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10 ROBERTO DAMATTA Antropologia e e do obvio Notas em torno do significado social do futebol brasileiro iz um ditado popular que no Brasil s6 existem trés coisas sérias: acachaga, ojogodo bichoe o futebol. Curioso que esta lista de unanimidades nacionais seja constitufda por uma bebida alcoélica - um “espfrito” que ajuda a comemorar alegrias ¢ aesquecer as frustragées; uma loteria clandestina que junta nuimeros com animais, sonhos com o desejo de facil ascensao social, polfticos profissionais ¢ “homens de bem” com notérios contraventores; e, finalmente, um esporte moderno in- ventado pelosingleses eadotadopelosbrasileiroscom uma paixaio somente igualada por sua perfcia em praticé-lo. Vale igualmente observar que, dentre essas instituigSes, o futebol écertamente a mais moderna e a que chegou no Brasil por meio de um bem documentado processo de difus&o cultural. De fato, enquanto a cachaga e 0 jogo do bicho atendem a motivagdes que se perdem na hist6ria, o futebol foi introduzido no Brasil sob o signo do novo, pois, mais do que um simples “jogo”, estavana lista das coisas modernissimas:eraum “esporte’””. Ouseja, umaatividade destinadaaredimiremodernizarocorpo pelo exercicio fisicoe pela competicaéo,dando-lhea higideznecessdria asuasobrevivéncianum admi- r4velmundonoyo-esse universo governadopelo mercado, peloindividualismoe pelaindustrializa- ao. Nos primeiros anos do século, portanto no momento de sua aparigdio no cenario brasileiro, o futebol foi um jogo de elite. Um “esporte” praticado por jovens filhosde industriais que porelese apaixonaramna Inglater- ra, onde tinham ido a estudo ou negécios. Apaixonados pelos valores que oesporteimplicitamente solicitava dos seus pratican- tes -a competic¢ao e o chamado fair-play ou “espirito esportivo”-, esses jovens trouxeramo futebol parasuas fabricas e clubes, espa- gos onde 0 jogo ajudava a disciplinar os corpos e aplainava os ay cer Peary Pry eae ee Proc res er ery rs retracts eel rf Cy Parte eer REVISTA USP 4 aNalsentainaossborodee Iulzasedejuizasque"seven: ‘dam por um maga db 29a fon" Com taro ate extava patina ® ertice ineraro Robedo Serwarts anos de: pats incvieseateta com ‘omoumdsparaie." (i Re. SetaKoamon. aot /9006) Inascossante observ, como ‘Saeua ntncia Com arses times. eo aono # tudo (pa iba pessoa, tence a ‘mocenantas quanioes dus ‘se oncom ne camge, Len ‘rorme da una tal poija nos ‘Sor de 1050, em Sto oho ‘Nepomucens, Minas Gerais, ‘quanao, com 1 0412 anos ‘rh num jogs nevono © ‘Feraadevamente csnco, © tile do meu tanabeo amigo ‘aoversivo,oMuo Rober ‘aga hoje titiasimopro: fester de ingoistica na Un \wericadeFadarlce iz co Fora, For meu toto espe al oCaryo, ue te 9 un: ogee parian WZ REVISTA USP coragdes, fazendo-os obedientes as suas re- gras. Pois diferentemente de outrasinstitui- es, 0 futebol redine muita coisa na sua vejavel multivocalidade, jd que é jogo e es- porte, ritual ¢ espetéculo, instrumento de disciplina das massas ¢ evento prazeroso. Algo que requer paixdo e treinamento, co- megando pela obedigncia&ssuasregras que n&o podem mudare devem valerpara todos € sem as quais pode haver disputa ¢ jogo, mas no hd esporte. Introduzido no Brasil naqueles primei- ros anos de vida republicana, o futebol fa- zia parte de um movimento modernizador que ativava reagdes dispares, De um Lima Barreto, por exemplo, escritor sem bergo, injustigado e mulato, provocou uma rea- ‘donegativa,como umeventocapazde des- pertar paixdes ¢ incontida violéncia, além deigualar homens e mulheres que,nocam- po de futebol e como torcida, comporta- vam-se deixandode ladoos velhos pudores eanecesséria compostura (1). Para outros intelectuais, como Olavo Bilac, escritor de muito sucesso ¢ lider desta t&o desejada modernizagio, o futebol representava pre- cisamente 0 oposto, pois era o exemplo do bom uso do corpo, esse corpo que deveria estar a servigo da patria ¢ do futuro (2), Muitos anos iriam se passar até que um Nelson Rodrigues pudesse enxergar o ver- dadeiro papel deste esporte entre nés. JOGAR E COMPETIR fato, porém, ¢ que o velho esporte bretdo entrava em conflito com valores tra- ionais. Habituadaa jogare nao acompe- tir, sociedade brasileira, construfda de fa- vores, hierarquias, clientes, e ainda repleta de rangoescravocrata, reagia ambiguamen- teao futebol. Esse estranhajogoque, dando énfase ao desempenho, democraticamente produzia ganhadoreseperdedoressemsub- trairde nenhumdisputanteonome,ahonra ouavergonha. Foipreciso que essasocieda- de vincada por valores tradicionais apres desse a separar as regras dos homens e da propria partida para que o futebol pudesse serabertamente apreciado entrenés. Desse modo, foi certamente essa humilde ativida- de, esse jogo inventado paradivertire disci- plinar que, no Brasil, transformou-se no primeiroprofessordedemocraciaedeigual- dade. Pois nio foi através do nosso Parla- mento que 0 povo aprendeu a respeitar as leis, mas assistindo a jogos de futebol, esses eventos onde o vitorioso nao tem o direito deserumditador,eoperdedor, valerepetir, no deve ser humilhado. Desse modo, 0 velhoe bretio football Association foi apro- priado por toda a sociedade e sendo rebatizado no Brasil como “futebol” virou uma paixdio das massase um acontecimento festejado ¢ amado pelo povo (3). De fato,essarelagdo entre povoe futebol tem sido to profunda e produtiva que mui- tos brasileiros se esquecem de que 0 futebol foiinventadona Inglaterra e pensam que ele 6, como a mulata, 0 samba, a feijoada € a saudade, um produto brasileiro. Tal ousadia em mudar uma histéria recente ¢ bem docu- mentada apenas indica o quanto o “futebol” mobilizacapaixona as massas. Provavelmen- te, conforme muitos tém acentuado, porque 6 uma atividade que indubitaveimente pro- move sentimentos bisicos de identidade in- dividual e coletiva entre nés. Talvez.o futebol possa ser tudo isso por- que ele ¢ uma atividade dotada de uma no- tavel multivocalidade - uma vocagio com- plexa que permite entendé-lo ¢ vivé-lo si- multaneamente de muitos pontos de vi Assim, emborao futebol seja uma atividade moderna, um espetculo pago, produzido e realizado por profissionais da inddstria cul- tural, dentrodos'mais extremados objetivos capitalistas ou burgueses, ele, nao obstante, também orquestra componentes cfvicos basicos, identidades sociais importantes, valores culturais profundos e gostos indivi duais singulares. No fundo, o futebol prova que se pode acasalar-e acasalar muito bem + valores culturais locais, nascidos de uma visio de mundo tradicional e particularista, com uma Idgica moderna e universalista. O SIGNIFICADO DO ESPORTE NO MUNDO MODERNO Masniio se pade discutirofutebolde um ponto de vista sociolégico sem procurar situd-lo no mundo moderno. Cabe, poi perguntar: qual o significado do “esporte’ no mundo modemno? Ora, refletir sobre 0 esporte € procurar compreender umaesfera de atividade dota- da de uma aura paradoxal, Primeiro, por- que ele tem uma notdvel autonomia sendo uma esfera mareada por normas, gestos, valores, objetos, espagos € temporalidades muito especiais (4). Depois, porque 0 es- porte - como a arte - é uma atividade que possui uma clara auto-referéncia, nao es- tando aservigo direto ou explicito dos valo- res que constituem 0 mundo didtio do tra- batho, do dinheiro e do controle. Para que serve a arte ou 0 esporte? Por no permit a mesma resposta que cabe no-caso da cién- Gia, dalei ou do comércio, aperguntatorna- se reveladoramente enigmdtica. E que ela denuncia 0 utilitarismo como valor. Esse uilitarismo que deve ser o fim das nossas vidas e que entroniza a idéia de progresso - outro trago basico da racionalidade burgue- sa, Diferentemente do trabalho, portanto, que tem uma relacio direta com o“dever”, com a “obrigagdo”, com 0 “castigo “pecado” ecom a“durezadavida" oespor- te é uma atividade paradoxal porque nao é ir como produtiva no sentido radical de provocar uma transformagiio da natureza e da socie- dade. Voltadas antes de tudo para si mes- mas, esporte ¢ arte sdo esferas da vida que negam o utilitarismo dominante e, par isso mesmo, promovem um efeito de pausa, fe- riado, ou descontinuidade com a sofreg dao exigida pela l6gicado lucro,dotrabatho € do Exito a todo custo, Se o objetivo do trabalho éenriquecer a sociedade, transfor mando-a em corpo poderoso, 0 alvo do es- porte € muito mais dificil de estabelecer. Tudo indica que o esporte tem um lado ins- trumental ou pratico que permite “fazer’ coisase promover riqueza;maseletemtam- bém um enorme eixo expressivo e/ou bélice que apenas dize,com osrituais, reve- Ja quem somes. Mas é preciso acentuar que nem por isso o esporte esté divoreiado da socied: de que o engendrou. Sua fungao no mun- do moderno tem uma ligagdo intima com dois aspectos fundamentais da vida bUur- « cortome so sabe, ht una im- guesa, O primeiro é a disciplina das mas- 8st errecal- Tema Squeoesporteensinacreafirma,quan- _lehlga esti tis do exige que todos cheguem aos estddios _rocomopessoas iicar em hores sertas, pagando corretamente mnemeomepuaune ss entradas. E 0 segundo é a sua ligagio — Weenre eee intima com a idéia de fair-play, pois es- #8 Senses hunanas porte trivializa a vitéria ¢ a derrota. Ora essa socializagdo para o fracasso e para o gots pose éxito, essa banalizagdio da perda, da po- —Sévumiecce Assim om brezacdamé-sorte,somentepoderia ocor- _ee.seeie Hoctcase. rer numa sociedade transformada, como come advesos dota. disse Karl Polanyi,pelomercadoquetudo ——swertios REVISTA USP 13 6. E preciso novamenta obser var que Newn Feige tesa" wratoeracat octet aces fea no ht» poo sport © 2 cura popular ‘ie vu como rent eww (Geuneraaca)qetazcon DaneouPei dere menace fica orca. am 1958, (Ct V4 REVISTAUSP engloba ¢ faz crer que todos so mesmo jogadores com iguais oportunidades. Ademais, o esporte afirma valores capi- talistasbsicos,comoo individualismo (cada umdendstemodircitode escolherumelube, time ou herGi esportivo), € 0 igualitarismo (no inicio do jogo 0s adversérios sio iguais e devem ser tratados com lisura ¢ respeito, principalmente na derrota), 0 que, como ja disse, ajuda na socializagdo de uma justiga burguesa universalista. Justi¢a moderna que temcomolemaoprincipiodaisonomiaouda igualdadedetodos peranteasleis.Etemcomo. procedimento bisico a confianga de que tais, normas serdo aplicadas por pessoas de ressadas ¢ independentes de simpatias pes- Soais ou tragos particulares. A justiga € tao cega quanto 0 uniforme do juiz de futebol queniio se confunde comodos times quecle governa no decorrer de uma partida, Por tudo isso, no foi por mero acaso que 0 esporte como um dominio social (e como uma “industria cultural”) tenha surgi- do acasalado com o advento da sociedade industrial de mfdiae de massa. Esse sistema que hoje tem a hegemonia planetéria, ope- rando -sabemosbem- através do mercado, do dinheiro, da possibilidade de compra e venda de trabalho e de uma massa humana urbana socializada universalisticamente e, portanto,capaz de acatar asleis que -repito ~ valem, como afirma o credo burgués (¢ 0 esporte), para todos! Fundamental portanto ,paraofuncionamen- to dessa sociedad baseada no conflito de inte- esses enacompetigio,todasessasmodalidades csportivas que invariavelmente tomam 0 con- fronto,o conflitoea competigdio como matéria- prima, transformandoas paixdes quelevavam a morte e vinganga nassociedades tradicionais, numa leal, rotineira e higiénica disputa de inte- esses. Tais dissensdes sZio agora ndo somente institucionalizadas, mas programadas, planeja- das e transformadas num espeticulo bom para pensar e dramatizar, conforme diriam Claude Lévi-Strauss ¢ Nelson Rodrigues. Antigamente os homens perdiama honra numjogode morte comoasduclos, hojeassis- te-sea um espetéculo esportivo. Conforme jé afirmei, 0 esporte é uma pega bisica na internalizagao de uma mentalidade individu- alista¢competitiva, O velho Thomas Hobbes jamais poderia imaginar que a sua abomind- vel “luta de todos contra todos” seria usada como mina de ouro e como chamariz para fazer com que milhdes de pessoas concebes- sem 0 confronto como parte intrinseca da vida social e da natureza humana, UM RITUAL AGONISTICO? esse sentido, o esporte ¢ uma ponte que liga modemnidade individualismo com ve- Thos e esquecidos valores morais. Ele 6 uma industria ¢ um espetdculo, mas ¢ igualmente um rito ¢ uma arte. Uma atividade especial que combina com rara felicidade as maximas lo capitalismo modemo com as vethas ¢ es- quecidas praticas da reciprocidade. Essa reci- procidade sem a qual - conforme ensinou Maree! Mauss - nfo existe sociabilidade, pois &cla que obriga adar, a receber e,sobretudo, aretribuir com redobrado zelo. Desse modo, ‘aatividade esportiva em geral ¢, dentro dela, © futebol, permite ritualizar a competigao, 0 ‘que vai estabelecer ou reafirmar os melhores os piores, os ganhadlores ¢ os perdedores,os primeiros ¢ os titimos, dentro de um quadro ‘estratificado que 0 credo igualitario tende a mistificar e esconder. Se tradicionalmente 0 confronto entre grupos ¢ pessoas cimentava reputagées € desonrava nomes de familia € aldeias,comoocorrianosfamosos potlatchdas sociedadles tribais da costa noroeste dos Esta- ‘dos Unidos e do Canada, modernamente, e gragas ao esporte, a disputa transformou-se numa competigio entre iguais. Um ritual agonistico, por certo, mas uma celebragio na qual 0 confito € programado e regido por normas conhecidas dos disputantes, da pla- tia, dos oficiantes (os juizes esportivos) e dos patrocinadores. Daftermos“campeonatos”e no apenas “tomneios”, “disputas”, “comba- tes” ou “duelos” de honra conforme era (¢ ainda 6) 0 caso em muitas sociedades tribais, Maso fatobasico é queaesferado espor- teentronizano mundo modemo formaslegf- timas de medigdo de forga ¢ de comporta- mento conflitivo e agonistico que, embora tenham uma moldura moderna, racional ¢ ‘empresarial, sto capazes de despertar em

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