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See ac eae ae or Pere crs PRIN Py ATIC RG ays x ay en AFORMAGAO DO HOMEM MODERNO VISTA ATRAVES DA ARQUITETURA fe eee nO RSA ICUL Siarera elt Flee) i) corer BIBLIOTECA 7 Jac CarRLos ANTONIO LEITE BRANDAO A FORMAGAO DO HONEN MODERNO VISTA ATRAVES DA ARQUITETURA 2° EDICAO REVISTA Belo Horizonte Editora UFMG 1999 Copyright © 1991 by Carlos Antonio Leite Brandao 1999 - 2.ed. Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagao escrita do Editor Brandao, Carlos Anténio Leite B817F A formacgio do homem moderno vista através da arquitetura/Carlos Ant6énio Leite Brandio - 2.ed. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 240p., il. - (Colegio Humanitas) 1. Arquitetura - Filosofia 2. Arquitetura - Histéria 1. Titulo IL. Série CDD: 720.1 CDU : 72.03 Cataloga¢ao na publicagéo: Divisao de Planejamento e Divulgacao da Biblioteca Universitaria - UFMG ISBN: 85-7041-155-3 EDITORACAO DE TEXTO Ana Maria de Moraes . . PROJETO GRAFICO BAB2B/ OO? Gléria Campos (Manga) FOTOS Carlos Ant6nio Leite Brandao PREPARACAO DE ORIGINAIS E REVISAO DE TEXTO Rosa Maria Drumond Costa REVISAO DE PROVAS André Luiz Gomes Flavia Silva Bianchi Maria Diana C. Santos Maria Stela Souza Reis Rubia Flavia dos Santos PRODUGAO GRAFICA E CAPA Marcelo Belico FORMATAGAO Alexandre Gregole Colucci Eduardo Ferreira EDITORA UFMG Av. Antonio Carlos, 6627 - Biblioteca Central - sala 405 Campus Pampulha - 31270-9011 - Belo Horizonte/MG Tel.: (031) 499-4650 - Fax: (031) 499-4768 E-mail: Editora@bu.ufmg.br hitp://www.editoras.com/ufmg UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Francisco César de S4 Barreto . Ao Gute, a Trindade, 4 Edinah Henriques Vice-Reitora: Ana Lucia Almeida Gazzola A Flora, ao Guilherme, a S6nia Viegas e ao Moacyr Laterza. CONSELHO EDITORIAL TITULARES Carlos Antonio Leite Brandao, Heitor Capuzzo Filho, Heloisa Maria Murgel Starling, Luiz Otdvio Fagundes Amaral, Manoel Otdvio da Costa Rocha, Maria Helena Damasceno e Silva Megale, Romeu Cardoso Guimaraes, Silvana Maria Leal Céser, Wander Melo Miranda (Presidente) SUPLENTES Anténio Luiz Pinho Ribeiro, Cristiano Machado Gontijo, Leonardo Barci Castriota, Maria das Gracas Santa Barbara, Newton Bignotto de Souza, Reinaldo Martiniano Marques CAPITULO I CAPITULO II CAPITULO III CAPITULO IV LISTA DE FIGURAS NOTA DO AUTOR PREFACIO INTRODUCAO O GOTICO Do Pantheon Romano A Catedral Gética Arquitetura e Significado: O Espaco Gético Da Arquitetura ao Mundo Gético A Arquitetura Gotica e a Filosofia Escolastica A Divina Comédia ea Arché Medieval O RENASCIMENTO A Arché Arquitetura e Significado: O Espago Renascentista A Cidade O Edificio Da Arquitetura ao Mundo Renascentista O MANEIRISMO A Arché Arquitetura e Significado: O Espaco Maneirista A Cidade O Edificio Da Arquitetura ao Mundo Maneirista O BARROCO A Arché e o Espirito de Sistema A Arché O Espirito de Sistema Arquitetura e Significado: o Espago no Século XVII A Cidade e o Espirito de Sistema Roma e a Piazza San Pietro Paris e o Palacio de Versalhes Borromini e a Arché Barroca Bernini e Borromini San Carlo alle Quattro Fontane 11 13 15 21 33 33 41 48 48 56 67 67 75 75 79 94 103 103 112 112 115 123 131 131 131 136 143 143 144 157 163 163 168 CAPITULO V Sant'lvo alla Sapienza A Obra de Guarino Guarini Da Arquitetura ao Mundo Barroco A Arquitetura Barroca e o Homem Moderno A Arquitetura Barroca e a Ciéncia Moderna A Arquitetura Barroca e a Filosofia Moderna A Arquitetura Barroca e o Racionalismo Cartesiano O Barroco em Pascal e Leibniz A PERDA DA ARCHE NO DESENVOLVIMENTO DA MODERNIDADE REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 180 184 188 188 192 200 200 212 229 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 PIRANESI, Giovanni Battista. Pantheon. Interior. (Gravura do século XVII) Santa Sabina, Planta Campo Santo. Pisa St. Stepben. Viena Notre-Dame. Paris. Vista da cabeceira Catedral. Colénia GIOTTO. Exéquias de Sao Francisco Notre-Dame. Paris. Fachada Catedral, Milao BRUNELLESCHI, F. Velha Sacristia de SGo Lourenco. Corte transversal SAVORGNAN e SCAMOZZI. Palma Nova. Pianta BRAMANTE. San Pietro in Montorio. Roma Palazzo Pitti. Florenca BRUNELLESCHI, F. Ospedale degli Innocenti. Florenca ALBERTI. Palazzo Rucellai. Florenga ALBERTI. Santa Maria Novella. Florenca BRUNELLESCHI, F. Ciipula de Santa Maria dei Fiori BRUNELLESCHI, F. Capela Pazzi. Florenga BRAMANTE e MICHELANGELO. Plantas projetadas para a Basilica de SGo Pedro. Vaticano MICHELANGELO e BERNINI. Vista da cipula e da Praca de Sdo Pedra FONTANA, Domenico. Plano de Sisto V para Roma PALLADIO. San Giorgio Magiore. Veneza AMMANATI. Palazzo Pitti. Florenga. Interior VASARI. Uffizi. Florenca MICHELANGELO. Piazza del Campidoglio. Roma 35 36 38 42 44 45 47 53 66 68 76 82 88 89 90 91 94 102 104 105 114 115 117 120 121 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 MICHELANGELO. Biblioteca Laurenziana. Florenca DURER, Albrecht. Melancolia I DELLA PORTA e MADERNO. Trinita dei Monti e Piazza di Spagna. Roma Piazza del Popolo. Roma BERNINI e BORROMINI. Piazza Navona. Roma BERNINI, Piazza San Pietro. Vaticano BERNINI. Colunata da Praca de SGo Pedro. Roma BERNINI. Vista aérea da Praca de SGo Pedro. Vaticano BERNINI. Sant'Andrea al Quirinale. Roma VERSALHES. Planta dos jardins LE NOTRE, Andre. Jardim de Versalbes. Versalhes Von HILDEBRANT, Lucas. Belvedere Superior. Viena BORROMINI. San Carlo alle Quattro Fontane. Roma BORROMINI. Sant'Andrea delle Fratte. Roma. Vista posterior BORROMINI. Sant‘Ivo alla Sapienza. Roma GUARINI, Guarino. Paldcio Carignano. Turim GUARINI, Guarino. San Lorenzo. Interior FISCHER VON ERLACH, John Bernhard. Igreja de Sao Carlos. Viena EIFFEL. Yorre Eiffel. Paris 122 124 142 146 147 149 153 155 156 158 159 162 165 172 181 185 187 189 228 Lancado em 1991 e rapidamente esgotado, este livro recebe agora a revisdo que ja ha algum tempo Jhe era devida, gracas a oportunidade oferecida pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Quanto ao aspecto formal, as mudancas dedicaram-se a buscar uma redagdo mais limpa e organica, a organizar melhor notas e referéncias e a renovar as ilustragdes, além de corrigir alguns erros verificados na primeira edicdo. Quanto ao contetido, condensou-se e atualizou-se a analise de alguns edificios, introduziram-se novas consi- deragées, atenuou-se a distincao entre os diversos periodos estilisticos e a contraposi¢do entre classicismo e anticlas- sicismo. Em grande parte, isso se deve a recentes estudos realizados sobre o guattrocento italiano que apontam a evidéncia de um espirito anti-humanista j4 no interior do Renascimento (sobre tal estudo, preparamos, para breve, a publicagao de Quid tum? O Combate da Arte em Leon Battista Alberti, também pela Editora UFMG). Em virtude do seu carater marcadamente académico e interdisciplinar, preferiu-se manter grande parte das notas e detalhar as remissGes biblio- graficas — tendo em vista, sobretudo, aqueles que se iniciam nessas ligacoes perigosas entre Arte, Arquitetura e Filosofia, intersticio em que as intuicSes costumam ser muitas, mas o rigor, pouco. Nesta oportunidade, cumpre renovar velhos compromissos e consagrar alguns novos. Sao muitos os que nos ajudaram a produzir este livro e seria impossivel agradecer a todos, mencionando-os aqui. Alguns, contudo, vejo-os em cada pa4gina acompanhando-me desde a sua origem, tal como aqueles a quem este livro é dedicado. Outros passaram a habit4-lo durante o processo de sua primeira edicao e, agora, em sua segunda edicdo pela Editora UFMG. Sylvio Podesta e Gaby de Aragio arriscaram, em 1991, a abrir a Editora AP Cultural com este livro e estarao sempre comigo nessa trajet6ria. Relembro-os junto com Newton Bignotto, Maria Lucia Malard, Soninha e Moacyr, os quais me incentivaram a percorrer esta ponte infinddvel entre a Arquitetura, a Arte, a Hist6ria e a Filosofia. Pela ines- timavel ajuda na produc4o da dissertagao de Mestrado, na primeira edicdo, e nesta que agora se empreende, firmaram-se como colaboradores indispensaiveis Messias Fonseca, Yeda Rodrigues e Jomar Braganga. Ricardo Ostos e Raquel Schmal, monitores do Departamenvo de AniAlise Critica e Histérica da Arquitetura da UFMG, foram inestimaveis colaboradores na ultima fase do trabalho, bem como o Laboratério Grafico para o Ensino de Arquitetura (LAGEAR) da Escola de Arquitetura da UFMG. Além de competentes e dedicados, a ternura e a paciéncia de Ricardo e Raquel serviram para cultivar momentos de delicadeza, mesmo quando os estudos se tornavam 4ridos. Assim contribuiram para manter o saber sempre fecundado pelo sabor. A estes, e aos meus amigos de vida académica, quero deixar registrado aqui meu mais sincero agradecimento, minha homenagem e a alegria de vé-los companheiros nesse percurso que agora se reinicia. Este livro, como nao podia deixar de ser, é parte de todos nos. 14 “A filosofia é reflexdo sobre uma experiéncia nao-filosdfica. [...] A experiéncia nao-filoséfica é€ suficientemente préxima da filosofia para que nessa encontre audiéncia, lhe inspire inquietude e termine por transforma-la como filosofia.” Serve essa nota de De Waelhens como epigrafe geral para esta obra de Carlos Anténio Leite Brandao que, para efeitos de sua dissertagao de Mestrado, selecionou entre um teméario peri- gosamente amplo e complexo o campo filos6fico afeto ao evolver hist6rico da arquitetura, que em seus passos itine- rantes na modernidade ocidental — do Gético ao Barroco — descreveu a propria formacdo_espiritual e ideoldégica do chamado Homem Moderno. A tese transmuta-se neste livro, onde, com alguma modificagéo menor, conservam-se tanto o enfoque noético da filosofia, como a ampla recorréncia hist6rica coligida, por quem sabe e soube sempre o sabor sapiencial da arte da arquitetura para além dos seus valimentos pragmaticos. A consentida ambigttidade de termos como Modernidade, Idade Moderna, Homem Moderno, Arte Moderna, Pés-moderno permite-nos nao restar apenas no campo da mera cronologia, ora fixada no periodo que segue imediatamente ao medievo, ora apontando para o complexo cultural mais contempora- neo (fim do século XIX, comeco do século XX e a atualidade). Indo além da cronologia, Carlos Brandao adentra-se pelo campo dos juizos valorativos, uns positivos, outros negativos, acerca do que se conceitua como Modernidade, Pdos-Modernidade etc. HA em tudo e sempre um senso de historicidade balizando intrinsecamente a reflex4o filos6fica. E isso por uma questdo de principio. Atento aquilo que Manfredo Tafuri designou o eclipse da histéria, na sua critica ao funcionalismo, Carlos Brandao conscientiza-se da “tarefa fundamental do atual critico da arquitetura: Recuperar o papel e o significado das obras junto com as concep¢ées e ideologias” originarias as quais se ligam.”? Daf continuar afirmando: Para nos, voltar 4 hist6ria nao significa abrir um reservatério de valores e formas codificadas nem um outro instrumento de projetagao qualquer. Significa, ao contrario, contestar o pre- sente — tanto a tradi¢ado do novo do moderno, como o novo tradicional do pds-moderno — procurando-se sempre reen- contrar o sentido da arquitetura_e os valores traduzidos pelo ato de projetacao e construgio dos edificios.? Veja que ja na epigrafe de seu livro h4 um cotejo do futuro com o passado, que de alguma maneira vem caucionar 0 sen- tido do presente. A preferéncia se inclina para as exigéncias do pretérito — tomado sempre como valor redivivo ou redivivel ou resgatavel: “Entre todas as exigéncias da alma humana, nenhuma € mais vital que a do passado. [...] E nds niio possuimos outra vida, outro sangue, além dos herdados do passado e dirigidos, assimilados, recriados por nos.”3 Carlos A. L. Brandao segue aqueles que recriaram, parcial- mente que seja, a noética filos6fica, quando debrucando-se sobre 0 evolver temporal da arquitetura (fato ou experimento nao-filoséfico em si mesmo), toma como ponto de referéncia axial de sua reflexao o prdprio sentido da arché que inspira a tectOnica inventiva que o homem construiu, vem construindo. Nao tanto pela estabilidade eledtica de um principio tnico que teimaria em se repetir na diversidade temporal, mas, antes, pela capacidade ou virtualidade inventiva que o principio animador da arte arquitet6nica possui inscrito em si mesmo, ao passar do Romano ao Bizantino, ao RomAnico, ao Gdtico, ao Renascentista, ao Maneirista, ao Barroco, ao Rococd, sequéncia histérica que pontua aquilo que, no cendrio do ' Conferir a Introdugio deste livro. ? Conferir a Introdugio deste livro. * © autor cita a epigrafe da p.7 desta obra, optando por uma inversao na ordem das frases. ab Roe , Y . by tog Wore ey LO : of : Peo . aa ; 16 Lo : ! Ey nt ee YT ay ; odes Le \ oy duet ye? “ so? . co ~ ae += Ocidente, Jacques Maritain, na esteira de E. Male, L. Venturi, A. Malraux, G. Bazin, designou o advento do eu — expressio reinterpretada por Brandao, quando enfatiza a emergéncia da subjetividade criadora nos meridianos dos tempos que construiram a modernidade. “Tirai o andaime, o saibro, a calica, a pedra, a massa ea argamassa, fica a forma e a arquitetura da forma...”, teria dito alhures e com outras palavras o neoplaténico Plotino. Seja, a forma. Problema fundamental para a arte, para a arte da arqui- tetura e para a filosofia da arte. E para a filosofia da arquitetura. A questéo da forma é recolocada pela Gestaltpsychologie. E, assim, incitada, segue a filosofia a pensar o estatuto ontold- gico daquilo que nem é uma coisa, nem se reduz a uma idéia. Sempre a n4o-filosofia despertanto a argticia meditativa do fildsofo. O fil6sofo Carlos Brandao busca as intuigdes pri- mevas de sua meditacdo na vivéncia concreta daquilo que se oculta sob a vetusta roupagem da expressdo conceitual designada situs. Pouco importam as alfaias que o termo recebia dentro da teoria dos predicamentos de Aristdteles e na de seus comentadores escoldsticos. Na verdade, Brandao (e néds com ele) recebemos a nogao de situs, ja estabilizada semanticamente para significar algo atinente nio ao espaco tout court, mas aquilo que designamos o espaco humano, o espaco humanizado, os sitios de nosso solo humano, lugar de nosso habitar, residéncia, habitacgio. Contrastando com o mero ubi (ugar-onde) as categorias aristotélicas referem sin- gelamente o situs como accidens disponens partes corporis in loco. Ou, entao, ordo partium in loco. No mesmo onde, no mesmo lugar, as partes ordenam-se diferentemente, como quem, estando na mesma casa, visita cCOmodos diversos. HA, pois, no mesmo ubi, o sedere, o stare, o inflecti, o decumbere; em Ultima andlise, as milhentas possibilidades de nosso ser-ai, de nosso Dasein, de nosso estar, estar-no-mundo, ja surpre- endidas nas irradiagdes gestuais das modestas posturas de nosso corpo. O estar (assim ou de outro modo) transfigura-se € se redime de sua pobre materialidade, quando o centro de atribuigao se personaliza no estar proprio do ser humano in Senere, e se pessoaliza na situagao humana de cada pessoa individual, nica, inédita, que nao apenas aceita seu sitio, 17 mas 0 determina e o arquiteta, antes de engendr4-lo e edifica-lo. E a pessoa que faz o seu estar, o seu bem-estar, o seu mal- estar... Carlos Brandao dara especial atenciio ao sentido do babitar, que, por outra via mais transcendente, redime o gesto de se autodispor num sitio, concretizando a ordo partium in loco numa dimensao onde tanto o lugar, como o corpo que o freqienta, o estar, e o gesto de se dispor para um determinado estar sao recalibrados 4 luz de uma concepcao do prdéprio ser. Disso falaremos adiante. Notemos antes sua estratégia de profundidade. Ao se re- portar diretamente ao conceito arché, na busca dos primeiros principios que respeitam 4 compreensfo da arquitetura, sua pesquisa € solidaria com a que busca na palavra ars (e de- pois Arte), a modulagdo ética e politica de sua antecedente etimolégica arete. Essa modulacao que da conta do sentido social da arte e, mais imediatamente, da arte da arquitetura, Carlos Brandao foi busca-la direto dos harménicos do radical arché. Para tanto, reinterpreta — dentro da melhor tradicao cientifica das ciéncias humanas, e seguindo as interferéncias dessas Ultimas sobre o Ambito filos6fico em suas vertentes contemporaneas — reinterpreta a nocdo de situs, efetuando um audaz translado de sua significagao espacial para o nivel temporal ou, mais propriamente, para o nivel hist6rico. Trata-se agora da situacao histérica do homem, crédito inalie- navel de sua existencialidade, mais do que crédito estacio- nario de sua essencialidade. Essa situacGo nao é tio-somente um dado irrecusdvel — aquela determinatio ad unum que atinge inelutavelmente as coisas sempre postas, dispostas, repostas, colocadas, deslocadas, transpostas, transferidas, manipuladas. A situagao humana é a sua soberba gestual autodeterminante de seu estar. Na ordem individual, quando edifica um pouco de seu ter, de suas posses, de seu babere, arquitetando e edificando o seu habitat, tecendo a rede de seu habito ou a trama de seus habitos. Mas, principalmente, quando a polis interfere na dgora, monumentalizando e historializando seu ser cultural e sua presenga civilizatéria. Consegue assim o homem eternizar-se, perenizando no ins- tante sua experiéncia histGrica, sua solucdo inédita para con- sertar as inadiaveis relagGes que deve assumir com o mundo, consigo mesmo, com os demais homens e com os deuses. 18 Carlos Brand4o, sem desconhecer a solugdo do classicismo greco-romano, nos leva a investigar outro periodo, intermedia- rio entre © contemporaneo e o da cidade antiga. Por isso, ja na introducao, nos adverte: O que pretendemos aqui é, justamente, analisar a arquitetura como documento da lenta formagao deste homem moderno, desde o final do periodo medieval até o século XVIII, reapren- dendo-a como imagem da relagado homem-Deus-mundo espe- cifica de cada perfiodo, do Gético ao Barroco.* E para nés significativo que ao falar de arte, Palavra, Pa- lavra Essencial, a que funda o ser — e nao a que se banaliza e se publicaliza — Heidegger use a expressdo casa, habitacao, moradia: a palavra é a morada do ser. A arquitetura como arte — para além de seu sentido prag- matico — é também Palavra que funda o ser, que lhe oferece oO recato, a seguranga, a morada onde confirmamos nossas certezas. Carlos Brandao cita, pois, Heidegger, ao se referir a crise do sentido do habitar, entendendo por habitar o funda- mento do ser do homem, como o sentimento da protec4o e seguranga existencial frente aos deuses, ao universo e a Si mesmo: “E j4 nado aprendemos a habitagao como se fosse o ser (sein) do homem: e menos ainda pensamos na habitacgao como traco fundamental da condi¢ao humana. [...] E preciso, antes de tudo, aprender a habitar. Talvez o objetivo de nosso estudo esteja nesse aprendizado.”” Menos por este livro, menos pela sua atividade docente e mais por seu labor reflexivo, que uma década e meia de con- vivéncia profissional me autoriza a testemunhar, Carlos A. L. Brandao tem dado provas de que seu aprendizado tem efeti- vamente se consumado. Arquiteto e fil6sofo, tem j4 provado soberania, autdrkeia, maitrise de soi méme na area de sua especializagdo. Essa sua forca intelectual, seu titulo de nobreza, seu babere, seu modus se habendi. Que nao é outro o significado da venerada palavra habitus. Tao diferente da rotina. E do babitude. ‘ Conferir mais uma vez a Introducio. * Idem. 19 Como fil6sofo, prova estar autorizado a repensar a arquitetura, recolocando-a no seu contexto histérico — seu verdadeiro habitat. E, mais do que nunca, situando — junto e através do seu labor meditativo — a obra humana do arqui- teto ao nivel do processo de des-ocultagdo ou desvelamento do Ser, a-létheia, epifania, esplendor, luzir e verdade. Quando os arquitetos (que também sao gente) encontram o sentido do Ser, as casas tornam-se habitaveis... porque confirmam as nossas certezas... Moacyr Laterza 20 A arquitetura funcionalista que dominou o século XX trouxe consigo dois axiomas que distorceram as pretensdes dos seus fundadores: por um lado, o repertério tecnolégico-construtivo e as necessidades sociais reduzidas 4 sua_pragmaticidade tornaram-se os condicionantes fundamentais dos projetos e recolocaram a arquitetura como servig¢o mais do que como arte; por outro, promoveu-se a novidade absoluta como o objetivo maior de suas criacgdées vanguardistas e_rompeu-se com toda e qualquer referéncia 4 histéria da arquitetura e aos estilos passados. Contudo, por mais que tenha feito, esse funcionalismo comecou a ser criticado por todos os lados, a partir da década de sessenta, seja pelo seu carater abstrato e intelectual que n4o atende as exigéncias de identidade cultural do habitante com seu habitat, seja pela desconfiancga em re- lacdo a tecnologia e aos avanc¢os construtivos, como capazes de resolverem os problemas sociais e o bem-estar da humani- dade. Proclamava-se, entao, o esgotamento de sua linguagem formal, considerada excessivamente racional, fria e objetiva. Sem avaliar-lhes o mérito, o movimento pds-moderno, que se consolida ao final dos anos setenta, assume tais criticas e propoe uma retomada da tradicao, do passado e dos estilos histéricos da arquitetura.’Essa atitude historicista pos-modernista, no entanto, é falsa. Sob sua mascara esconde-se o atrelamento da arquitetura a uma sociedade violentamente consumista, que substitui a sociedade industrial moderna. O resultado é o ressurgimento de uma mentalidade arquitet6nica vitoriana, responsavel por um .meo-ecletismo assentado em formas desprovidas de significado e que, em momento algum, promove a identidade cultural, cuja falta seria a razao da crise do funcionalismo, ou a compreensao histérica tao proclamada pelos pés-modernistas. 1 AQHA Oh op oe a MANNS Mas © maior perigo se assenta na reducdo da histéria a instrumento de uma pratica revivalista que esvazia a arqui- tetura de sentido. Tornada mero objeto de consumo, ela nao se define nem como servico 4 sociedade, nem como expressio artistica.. Nesse ponto, a critica hist6rica viu-se reduzida a uma justificagdo teérica da muleta estilistica a que somos obrigados a recorrer em nosso tempo. E, ao invés de retomar-se a historia, tende-se a substitui-la. Por caminhos diferentes, o eclipse da historia desencadeado pelo funcionalismo_se. prolonga no pés-moderno.! Portanto, se a retomada da critica hist6rica € necessdria, a maneira pela qual ela foi compreen- dida é falha, e perigosa o suficiente, para exigir dos teéricos e historiadores uma leitura do passado da arquitetura que seja capaz de confirmar, a cada passo, a totalidade caracteris- tica do objeto construido — o.sentido das formas e o signifi- cado do edificio e da cidade frente ao contexto histérice-e- existencial da humanidade. Esta é a tarefa fundamental do atual critico da arquitetura: recuperar o papel e significado das obras junto com as concepgées e ideologias originarias as quais se ligam. Voltar 4 histéria nao significa, pois, abrir um reservatorio de valores e formas codificadas, nem um outro instrumento de projetagéo qualquer. Significa, ao contrdario, contestar o presente — tanto a tradic¢do do novo do moderno, como 0 novo tradicional do pés-moderno — procurando-se sempre reencontrar o sentido da arquitetura e os valores produzidos pelo ato de projetar e construir edificios. Na verdade, s6 atingiremos o 4mago‘da crise disciplinar que hoje vivemos se compreendermos que o eclipse da histéria, promovido por aquelas duas atitudes, corresponde ao eclipse do sentido da arquitetura. Com muita argticia e no apogeu do funcionalismo, Heidegger percebia que a verdadeira crise ‘The danger is the theoretical justification of the stylistic crutch. Mohology-Nagy, Sybil. The canon of arquitectural history. In: The history, theory and criticism of arquitecture, papers from the 1964, p.40, citado por TAFURI. Teorias e historia da arquitetura, p.34, Como introducao As atitudes modernas e pés-modernas, ver também PORTOGHESI. Depois da arquitetu- ra moderna; SUBIRATS. Da vanguarda ao pos-moderno e, principalmente, TAFURI. Teorias e bistéria da arquitetura, destacando o primeiro capitulo, A arquitetura moderna e o eclipse da hist6ria, p.31-106. ’ Sobre as tarefas da atual critica da arquitetura frente & historia, conferir te Teorias e bistoria da arquitetura, p.275-286. 4M , pla. Spy 22 verre da arquitetura néo era_uma_ crise de alojamentos, mas.uma crise do. sentido do habitar — entendendo o babitar como o fundamento do ser do homem e como o sentimento de protecao e seguranca existencial frente aos deuses, ao universo e a si mesmo: “Ja nado aprendemos a habitacao como se fosse o ser (sein) do Homem; e menos ainda pensamos a habitacdo como trago fundamental da condigdo humana. E preciso, antes de tudo, aprender a habitar.”> Talvez o objetivo de nosso estudo esteja nesse aprendizado. Tal crise manifes- ta-se antes do século XX ¢ reflete um estagio ulterior das concepeoes do homem moderno a respeito de si mesmo, de Deus e do mundo. Portanto, ela ultrapassa 0 campo especifico da arquitetura e remete-nos a questoes cientificas e filosficas no seio das quais o arquiteto desenvolve sua pratica. O que pretendemos aqui é, justamente, analisar a arquitetura como documento da Jenta formacgao deste homem moderno, desde o final do periodo medieval até 0 século XVII, ‘reaprendendo- a como imagem da relacdo fhomem-Deus-mundo, especifica de cada periodo, do Gético ao Barroco. Tanto na arquitetura quanto na filosofia, o surgimento do. -homem moderno é um marco que altera a produgao artistica _e teérica. Representa a descoberta e a afirmacao da subjeti- vidade criadora que se consolida no cogito, ergo sum de Descartes e na arte barroca. A historia da arquitetura divide-se. em dois momentos: um primeiro, onde os ediffcios mais significativos imitam o Universo (mimesis); e um segundo, onde o que importa 6 a expressao de uma progressiva subje- tividade, cuja autonomia e infinitude caracterizam 0 homem do século XVII que luta para se comunicar e se revelar ao mundo, através do trabalho executado na matéria pelo arqui- teto (metteur en oeuvre). Pesquisar 0 eclipse do sentido da arquitetura requer, antes de tudo, encontrar, justamente, em que ponto a passagem de um momento a outro contribuiu para seu aparecimento. Superar a atual crise, portanto, exige compreender as razGes e condicdes do nascimento do homem moderno, a fim de encontrarmos o sentido original da propria perda de sentido que agora experimentamos. > Conferir HEIDEGGER. Construir, babitar, pensar, p.345 et seq. 23 Cremos que uma releitura daquele periodo da arquitetura ocidental — do final século XII ao inicio do XVUI — resgata o aprendizado requerido ao critico atual e confere ao nosso estudo um inseparavel carater didatico. Esse carater é dupla- mente dimensionado. Por um lado, ele se dirige aos historia- dores, criticos de arte e, especialmente, aos arquitetos, procurando remeté-los aos significados primdrios dos quais se origina o objeto arquiteténico e aproxima-los do campo cientifico e filos6fico. Carece de sentido, como ja afirmamos, a analise do edificio que se abstrai das concep¢des existenciais que conferem totalidade e legitimidade ao produto do trabalho do arquiteto. Este documenta, nas suas obras, os problemas mais fundamentais colocados pela humanidade em um deter- minado momento histérico e é desta relacdo, entre ele e a sociedade, que depende o sucesso e 0 valor artistico do edificio. Por outro lado — na medida em que, com o mesmo interesse, dirigimo-nos a pessoas de outras dreas, especialmente a filo- s6fica — preocupamo-nos em orientar e educar os olhos para uma fruigao’ do objeto arquitetOénico que lhe faca justica e alcance a plenitude das significacdes contidas nos recursos formais, funcionais e construtivos adotados pelos arquitetos. Causa-nos preocupag¢ao, e isso se deve muito A pragmaticidade desenvolvida pelos préprios funcionalistas, uma progressiva dessensibilizagao ou dificuldade de entendimento da arqui- tetura enquanto manifesta¢ao artistica. Retomando-a enquanto tal, introduziremos os recursos especificos e as profundas pos- sibilidades significativas da sua linguagem, das quais, infeliz- mente, afastamo-nos cada vez mais. Dai a estratégia da nossa andlise. Em primeiro lugar, re- colheremos edificios que comportam um elevado grau de monumentalidade frente 4 histéria. Contudo convém nao con- fundirmos monumentalidade com grandiosidade, pomposi- dade ou algo parecido. Entendemos 0 monumento como aquele edificio que incorpora um determinado valor, ideologia ou Mensagem e a transmite pelos séculos afora. Por isso, eles permanecem no tempo. Tal escolha, portanto, se define pela capacidade do edificio revelar-nos os valores de uma época hist6rica determinada; capacidade esta que ajuda a definir o seu valor artistico-expressivo. Assim, por exemplo, tanto 24 a suntuosidade da Basilica de S40 Pedro como a rusticidade de Santa Sabina, ambas em Roma, carregam enorme valor monumental. Passemos ao segundo ponto. Nosso objetivo aqui é visualizar as concep¢oes mais significativas em que se da a formacio do homem moderno através da arquitetura. Se o conseguirmos, acreditamos afirma-la como meio fundamental por intermédio do qual o homem confere significado 4 sua existéncia. Por isso, o caminho da investigagao que adotamos se dedica, primei- ramente, a analise do edificio para, em seguida, e através dele, reconhecermos as concep¢ées histéricas das quais é expressao. Assim, evitamos um duplo erro: cair em um histo- ricismo no qual a arquitetura é tomada como mero reflexo da €poca, sem reconhecer o papel ativo por ela desempenhado de afirmar ou contrariar as ditas concep¢ées e evitar um incon- tavel numero de aspectos histéricos irrelevantes que fariam desviar a atencdo da potencialidade expressiva do objeto artis- tico. Ndo queremos provar que a arte é produto do meio, mas que € co-autora dele, e interage com ele dialeticamente. Chegamos, entdo, ao terceiro ponto de nossa estratégia. Desejamos uma descricao clara e relevante da totalidade arquitetOnica e procuramos a intencdo que a ela preside. Consideramo-la como um pequeno mundo, onde se concre- tizam valores sociais os quais procuramos identificar, sem perder de vista a especificidade da linguagem artistica. Trés momentos sio basicos para essa andlise. Primeiramente, devemos empreender uma andlise sintdtica do monumento, estudando a construcdo légica interna do seu sistema de sim- bolos, formas, técnicas e materiais. Embora esse momento nao baste para revelar-nos a verdade da obra, ele é impres- cindivel para se alcangar a atitude adequada ao recolhimento da experiéncia transmitida pela obra, e para fazermos justica ao objeto estudado. Sem ele, nado nos embasaremos o suficiente * Segundo Argan, ef monumento es un edificio que conserva su valor y lo transmite mds alla de su propria grandeza bistérica, |...) una forma arquitec- tonica que transmitia un contenido ideolégico, un contenido que se supone conserva una vallidez mds alla de su término, [...] es la obra de arte que atraviesa los siglos conservando y transmitiendo su proprio valor ideolégico. ARGAN. El concepto del espacio arquitecténico desde el Barroco a nuestros dias, p.55 et seq. , para a posterior analise, nem alcangaremos © carater didatico pretendido. Em um segundo momento, a andlise pragmadtica estuda a relacio existente entre o edificio e€ aqueles que oO habitam, procurando encontrar as modificagoes, reacoes, atitudes e sentimentos despertados no fruidor, com vistas a transmissio de mensagens e valores significativos de um determinado periodo. Enfim, é necessario 0 Ultimo e mais interessante momento: a andlise semdntica, em que estuda- remos a relacio entre aquele sistema de simbolos € a reali- dade histérica com a qual ele interage, entre o signo e 0 designado. Nesse momento, a arquitetura leva-nos a uma meta-arquitetura, a algo que a ultrapassa e nos p6e em con- tato com os valores da época e as significagées primarias que lhe conferem a exceléncia de Arte.? Mas sera legitima essa passagem? Nao estariamos ai tornando a arquitetura excessivamente ampla e dela exigindo mais do que nos pode dar? Esticando-a no /eito de Procusto de nossa teoria? Nao. Na medida em que a analisamos como Arte, é justamente este o seu dever. Em primeiro lugar, pela propria esséncia do objeto artistico. Enquanto a clencia se baseia em simbolos descritivos, a arte procura simbolos expressivos que nos proporcionam conhecimento, mas também expressam valores. A cipula do Pantheon, por exemplo, sugere um antropocentrismo; a de Santa Sofia, uma admiracao mistica; a ogiva gotica, um sentimento de transcen- déncia; a cipula de Michelangelo, uma atitude introspectiva. A obra de arte é a concretizacao de um objeto intermediario, resultado do encontro de valores — filosdficos, cientificos, religiosos, éticos e estéticos — que por ela sao conservados, comunicados e tornados comuns. Mas, o que é um valor? “E o proprio de um bem, de um objeto que responde a algumas de nossas tendéncias e satisfaz algumas de nossas necessidades.”® Por isso a arte comunica-nos os valores fundamentais do mo- mento historico por ela concretizado. Cada detalhe arquitet6nico de um templo grego, por exemplo, se faz morada da divindade, 5 Essa estratégia inspira-se na andlise estrutural proposta por Norberg-Schulz e H. Sedlmayr. Conferir NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura, p.36-70. 6 DUFRENNE. Estética e filosofia, p.23-31; NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura, p.45-49. 26 aproxima-nos da vida e do mundo grego, manifesta-nos a violéncia dos ventos, a agitagao do mar, o brilho do céu, a luminosidade da pedra e as sombras da noite. Como diz Heidegger, a obra de arte “realiza a abertura de um mundo, mantendo-o permanentemente presente”.’ A obra, portanto, apresenta-nos o mundo do qual é devedora, e nenhuma investigacdo hist6rica sobre ela pode prescindir desta remissao semantica ao mundo que a originou, sob pena de tornar-se incompleta e ingénua. Se nao bastasse isso, a prépria definicAo de arquitetura exige que ultrapassemos o puro objeto, e reconhecamos os valores e 0 mundo que o edificio torna visivel. A origem etimoldgica da palavra arguitetura, entre os gregos, decorre da necessidade de distinguir algumas obras providas de significado existencial maior do que outras, que apresentavam soluc6es meramente técnicas e pragmaticas. Assim, precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, agdo de construir, construcao), acrescentou-se o radical arché(origem, comeco, principio, autoridade). Nessa origem da arquitetura, se a entendemos como Heidegger, encontra-se o ser essencial da propria arte, o qual a distingue da simples construcdo. Se- gundo Vernant, o termo arché aparece no vocabulario de Anaximandro traduzindo a soberaneidade, a exceléncia de um principio original e comum a nortear e ordenar a sociedade grega. A arché é o centro da esfera social daquele mundo e deve ser traduzida nos edificios, apresentando os deuses, a hist6ria e a conformacdo ética do povo grego. Por essa raz4o, distinta da simples construcdo, a arquitetura reenvia-nos 4s origens, aos principios fundamentais e 4s leis originais e éticas que atravessam uma sociedade. Ela produz a visibilidade de um mundo e de sua ordenacdo e, por meio da arché nela contida, nos da acesso ao campo originario de onde emerge o edificio com a exceléncia e a legitimidade de objeto ’ HEIDEGGER. A origem da obra de arte, p.54. Conferir também a apresentagao de Maria José R. Campos e o primeiro capitulo, A coisa e a obra, da traducao desse livro, In: HEIDEGGER. Revista Kriterion, p.185-210. Ver ainda PANOFSKY. Significado nas aries visuais, p.22-26, 33-36; ECO. Obra aberta, p.54, 55. Nessa obra Umberto Eco afirma: “A arte, mais do que conhecer o mundo, produz complementos do mundo, formas aut6nomas que se acrescentam As existentes [...] e que podem perfeitamente serem encaradas senio como substituto do conhecimento cientifico, como metaéfora epistemoldgica.” 27 arquitetOnico. Portanto um triplo suplemento encontramos nele. Em primeiro lugar, ele reenvia ao comeco, a uma ins- tancia originaria que o distingue (suplemento de origem). Além disso, essa origem é ordenadora e, assim sendo, o edificio é harmonioso trazendo em si uma unidade e uma lei exemplar de organizac4o (suplemento de ordenacdo). Em Ultimo lugar, ele é digno de ser teorizavel, ou seja, de permitir uma inves- tigagao que alcanga o mundo que lhe da origem (suplemento de fenomenalidade ou visibilidade). Por sua prépria definicdo, a arqui-letura exige-nos esse estudo histérico e teérico, no qual se pode demonstrar como ela nos péde em contato com as origens arquetipicas, as representacdes e as concep¢des mais fundamentais daqueles que a construiram. Assim fazendo, a arquitetura participa da hist6éria das significacées existen- ciais, torna-se signo do homem e permite-nos atingir suas concep¢odes mais profundas. Quais seriam estas? As concepc6es sobre si mesmo, sobre a natureza que o cerca e sobre o absoluto, divindade ou origem da propria existéncia e do universo. Por isso, depois de atravessarmos as andlises sin- taticas, pragmaticas e seminticas dos edificios, aportaremos nos campos cientificos, religiosos e filos6ficos dos diversos momentos da formagao do homem moderno, procurando encontrar neles os fundamentos da arquitetura. Eis, entdo, a nossa chave de leitura: reconhecermos na arché da arquite- tura a arché da €poca, do mundo, do modo pelo qual os “homens habitaram a terra em um determinado momento” .® Nesse ponto, evidencia-se a razdo do carater filoséfico deste estudo. Quando situamos a arquitetura como arte, reconhecemos o suplemento de fenomenalidade ou visibili- dade nela produzido. Isso significa que a andlise estética considera as formas construtivas tais como estas se d4o na sensibilidade do fruidor, que, com elas, estabelece uma relacao familiar, imediata, construfda no reino da pura visibilidade. Dai resulta a comoc4o do nosso olhar. Sendo bem formado, esse olhar € capaz de levar-nos aos limites do visivel, presentifi- cando-nos o sentido da totalidade histérico-cultural da obra de arte: é o préprio desejo de ver o caminho que nos conduz "Sobre o significado, a origem e a etimologia da arquitetura, conferir PAYOT. Le philosophe et l’architecte; sur quelques déterminations philosophiques de l'idée d’architecture, p.7-11 e, principalmente, p.53-65. 28 a filosofia. Através dela, resgatamos a espessura do mundo original e © espetaculo do qual os homens, a obra e os artistas participavam sem, talvez mesmo, perceber. Aquela andalise estética que, inicialmente, tomava o edificio em sua fenomenalidade — como algo que se da a ver, que se mani- festa —- ganha assim uma dimensdo filosdéfica que nos leva a buscar na manifestacao da obra a manifestacao do mundo no qual ela se insere. O esforco filos6fico se ancora, portanto, numa aprendizagem da sensibilidade que aponta para o leitor, através da analise do monumento, a possibilidade de leituras sensiveis mais aprofundadas que o fazem perceber no espaco construido o espaco vivido. Os proprios conceitos operatérios da arquitetura véem-se alargados no horizonte dessa abordagem. Quando encontrarmos, por exemplo, 0 centro, o caminho, a luze as tensdes nos edificios, reconheceremos nao apenas elementos espaciais, mas estruturas existenciais que 0 arquiteto cuidou de assumir e presentificar. Isso estabelece um jogo de sentido rico e critico por meio do qual a arquitetura é reconduzida ao espacgo maior da histéria. Mas, simultaneamente, a histéria se reconhece na concre- tude da obra arquitet6nica e, também aqui, é importante o olhar filosdfico que a resgata e que, infelizmente, parece faltar no revivalismo presente em parte da producao arquiteténica pdés-moderna. Esse olhar afasta-nos da “historicidade letal, oficiosa, pomposa e idolatrada dos museus”, como diz Merleau-Ponty, em A Linguagem Indireta e as Vozes do Siléncio, e€ nos introduz em uma historia da arquitetura mais viva e mais real, que exp6e a pulsacao da vida do artista sob sua época. Através da obra, o olhar filos6fico me instala no tempo, inspeciona 0 mundo e acolhe o sentido original do edificio. Por meio dele, a hist6ria da arquitetura deixa de ser um fdolo exterior, ou um arquivo de formas, para ser um Aambito de interrogagdes e espantos, um centro de reflexSes que jamais se esclarece conclusivamente, mas que insiste em invocar a verdade da arquitetura — da qual parecemos nos afastar definitivamente. Enfim, s6 esse olhar critico e vigilante pode impedir que as informacoées histéricas se esgotem no passado. E ele o responsdvel pelo desejo incessante de conferir As reflexdes deste livro um sentido de abertura para a conside- racao da arquitetura presente e futura. 29 Tais propésitos justificam 4 bibliografia adotada. Trés autores foram fundamentais. Primeiramente, Daniel Payot e seu livro Le Philosophe et L Architecte, pelo reconhecimento da arché filos6fica dos periodos mais importantes da historia da arquitetura, inspiracao deste trabalho. A seguir, Christian Norberg-Schulz, autor da andlise estrutural mais interessante, a nosso ver, dos periodos da histéria da arquitetura ocidental. Em seu Meaning in Western Architecture, Principalmente, encontramos tanto uma boa andlise das obras quanto uma ancoragem, ainda que rapidamente feita, no mundo que lhes deu origem. Contudo, talvez pela amplidao temporal a que O autor se propde abarcar, nao saboreamos a substancia profunda dos periodos investigados e a maneira pelas quais eles se inter-relacionam. Compreendendo o estudo da for- ma¢cao do homem moderno neste periodo que vai do Gotico ao Barroco, acreditamos precisar melhor tais relagées. Tam- bém a leitura hist6rica da arquitetura feita por Giulio Carlo Argan tornou-se importante caminho de acesso As origens da arquitetura no periodo estudado e, embora bem mais restrito do que o mundo revelado por Norberg-Schulz, o seu cotejamento entre os PropOsitos dos varios estilos e dos varios arquitetos é precioso, principalmente o desenvolvido em El Concepto del Espacio Arquitetonico desde el Barroco a Nuestros Dias. Reconhecido o territ6rio basico da investigacao arquitetOnica, cumpre destacar os autores que nos guiaram na investigacao cientifica e filos6fica da passagem do homem e do universo gético ao homem e ao universo moderno. Entre esses, Ernst Cassirer Undividuo y¥ Cosmos en la Filosofia del Renacimiento), Edwin Burtt (Los Fundamentos Metafisicos de la Ciencia Moderna) e Robert Lenoble (Origines de la Pensée Scientifique Moderne) forneceram-nos os pontos fundamentais da mudanca ocorrida. Delimitada, assim, a geografia a ser per- corrida, partimos para a consulta aos estudos mais interessantes relativos a arte e A arquitetura de cada época, e para os textos mais representativos das concep¢ses do homem em cada uma delas. Do primeiro estudo, destacamos Worringer, Panofsky, Wittkower, Pappaioannou, Venturi, Hauser, Maritain, Giedion e Zevi, além dos ja citados Argan e Norberg-Schulz. Do segundo destacamos, dentre outras utilizadas, as obras de Dante, Shakespeare, Cervantes, Nicolau de Cusa, Bruno, Bacon, Galileu, Maquiavel, Montaigne, Pascal, Leibniz, 30 4 Newton, Hume e, principalmente, Descartes. Uma de nossas grandes perguntas no comeco deste trabalho era em que ponto as duas principais manifestagdes do homem seiscentista, aparentemente tao opostas, 0 racionalismo cartesiano e a arquitetura barroca, se entrelacavam. Para resolvé-la, alguns comentadores de Descartes, como Gueroult, Laport, Lefréve e Lebrun foram-nos de grande ajuda. A esses e aos demais — impossivel serem todos comentados aqui — espero que nosso estudo faga justiga, assim como a preciosidade dos seus textos. Bem sabemos quao dificil seria acrescentar-lhes algo novo ou pretender substituf-los. Contudo, dar-nos-emos por satisfeitos se, reunindo-os, sensibilizarmos fildsofos, arquitetos, estudantes, historiadores, criticos, professores de arte e outros interessados em uma dimensio existencial da arquitetura enquanto signo do homem, merecendo interesse e reflexao muito mais ricos e profundos do que aqueles que, até agora, tém-lhe sido dedicados. Nao se trata apenas de estudar o seu passado, mas recuperar o seu sentido, recuperda-la enquanto arqui-tetura, salvando-a, enfim. E o que significa salva-la? Deixa-la voltar ao seu proprio ser de habitacdo, de estadia dos mortais na terra, de lugar no qual reside a nossa. condi¢ao humana. Tratemo-la com cuidado, portanto. 31 0 GOTICO De Deus, a cobra humana é neta, é descendente. Se volveres a lembranga ao Génese, entenderas que o homem retira da natureza o seu sustento e a sua felicidade. Dante Alighieri A Divina Comédia, Inferno, XT. DO PANTHEON ROMANO A CATEDRAL GOTICA Desde a arte classica, como exposto por Vitrivio em De Architectura Libri Decem (século I a.C.), até o inicio da modernidade, a arquitetura afirma estabelecer uma relacdao de reciprocidade com o universo..O edificio se assemelhaao cosmos, € a sua construgao a criacdo_do_universo. Dessa forma, um envia ao outro e, através da arquitetura, micro e macrocosmos se comunicam. O universo serve como.modelo original para o edificio e este, reciprocamente, apresenta-nos _O universo: O templo representa o mundo; mas o mundo, inversamente, é construido como um templo. Aqui, o reenvio € reciproco [...] e o edificio como arqui-tetura, isto é, ordem simétrica, reenvia ao mundo como modelo, isto é, harmonia, proporcionalidade universal. ! ~~ Esse periodo da histéria da arquitetura, como afirma Payot, € dominado pela idéia de uma mimesis arquitetural, em que © edificio adquire sua exceléncia, sua arché, ao enviar-nos a ee 'PAYOT. Le philosophe et l’architecte; sur quelques déterminations philoso- phiques de l’'idée d’architecture, p.68. (grifos nossos) wo origem, ao mundo, ao Criador, ao modelo césmico, a natureza: “alguma coisa de divino — que confere a arquitetura superio- ridade —- comanda, ent&io, varias tentativas para produzir a verdadeira arquitetura: imitar o edificio construido segundo as prescrigdes de Deus”? O Pantheon (Roma, 118-128) € um belo exemplo disso ao impressionar o espectador pelo cardter césmico do firmamento que sua ciipula representa. O espaco circular, centralizado no eixo vertical, definido sob a grande abertura no zénite da cipula, domina o Pantheon. Nele, a sagrada dimensao da vertical se introduz na organi- zacio interna do espago, unifica a ordem cO6smica e a ordem humana e faz com que o homem “se experimente como um deus inspirado, explorador e conquistador, como um produtor de historia de acordo com o plano divino”.’ Este homem é quase divino, confiantemente estabelecido no seu poder, na sua autoridade e no império que domina e explora. Tal centralidade reflete, portanto, além do universo, a confian¢< que o homem.deposita em si mesmo e€ que O leva a figurar um pseudocosmos, em suas construgoes, no centro do qual ele se imagina situado. Com significado semelhante, vere- mos esse esquema espacial centralizado repetir-se nas plantas renascentistas. Contudo, junto com a decadéncia do império romano, dilui-se essa divinizagao do homem e, como conseqtiéncia, os edificios medievais deixam de criar o pseudocosmos antropocéntrico do Pantheon. Neles, uma. atmosfera diafana_. e mistica penetra no espaco e desperta no espectador um sen-_ timento de sobrenaturalidade e transcendéncia. A mesma idéia de mimesis permanece presidindo os edificios. Porém, nao sao mais os céus que chegam 4 terra, mas o homem que deve elevar-se a Deus e 2 graca divina} E a igreia €¢ o edificio encarregado dessa ascensao, que nos poe em contato com verdades mais elevadas do que as encontradas no plano ter- reno. E dentro da igreja que o Deus cristao — que nao pode 2 PAYOT. Le philosophe et 'architecte; sur quelques déterminations philosophiques de Vidée d’architecture, p.74. 3 NORBERG-SCHULZ. Genius loci; towards a phenomenology of architecture, p.34,52. Sobre o Pantheon, conferir, nesta mesma obra, p.50-57; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.61; NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura, p.80. 34 ser compreendido. como abstracao de fenédmenos naturais . Z“ . , hist6ricos ou humanos, mas so pela fé — se revela. E ela a . portadora da mensagem religiosa, a Unica que providencia seguranga existencial e espiritual para o homem do medievo: € preciso atingirmos o amor de Cristo para compreendermos o significado da vida. i Figura 1 - PIRANESI, Giovanni Battista. Pantheon. Interior (Gravura do século XVID Espacialmente, essa comunhdo deve ocorrer no altar, onde reside o centro de ascensio. Mas, para atingi-lo, deveremos percorrer todo o caminho longitudinal da nave, simbolo do caminho da salvacdo que devemos trilhar em nossas vidas. Depois de comungar com Cristo, o homem retorna ao mundo e contribui para transforma-lo numa verdadeira civitas det. A basilica crista primitiva é a responsdvel por introduzir essa longitudinalidade crist& que substitui a centralidade romana. Santa Sabina (Roma, 422-432) é um 6timo exemplo disto. A articulacdo horizontal é nitidamente dominante e o movimento 35 em profundidade é ritmado pelas arcadas da nave, pela cobertura e pela sucessao dos vitrais superiores. A wrajerona do observador € 0 tema interior da construcao, definindo O dida que nele se caminha:/O Pantheon era estatico espaco a me a-/O Panthes o. Santa Sabina, ao contrario, € dinamica, tensionada e centralizad: t . tar e a nave, banhada por uma luz lao uniforme que, entre o al 10 U atravessando as aberturas como se fosse a propria mensagem divina, ilumina a parte de cima do edificio e reserva uma maior ? escuridao para as naves laterais inferiores. Ao penetrar, a luz trabalha a superficie, desmaterializando-a, o que resulta num. espaco mais espiritualizado.“C Figura 2 - Santa Sabina. Planta t Tanto o movimento horizontal como essa spina sao mais evidentes em San Apolinar Nuevo (Ravena, 493-52¢ )», onde o ritmo faz-se mais acelerado pelo excesso de referencias horizontais e a anulagao das verticais ¢€ onde se utiliza uma cromaticidade bem maior no revestimento interior. | Mesmo nas plantas centrais do Bizantino, as linhas verticais sio ofuscadas e o espaco se dilata até fluir velozmen alcancar as perspectivas mais tensas. A famosa Santa ve ia (Constantinopla, terminada em 537) €um bom exemp oO ‘ isso, com suas arcadas internas a tensionar € longitudinalizar a planta centrada. Como no Pantheon, sua cipula coroa a igreja e mimetiza o universo. —_— 4 Sobre a Basilica de Santa Sabina, ver NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.66, ZEVL. Saber ver la arquitectura, p.62-69. 36 Em Santa Sofia, porém, a luz é didfana‘e a atmosfera mistica inunda o edificio, desmaterializa o cardter tect6nico dos muros € transporta o fiel para um mundo onde nao valem as leis do reino fisico e profano, mas as do sobrenatural e transcen- dente Reino de Deus,-Nao ha aquele eixo vertical e centrali- zador do Pantheon, definido pela abertura zenital. Em Santa Sofia, as janelas cruzam, sob a cupula, fachos de luz que representam a luz divina emanada da abdbada celestial, difun- dindo-se sobre o mundo dos homens. Esse efeito é reforgado pelos pilares e paredes que perdem sua aparéncia de suporte e sao desmaterializados pelo revestimento de mdrmore e mosaicos. Um poeta da corte de Justiniano I (483-565), que mandara construir a igreja, expressa o sentimento evocado por Santa Sofia: Quando o primeiro raio de luz, com seus bracos rosados, expulsou as trevas saltando de arco em arco, todos os principes e o publico cantaram cinticos de prece e louvor; lhes parecia que os poderosos arcos tivessem sido edificados no céu. E acima de tudo se eleva pelo ar incomensuravel o grande elmo que, curvando-se como os céus radiantes, abraca a igreja. [...] A torrente dourada de raios resplandecentes cai como chuva e golpeia os olhos dos homens de modo que mal se consegue olhar. [...] Assim, através dos espacos da grande igreja irrom- pem raios de luz que expulsam as nuvens de preocupacio, preenchendo o espirito com esperanga, e mostrando o cami- nho para o Deus vivo. [...] Quem quer que ponha o pé dentro deste lugar sagrado gostaria de nele permanecer para sempre, e seus olhos se encheriam de lagrimas de jubilo.6+™ Na igreja, portanto, o fiel sente-se transportado para um mundo transcendental, onde se pde em contato com a luz de Deus, quase a cegar-lhe. Para isso, ser4é importante a apre- _sentacgao do caminho da salvacdo, ao fim do qual faz-se a comunhao, favorecendo a interpretagdo longitudinal das basilicas cristas primitivas, modelo que sera adotado de prefer€ncia aos esquemas mais centralizados da arquitetura * Versos de Paul, the Silentiary, citado por NORBERG-SCHULZ. Meaning in wesiern architecture, p.69, 70. Sobre Santa Sofia, conferir, ainda nesta mesma obra, p.66-70. Sobre as arquiteturas cristi primitiva e bizantina, conferir NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.58-74; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.62-69. 37 bizantina. Desta, permanecera o tratamento interior das super- ficies e 0 carater transcendente e espiritual de seu espaco. Observe-se que, tanto no Paleocristéo como no Bizantino, o edificio se volta para dentro de si préprio. Seja pela tensio entre a porta e o altar, seja pela tensao entre 0 alto e o baixo, em ambos os estilos o mundo divino e o mundo humano se colocam a distancia, quase como rompidos e inacessiveis. A partir da arquitetura romanica uma nova relagio comega a se estabelecer: a igreja se abre para seu entorno e torna visivel a mensagem religiosa desenvolvida no seu interior. Com isso, ela torna-se forga ambiental ativa que invade o mundano e representa a tentativa de fazer a mensagem divina penetrar neste mundo e interagir com ele. Também a métrica romanica e o ritmo longitudinal dos seus edificios procuram uma comunicagao maior com o movimento do homem, inclusive, exteriormente. A Catedral de Pisa (1063-1118) e a Catedral de Santiago da Compostela (1075-1125) exemplificam essa maior comunicabilidade do edificio. Figura 3 - Campo Santo. Pisa 38 Junto com a longitudinalidade, as torres sineiras encarregam-se de verticalizar a construcao. Norberg-Schulz percebe af um duplo propésito de transcendéncia e protecao. Transcendéncia, entendida como o desejo de se alcangar as verdades e graca divinas, e protecdo, simbolizando o papel de seguranga exis- tencial que a Igreja desempenhava para o homem medieval. Ao verem esses elementos verticais, todos os homens sob ela abrigados percebiam a protetora existéncia de Deus. ¥ Durante os séculos X e XI, igrejas e monastérios converteram-se no centro espacial, politico e econdmico europeu, ao incor- porarem as verdades divinas que deviam reger o mundo humano. Essas verdades eram espirituais e deviam ser repre- sentadas na matéria construtiva dos edificiosyAssim a arquite- tura romanica aproxima-se do G6tico ao representar a immaterialia na materialia construtiva, com mais desenvol- tura que o Bizantino. Para isso, foi de grande importancia no romanico o desenvolvimento de uma linguagem tecténica mais baseada na ossatura estrutural do que nas massas, como se vé no interior de Santiago da Compostela ou na Abadia de Cluny (1157), onde os vazios dominam os cheios. Contudo, na aparéncia geral do edificio romanico, ainda eram por demais evidentes o peso das pedras, a natureza dos elementos construtivos e as leis fisicas, como a da gravidade.® Chega-se, entao, 4 arquitetura gdtica, concretizagao de todo o anseio espiritual medieval, e a representagao mais bem ela- borada das concep¢des que o homem do perfodo desenvol- vera a respeito de Deus, do mundo e de si mesmo. Também nela, a arquitetura tera um escopo religioso e servira como guid para a transcendéncia do plano inferior ao plano superior. Seu ideal de beleza é o “esplendor do verbo encarnado”, inseparavel do bem e da verdade.’ Mais do que qualquer periodo anterior, sera o século XHI imponente pela amplitude e pela harmonia, o século c/dssico da Idade Média. E a arqui- tetura gdtica, construtivamenté 4 mais desenvolvida e ousada que a bizantina ou romfnica, regera a sinfonia das artes e cada arte em particular (pintura, escultura etc.), adequando a ° Sobre a arquitetura romanica e seus significados, conferir NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.75-91; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.72-75; CONTI. Como reconocer el arte romdnico, p.6-39. ” Conferir NUNES. Revista Barroco, p.24. 39 forma a idéia, a tecnica A expressao.® A arquitetura romanica, trabalhando com abdbadas de pedra, caracteriza-se pelo aspecto pesado, em que a ess€ncia. material constitui a base_ tanto da construgao como da expressdo estética: “o estilo romanico é _um estilo de massas”, afirma Worringer. Procu- Tando “espiritualizar a matéria e dela extraindo as energias vitais ativas”, as nervuras e ogivas do estilo gotico expressaram, : i . 1 8 mt . A +49 9 de maneira mais intensa, o “afa’ medieval de transcendéncia”. O processo de desmaterializagao da arquitetura conclui o esforco abstrato de toda arte medieval, ao erigir, a partir do final do século XII, uma “construc4o toda nervo, sem carne supérflua, sem massa inutil e que correspondia as necessidades. da-alma gotica”.!” Como diz Worringer, “a catedral gotica € a representa¢gao mais enérgica e ampla da sensibilidade medieval”. Nela, a mistica e a escolastica, as duas poténcias vitais da Idade Média, e que costumam aparecer em inconciliavel oposigao, permanecem inti- mamente unidas e profundamente compenetradas. Se_o espago interior é todo mistica, o exterior do edificio é todo. escolastica. Une-os o mesmo afa de transcendéncia, o qual se serve de distintos meios expressivos, ora da sensa¢ao organica, ora do mecanismo abstrato. A mistica do espaco interior € uma escolastica vertida para o intimo, desviada no sentido da sensacdo organicay’ Dir-se-ia que o inconcebivel movimento ritmico do espaco se petri- ficou do lado externo. As forcas ascensionais, que no interior nao chegaram 4 quietude, parecem precipitar-se para fora, a fim de, livres de toda estreiteza e limitacZo, irem perder-se no infinite, Em renovados alentos, abragam-se ao ntcleo do espago interior para supera-lo e, acima dele, disparar em diregao ao infinito." Esse perfeito recobrimento entre a arquitetura gdtica e o espirito do século XIII, referenciado na escolastica, exemplifica a unidade da concep¢ao filos6fico-religiosa do mundo medieval. ® COHEN, SCHNEIDER. La formation du génie moderne, p.2. Ver, nessa mes- ma obra, a Introduction générale, p.1-12. 9 “Esta forma é, para dizé-lo assim, um breve esquema linear do afA medieval de transcendéncia e, portanto, do afa gético de expressao. WORRINGER. La esencia del estilo gotico, p.116. 10 WORRINGER. La esencia del estilo gético, p.119. Conferir, nesta mesma obra, p.83-96, p.115-124. " WORRINGER. La esencia del estilo gotico, p.125-128. MEME P ot 40 —F ARQUITETURA E SIGNIFICADO: O ESPACO GOTICO A catedral gética recolhe as potencialidades espaciais dos periodos precedentes do medievo e as desenvolve plena e organicamente no seu espaco. Dizemos ser ela a classica expressio da Idade Média porque nela se reunem a longitu- dinalidade do Cristao Primitivo, a espiritualidade, misticidade e transcendéncia bizantinas e o estruturalismo, verticalidade e comunicabilidade urbana despontados no Romanico. Além disso, como veremos, a catedral g6tica realiza a idéia de uma perfeita proporcionalidade entre o nivel inferior (mundo sublu- nar) e o nivel superior da criagdo (mundo supralunar), base do periodo medieval e da arché de suas construgdes. Em sua pedagogia, ela torna visiveis as palavras da Sagrada Escritura e serve como modelo educativo para o homem conquistar um habito mental escolastico, ajudando-o a visualizar as verdades mais elevadas, bem como afirma e transmite o papel central da igreja durante a Idade Média, fonte de todas as verdades e vértice regulador de toda a piramide hierarquica da sociedade e valores do periodo. Vimos que, apesar de sua aparéncia robusta, a igreja roma- nica desempenha um papel urbano mais significativo e conver- te-se em centro das pequenas cidades que se desenvolvem a partir do século XI. No século XIII, essas cidades, tendo como base o comeércio, j4 se desenvolveram o suficiente para conquis- tar relevante autonomia, atividade e estrutura. Dentro de seus muros, uma vida comunal ultrapassa os limites dos mosteiros e€ passa a compreender uma unidade social mais ampla. A organizacao urbana ideal da época colocava a catedral no centro. Dela irradiavam-se dois eixos perpendiculares (Norte- Sul e Leste-Oeste), lembrando a cruz, que dividiam a cidade em quatro quadrantes. Ordenando-a desta forma, acreditava-se que a cidade repetia a mesma ordenacgao césmica concebida pela imaginagaéo medieval, cujo universo era estruturado em quatro pontos cardeais e concebia Roma e Jerusalém, simbolo e berco da cristandade, como seu duplo centro. A fun¢do primor- dial da catedral é, portanto, estruturar e organizar o espaco, tornando visivel o papel central da igreja como instituicao que deve governar a sociedade. Mais do que no Romi§nico, 41 ela acentuara aquela verticalidade que desperta no espectador um duplo sentimento de transcendéncia e protecio. No Romi- nico, essa verticalidade era articulada isoladamente nas torres. No Gotico, toda 2 igreja, dos arcos botantes As ogivas, se eleva: a verticalidade e a longitudinalidade se articulam aos olhos do espectador. As grandes catedrais da Inglaterra, como a de Westminster (1245-1269), chegam a igualar a verticalidade a longitudinalidade dos seus edificios. Em St. Stephen, em Viena (1258-1304), vemos, inclusive, como uma decoracao superposta acentua a verticalizacdo do ja inclinadissimo telhado. De tais centros verticais irradiam-se a mensagem e a verdade definitiva da religiao. se aa a) Figura 4 - St. Stephen. Viena 42 O papel estruturador da igreja é reforgado pela valorizacio visual do esqueleto do edificio. Toda a impressio de massa é retirada das paredes, as quais sao transformadas em estruturas diafanas e transparentes onde dominam 0 vazio e a luz: é a desmaterializagdo arquitet6nica medieval a reduzir a materialia construida a linhas abstratas que dominam a nossa visiio. A despeito da pedra de que é feita, a catedral gdtica d4 a sensagio de ser o espirito representado pela luz e pelo vazio, o que verdadeiramente sustém o edificio. Externamente, a primeira consequéncia visual é que o interior transparece no exterior, € a mensagem da igreja se irradia para toda a comunidade, ofere- cendo seguranga e foco existencial. Como diz Norberg-Schulz: O exterior da catedral perde qualquer trago de fechamento maci¢o como resultado do desejo de transmitir o espirituali- zado espaco interior para todo o babilat. O significado da igreja nao permanece mais encerrado, mas torna-se parte do ambiente cotidiano.” Uma vista da cabeceira de Notre-Dame de Paris (1163-1250) € um impressionante exemplo disto. Outra vista da elegantissima Notre-Dame de Chartres (1194-1220), também nos revela como a catedral domina a cidade e se torna parte integrante dela, ao ser construida em estreito contato com as casas. Adentremos a igreja. Também no seu interior o edificio parece-nos descarnado e nos deixa 4 vista somente 0 esque- leto e os vitrais, as linhas tensas e abstratas daquele sob a luminosidade mistica, colorida e difusa destes. Mas, aqui, destaquemos a articulacdo e organizacio da catedral. Numa catedral como a de Amiens (construida a partir de 1220) ou a de Col6nia (a partir de 1248) nao se nota quase nenhuma linha horizontal. Ao mesmo tempo, a nave central é muito estreita em relacdo a sua altura (em Coldnia, a relacio é de 1:3,8) e as ab6badas ogivais estendem mais ainda a verticali- dade dos elementos, esculturas, frisos e pilares. O resultado € um movimento vertical vertiginoso e uma impulsao mistica que nao favorece uma contemplacao sossegada, mas sim um sentimento de éxtase, transcendéncia e admiracdo. '? NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.97. 43 £ bAweee Sout >S Figura 5 - Notre-Dame. Paris. Vista da cabeceira Observemos também a organiza¢gio espacial de uma catedral como a de Reims (construida a partir de 1211) ou a de Chartres. Em primeiro lugar, nelas e na maior parte das igrejas do perfoclo, a planta é disposta com a fachada principal a Oeste € a capela-mor a Leste, seguindo um partido longitudinal de trés naves como era comum nessa época. A significagao da longitudinalidade, como jd visto, refere-se ao caminbo da salvacdo. Interessante, contudo, é reconhecermos que a orientagiio dada ao edificio inspira-se na cruz, latina, reservando-se para o altar, onde se situaria a ima- gem da cabega do Cristo crucificado, o Leste, lugar da luz e do sol nascente. A Oeste, a fachada e a suposta imagem dos pés do Cristo crucificado, por onde o fiel sai do mundo e entra no corpo da igreja, d4 acesso ao espac¢o ao fim do qual a sabedoria divina se revela. Também é dominante o numero trés, repre- sentativo da trindade crista, em toda estrutura da igreja e nao apenas na organizacado da nave. Visualizamo-lo na articulagao horizontal e vertical da fachada e dos portais, nos triférios, clerest6rios e nas estruturas e ritmo espacial interno. 44 Figura 6 - Catedral. Colénia Através de magnificos vitrais, como os de Chartres, a luz banha o espago. Desde o comeco da hist6ria crista, a luz se liga A origem e principio divino das coisas, e nao é de se estranhar, portanto, o papel decisivo que ela deve desempenhar para despertar a religiosidade dentro das catedrais géticas. Pelos verticalizados vitrais das coloridas rosaceas e trif6rios, a luz ilumina e atravessa os episddios religiosos neles apresen- tados e acaba banhando as estruturas do mistico ambiente, no qual as verdades se revelam e a graga se alcanga. Concreti- zando toda a espiritualidade buscada desde 0 Cristao Primitivo, a luz desmaterializa a construcao e a igreja irradia para toda cidade esse abraco do espirito divino sobre a matéria, Os cristaos e o mundo terreno. ‘ Segundo Norberg-Schulz, o Gético conclui um periodo da cultura ocidental, denominado a ‘idade da fé”, no qual o homem experimenta uma progressiva compreensdo da reve- lacio divina e sua relacdo com o mundo. No Gotico, Deus se aproxima de nosso mundo e se apresenta plenamente como a fonte de todo significado existencial, sem o qual nada se compreende. A fé é€ 0 ponto de partida. A igreja é a fonte das verdades. A catedral gdética 6 por onde Deus se aproxima do mundo dos homens. Essa progressiva compreensao de Deus pelo homem também é claramente expressa na pintura, como © demonstram Venturi, Maritain e Panofsky. Desde o Bizantino — passando por Berlingheri, Cimabue, Duccio e outros — eles reconhecem uma progressiva humanidade nas represen- tacdes da pessoa de Cristo e dos santos; representagodes estas culminando em Giotto (1266-1337), em que se apresentam cenas do cotidiano medieval, da natureza simples franciscana e de uma atmosfera ética e religiosa de cardter mais laico. Em Giotto, finalmente, o “homem penetra na historia sagrada como se fosse sua propria historia: a divindade desceu até o homem e se tornou sua consciéncia moral”.’° 3 VENTURI. La peinttre italienne, les créateurs de la Renaissance, p.47. Para este belissimo estudo da progressiva presenga de Deus no mundo humano, vista através da pintura, conferir, além da obra acima citada, MARITAIN. Creative intuition in art and poetry, capitulo 1, PANOFSKY. Significado nas artes visuats, p.45-148. Sobre a arquitetura goética ver, a titulo de introdugcdo, GOZZOLT. Como reconhecer a arte gética, p.3-37; NORBERG-SCHULZ. Meaning it western architecture, p.92-112; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.75-81. 46 Figura 7 - GIOTTO. Exéquias de Sao Francisco Como a catedral gdtica transmitia a mensagem religiosa e filosd6fica que fornecia ao homem uma seguranga existencial? Responde-nos Norberg-Schulz que, inicialmente, ela se faz espelho de um mundo construido em bases religiosas e inspi- rado nas Sagradas Escrituras, tal como os escolasticos as inter- pretavam. Sua iconografia, sua iluminacado, seu essencialismo estrutural, sua atmosfera mistica e transcendente, tudo isto despertava no homem o sentimento de uma comunhao do mundo terrestre com o celeste que, ocorrendo na igreja, levava ao €xtase e ao aprendizado dos valores religiosos, admirados nos dogmas da fé, no exemplo dos santos e na hierarquia das virtudes vistas em seu interior. Como diz E. Male, “através da arte as mais altas concepcoes dos tedlogos e escolasticos penetram até certo ponto nas mentes dos seres mais simples”. Além disso, a contribuigao espacial que presidia a concepcio das catedrais se fazia 4 imagem da ordem césmica: sua arché se fazia desta mimesis. O homem, entendido como criatura privilegiada, tinha como ambi¢g4o aproximar-se 0 mais possivel do Reino de Deus e para isto, antes de tudo, ele tinha de ter fé e humildade, como Sao Francisco de Assis (1182-1226). “ Male. The gotic image, citado por NORBERG-SCHULZ, Meaning in western architecture, p.111. 47 Assim as proporgoes gigantescas e inumanas de uma catedral como a de Colénia, bem como o ambiente predominantemente mistico sao condicdes fundamentais para que o fiel se ponha em contato com Deus. Mas, além do sentimento religioso e mistico que despertava a fé, ponto de partida do sistema medieval, uma légica visual governa e articula a construgdo,| como se desse a entender que, a partir da premissa inicial da fé, a catedral ensina um método de raciocinio'que conduz o fiel a todas as verdades e respostas que lhe sao necessdrias. Esse raciocinio é 0 silo- gismo tipico da escolistica, cujo representante mais signifi- cativo é So Tomas de Aquino (1225-1274). A relagao entre a catedral gética e Sao Tomas de Aquino, desenvolvida por Panofsky, como veremos a seguir, constitui um dos estudos mais interessantes sobre a arte no perfodo. Isso porque, sendo o século XIII o século no qual se concretizam as principais aspiracdes do homem medieval, relacionar uma catedral gotica com a filosofia de SAo Tomas de Aquino — que, procurando ordenar o saber teol6gico e moral acumulado na Idade Média, constrdéi o seu maior sistema filosdéfico: a Summa Theologiae — resgata, no seu momento de maior maturidade e expressivi- dade, o fundamento de um periodo mais extenso que o século XII: a harmonia de toda a criagao com o Criador, a hierarquia do universo e a unidade artistico-cultural do medievo. DA ARQUITETURA AO MUNDO GOTICO A ARQUITETURA GOTICA E A FILOSOFIA ESCOLASTICA Na sua introducio, Panofsky ressalta a organicidade da relagao entre o gdtico e a escolastica e adverte para a contemporaneidade existente entre os trés periodos daquela arquitetura — uma época primitiva,, uma época classica e uma época tardia — e os trés periodos da escolastica — um periodo primitivo, uma idade de ouro e uma fase de decadéncia.'’ Para 0 autor, nao se trata de um '* PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.71-81. 48 ( ® simples paralelismo ou uma simples influéncia exercida pelos filédsofos sobre os artistas: Em oposicao a um simples paralelismo, essa conexao é€ uma auténtica relacdo de causa e efeito; em oposigao a uma influéncia individual, essa relacao de causa e efeito se ins- taura por difusio, mais do que por contato direto. Ela se instaura pela difusio do que se poderia nomear, na falta de melhor palavra, uma babitude mentale, conferindo a este termo oO seu sentido escolastico mais preciso de principio que regula 0 ato (principium importans ordinem ad actum).'® Os arquitetos, pouco provavelmente, teriam lido S40 Tomas de Aquino, mas estavam expostos a doutrina escoldstica, uma vez que “a totalidade do saber humano permanece acessivel ao espirito normal e nao especializado”.” Segundo Panofsky, para compreender como esse “habito mental” da escolastica influencia o Gotico|| no ldevemos procurar estabelecer a relacdo no contetido conceitual da doutrina, mas ( concentrar a atencdo sobre seu modus operandi.'* E, comecando por reconhecer a fungao social do arquiteto — encarregado de, com suas obras, impressionar o espirito do leigo para que este se ponha em contato com a escolistica —,” ele cita SAo Tomas: “A doutrina sagrada serve-se também da razao humana, nao para provar a fé, mas, para tornar claro (manifestare) tudo o que 6 exposto nesta doutrina.”*° O poder da razao esta em clarificar os artigos da fé, sempre tomada como ponto de partida, seja elucidando-os ou demonstrando-os logicamente, ‘6 PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.83. “Cf. Ibidem. p.70-84, 87. *® PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.89. A atenciio de Panofsky sobre 0 modus operandi, segundo Pierre Bourdieu, evita analogias superficiais, puramente formais e As vezes acidentais; conferir prefacio em PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.137. ? Ver PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.89-90: En réalité, ce que V'architecte, qui ‘concevait la forme de l'édifice sans en manipuler lui-méme la matiére’ pouvait et devait mettre en application, directement et en tant qu’architecte, c'est plutét cette maniére particuliére de procéder qui devait étre la premiére chose a frapper l’esprit du laic toutes les fois qu’il entrait en contact avec le scolastique. *° S40 Tomas de Aquino citado por PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.90. 49 até estabelecer a verdade Unica e maxima depreendida da Sagrada Escritura pelos filésofos da igreja, seja expressando-os ou fornecendo “similitudines que manifestam os mistérios pela via da analogia. Assim, a manifestatio, enquanto elucidacdo ou clarificagao, € o que podemos chamar de primeiro principio regulador da escolastica primitiva e classica.”! Dante dizia que O uNiverso inteiro (produzido pela natureza e pelo homem) deveria manifestar a gl6ria do senhor.” Também para o arqui- teto gdtico, o que se estabelece como func¢ao primordial do seu trabalho 6 tornar manifesta e visivel a verdade da Sagrada Escritura, tal como o fildsofo escolastico concebia como sua fung¢ao principal esclarecer e desenvolver as verdades primeiras, articulando razdo e fé. Ora, em que se assenta a possibilidade de essa manifestatio e essa abordagem anagdégica serem realizadas na arquitetura? A primeira condicdo se assenta na crenca geral da proporcio- nalidade existente entre o mundo inferior e o mundo superior, na analogia que deve existir nao s6 entre a catedral gética e O universo, mas entre o arquiteto e Deus. Entre esses dois agentes, como sugere S40 Tomas de Aquino, ha “um paren- tesco que se pode dizer estrutural: o que a idéia de casa, dentro do espirito do arquiteto, é para a casa (sua similitudo), a idéia do mundo, que esta em Deus, é para este mundo. [...] O arquiteto é, assim, o andlogo de Deus.”” O arquiteto conce- bido pelo escolastico deve colocar na sua construc¢io, e isto é€ o que a distingue das demais, meios pelos quais podemos pressentir a perfeicao divina e conhecer a sua verdade, mesmo que sem rigor filosdfico ou teoldédgico. O arquiteto preside sua construcao tal como Deus preside o mundo e, por isso, ele ocupa o lugar mais alto na hierarquia das artes. Em Sao Tomas de Aquino, a arquitetura é o andlogo do mundo e deve tornar visivel o principio, a causa e a hierarquia da criacdo.* *! PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.91. * Ver “A Divina Comédia e a arché medieval”, sobre a arquitetura do medievo, que se segue neste estudo. °° Sobre essa importantissima relagio analégica em Sao Tomas de Aquino, conferir PAYOT. Le philosopbe et Uarchitecte; sur quelques déterminations philosophiques de l'idée d’architecture, p.106-111. ** Conferir PAYOT. Le ph ilosopbe et l'architecte; sur quelques déterminations Philosophiques de l'idée d’architecture, p.110, 111. 50 A segunda condicao de possibilidade dessa manifestatio é a perfeita estruturacao de um sistema de pensamento que leva ao esquematismo ou formalismo, a fim de que, para o leitor da Summa, ou para o fruidor da catedral, as verdades da fé se tornem perfeitamente claras e seguras. Assim, nao sé a arquitetura deve manifestar a perfeicao divina e estimular a fé, mas também revelar a ordem légica da criagdo, sistemati- zando-a em partes e conjunto de partes, articulacdo suficiente, demonstrando a distincao e as necessidades dedutivas entre elas, inter-relacdo suficiente, e colocando seus imperativos de totalidade, enumeragdo suficiente, tal como nos livros esco- lasticos ou mesmo na obra de Dante.” O extremo cuidado com divisdes e subdivis6es sistematicas, demonstracSes met6- dicas, rimas, terminologias e outros aspectos significa que os escolasticos sentem-se obrigados a tornar palpaveis e explicitas a ordem ea Idgica de seus pensamentos, € que o principio de manifestatio, determinante da orientagio e do alvo de seus pensamentos, regia também a exposicao destes pensamentos, submetendo-os ao que poderia ser chamado o postulado da clarificacdo pela clarificacgdo.*® Esse habito mental, como diz Panofsky, ultrapassava as obras filos6ficas e literdrias. Também se fazia presente na miUsica — composta numa divisdo estrita e exata do espaco — ena arquitetura.*”” Mas é nesta tiltima que o principio da clarificagao triunfou completamente. Da mesma forma que a escoldstica classica € dominada pelo principio da manifestatio, a arquitetura gdética classica é dominada, como ja observava Suger, pelo que se pode chamar de principio da transparéncia.* *> PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.92. 6 Ibidem. p.95. (grifos nossos) * Conferir excelente estudo de PANOFSKY sobre o desenho medieval, destacando-se a concep¢do gética em Villard de Honnecurt. PANOFSKY. Significado nas artes visudis, p.108-128. ** PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.2. (grifos nossos) BIBLIOTECA“JACINTYOUCHOA" O primeiro exemplo dessa semelhanga € a relacdo entre a fé e a razao de um lado, e a espacialidade interna e externa de outro. Depois de analisa-la na pré-escolastica, no misticismo e no nominalismo — correspondentes aos estilos romanico e gotico tardio” — Panofsky se dedica 4 escolastica classica. Nesta, permanece uma separacgdio severa entre o santuario da féeaesfera do conhecimento racional, mas o conteudo deste santudrio deve permanecer claramente discernivel. Da mesma forma, a arquitetura do gético clissico separa o volume interior do espago exterior, mesmo exigindo que ele se projete, de algum modo, através da estrutura que o contém; assim por exemplo, o corte transversal da nave pode ser lido sobre a fachada.” Vimos que o principio da articulagiio suficiente dos escritos escolasticos exigia uma organizacao segundo um sistema de partes e de partes de partes homologas. Encontramos a sua manifestatio arquitet6nica na divisdo e subdivisao uniforme de toda a estrutura. Exemplo disso é a substituigdo da diversi- dade romanica das abébadas (de arestas, de bergo, de ogivas, cipulas e semicuipulas) por um Unico modelo (abébaclas ogivais) em todas as partes da construgio, conferindo-lhe unidade. Assim, 0 conjunto € composto de unidades menores — que quase se podem chamar de articuli, que sio homdlogas, pois sio todas triangulares em projecao horizontal e cada um destes tridngulos tem seus lados comuns com os seus vizinhos. Esta homologia revela o que corresponde @ bierarquia de niveis ldgicos em um tratado escolistico bem organizado."! Essa articulagio hierarquica e harmoniosa, caracteristica fundamental do Gético, aparece em um conjunto de relagoes 2? PANOFSKY. Architecture gothique et peiuscée scolastique, p.102. Segundo essa andlise, a insuperavel barreira entre a fé e a razdo na pré-escolastica era refletida na producdo d'un espace déterminé et impéneétrable, tant de lextérieur que de Vintérieur. No G6tico tardio — no qual o misticismo anula a razdo na fé ¢ 6 nominalismo as dissocia completamente — criar-se-a un espace déterminé et impénétrable de Pextérieur mats indétermine et peénétrable de Vintéricur. *” Ibidem. p.103. *' Ibidem. p.104. Cgrifos nossos) 52 estabelecidas entre a nave central e toda a igreja, entre a nave lateral e a nave central, entre a abside e a nave lateral, e assim por diante. Outro exemplo dessa articulacao hierdar- quica € a subdiviséo dos suportes em pilares principais, colunas maiores e menores, a subdivisio dos vaos das janelas, dos arcos e das nervuras.” Portanto, esse principio de divisibilidade progride da totalidade da catedral até o menor detalhe. AE ae a” : a re¢ jet ANNONA, Figura 8 - Notre-Dame. Paris. Fachada 2 PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastigue, p.105, 111. 53 Ao se ligar tais partes em um encadeamento necessario e€ dedutivo, o que impede a fragmentacio do edificio, teremos a manifestatio do principio escolastico da inter-relagdo suficiente. Evitando as transic6es fluidas que ocorrerao no Gético tardio, a catedral gdtica classica mantera os espacos claramente sepa- rados uns dos outros, mas articulando-os na légica desse encadeamento como se vé a modenatura realizar na fachada de Notre-Dame de Paris ou na Catedral de Reims, por exemplo. Além disso, o estilo cldssico deseja que se possa inferir nto somente o interior do exterior ou a forma das colaterais pela forma da nave central, mas também, por exemplo, a organizacgao do sistema de abébadas no conjunto da secdo transversal de um dos pilares.* Outro bom exemplo dessa inter-relagao sao os pilares compostos, como os da Abadia de Saint-Denis (ca. 1231), que, depois de uma longa busca da solucao formal adequada nas catedrais anteriores, conseguem expressar em si mesmos todos os tragos da superestrutura construtiva que se erguera acima deles. Ai se exprime visualmente o acontecimento necessario, que se deduz, desde o sistema de apoios até o fechamento da cobertura. Esse encadeamento légico ainda nao é encontrado onde o Gético ainda nao amadureceu plenamente, como na Catedral de Laon (1160), onde se verifica que a relacdo formal estabelecida entre as colunas monocilfndricas inferiores e as menores que daquelas se elevam é, ainda, arbitrdaria. Em um universo compacto e hierarquizado como este, a evolucdo formal de um pilar nao era nada gratuita devido a autoridade que a tradig¢ao mantinha: E uma atitude semelhante Aquela da escolastica classica que se transfere aos construtores das catedrais do gético classico. Para estes arquitetos, as grandes estruturas do passado tem uma auctoritas muito semelhante aquela conferida pelos padres da igreja 4s escrituras.*4 ? PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.106. (grifos nossos) +4 Ibidem. p.120. 54 A evolugdo desses pilares compostos revela-nos, portanto, tal como na organizacgéo escolastica e do mundo medieval, que a hierarquia nfo s6 situava e definia o papel da arquite- tura na cultura como também a disciplinava internamente. Observemos, enfim, que, tal como na escolastica classica, a catedral do século XIII visava, sobretudo uma totalidade que refletia a solucdo Ultima e perfeita. E a manifestatio do prin- cipio da enumeracdo suficiente: Em sua imagindria concep¢io, a catedral classica busca encarnar a totalidade do saber cristaéo, teoldgico, natural e histérico, colocando cada coisa em seu lugar e suprimindo aquilo que ainda nao encontrou o seu.” Dessa analise da clarificagdo realizada triunfalmente pela arquitetura, Panofsky percebe que, de acordo com a filosofia da época,/na catedral gética “tudo é busca da verdade, tudo é ginastica intelectual e oratéria”.** Por isso, as ogivas e os arcobotantes adquirem um forte carater expressivo além da fungao estrutural] Ambos passam a falar, “a proclamar o que eles faziam em uma linguagem mais minuciosa, explicita e ordenada do que a que seria necessdria para a mera eficacia”.*’ Temos, entao, uma ldgica visual que comanda a arquitetura, tal como o silogismo comandava a escolastica: Quer se trate do modo de apresentacao literdria ou do modo de apresentacdo arquitetural, um homem impregnado de escolastica nado podia adotar senio um ponto de vista, o da mantfestatio; ele admitia que o fim primeiro dos numerosos elementos que comp6em uma catedral é assegurar a estabilidade, e que o fim primeiro dos numerosos elementos que constituem uma Summa é assegurar a validez. [...] Enquanto o espirito humano exige um maximo de harmonia, o espirito escolastico reclama um maximo de explicitagdo. Ele admite e exige uma clarificagao gratuita da func4o através da forma, tal como ele admite e exige a clarificacdo gratuita do pensamento através da linguagem.* > PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.103. * Tbidem. p.111. 3” Ibidem. p.112. * Ibidem. p.112-113. 35 Estimular a fé e a l6gica, tornar visivel a verdade da Sagrada Escritura e dos fil6sofos escolasticos era, portanto, o destino fundamental da catedral a ser construida pelo arquiteto do século XIII. Essa clarificacao, promovida pela arquitetura gdtica, mostra-nos a homogeneidade de um mundo hierarquizado e culturalmente compacto, onde um mesmo habito mental se difunde em todos os campos. A ldgica visual expressa na construcido revela, por exemplo, a mesma domindncia que o abstrato tem sobre o concreto na pintura medieval, tal como analisa Venturi.* Portanto, o estudo de Panofsky nao é apenas uma ilustragao restrita a alguns aspectos da filosofia e da arquitetura do século XIN. Compreendendo-o, junto com a concepcio do mundo, com a ciéncia e com A Divina Comédia de Dante Alighieri, ele pode levar-nos bem mais longe, e nos deixar entrever o homem g6tico que freqiientava aquelas catedrais. A DIVINA COMEDIA E A ARCHE MEDIEVAL Obra-prima da literatura do periodo, A Divina Comédia ja prenuncia aspectos do humanismo renascentista, mas apre- senta ainda algumas importantes passagens Uteis para nos guiar rumo a uma compreensdo mais vasta da arché gotica. Segundo Dante, a filosofia, vértice do conhecimento medieval, ensina que a “natureza tem origem no divino intelecto e em sua arte”; que o “engenho humano imita as criacdes do eterno artista”; que “de Deus, a obra humana é neta, é descendente”;* que “a esséncia que formou o mundo formou-me também’;” ” Conferir VENTURI. La peinture italienne, les créateurs de la Renaissance. ““O exemplo da manifestatio nao é 0 tinico ponto comum entre a escolas- tica e a arquitetura gética. O préprio Panofsky dedica todo um capitulo a relagao entre ambas sobre outro principio, a concordantia, ou principio da conciliagio dos contrarios. Or c’est ld le second principe régulateur de la scolastique: tandis que le premier — manifestatio— permet de comprendre ce quest le gothique classique, le second — concordantia — peut aider a comprendre comment s‘est constitué. PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.115-131. Nao achamos necessirio desenvolvé-lo, pois parece-nos que a manifestatio ja é suficiente para compreendermos o que nos interessa: a relagao, a situagdo e o compromisso que a arquiletura mantém com o restante do mundo medieval. * ALIGHIERI. A divina comédia, Inferno, XI, p.58. ** ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, XXVI, p.307. 56 f que “na perfeicdo absoluta a criatura corresponde ao criador, tal como o anel ao dedo”* e que, originalmente, “costumava essa Roma que modelou o mundo, iluminar-se com dois séis: o das leis terrenas e o das regras divinas” — os quais eram “harmdnicos”, “andlogos” e “um ao outro nao apagava”.*4 Por isso, Beatriz, patrocinadora e musa do poeta em sua viagem, explica a um Dante que, ainda vivo, ascende ao paraiso e visita a morada divina: Os espiritos perfeitos podem ali (no paraiso) perceber nitida a perfeicdo divina, fim supremo que é a ordem universal. [...) Nao seja, pois, maravilha para ti, como estés considerando, a tua ascensio. EF natural que teu espirito suba, como é natural que o rio baixe da montanha ao vale. Maravilha seria se nio subisses, nenhum impedimento te detendo como se sobre a terra pudesse ficar imével um fogo vivo, ardente.* Para o mundo dos homens, “Deus, cujo saber transcende a todas as coisas, ao criar os céus, criou seus guias, que de toda parte a toda parte esplendem, gracas 4 luz que lhes foi concedida”.** “A gléria d’Aquele que é a origem de todas as coisas manifesta-se no universo inteiro, em algumas partes resplandescendo mais, em outras menos.”*” Na criacdo do universo, “a inteligéncia criadora e motriz das estrelas em todos os astros infunde sua bondade, permanecendo imutavel na unidade”* e, “tal como varias vozes produzem harmonias de sons, os varios graus da beatitude geram a harmonia celeste”.” Os guias divinos que por toda parte esplendem nao sé refletem a harmonia do mundo humano com o mundo divino, mas conduzem a criatura pelo caminho que a pde em contato com o criador e com a divina origem das coisas: “O raca humana, criada por Deus para voar nas altas esferas! Por que sucumbis ao menor sopro do vento das paixdes?”*” O homem “S ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, XXXII, p.323. “ ALIGHIERI. A divina comédia, Purgatério, XVI, p.178. * ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, I, p.238-239. (grifos nossos) “6 ALIGHIERI. A divina comédia, Inferno, VU, p.46. “7 ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, I, p.237. “8 Tbidem. I, p.241. ® Ibidem. VI, p.252. °° ALIGHIERI. A divina comédia, Purgatério, X, p.158, 162. 57 é “o verme de que ha de surgir a borboleta angelical que sobe 4 justica divina sem cuidar de obstaculos” e, por isso, “go Arcanjo Gabriel baixou A terra conduzindo decreto de paz durante muitos anos desejado, por ser o acordo que abria ao homem o céu, de que andara excluso”.*! O céu e a terra perma- necem unidos e, pelo caminho do entendimento iluminado pela fé, pela revelacdo divina, a criatura se pOe em contato com o criador e compreende a criagao: “E porque nenhuma criatura existe sem que exista o criador, no proprio amor confun- dem-se aquela e este, nenhum ddio entre ambos existindo; [...] 6 a prépria natureza que, pelo liame do prazer amoroso, de novo se funde com o homem”.” E, dirigindo-se a Deus, reconhece Dante: “Os Céus, que criaste para a eternidade, prenderam-me inicialmente pela harmonia que afinas e diri- ges.”™ Sem qualquer defeito e divinamente ordenada jaz a criacdo. A parte mais baixa do universo une “com lagos que nunca serao desfeitos as diferentes ordens”™ (celestial e ter- restre). E é, através da fé, da luz que emana da fulgurante e divina substancia, como explica Beatriz ao extasiado poeta, que o verdadeiro conhecimento se elabora: “O que te faz curvar os olhos é forca invencivel, que igual nao existe. E todo o poder e toda a sabedoria que abriram o caminho da terra para o céu, em vdo por muito tempo desejado.”” Por isso, “toda ciéncia que um homem pode acumular lhe vem de Deus”. A graca iluminante leva 4 perfeigao @ trabalho rigoroso da légica. Esta, fundindo-se com a escritura, elabora, para a Idade Média, um mundo inabalavel, seguro e plenamente compreen- sivel pela iluminada razao humana: “ImpGe-se, em conse- qiiéncia, que vossa razao seja constituida e fortalecida por raios emanados da mente que ocupa todo o espag¢o criado. [...] Nao ha luz de sabedoria que nao proceda do foco divino, o 5! ALIGHIERI. A divina comédia, Purgatério, X, p.158, 162. 2 Ibidem. XVII, p.180. 3 ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, I, p.238. 4 Ibidem. XXIX, p.315. 5 Tbidem. XXIII, p.299. 6 Ibidem. XIII, p.269. 58 i qual nunca diminui. Fora disso 0 que ha sao trevas, sombras da carne ou venenos dela.” Concluida no inicio do século XIV, A Divina Comédia apresenta, nos trechos acima transcritos, algumas concep¢ées vislumbradas na arquitetura e que agora deverdo servir para reconhecer com mais nitidez a arché da época. O ponto mais retomado por Dante é, sem duvida, a idéia de uma proporcio- nalidade ou harmonia entre micro e macrocosmos, entre o homem e Deus. Por ela, todo 0 universo é visto como simbolo da perfeigao divina, mensagem religiosa e guia inabalavel para o caminho da salvagao que o homem deveria percorrer na sua existéncia terrena. Como na catedral, a gléria de Deus e as verdades da fé resplandecem nos sinais que Ele colocou no cosmos: o principio da manifestatio regula o universo. Entre a Terra e o Céu existe uma grande distancia a ser percorrida, representada pela verticalidade gdética, mas jamais um abismo e, por isso o mundo de Deus e a verdade da Criacao se revelam ao homem, desde que ele se encontre na fé e se oriente para compreender as manifestacdes divinas. Esse acesso torna possivel a Dante, um mortal, elevar-se as altas esferas até o ponto de quase cegar-se diante da contemplacao da luz divina. Guiado e orientado pela fé, ele ascende aos céus e As inter- pretagoes filos6fico-teolégicas que lhe permitem compreender desde os fendmenos fisicos até a missio do homem na terra. Também a catedral pretende realizar esse transporte mistico- instrutivo. E na base de todas as verdades encontradas est4 o foco divino, o Eterno Artista, aquele do qual tudo emana, inclusive as construcées artisticas, filoséficas e cientificas do periodo. S6 pela graca iluminante se alcanca 0 belo e 0 verda- deiro. Deus € 0 foco. A fé € o caminho. E, como nao poderia deixar de ser, a igreja é o instrumento de ligacdo que hierarquiza € organiza todos os valores e verdades. A catedral, lugar maior desta ligacdo e maxima graca que o homem pode alcangar, é Oo centro espacial para o qual tudo converge e de onde tudo *” ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, XIX, p.287. Para um estudo mais profundo desses temas na obra de Dante, conferir os seguintes Cantos: Infer- no, I, VII, XI; Purgatério, I, II, IM, VIII, IX, X, XI, XII, XII, XIV, XVI, XVI, XVII, XXI, XXV, XXVI, XXVII, XXVIH; Paraiso, I, UJ, IV, VI, VII, X, XIII, XIX, XX, XXI, XXIII, XXVI, XXVIII, XXIX, XXX, XXXI, XXXH, XXXII. 59 emana; local onde a fé, a contempla¢dao e o arrebatamento mistico acontecem, e o homem é guiado para bem percorrer o caminho que lhe é reservado. Como a natureza de Dante, ela é perfeitamente ordenada numa hierarquia que converge no foco divino e na contemplagao das verdades da fé segun- do a interpretacao da igreja e seus fil6sofos. E esta pura con- templagdo transporta-nos ao mundo divino, ilumina a razao humana, guia-nos na nossa existéncia, e elabora desde 0 ver- dadeiro conhecimento cientifico até o conceito de beleza ar- tistica que presidiria o mundo medieval. Sobre essa estrita ordenagao do universo cumpre destacar no plano poematico da obra de Dante a mesma organizacao trinitaria que, como vimos, preside grande parte das elaboracdes arquitet6nicas da época. Dante visita trés reinos e tem trés guias em sua viagem. Toda a sua obra é escrita em tercetos e é dividida em trés partes. Cada parte tem trinta e trés cantos, exceto o Inferno, que tem trinta e quatro: o primeiro serve como introducao. Tal prevaléncia do nutmero trés liga-se a representacao da Santissima Trindade e nos remete a uma ordem religiosa que presidiria o poema. Além disso, no total, teriamos cem cantos e, sendo dez o simbolo da perfeicdo da criacdo de Deus, cem seria a perfeig¢io do perfeito, como a obra representa. Tornar visiveis tais harmonias significa tornar visivel a pr6pria causa transcendental delas: Deus. E tanto A Divina Comédia como uma catedral cuidam em promover essa visibilidade. Contudo, mais do que as relagdoes porventura existentes com a organizacdo espacial das catedrais géticas, o que nos interessa nesses trechos de A Divina Comédia € aprofundarmos nas concep¢ées medievais do criador, do mundo e na maneira como o homem se relacionava com eles. Verifica-se nessas passagens de Dante haver uma firme seguranca a respeito do mundo e das leis que regeram sua criacdo, j4 que estas eram acessiveis ao enltendimento iluminado. Entre o mundo de Deus eo mundo humano, entre o infinito e o finito, entre o mundo superior e o inferior, ha um vinculo espiritual que supera o hierarquico abismo entre eles. 60 De um pélo ao outro, desde as alturas do supra-ser, do uno, do absoluto, do reino da forma absoluta, até o mundo da matéria, até o informe absoluto, se estende um ininterrupto caminho de mediagao. [...] Sempre se tem de salvar um entre, sempre ha um nexo Ou Meio que n4o se pode superar de um salto, mas que é preciso percotrer passo a passo em uma rigorosa e regulada sucessio.® Degraus da hierarquia do universo separam as duas ordens, mas podem (e devem) ser escalados, tal como o faz a continua subdivisao vertical dos pilares da catedral. Embora hierarqui- zados, os dois reinos nio sdo dicot6micos e todas as coisas criadas participam, de alguma forma, da mesma esséncia divina. O préprio périplo de Dante sé é possivel pela existéncia deste vinculo em que homem e Deus se comunicam, Céu e Terra se ligam. Ha um parentesco essencial e uma mistica intimidade do homem com o Criador, uma concordancia entre seu intelecto e a escritura. A criacdo, a cépia e a imagem do mundo sao feitos a semelhanga do original, da verdade e do principio. Imagem e verdade sao coincidentes. Numa passagem, por exemplo, Dante “volta-se a fim de verificar se é real o que o cristal lhe mostra, e fazendo-o, constata corresponder a imagem a verdade, tao bem quanto a nota musical corresponde a seu metro”.” Por isso, as coisas sensiveis sao guias, como descreve Panofsky: Sdo luzes materiais que refletem as luzes inteligiveis e, em defini- tivo, a vera lux de Deus — ou citando o pseudo-Areopagita: toda criatura visivel ou invisivel é uma luz trazida 4 existéncia pelo Pai das luzes. [...] E logo, guiado pela raz4o, eu sou conduzido através de todas as coisas até essa causa de todas as coisas que lhes confere lugar e ordem, nimero, espécie e género, bondade, beleza e esséncia, assim como todos os outros dons e qualidades. [...] Cada coisa perceptivel, quer seja obra do homem ou natural, torna-se simbolo do que nao é perceptivel, um degrau para ascensao até o céu; o espirito humano sente-se guiado rumo a causa transcendente desta barmoniae deste fulgor que é Deus.™ * CASSIRER. Individuo y cosmos en la filosofia del Renacimiento, p.23, 24. (grifos nossos) Conferir também PANOFSKY. Architecture gotbique et pensée scolastique, p.38, 39, A tradugdo portuguesa da primeira parte deste livro podemos encontra-la em PANOFSKY. Significado nas artes visuais, p.149-190 (conferir traducd4o dos trechos citados na p.170 dessa edicio brasileira). °° ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, XXVIII, p.312. 6° PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.39-40. (grifos nossos) 61 Portanto ha uma proporcionalidade entre o mundo superior e o inferior e, sendo o mundo feito para o proveito do homem, a aparéncia da natureza nado trai o entendimento que dela possamos ter: 0 acesso a ela é imediato. No sistema da esco- lastica, o ideal se confunde com o empirico e vice-versa. A verdadeira realidade das coisas articula-se com 0 sensivel e transparece na percepcao do homem medieval. Por isso o mundo lhe parece totalmente confidvel e inteligivel. Acredi- tamos que é justamente nesta proporcionalidade que se assenta o ideal de mimesis que preside a arquitetura. A abordagem anagogica cré no mundo, valoriza a matéria e a percepcao. Os sentidos e a raz4o nao se contrapdem. Tal como a natureza se origina do divino intelecto, o engenho humano imita as criagdes do Eterno Artista. Nessa fusio original do homem com Deus e a Natureza se constrdi toda a harmonia e unidade do mundo medieval: eis a sua arché e a arché de sua catedral.®! Uma das conseqtiéncias mais importantes dessa proporcio- nalidade € a fisica do periodo. Também nela as coisas eram o que nos pareciam ser e imperava a abordagem anagogica: remontava-se dos dados qualitativos a esséncia universal, construindo-se uma natureza de formas e substdncias. Os sentidos percebem as coisas tais como elas sio em si mesmas €, assim, se passa velozmente da aparéncia sensivel 4 reali- dade inteligivel. “Nao havia razGes para duvidar de que as coisas sejam em si mesmas oO que nos parecem ser. A fisica qualitativa consistia na ordenacdo das aparéncias em funcio de nosso modo de acio humano.”” Os meios de conhecimento, as necessidades teolégicas e os habitos sociais e intelectuais do homem medieval condicionavam sua ciéncia. Sua fisica nada afirma que nao encontre suporte anterior na metafisica, evitando-se espacos para 0 contingente, ou o que nado se encaixe na unidade e racionalidade de seu sistema. Um aspecto interes- sante refere-se 4 manutencao da hierarquia social através da “ Conferir também BURTT. Los fundamentos metafisicos de la ciencia moder- na, p.17-19. Nesta passagem, a titulo de complementagao, BURTT inclui outras citag¢dées de Dante ilustrativas da relagio do homem medieval com Deus e com a Natureza. “ © sistema medieval “nos oferece uma fisica qualitativa, que explica esta natureza remontando dos dados empiricos aos principios eternos”. LENOBLE. Origines de la pensée scientifique moderne, p.370. 62 concep¢ao de um cosmos incorruptivel, rigidamente ordenado e comandado pelas leis perfeitas da verdade divina. Fora dele, nada existe. Dentro dele, varios graus hierdrquicos se esta- belecem entre as formas mais contingentes e o bem supremo: um elemento sera tanto mais puro quanto mais proximo estiver do imével motor do mundo. O lugar natural aristotélico-tomista dos elementos deve-se, portanto, mais 4 necessidade antro- poldégica de implantar graus de valores na natureza do que a observac6ées e experiéncias desta. Hierarquizado e ordenado de maneira imutdvel, todo o universo funciona perfeita e harmo- nicamente. Dante ilustrou-nos isto magnificamente: Todas as coisas criadas obedecem a uma disciplina harmdnica. O universo semelha a Deus. Os espiritos perfeitos podem ali perceber nitida a perfeigao divina, fim supremo que é a Ordem Universal. As criaturas todas guardam inclinagdes segundo suas condigdes naturais, para situarem-se em menor ou maior vizi- nhanga de Deus.*% E mais 4 frente: “Como poderds verificar, esses Grgaos do mundo obedecem, no geral, a uma regra invaridvel: recebem influxos dos imediatamente superiores e transmitem-nos aos imediatamente inferiores.”® Ou, melhor ainda, neste precioso trecho sobre a cosmologia medieval e a hierarquia existente entre Os proprios anjos: “As rodas do mecanismo de relégio fazem parecer, em seu girar, que a primeira est4 imdvel e que a Ultima voa: assim, aqueles circulos dangantes em velocidades variaveis anunciam a escala de sua hierarquia.” © Hierarquia e ordem, como no templo gético, vistas dentro de um universo finito e fechado pelas estrelas fixas. Em ambos nada foge da regularidade e das leis criadas contemporanea- mente aos elementos que elas comandam. Em ambos preside * Cassirer estuda esse cosmo dispuesto en grados a partir de Dionisio, o Areopagita, e seu De caelesti hierarchia, a obra que mais reflete a concepcio hier4rquica da natureza medieval, segundo o autor. Para maior aprofunda- mento neste estudo, conferir CASSIRER. Individuo y cosmos en la filosofia del Renascimiento, p.23, 24, 42, 43, 220; KOYRE. Estudos historicos do pensamento cientifico, p.50; LENOBLE. Origines de la pensée scientifique moderne, p.369 et seq. “ ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, I, p.238. § Ibidem. II, p.241. Ibidem. XXIV, p.300, 301. 63 a mesma arché, a mesma ordenacio légica. Por isso a catedral envia-nos ao universo e vice-versa. A harmonia resultante é total e perfeita: “Deus Padre criou o visivel e o invisivel com harmonia tao perfeita que, observando tal efeito, nado ha quem deixe de reconhecer a divindade de seu autor.” ° Resta-nos focalizar a relagio do homem consigo mesmo e€ isso podemos depreender da prépria proporcionalidade entre ele e o mundo, e da suposi¢ao de uma “perfeita concordancia entre seu intelecto e a letra das Escrituras”. Em um trecho de A Divina Comédia, o santo simbolo recomenda ao poeta: E vés, mortais, convém que sejais prudentes em julgamentos, pois mesmo nos, que gozamos da contemplacao de Deus, nao conhecemos todos os seus eleitos, e nessa ignorancia nos confessamos ditosos, pois o nosso bem pelo Sumo Bem se afina, sendo nosso Unico querer o querer divino! ® Nessa sujeigao ao querer divino, percebemos que a afini- dade, base da harmonia e da confianca no mundo, se esta- belece a partir da submissiao do homem, e seu intelecto, a Deus e as Sagradas Escrituras, 4 Igreja e seus fildsofos. O ato de pensar, por exemplo, consiste precisamente em que o eu individual sai deste isolamento a que esta reduzido como mero ser vivo, supera-o e se funde com o intelecto absoluto e uno; [...] o verdadeiro sujeito do pensar ndo é o individuo, o eu, mas um ser substancial, inteiramente racional, impessoal e comum a todos os sujeitos pensantes cuja unido com o individuo é sempre exterior e acidental.” *? ALIGHIERI. A divina comédia, Paraiso, X, p.260. As passagens sobre 2 hierarquia, a ordem e a harmonia do universo sdo intimeras em A divina comédia. Para maior aprofundamento, conferir os seguintes cantos: Purgatério I, XXI e XXVIII; Paraiso I, I, VI, VI, X , XI, XII, XIX, XXIV, XXVHI, XXIX, XXX, XXXIT e XXXII. 6 Ibidem. XXVI, p.307. Conferir também Purgatério, XVIII, XXV; Paraiso, XXVI, p.181, 204, 307, respectivamente. Ilustrando, conferir Paraiso, I, II, IV, VII, XIII, XIX e XXIV. ® Ibidem. XX, p.292, 293. ” CASSIRER. Individuo y cosmos en la filosofia del Renacimiento, p.164. (grifos nossos) Conferir também ALIGHIERI. A divina comédia, Purgatério, XXV, p.204. 64 Isso significa a rentincia do homem medieval ao principio da subjetividade e da prépria individualidade, a sua subor- dinagao heter6noma a uma lei exterior com a qual ele se har- moniza e compreende o mundo: “O homem gético sente-se escravo de poténcias superiores que pode apenas temer e nao adorar, deve sublimar sua inquietude e sua obscuridade até © ponto de sentir-se arrebatado numa embriaguez para ele salvadora.” 7! Na busca da fusdo mitica com o divino, ele abandona a sua individualidade para se salvar. Por mais que se caminhe, para afirmar-se, 0 sujeito aut6nomo da moderni- dade, sua heteronomia é dominante no medievo. Este é o Ultimo ponto que cumpre ressaltar: o que mais o fiel acaba por experimentar no interior da catedral se nao o simultaneo arrebatamento e feliz abandono de si mesmo? Veja-se a descri¢ao da personalidade do Abade Suger (1081-1151), organizador da Abadia de Saint-Denis, e um dos persona- gens mais importantes, deste século, na Franca. Nele, o sujeito do pensar se funde com o intellectus agens até abdicar da sua propria interpretacdo: Como todos os autores da Idade Média, ele citava de meméria e tinha dificuldade em fazer uma distin¢ao categérica entre o texto (a Biblia e os Apdcrifos) e sua prépria interpretacdo; é por isso que suas citagdes revelam-nos sua filosofia.” Concluindo, a heteronomia do homem medieval nos parece ser o custo antropoldégico necessario para que fosse construido e€ mantido seu universo cultural homogéneo e est4vel, no qual ele habitava com seguran¢a e compreensao, O ponto mais alto dessa piramide era a Sagrada Escritura, cuja verdade as ciéncias, a filosofia e a arte s6 poderiam secundar, jamais contradizer. O homem moderno sera justamente aquele que destruira tal universo harménico, hierarquico e proporcionado ” WORRINGER. La esencia del estilo gético, p.67, 68. ” PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.35. Segundo o excelente estudo de Panofsky, o Abade Suger foi uma das personalidades de maior importdncia politica e riqueza territorial de toda a Franca medieval, sendo considerado por alguns o pai da monarquia francesa que culminaria em Luis XIV. Durante muitos séculos, sua Abadia de Saint-Denis foi a abadia real abrigando, inclusive, os timulos de alguns reis franceses. 65 consigo mesmo, a fim de conquistar uma autonomia cada vez maior. Esse processo, no entanto, é lento, e a cada uma de suas fases parece corresponder situagdes especificas do homem diante de si mesmo, de Deus e do mundo, gue sao refletidas em determinados periodos e estilos artisticos. No estudo de tais periodos, que faremos a seguir, 0 que nos interessa é justamente demonstrar o lento processo formativo do homem moderno que a arquitetura, tio magnificamente, soube docu- mentar. Seu primeiro momento Situa-se no Renascimento e nas novas concepcoées dos séculos XIV e XV. Figura 9 - Catedral. Milado 66 Q RENASCIMENTO E 0 verbo se fez carne e halbitou entre nés: e ndés vimos a sua gloria, a sua gléria como filho unigénito do Pai, cheio de graca e de verdade. Evangelho de Sao Joao, Prélogo, versiculo 14. A ARCHE De onde a arquitetura renascentista retira sua exceléncia? Que fundamentos e que visio do mundo, do homem e de Deus sio expressos nos seus edificios? Enfim, de onde ela retira a sua arché, a sua autoridade? Examinemos a Velha Sacristia de Sio Lourengo (Florenca, 1420-1429), de F. Brunelleschi (1377-1446). Nela, j4 podemos assistir és caracteristicas fundamentais que nos ajudarao a encontrar a arché do quattrocento: a utili- zagao do repertorio antropomérfico clissico, como capitéis corintios e arquivoltas concéntricas; uma énfase acentuada na 1a_centralizacao. espacial, e a intensa utilizagao de relagdes geométricas construindo o ambiente e articulando os seus elementos. _Unificada pela simetria e pelo _geometrismo, a Velha Sacristia produz um espaco homogéneo que substitui o espaco hierarquizado, diferenciado e integrado do Medievo. As duas primeiras caracteristicas traduzem um dos objetivos fundamentais do Renascimento: enfatizar o homem e o mundo humano. A terceira enaltece a linguagem basica com a qual o arquiteto constréi o edificio: a utilizacao de relagcdes geométrico- matematicas e a racionalidade da composicio. Poderiamos dizer que 0 espaco se torna menos espiritualizado e mais intelectualizado. Um ideal de ordem geométrico, com valores antropoceéntricos, concretizado no espaco e no tratamento plastico da matéria, parece sugerif um Novo conceito de beleza e uma nova arché para o edificio renascentista, expressao de uma nova situacio do homem diante do mundo, de Deus e de si mesmo.! Figura 10 - BRUNELLESCHI, F. Velha Sacristia de Sdo Louren¢go Corte transversal "Sobre a Velha Sacristia de Sido Lourengo, conferir NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, j).113. 68 Tal como o homem medieval, o homem renascentista acredita num cosmos ordenado que tanto o Gético como o Renasci- mento procurarao concretizar em seus edificios. A arquitetura do Renascimento permanece imitando a natureza, ainda é mimesis architecturale, como diz Payot, e nela o arquiteto tenta tornar legiveis as leis que regem © cosmos.’* Entre o mundo e o edificio, entre Deus e 0 arquiteto, existe uma ana- logia e um duplo reenvio: o edificio representa o mundo e torna visivel suas leis. Mas, inversamente, o mundo é€ cons- truido como um edificio, mediatizado pelas leis incorporadas a arquitetura. “A estrutura analdgica do templo representa, em pequena escala, a estrutura analdgica do mundo.”* A arché, a exceléncia da Arquitetura, no Gédtico e no Renascimento, provém, portanto, da capacidade do edificio reenviar-nos ao mundo, a lei original da natureza, ao cosmos ordenado. Em 1570, Palladio (1508-1580) ainda se mostraria devedor dessa idéia de mtmesis: Se consideramos esta bela mfiquina do Mundo, com tantos ornamentos maravilhosos que a preenchem, e como os céus, por suas revolugd6es continuas, muda as estagdes segundo o exige a natureza, e como com seu movimento conservam eles mesmos a mais agradavel temperatura, ndo podemos duvicar de que os pequenos templos que fazemos devem assemelhar-se a este outro tao grande, o qual, por sua intensa bondade, ficou perfeitamente realizado com apenas uma palavra sua." No entanto, se a mimesis, em que a ordem do edificio realiza a da natureza, esta presente no Medievo e no Renascimento, © conceito de ordem € completamente diferente nos dois periodos. Enquanto o medieval percebe visualmente na catedral a ldgica hierarquica e os pressupostos metafisicos e religiosos que comandavam o seu cosmos, o homem renascentista imagina o seu universo em termos de nimero e constrdi o edificio com base numa Iégica geométrica. Sua arquitetura, para tornar visivel a ordem cOésmica, deve ser encarada como * Conferir PAYOT. Le philosopbe et l'architecte; sur quelques déterminations philosophiques de Vidée architecture, p.67-70, > Ibidem. p.69. * Palladio. Os quatro livros da arquitetura, citado por NORBERG-SCHULZ. Meaning ii western architecture, p.123. 69 uma matemAtica, cujas leis acabam por definir um espaco homogéneo.’ Na medida em que a Arquitetura deve refletir um cosmos matematicamente ordenado, o estudo da perspectiva, maneira geométrica de o homem reproduzir e construir o espaco, e o estudo das proporgées, relacionado desde a Antigtiidade com o corpo humano, tornam-se para 0 novo artista as chaves de toda a sua composi¢ao. E isso nao ¢ exclusivo da Arquitetura, mas o traco fundamental de todas as artes pldsticas, como podemos verificar, por exemplo, nos trabalhos de Piero della Francesa (A Flagelagdo), Da Vinci (Santa Ceia), Diirer (com o estudo das proporgdes do corpo humano) e Michelangelo (Pieta). A beleza da arquitetura do Renascimento coincide com uma razio matematica, inspirada na nova maneira burguesa_de da escolastica caracteristica do século XIII. Expressando o | novo ideal, Alberti (1404-1472), o maior teérico da arquitetura no século XV, define a beleza: Uma certa harmonia regular entre todas as partes de uma coisa, harmonia tal que nada lhe pode ser subtraido ou adicionado ou mudado, sem que se lhe diminua o encanto. [...] A beleza € | uma espécie de harmonia e de acordo entre todas as_partes que formam um todo construido segundo um numero fixo, uma certa relacgio, uma certa ordem, como_exigido pelo princi- pio de simetria, que éa lei mais elevada e mais perfeita da natureza.® Como garantir essa harmonia e esse acordo entre as partes do edificio? Através de instrumentos matematicos de composigao _ como a perspectiva, a simetria e a utilizagao de proporgoes dando-lhe o carater de uma associacdo de partes. Esse mdédulo inspira-se, via de regra, nas ordens classicas greco-romanas, entao, reestudadas. Mas a arché do edificio nao é retirada apenas de uma natureza matematicamente ordenada, modelo e fonte de > Conferir NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.127. Alberti. De re aedificatoria, citado por PAYOT. Le philosophe et l’architecte, sur quelques déterminations philosophiques de l’idée d’architecture, p.71. 70 autoridade das construg6es expressivas da época. O proprio médulo e as proporcées utilizadas reenviam-nos a outra fonte: a Antigiidade Classica.’ A mimesis renascentista nao nos remete a uma beleza natural diretamente, mas passando pela mediacao dos antigos, o que nos faz pensar numa segunda fonte de. autoridade centrada na Histéria. Mas, por que a civilizacio classica? Segundo Argan, os artistas da Renasceng¢a acredi- tavam ser a natureza algo mais complexo do que aquilo que nos era dado pela experiéncia sensivel. Suas ocultas leis funda- mentais (matematicas), como acreditava Brunelleschi, eram do conhecimento dos antigos e estavam expressas na racionalidade da arte classica. Portanto, a Antiglidade, a arte classica, aparece como a arte que, melhor que qualquer outra, manifesta as leis fundamen- tais, as formas essenciais da natureza. Os antigos eram os que na@ natureza e da natureza deviam extrair todos os elementos de sua vida espiritual.® Celebrar a racionalidade da arte classica nado recuperava apenas uma ordenagdo matematica, mas também, e princi- palmente, o significado antropocéntrico investido na sua arte, nas suas colunas, nos seus capitéis, nas suas ordens e na modulacgao adotada. Nao se trata apenas da expressdo da racionalidade e da natureza, mas também da cren¢a num ideal ordenador, que constrdi a propria natureza, que a submete a um rigoroso canon e afirma a racionalidade humana, a histéria humana e a cultura frente 4 natureza imediata, O humanismo renascentista tinha a miss4o de “transformar a caGtica varie- - dade de registros humanos no que se poderia chamar de cosmos. da cultura”.? E ele encontra nos classicos, justamente, a cele- bragdo da histéria e do ideal humano. Uma das tarefas fundamentais dessa organizacdo que se pretende dar 4 cultura e 4 histéria humana refere-se A ’ Conferir Alberti. De re aedificatoria; PAYOT. Le philosophe et l'architecte; sur quelques déterminations philosophiques de l'idée d’architecture, p.71. ® ARGAN. El concepto del espacio arquitectonico desde el Barroco a nuestros dias, p.15, 16, 27. Conferir também CONTI. Como reconbecer a arte do Renascimento, p.6-8. (grifos nossos) ° PANOFSKY. Significado nas artes visuais, p.19, 25, 46; PAPPAIOANNOU. Arte griego, Introdugao. 71 sistematizagao do campo artistico. Como os renascentistas a realizaram? Conferindo a arte classica o simbolo da racionali- dade e da crenga no homem, o mais alto grau de exceléncia e, em seguida, sistematizando-a numa tratadistica, como fez Alberti com uma série de afirmagdes, normas e técnicas que respondiam aprioristicamente aos problemas colocados ao arquiteto e definiam-lhe os caminhos em que pesquisar as solucées. Chegamos, entao, a uma segunda mimesis, como Uma atitude sistemdtica sera a daquele que admite a existence de valores objetivamente dados e constantes.”!° Uma arte siste- matica, portanto, se realiza nesta segunda mimesis na medida em que 0 arquiteto imita a Historia e encontra nela, aprioris- ticamente, valores considerados perfeitos e eternos. Esses valores sao artigos da histéria e da racionalidade humana, nao da fé na Sagrada Escritura ou na palavra da Igreja. Assim, —o o classicismo € expressdo do desejo antropocéntrico. E inte- ressante observar que os proprios elementos arquitet6nicos classicos, como as colunas, as arquitraves, as caridtides eas_ proporcoes, tinham o objetivo de celebrar o homem grego, desde o seu corpo até a sua historia, Tal como OS gregos,. OS renascentistas se voltaram para o estudo do corpo humano. E sao preciosas as pesquisas de ‘Leonardo, Alberti e Diirer nesse sentido, bem como as express6es de critica, poder e racionalidade encontradas em alguns retratos dos pintores do periodo." Assim, quando falamos do classicismo da arquitetura renascentista, falamos, também, do antropocentrismo e do hu- manismo nela presentes, e pretendemos mostrar que tais tragos se encontram intimamente ligados as leis matemdticas que construiam, simultaneamente, um edificio e uma visio do © ARGAN. El concepto del espacio arquitecténico desde el Barroco a nuestros dias, p.27. (grifos nossos) ' Cumpre chamar a atengdo para a importancia desses estudos objetivos do corpo humano, pois, segundo Maritain, a primeira forma da prise de conscience do artista lhe foi trazida por estes estudos. Algo semelhante afirma Burckhardt, ao dizer que “o conhecimento da parte espiritual do homem nao comecou por peniveis estudos psicoldégicos, mas pela observagio e a descrigio”. Con- ferir MARITAIN. Creative intuition in art and poetry; BURCKHARDT. O Renascimento italiano, p.265-268. Sobre os estudos de Leonardo, Alberti e Durer, conferir PANOFSKY. Significado nas artes visuais, p.134-145; HUYGHE. Lart et V-homme, p.26. 72 universo. Conclui-se, entado, que a arché lo quattrocento + é tetura dai resultante expressa ‘um novo ‘individuo e uma nova relagdo com o mundo, como veremos no final deste capitulo. Nesse ponto, cumpre distinguir o antropocentrismo classico e€ o antropocentrismo renascentista a fim de reconhecermos o que é€ especificamente moderno. Também os gregos empres- tavam uma leitura matematica a physis e faziam uma remissao hist6rica na sua arquitetura. Se examinarmos os primeiros templos gregos, veremos que sAo compostos pelas ordens d6éricas e j6nicas. Cada uma delas simbolizava os pilares étnicos e valores fundamentais da formacao do povo grego, bem como remetia-nos a um ideal ético e moral expresso na arquitetura. As proprias cariatides que, por vezes, vieram a substituir as formas tradicionais das colunas, nao eram criagdes formais arbitrarias, mas faziam menc¢do ao castigo imposto as mulheres de Caria — cidade que havia traido os gregos em sua guerra contra os persas. O contetido histérico e pedagégico, portanto, define o repertério simb6lico-formal a ser empregado. Obser- vando também a localizacao dos templos e teatros gregos, bem como as suas propor¢des e composicées, nao verificamos uma mesma ordena¢do em todos eles. Para cada um, é espe- cifica a relagdo com o entorno — a orientac4o, a implantacao mais ou menos elevada, a relagao com os demais edificios proximos, a definigdo do carater mais selvagem, harmonioso ou urbano do sitio em que se localizava, a vista das montanhas, das 4guas, dos bosques — os materiais utilizados e a maneira de trabalha-los, as ordens e combinag6es proporcionais esco- lhidas. Tais caracteristicas eram definidas pelo deus a quem o templo ou 0 teatro era dedicado, e por um certo sentimento €uma relacdo especifica do homem com a natureza procurada naquele edificio, e adequada aquela divindade. A Acrépole de Atenas (400 a.C.) e o Santudrio e Teatro de Delfos (cerca de 300 a.C.) fornecem-nos 6timos exemplos dessa especifici- dade caracteristica do templo. Portanto, a arquitetura educava o homem nas forgas césmicas com as quais ele deveria se relacionar. Na imagem grega do mundo, essas forgas e valores vistos nos objetos e na Natureza emergiam da projecdo que o homem fazia de si préprio sobre a physis, tornando-a expressiio de sua prépria personalidade, Os préprios deuses do Olimpo 73

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