransparéncia dos discursos a que chamamos realistas. Antes, porém, sublinho uma proposta de novo sugerida por Burgos: trata-se de ler a fic- ‘do realista com base em procedimentos de alusio que fazem da leitura um ponto de partida e nao de chegada’; ou, se se preferir, um ponto de passagem. Voltando 20 meu titulo, indagarei, com a ajuda de Ega doutrinério, onde nos levam os bigo- des de Tomas de Alencar, se quisermos saber para quem eles apontam. Chegado a este ponto, é inevitavel trazer aqui uma metéfora to sugestiva como enganadora: fronteiras da fico, expressio que é, por assim dizer, a especializagio de uma outra mais abrangente e igualmente zerritorial, a das fronteiras da literatura, esta tiltima em direta correlagio com a nogio, também metaférica, de campo lite~ rério’. O que aquela metéfora insinua, porventura com excessiva desenvoltura, & 5 F. Martinez Bonati, «Representation and fiction», Dispositio, V, 13-14, 1980, p. 20, 6 R. Ingarden, A Obra de Arte Literdria. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1973, p. 267. 7 Escreve Jean Burgos: «Se, entdo, a imagem parece sempre fazer alusdo a outra coisa que néo a linguagem que ela sustenta, virando as costas a todos os referentes de que procede, é efetivamente porque ela é essencialmente lugar de eclosdo, ponto de partida» (Pour une poétique de limaginaire, ed. cit. p. 79). 8 Como sugere Laurence Lerner, importa ter em conta que «a literatura invade e imbrica-se com 08 territérios contiguos»; sendo certo que «as fronteiras sao efectivas», também é certo que «essas sobreposigdes nao sao nada de assustador, mas antes enriquecedoras» (L. Lerner, The frontiers of literature. London: Basil Blackwell, 1988, p. 3). Note-se que a imagem do campo Iiterério assume FIGURAGOES DA PERSONAGEM REALISTA: OS SIGODES E OS RASGOS DE TOMAS DE ALENCAR | 95 que 0s universos ficcionais constituem espagos demarcados, onde néio se entra e de onde se nao sai sem visivel subversio ontoldgica. Este é, alias, um aspeto que os narradores realistas mais formais e mais sisudos muitas vezes cuidaram, eximindo- -se, por exemplo, de interpelagdes ao /eitor que ficava disciplinadamente do lado de ‘fora da ficgio, atento e venerador, mas no seu lugar. ‘A metéfora é excessiva, bem entendido. Gérard Genette, conjugando a argiicia do ensaista com o rigor do teorizador, recuperou uma figura de retérica relativa- mente obscura, a metalepse, para mostrar que as mudancas de nivel nas narrativas ficcionais so mais correntes do que se julga. Mais frequentes até do que poderiam pensar os tais sisudos narradores realistas (alguns nfo o foram tanto), narrado- res que certamente nao leram Jacques le fatalisee ¢ que no viram A Rosa Purpura do Cairo, esse extraordinario exercicio metaficcional que consente a Tom Baxter, «adventurer, explorer, of the Chicago Baxters», a transgressio da fronteira fisica que 0 separa da espetadora embevecida’. Quando Henry James um dia disse que «a casa da ficg4o tem um milhao de janelas», estava claramente a indiciar uma permeabilidade e um potencial de pas- sagens transficcionais que desmentem a rigidez formal das tais fronteiras. Nao é menos elucidativa, ainda que de uma outra ordem (a da contratualidade da leitura em fungao de molduras editoriais proprias), a parddica ambivaléncia d’O Mistério da Estrada de Sintra: 0 relato epistolar de incidentes anunciados como veridicos que 0 jovem Eca e 0 amigo Ramalho Ortigo publicaram no espago usualmente dliterdrio» do folhetim, no Didrio de Noticias, parece mudar de estatuto (para o leitor desprevenido muda mesmo), quando o préprio jornal, no fim da historia, desfaz a divertida mistificagdo. que mais tarde vem a ser confirmado quando as cartas so reunidas num volume como romance epistolar em regime ficcional. : ontologia e fenomenologia da fico, enfim harmonizadas!*. Que é como quem dit 4, Antes de chegar a um caso-personagem exemplar para a problematizagio da estética do realismo, lembrarei aspetos importantes da representagio da perso- nagem de fiegao ou, como prefiro dizer, da figuragao ficcional'. Coloco-me, assim, num estédio de partida, que é 0 da semantica formal, tal como ela se projeta no pertinéncia prépria em anélises de indole sociolégica como as subscritas por Pierre Bourdieu (cf. Les ragles de 'art. Genase et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992). 9 Cf. G. Genette, Métalepse. De la figure & la fiction. Paris: Seuil, 2004, passim. 40 Veja-se a este propésito o ensaio de Ofélia Paiva Monteiro, «Um jogo humoristico com a verosimi Ihanga romanesca: ‘O Mistério da Estrada de Sintra’», Coléquio/Letras, 97 € 98, 1987, pp. 5-18 638-51. 11 Cf. 0 meu texto «Narratologia(s) ¢ teoria da personagem, in C. Reis (coord.), Figuras da Fic¢ao. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2006, pp. 9-28, 96 | CARLOS REIS Ambito dos estudos narrativos. Desenvolve-se a partir daf uma teoria semantica da personagem que faz dela uma categoria nuclear na construg&o do que chamamos mundos possveis ficcionais; sendo o que so, os mundos possiveis ficcionais no devem ser entendidos, todavia, nos termos de uma sua plena autonomia em rela- 40 ao mundo real ao conhecimento empirico que dele temos. A radicalizagao da autonomia que eles reclamam — mesmo quando parecem apontar nesse sentido — traduzir-se-ia numa absurda concecao dos textos ficcionais como textos autoté- licos e desligados do mundo. © erro de um tal desligamento acentua-se quando falamos do realismo e quando nos seus romances observamos, como que em jeito de ponderagtio meta- ficcional, reagdes ¢ comportamentos diretamente decorrentes de modos culturais de existéncia das personagens como leitoras de romances e espectadoras de teatro. Emma Bovary e Luisa, sua descendente em linha direta, nao leem impunemente Walter Sco! negro e que Emma deseja®, tende a tornar-se real ¢ (Jiteralmente) palpavel, mas quele cavaleiro com uma pluma branea que galopa sobre um cavalo sem a pluma nem o cavalo, quando a personagem amadurece, num cendrio pro- vinciano pouco propicio a tais aderegos. E em La Regensa, 0 Don Juan Tenorio de Zorzilla nao é, para Ana Ozores, presenga inécua; percebe-o bem o astuto Magis- tral, atento aos sentidos (8 sensualidade) da confessada, quando se faz porta-voz nem mais nem menos do que da palavra de Deus pai: «Hija, pues para acordarte de mi no debes necesitar que a Zorrilla se le haya ocurrido pintar los amores de una monja yun libertino; ven a mi templo, y alli encontrardn los sentidos incentivo del alma para la oracién, para la meditacién y para esos actos de fe, esperanza y caridad que son todo mi culto en resumen...»®. © que estes comportamentos ¢ decorrentes desafios mostram é que a semantica das figuras ficcionais (¢ antes de mais, as que séo «lidas» por personagens que 0 realismo europeu consagrou) desenvolve-se ¢ aprofunda-se numa pragmética da ficgio que aos propésitos ideol6gicos do realismo muito convém. A personagem Don Juan nao chega a passar fisicamente para o lado da espectadora Ana Ozores; e Luisa ndo é levada por Armand (Aélas/) a passear no Bosque de Bolonha, cujos 42 Um passo do cap. Vi de Madame Bovary: «Avec Walter Scott, plus tard, elle s’éprit de choses histo- riques, réva bahuts, salle des gardes et ménestrels. Elle aurait voulu vivre dans quelque vieux manoit, ‘comme ces chatelaines au long corsage qui, sous le tréfle des ogives, passaient leurs jours, le coude sur la pierre et le menton dans la main, & regarder venir du fond de la campagne un cavalier & plume blanche qui galope sur un cheval noir.» (G. Flaubert, Madame Bovary. Oeuvres Complétes. Paris: Seuil, 41964, t. |, pp. 586-587). No respeitante a Epa e & questdo da leitura enquanto condicionamento do ima~ gindrio (e em particular do Imaginario feminino), deve ser mencionado o estudo de Maria do Rosério Cunha, A inscrigao do livro e da leitura na ficea0 de E¢a de Queirés. Coimbra: Almedina, 2004. 48 Leopoldo Alas, *Clarin", La Regenta, 17° ed. Madrid: Alianza Editorial, 1986, p. 376. FIGURAGOES DA PERSONAGEM REALISTA: OS BIGODES E OS RASGOS DE TOMAS DE ALENCAR | 97 fascinios a estreiteza lisboeta do Passeio Publico mais realgava. Mas o impulso metaléptico existe e é ele que, também por causa da desatengao de amigos e de maridos, contribui para tragar a sorte funesta daquelas mulheres — como diria 0 conde de Monte Redondo, do drama Honra e Paixdo. Nao é Ernestinho Ledesma, autor do drama, é 0 provinciano Artur Corvelo, nos «comegos duma carreira» de escritor, quem se vé compelido a alterar, no seu drama Amores de Poeta, o nome de uma personagem, a Duquesa de S. Remualdo, porque uma embaragosa semelhanga onoméstica ameacava a respeitabilidade da Senhora Condessa de S. Remualdo: Artur, atarantado, balbuciou: rene. — Duquesa, ou condessa. um titulo da casa, é um titulo antiquissimo. Sou relagio da familia, pessoas da primeira sociedade..."* O escritor neéfito esté, entio, avisado: hé componentes da personagem (o nome é um deles, mas hé outros talvez, mais traigoeiros) que induzem procedimentos de identificago potencialmente ofensivos. Do mesmo modo, as Emmas, as Luisas e as Anas Ozores de carne e osso que leram Madame Bovary, O Primo Basilio e La Regenta ficam a saber que a permeabilidade entre mundos ficcionais e vidas reais gera movimentos de vaivém que podem ter consequéncias (de novo) funestas. Esbogam-se assim dispositivos narrativos que articulam uma verdadeira ret rica da personagem, uma retdrica cuja componente perlocutéria ¢ obvi - Nao forgo a nota se disser que essa rezdrica da personagem contribui decisivamente para a con- cretizagio de figuras ficcionais com especial significado funcional no tempo do realismo: o tipo e o retrato, sendo este segundo um efeito da homologagio da literatura com a pintura™, De facto, as cumplicidades entre realismo pict6rico e realismo literdrio estilo bem evidenciadas na frequéncia com que, em discursos doutrinarios, 0 segundo adotou expressdes ¢ imagens provindas do primeiro: 0 retrato, o quadro, a caricatura, o trago, a pintura, etc. (voltarei a esta questo, a propésito de Tomas de Alencar e dos retratos a que ele deu lugar). ‘Ao mesmo tempo, convém lembrar que a retérica da personage, em tempo ¢ em contexto realistas, determina a configuracio de entidades com a nitidez e com a capacidade de diferenciag2o que as circunstincias requerem: a personagem 14 Eca de Queirés, A Capital! (Comegos duma carreira). Edigao de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 237. 15 Veja-se sobre esta matéria M. Guillou @ E. Thoizet, Galerie de portraits dans le récit. Paris: Ber- trand-Lacoste, 1998. 98 | CARLOS REIS é, entio, normalmente bem caracterizada, insere-se numa hierarquia estruturada, revela uma coeréncia e uma previsibilidade que a l6gica do romance vigente impée, deixando pouca margem para o inusitado. A nfo ser, é claro, que esse inusitado esteja desde logo implicito (e, portanto, previsto) no cédigo genético da figura em desenvolvimento. O que nao quer dizer que da personagem seja dito tudo: fazé-lo seria tornar a narrativa intermindvel, ao mesmo tempo que se neutralizaria aquela concretizagdo de que ha pouco falei e nao sem intengio. Disso mesmo apercebeu- -se Ega de Queirés, como que antecipando criticas que Machado de Assis haveria de fazer a0 livro a que, acerca desta questio, ele se referiu, O Primo Basilio; diz Ea na conhecida carta a Teofilo Braga, de margo de 1878: «Eu acho no Primo Basilio uma superabundéncia de detalhes, que obstruem ¢ abafam um pouco a acion; ¢ acrescenta: «O essencial é dar a nora justa: um trago justo e sbrio cria mais que a acumulagio de tons e de valores — como se diz.em pinturan' 5, Repito: no foi por acaso que usei 0 termo concretizagao. Usado na acegao fenomenoldgica que Ingarden estabeleceu e Wolfgang Iser aprofundou, 0 con- ceito de concretizagio desloca-me para um terreno que me interessa, agora que me vou acercando dos bigodes e dos rasgos de Tomas de Alencar. Esse terreno € 0 da leitura, enquanto processo de preenchimento de pontos de indeterminagao que levam a constituigao de uma imagem em que 0 leitor incute, por sua conta e risco mas nao de forma aleatéria, algumas das qualidades nao figuraveis de que antes falei. Algo semelhando a um casting (encontrar um ator de carne e oso para uma personagem inevitavelmente lacunar) ¢ algo que, ao mesmo tempo, hé de ajudar a responder a pergunta que a alguns embaragou: é Tomés de Alencar um erro ou um acerto de casting? Chego, assim, ao dominio daquilo a que Vincent Jouve, conjugando psicand- lise, narratologia e fenomenologia, chamou imagem-personagem. A natureza € 0 modo de existéncia da imagem-personagem (uma imagem induzida pelo ato de lei- tura) assenta no reconhecimento de uma espécie de escassez descritiva que acaba por se revelar bem fecunda, do ponto de vista da configuracio do universo fic~ cional e dos seres que 0 povoam. «Aquela pobreza visual da imagem mental», diz Jouve, «nao é necessariamente negativa. E, com efeito, a indeterminagao relativa da representagao que cria essa intimidade excecional (...) entre 0 sujeito que lé ea personagem»””, 16 Eca de Queirés, Correspondéncia. Recolha, coord. prefaclo @ notas de G. de Castiho. Lisboa Imp. Nacional-Casa da Moeda, 1983, 1° vol. p. 135, 417 V. Jouve, L'effet-personnage dans le roman. Paris: PLUF., 1992, p. 41 FIGURAGOES DA PERSONAGEM REALISTA: OS BIGODES F OS RASGOS DE TOMAS DE ALENCAR | 99 Confesso que nao me agrada a expresso intimidade excecional, uma ver. que ela desvela uma feig&o psicologista que me causa algum desconforto. Mas nao deixo de acentuar o significado de dois componentes importantes da construgio da personagem: a sua dimenstio extra-textual, que remete para a memoria de expe- riéncias empiricas do leitor, e a sua dimensio intertextual, apelando 4 enciclopédia de leituras (como ditia Umberto Eco) de quem le". E isto embora se saiba que a personagem realista est4 muitas vezes espartilhada por elementos de caracteriza- g&o que podem limitar aquela indeterminacio relativa. Exemplifico: se sabemos do conselheiro Acacio, entre outras coisas, que era alto e magro, que vestia de preto e que tinha um rosto agucado no queixo, terminando numa «calva, vasta ¢ polida, um pouco amolgada no alto», ento parece que temos pouca margem de manobra para, no plano da apreensao do que significa esta figura da fic¢4o, irmos além do que esté no texto e em metatextos a que ele deu lugar. Refiro-me em especial & tal carta de Eca a Teéfilo Braga, em que o escritor explicou bem explicado 0 que significavam as personagens d’O Primo Basilio”. Exagerando um pouco: no quadro de referéncia do realismo que enforma O Primo Basilio, nao podemos esperar que o respeitével conselheiro seduza Luisa e lhe ensine, como Basilio, numa bafienta alcova em Arroios, «uma sensagi0 nova»™ — coisa que seria estranha, mas nao impossivel, do ponto de vista da pura légica da ficciio, desde que nos deslocéssemos para um outro ambito periodolégico, por exemplo, para o de uma parédia pés-modernista, ld onde as competéncias do conselheiro poderiam aparecer renovadas. Mas a verdade é que, mesmo sendo as coisas o que sto, aqueles tragos fisicos e sobretudo aquela calva nao se esgotam (nem esgotam a personagem, bem enten- dido) na descrig&o feita: para a fogosa Dona Felicidade, ainda antes de 0 conse- Iheiro entrar em cena, a calva do conselheiro é «larga, redonda, polida, brilhante as luzes» e sobretudo provoca na boa senhora transpiragdes nas costas e desejos mal contidos: «Tinha uma vontade absurda, avida de lhe deitar as maos, palpa- 18 Cr. V. Jouve, op. cit., pp. 45 ss, 19 Um passo dessa carta bem conhecida: «0 Primo Basilio apresenta, sobretudo, um pequeno qua- Gro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa: a senhora senti- mental, mal-educada, nem espiritual (porque, Cristianismo, jé o ndo tem; sang&o moral da justi¢a, néo sabe o que isso 8) arrasada de romance, lirica, sobreexcitada no temperamento pela oclosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular, que é ordinariamente a luxtria, nervosa pela falta de exercicio @ disciplina moral, etc., etc. - enfim, a burguesinha da Baixa. Por outro lado, o amante ~ um maroto, ‘sem paixdo nem a justificago da sua tirania, que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura e © amor gratis. Do outro lado, a criada, em revolta secreta contra a sua condigdo, avida de desforra.» (cf. Epa de Queirés, Correspondéncia, ed. cit., 1° vol., p. 184). 20 Refiro-me, evidentemente, ao famoso (e escandaloso, na época) episédio do cunnilingus que ‘corre no capitulo Vil d'O Primo Basilio. 4100 | CARLOS REIS. cla, sentis-lhe as formas, amassé-la, penetrar-se delal»"". Ou seja: mesmo que a personagem pareca aperreada pelas suas caracteristicas fisicas (mesmo que pazesa, dizia o velho Forster, um flat character), hd mais vida para além daqueles atributos, como o sugerem Dona Felicidade e, com ela, as Donas Felicidades da vida e das leituras que nela se fazem. Deste modo, até a personagem realista pode revelar uma capacidade de projegdo extracficcional que me leva a notar no conselheiro ‘Acdcio dois movimentos complementares: aquele que convida a indagar, em sin- tonia com as légicas do romance realista oitocentista, de onde vem 0 conselheiro Acacio® (niio necessariamente de quem ver, porque nao gosto de leituras @ clef), € 0 movimento mais difuso, que transcende a personagem e que, por via idiomatica, gerou um vocibulo vivo e ativo entre nés: 0 adjetivo acaciano, mais sugestivo do que 0 conselheiral que Ea chegou a usar. Um tal vocdbulo tem tudo a ver com deslocamentos metalépticos que a mais insuspeita narrativa ficcional permite, des- locamentos que, vou jé alertando, nfo so necessariamente da ordem da transposi- ‘do, digamos, fisica das chamadas fronteiras da fice. JA que estou em registo de referéncias & conformacao da cabega e da calvicie, trago aqui uma outra personagem queirosiana, para continuar a rebater a ima- gem de estabilidade que nem sequer a personagem-tipo (como diria a doutrina do realismo) acaba por conseguir. Carlos Fradique Mendes, que é quem descreve € caracteriza essa outra personagem, nao gostaria por certo de se ver citado a propo- sito do realismo — ¢ isso dava até para outras consideragdes”; mas o seu Pacheco &, a varios titulos, tentador. Como se sabe, desde jovem que Pacheco escondia 0 seu «imenso talento» por detris da testa: «A testa de Pacheco oferecia uma super- ficie escanteada, larga ¢ lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e dire- tores gerais balbuciavam maravilhados: «Nem é necessiiio mais! Basta ver aquela testaly® Pois bem: com o decorrer dos anos, Pacheco vai emudecendo e a testa vai crescendo, como imagem visivel do processo que culmina onde era de esperar: «A sua velhice ofereceu um carater augusto. Perdera o cabelo radicalmente. Todo ele era testa.n Nem de propésito: 0 mausoléu em que repousa Pacheco, no Alto de S, Joo, ostenta uma escultura, «Portugal chorando 0 Génio», «por sugesto do senhor conselheiro Acdcio (em carta ao «Diario de Noticias»)»*. Nao basta isto 21 Obras de Ega de Queirés. © Primo Basilio. Porto: Lello & Irmao Editores, 1958, |, pp. 862 ¢ 863. 22 Ega ajudou a responder a isto na carta a Teéfilo Braga: Acécio provem de uma atitucde mental @ ‘social que 0 escritor designa como formalismo oficial. 23 Ci. C. Reis, «Sobre 0 titimo Ega ou © realismo como problemar, Estudos Queirosianos. Lisboa: Presenga, 1999, pp. 156-163. 24 Obras de Eca de Queirés. A Correspondéncia de Fradique Mendes. Porto: Lello & Irmao Editores, 4958, Il, pp. 1065-1066. 25 A Correspondéncia de Fradique Mendes, ed. cit., pp. 1067-1068.

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