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Nudez 1. No dia 8 de Abril de 2005 teve Jugar na Neue National- galerie em Berlim uma performance de Vanessa Beecroft. Cem mulheres nuas (na realidade, vestiam collants transpa- am. de pé iméveis e indiferentes. expostas a0 itantes que, depois de terem esperado numa lon- ga fila, entravam por grupos na grande sala do rés-do-chio do museu. A primeira impressio de quem procedia & expe- rigncia de observar no sé as mulheres, mas também os vi- sitantes que, t{midos e simultaneamente curiosos, comeca- vam a examinar aqueles corpos que, bem vistas as coisas, estavam ali para ser olhados e, depois de andarem & volta, como que numa acgdo de reconhecimento, das fileiras qua- se militarmente hostis, se afastavam embaragados, era a de um nao-lugar. Qualquer coisa que teria podido e, talvez, de- vido acontecer, ndo tivera lugar. Homens vestidos que observam corpos nus: esta cena evoca itresistivelmente o ritual sadomasoquista do poder. No inicio do Salo de Pasolini (que reproduzira mais ou menos fielmente ‘0 modelo sadiano das Cendo e Vinte Jornadas de Sodoma), os quatro gerarcas que se preparam para se fechar na sua villa procedem vestidos & inspeccao das vitimas, que so levadas a apresentar-se nuas € atentamente examinadas a fim de as suas qualidades e defeitos poderem ser apreciados. E estavam ves- 2 Giorgio Agamben tidos, na prisiio de Abu Ghraib, os militares americanos diante do amontoado dos corpos nus dos prisioneiros torturados. Na- da de semelhante na Neue Nationalgalerie: em certo sentido, a selagio parecia aqui invertida e nada era mais pérfido do que 0 olhar aborrecido ¢ impertinente que sobretudo as raparigas mais jovens pareciam a cada instante langar sobre os especta- dores desarmados. Nao: que deveria ter acontecido ¢ nao acontecera, nao podia ser em caso algum uma séance sadoma- soquista, prédromo de uma orgia ainda mais improvavel Todos pareciam na expectativa, como numa representago do Ultimo Dia. Mas, olhando bem, também aqui os papéis se tinham invertido: as raparigas em collants eram os anjos, im- plactiveis e severos, que a tradigao iconogréfica figura sem- pre cobertos de longas vestes, enquanto os visitantes — hesi- tantes e embiocados como estavam naquele fim de Invemo berlinense — personificavam os ressuscitados & espera do juizo, que até a mais devota tradigo teolégica autoriza a re- presentar em toda a sua nudez. ‘O que nao tivera lugar nao era, pois, tortura e partouze: era, antes, a simples nudez. Precisamente naquele espago amplo ¢ bem iluminado, onde estavam expostos cem corpos femini- nos de diferentes idades, ragas ¢ conformagdes, que 0 olhar Nudez podia exa no parec se produz ta, tivera teem que 2AM teoldgica qual Adi ra vez de eviram q no acon pecado a bertos po vam cobs Nudez B podia examinar & vontade e em pormenor, precisamente ali ndo parecia haver rasto de nudez. O acontecimento que niio se produzira (ou, admitindo que tal fosse a intengao do artis- ta, tivera lugar no seu ndo acontecer) punha inequivocamen- te em questo a nudez do corpo humano. 2, Anudez, na nossa cultura, € insepardivel de uma marca teol6gica. Todos conhecem a narrativa do Génesis, segundo a qual Adio e Eva, depois do pecado, se dio conta pela primei- ra ver de estarem nus: «Entdio abriram-se os olhos de ambos ¢ viram que estavam nus» (Gen. 3,7). Segundo os tedlogos, tal nfo acontece devido a uma simples ignoriincia anterior que pecado anulou, Antes da queda, embora no estivessem co- bertos por veste alguma, Adio e Eva nio estavam nus: esta- ‘yam cobertos por uma veste de graca, que aderia aos seus cor- pos como um trajo glorioso (na versao judaica desta exegese, que encontramos, por exemplo, no Zohar, fala-se de uma ‘aveste de luz»). E desta veste sobrenatural que 0 pecado os despoja, ¢ eles, desnudados, sfio constrangidos a cobrir-se pri- meiro confeccionando com as suas méos uma tanga de folhas de figueira ( gl6- , dar- 0s ir- stiga eolo- Nudez 15 Esta «transformagio metaffsica» consiste, todavia, simples- mente no desnudamento, na perda da veste de graga: «A dis- torgdo da natureza humana por meio do pecado conduz.& “des coberta’” do corpo, & percep¢ao da sua nudez. Antes da queda, o homem existia para Deus de tal maneira que 0 seu corpo, ainda que na auséneia de qualquer veste, ndo estava “nu”. es- te “ndo estar nu” do corpo humano apesar da aparente aust cia de vestes explica-se pelo facto de a graga sobrenatural cir- cundar entiio a pessoa humana como uma veste. © homem ndo estava s6 na luz da gidria divina; estava vestido da gléria de Deus. Através do pecado, o homem perde a gléria de Deus nna sua natureza torna-se agora visivel um corpo sem gloria: 0 nu da corporeidade pura, o desnudamento da funcionalidade pura, um corpo ao qual falta toda a nobreza, porque a digni- dade Ultima do corpo estava contida na gléria divina perdida>» Peterson procura articular com preciso esta conexdo es- sencial entre queda, nudez e perda da veste, que parece fazer consistir 0 pecado simplesmente numa espoliagao € num por a nu (Enibléssung): «O “desnudamento” do corpo dos pri- meiros homens deve ter precedido a consciéneia da nudez do seu corpo. Esta “descoberta” do corpo humano, que deixa aparecer a “corporeidade nua”, este impiedoso desnudamen- to do corpo com todas as marcas da sua sexualidade, que se torna visivel para os olhos agora “abertos”” em consequéncia do pecado, s6 pode ser compreendida pressupondo-se que an- tes do pecado estava “coberto” o que ficou agora “descober- to”, que antes estava velado e vestido o que & agora desvela- doe despido» 4, Neste ponto comeca a delinear-se o sentido do dispositi- vo teoldgico que, pondo em relagdo nudez ¢ veste, situa nesta relagdo a prdpria possibilidade do pecado. O texto de Peterson parece, com efeito, pelo menos & primeira vista, implicar algu- ma contradigdo. A «transformagdo metafisica» que se segue a0 pecado é, na realidade, somente a perda da veste de graga que 76 Giorgio Ag: cobria a «corporeidade nua» dos protoplastos, O que signi em boa l6gica, que 0 pecado (ou, pelo menos, a sua possi dade) preexistia nessa «corporeidade nua», em si mesma p vada de graga, que a perda da veste faz agora aparecer na «, Gal. 5, 17), libido € definida como rebe~ lido da carne e do seu desejo contra o espfrito, como uma ei. sao irremediavel entre came (caro-sarx — é 9 termo que em Paulo exprime a sujeigdo do homem ao Pecado) e vontade. «Antes do pecado, com efeito, como dizem as escrituras, “o homem e a sua esposa estavam os dois nus e nao experimen- favam vergonha” — nio porque niio vissem a sua nudez, mas Porque esta no era ainda indecente, uma vez que a libido ain. da nao perturbava os seus. membros contra-vontade [,..]. Os ‘cus olhos estavam abertos, mas ndo estavam abertos para co. nhecer © que Ihes era concedido sob a veste de graca, porque nao conheciam a rebelio dos seus membros contra a vonta. de. Uma vez perdida esta graca, para que a sua desobediéncia fosse punida com uma pena correspondente,surgiu no impul- 80 do corpo um novo impudor, através do qual a sua nudez se fez indecente, tornando-os conscientes € confusos» (De Civ, Dei xiv, 17). ‘As partes do corpo que podiam ser livremente expostas na 8l6ria (glorianda) tornam-se assim qualquer coisa que deve Ser escondida (pudenda), Daf a vergonha, que impele Adio ¢ Evaa cobrirem-se com as cinturas de folhas le figueira e que 4 partir de entdo é tio insepardvel da condigao humana que, escreve Agostinho, «até mesmo nas tenebrosas solidées de india, aqueles que tém por costume filosofar Dus e, por isso, S80 chamados gimnosofistas, cabrem todavia as seus 6redos genitais, a0 contrério das outras partes do Corpo» (ibid.). 9. Neste ponto, Agostinho expe a sua surpreendente con« cepgio da sexualidade edénica — ou, pelo menos, daquilo que teria sido essa sexualidade se os homens no tivessem Pecado, Se a libido pés-lapséria se define através da impos- sibilidade de controlar os genitais,o estado de graca qjn re. vetieu © pecado consistird entdo no perfeito controle da-von- tade sobre as partes sexuais. «No Paraiso, se a desobediéncia Nudez 85 culpada nao tivesse sido punida com uma outra desobedién- cia, o casamento nio teria conhecido esta resistencia, esta oposigdo, esta luta da libido e da vontade; pelo contrario, ¢s- tes membros, como 0s outros, estariam ao servigo da vonta- de. O que foi criado com esse fim fecundaria o terreno da ge- ragio da mesma maneira que a mao fecunda a terra [...] © homem derramaria 0 sémen e a mulher acolhé-lo-ia nos seus genitais quando e quanto fosse necessério, gragas ao coman- do da vontade e nao pela excitagio da libido» (De Civ. Dei xrv, 23-24), Para tornar verosimil a sua hipotese, Agostinho nao hesita em recorrer a uma exemplificagdo quase grotesca do contro- Ie da vontade sobre essas partes do corpo que parecem in- controléveis: «Conhecemos homens que se distinguem dos outros pela pasmosa capacidade com que levam a cabo a seu bel-prazer com o seu corpo coisas que os outros nao conse- quem absolutamente fazer. Hi alguns que movem as orelhas, uma ou as duas ao mesmo tempo; outros conseguem fazer descer sobre a fronte toda a sua farta cabeleira, langando-a depois para tris como bem entendem; outros, tocando leve- mente 0 estémago, vornitam a seu gosto como se despejas- sem de um saco tudo 0 que ingeriram. Alguns imitam to per~ feitamente o grito das aves, dos animais e as vozes dos outros homens que néo podemos impedir que nos iludam; outros, ainda, emitem com o anus como Ihes agrada e sem mau chei- ro algum tantos ¢ tao variados sons, que parecem como, que cantar com essa parte do corpo» (De Civ, Dei XIV, 24). E se- gundo este pouco edificante modelo que devemos imaginar a Sexualidade edénica na veste da graga. A um aceno da vonta- de, os genitais mover-se-iam como movemos a mo e 0 es- oso fecundaria a esposa sem o estimulo ardente da libido: ‘Seria possivel transmitir 0 sémen do homem & mulher sal- vando a integridade fisica desta, do mesmo modo que hoje saida do fluxo menstrual numa mulher vitgem néo compro- mete a sua integridade» (De Civ. Dei x1v, 26). 86 Giorgio Agamben A quimera («Actualmente», escreve Agostinho, «nada hé que permita demonstrar como tal seria posstveb») desta natu- reza perfeitamente submetida pela graca serve para tomar ainda mais obscena a corporeidade do género humano depois da queda. A nudez incontrolavel dos érgios genitais ¢ a mar- ca da corrupedo da natureza depois do pecado, que a huma- nidade se transmite através da geragio. 10. Convém sublinhar a concepgio paradoxal da natureza humana que se encontra como fundamento destas afirmagées. E solidaria da doutrina do pecado original, que Agostinho (ainda que 0 termo técnico peccatum originale falte ainda) copée a Peldgio e que, confirmada no Sinodo de Orange, em 529, s6 na Escoldstica tera a sua plena elaboragio. Segundo esta doutrina, por causa do pecado de Adio (no qual «toda a humanidade pecou», Rm. 5, 12), a natureza humana foi cor- rompida ¢ sem 0 socorro da graca tornou-se absolutamente ‘incapaz de fazer o bem. Mas se se perguntar agora o que € a natureza que foi corrompida, a resposta nao € facil. Adio foi com efeito criado na graga ¢ a sua natureza esté, portanto, desde 0 inicio, tal como a sua nudez, revestida pelos dons di- vinos. Depois do pecado, o homem, uma vez que abandonow Deus, foi abandonado a si préprio e deixado inteiramente & mercé da sua natureza. E todavia, a perda da graga nao deixa simplesmente aparecer a natureza antes da graga — que nos é, de resto, desconhecida —, mas somente uma natureza cor- rompida (in deterius commutata) que resulta da perda da gra- ca. Com a subtraccdo da graga, vem, por isso, 2 luz uma na- tureza original que j4 nao é, porque original é s6 0 pecado, da qual ela se torna rebento. ‘Nao é por acaso que, no seu comentério A Suma Teoldgica de Tomés, Caietano (Tommaso de Vio), 0 subtil tedlogo que a Igreja Catdlica opde a Lutero em 1518, tenha tido de recor- rer a uma comparago com a nudez para tomar compreensi- vel este paradoxo. A diferenga que passa entre uma suposta Nudez 87 natureza humana «pura» (isto € no criada na graga) e uma natureza originariamente gratificada, que perdeu em seguida a graga — escreve ele — € a mesma que intercorre entre uma Pessoa nua e uma pessoa desnudada (expoliata). A analogia é aqui esclarecedora no s6 quanto natureza, mas também quanto d nudez.e, simultaneamente, elucida o sentido da es- tratégia teolégica que liga obstinadamente veste e graga, na- tureza e nudez. Como a nudez de uma pessoa simplesmente hua ¢ idéntica — ¢ contudo diferente — a da mesma pessoa desnudada, assim também a natureza humana, que perdeu o que nfo era natureza (a graca), € diferente do que era antes de: Ihe ter sido acrescentada a graga. A natureza é agora definida pela ndo-natureza (a graga) que perdeu, do mesmo modo que a nudez é definida pela nio-nudez (a veste), da qual foi des- pojada. Natureza ¢ graga, nudez e veste constituem um agre- Zado singular, cujos elementos sfio auténomos ¢ separdveis, €, no entanto, pelo menos no que diz respeito a natureza, nao continuam inalterados depois da sua separagdo. Mas isto sig- nifica que nudez.e natureza sfio — como tais — impossiveis: no hi mais do que o por a nu, existe somente a natureza cor- rompida. 11. Biblia nao diz seja de que maneira for que Adio e Eva antes do pecado nao podiam ver a sua nudez por esta estar co- berta por uma veste de graca. A tinica coisa certa 6 que no co- meco Ado ¢ Eva estavam nus e niio experimentavam vergo- nha (« Na tradig&o da comunidade crist dos primeiros dois sécu- los, a tinica ocasido em que se poderia estar nu sem vergonha era a do Tito baptismal, que niio se aplicava habitualmente 2 criangas recém-nascidas (0 baptismo das criangas de tenra ida- de 6 se toma obrigat6rio quando a doutrina do pecado origi- nal € admitida por toda a Igreja), mas sobretudo aos adultos ¢ comportava a imersio na égua do catectimeno nu na presenga dos membros da comunidade (¢ a esta nudez. ritual dos bapti- zandlos que se deve a relativa e de outro modo inexplicavel to- lerincia da nudez balnear na nossa cultura). As Catequeses Mistagégicas de Cirilo de Jerusalém comentam 0 rito nos se~ guintes termos: «Assim que entrarem, tirai-Ihes logo as vestes, em sinal da deposiglo do homem velho ¢ dos seus pecados [..].O maravilha! Ei-los nus diante dos olhos de todos e nio experimentam vergonha, porque sfio a imagem do protoplasto Adio que, no Paraiso, estava nu e nao se envergonhava.» As vestes, que 0 baptizando calca com 0s dois pés, so «as vestes da vergonha», herdeiras das «ttinicas de pele» que os progenitores envergam no momento da expulsio do Parafso, € substituidas a seguir ao baptism por uma veste ‘branca de linho. Mas o aspecto decisivo ¢ que no rito baptismal seja precisamente a nudez adimica sem vergonha que se evo- a como simbolo ¢ penhor da redengao. E tal é a nudez cuja nostalgia, na representago do relicério de Santo Isidoro, Eva experimenta, rejeitando as vestes que Deus a obriga a envergar. 12. «Como criangas»: a nudez. infantil como paradigma da nudez sem vergonha é um motivo bastante antigo, no s6 em vgenrepproernnonsoszh aera O otha Br Pee es Ob Gbae 1-4 Nudez, 89 textos gndsticos como o Evangelho de Tomé, mas também em documentos juridicos e cristios. Embora a doutrina da propaga- 0 do pecado original através da geracdo implicasse a exclusio da inocéncia infantil (¢ daqui — como vimos — a pratica do baptismo dos recém-nascidos), 0 facto de as criangas ndio expe- rimentarem vergonha da sua nudez é muitas vezes aproximado na tradigao cristi da inovéncia paradisiaca, «Quando as escritu- ras dizem “estavam os dois nus ¢ no experimentavam vergo- nha”, isso significa», lemos num texto sirfaco do século V, «que nao se davam conta da sua nudez como sucede com as crian- cas». Embora marcadas pelo pecado original, as criangas, en- quanto no véem a sua nudez, permanecem numa espécie de limbo , ndio conhecem a vergonha que sanciona, segundo Agos- tinho, o aparecimento da libido. Atal se deve 0 uso, atestado — ainda que nao de maneira exclusiva — pelas fontes ainda até ao século xvi, de reservar 0s pueri o canto durante as fungGes religiosas, como se a voz branca fosse: portadora, em contraste com as voces mutatae, da marca da inocéncia pré-lapséria. E céindida, branca, a ves- te de linho que o baptizado recebe depois de ter deposto as vestes que sdio simbolo do pecado e da morte — «Toda bran- car, escxexe lesinima snore nfo tem consigo sinais de morte, para que assim ao sair do baptismo, possamos cingir os rins na verdade e cobrir toda a vergonha dos pecados ant res». Mas cdndida, j4 em Quintiliano, é também um atributo a voz (ainda que nao se refira decerto a voz das criangas). Daqui, na histéria da miisica sacra, a tentativa de garantir a persisténcia da voz infantil através da pritica da castragio dos _pueri cantores antes da puberdade, A voz branca é a marca ci- frada da nostalgia pela inocéncia edénica perdida — isto € por alguma coisa da qual, como da nudez pré-lapséria, j4 nada sa- bemos. 13. A persisténcia das categorias teolégicas onde menos es- perariamos encontré-las tem um claro exemplo em Sartre. No 90) Giorgio Agamben capitulo de O Ser e 0 Nacla dedicado as relagdes com 0 outro, Sartre ocupa-se da nudez a propdsito da obscenidade e do sa- dismo. E fé-lo em termos que lembram de tio perto as catego- rias agostinianas, que, se a heranga teolégica de que se entrete- ce 0 nosso vocabulério da corporeidade nao fosse suficiente para a explicar, poderfamos pensar que essa proximidade seria intencional. O desejo é antes do mais, para Sartre, uma estratégia desti- nada a fazer aparecer no corpo do outro a «carne» (chair)..O que impede esta ,ou seja, esté j& sempre no acto de con- sumar este ou aquele gesto, este ou aquele movimento ende- regado a-um objectivo. «O corpo do outro é sempre na origem ‘um corpo em situago; a carne, pelo contrétio, aparece como pura contingéncia da presenca. Habitualmente € mascarada pela cosmética, pelo vestuério, etc; mas mascarada sobretu- do pelos seus movimentos; nada € menos “em carne” do que uma bailarina, ainda que nua. O desejo € a tentativa de des- pojar o corpo dos seus movimentos como das suas vestes pa- tao fazer existir como pura came; é uma tentativa de encar- nagéo do corpo do outro» Sartre chama agraga» a este ser sempre ja em situagao do corpo do outro: «Na graca, © corpo aparece como um psiquis- mo em situagdo, Revela antes do mais a sua transcendéncia, como transeendéncia transcendida; é em acto ¢ compreende-se perfeitamente a partir da situagio e do fim que persegue. Cada um dos seus movimentos é tomado num processo perceptive que vai do presente ao futuro [...]. E € esta imagem em movi- mento da necessidade e da liberdade {...] que constitui pro- priamente a graca [...].Na graga o corpo é um instrumento que manifesta liberdade. O acto gracioso, na medida em que mani- festa 0 corpo como instrumento de preciso, fornece-Ihe a ca- da instante a sua justificagio de existir» gamben 0 outro, ¢ do sa- catego- entrete- ficiente de seria ia desti- hair). gico) do que ha- tro estar )de con- to ende- :origem sobretu- ” do que | de des- Nudez 1 ‘A metifora teolégica da graga como veste que impede a percepcio da nudez comparece aqui: «A facticidade €, pois, vestida e mascarada pela graca: a nudez da carne est inte- gralmente presente, mas nao pode ser vista. De tal maneira Que a operacao suprema de sedugdo, o desafio iltimo da gra- a, 6 exibir 0 corpo sem véus, sem outra veste ou véu que no seja a propria graca. O corpo mais gracioso é 0 corpo nu que (8 seus actos circundam de uma veste invisivel, escondendo- -Ihe completamente a carne, embora esta seja totalmente ex- posta aos olhos dos espectadores.» E contra esta veste de graga que se dirige a estratégia do sé- dico. A encamagao especial que ele quer realizar € «o obsce- no», mas este nfio é mais do que o faltar da graga: «O obsce- no ¢ um modo do ser-para-o-outro que pertence ao género do desgracioso [disgracieux] [...]. Aparece quando um dos ele- mentos da graga € obstado na sua realizagio [...], quando 0 corpo assume posigées que 0 despojam completamente dos seus actos e mostram a nu a inércia da carne.» Por isso 0 sé- dico busca por todos os meios fazer com que a came apareca, fazer assumir pela forga ao corpo do outro atitudes incon- gruentes e posigoes tais que revelem a sua obscenidade, isto €.a perda irrepardvel de toda a graga. 92 Giorgio Agamben 14, As andlises que tém s6lidas — ainda que inconscien- tes — raizes teolégicas so muitas vezes pertinentes. Em muitos pafses tem vindo recentemente a difundir-se um gé- nero de publicagdes sadomasoquistas que mostram de inicio a futura vitima elegantemente vestida no seu contexto habi- tual, enquanto sorri ou passeia com as amigas ou folheia ab- sorta uma revista. Ao virar a pagina, o leitor pode brusca- mente ver a mesma rapariga despida, amarrada e submetida a constrigdes que a fazem assumir as posigbes mais contré- rias ao natural e mais penosas, retirando toda a graga tam- bém as linhas que desenham o seu rosto, deformadas ¢ alli radas por meio de instrumentos especiais. O dispositive sédico, com as suas cadeias, as suas poires d'angoisse © os seus chicotes, é aqui o perfeito equivalente profano do pe cado que, segundo os tedlogos, remove as vestes de graga © liberta bruscamente no corpo a auséncia de graga que define a «corporeidade nua». O que o sédico procura captar no € mais do que © molde vazio da graga, a sombra que 0 ser em situacdo (a rapariga vestida na fotografia da pagina anterior) ‘ow a veste de luz langam sobre 0 corpo. Mas precisamente por isso 0 desejo do siidico — como Sartre nao deixa de fa- zer notar — esté destinado ao fracasso, nunca consegue prender deveras entre as miios a «encarnacdio» que engenho- samente procurou produzir. E. certo que o resultado parece ter sido atingido, o corpo do outro € agora inteiramente car- ne obscena e arfante, que conserva docilmente a posic¢do que © algoz Ihe deu e parece ter definitivamente perdido a liber- dade e a graca. Mas é bem esta liberdade que permanece pa- ra ele inatingivel: «Quanto mais 0 sidico se encarniga em tratar 0 outro como um instrumento, mais essa liberdade Ihe foge.» A nudez, o udesgracioso» que 0 sidico procura captar no €, como a corporeidade nua de Adio para os tedlogos, mais do que a hip6stase ¢ o suporte evanescente da liberdade e da graga, aquilo que se deve pressupor na graga para que qual- gamben nscien- es. Em um gé- e inicio to habi- neia ab- brusca- smetida contra- ga tam- se alte- positive ise € 0S do pe- graga € > define r no é ser em nterior) amente a de fa- mnsegue agenho- parece nte car- $iio que a liber- jece pa- niga em lade Ihe ptar no 9s, mais ide © da se qual- Nudez 93 quer coisa como 0 pecado possa acontecer. A corporeidade nua, como a vida nua, é somente o portador da culpa obscu- ro, impalpével. Na verdade, tudo o que hé é s6 0 p6r anu, s6 a gesticulaco infinita que retira ao corpo tanto a veste como a graga. A nudez na nossa cultura acaba por assemelhar-se 20 belissimo nu feminino que Clemente Susini moldou em cera para o Museu de Histéria Natural do Gré-Duque da Tosciinia, que se pode destapar parte por parte, deixando aparecer pri meiro as paredes tordcicas e abdominais, a seguir a pandplia dos pulmées ¢ das visceras ainda cobertas pelo omento maior, a seguir 0 coracdo e os meandros intestinais e, por fim, 0 tite- ro em cujo interior entrevemos um pequeno feto. Mas, por mais que o olhar 0 abra e esquadrinhe, o corpo nu da bela es- ventrada mantém-se obstinadamente inatingfvel. Dagui a impureza ¢ como que a sacralidade que parecem inteirigé-lo. A nudez, como a natureza, é impura, porque s6 se Ihe pode aceder tirando a veste (a graga). 15. Em Novembro de 1981, Helmut Newton publicou na Vogue uma imagem em forma de diptico, que se tomaria de- pois célebre intitulada «They are coming». Na pagina esquer- 94 Giorgio Agamben dada revista, viam-se quatro: mulheres completamente nuas (exceptuados os sapatos, os quais 0 fot6grafo, ao que parece, info pode dispensar) que se movem andando frigidas © arro- gantes como modelos numa passagem de moda. A pégina se- guinte A direita mostrava as mesmas mulheres na mesma ¢ idéntica posigao, mas, desta feita, perfeita e elegantemente vestidas. O efeito singular produzido pelo diptico € que as duas imagens so, contra todas as aparéncias, iguais. As mo- delo envergam a sua nudez exactamente como, na pagina a0 Jado, envergam as suas roupas. Embora ndo seja verosimil atribuir-se ao fot6grafo uma intengdo teoldgica, 0 certo € que o dispositivo nudez/ este parece ser aqui evocado e, talvez in- ‘conscientemente, posto em questéio. Tanto mais que, tornando 4 publicar dois anos depois 0 mesmo diptico em Big Nudes, Newton inverteu a ordem das imagens, de maneira a que as mulheres vestidas precedessem agora as despidas, como, no Paraiso, a veste de graca precedeu o desnudamento. Mas, tam- bém na nova ordem, 0 efeito permanecia inalterado: nem os olhos das modelos nem os dos espectadores se abriram, nao ha nem vergonha nem gléria, nem pudenda nem glorianda. Ea equivaléncia entre as duas imagens € ainda aumentada pelo rosto das modelos, que, como convém a rostos de manequins, exprime a mesma indiferenga entre as fotografias. O rosto que, nas figuragdes pict6ricas da queda, € 0 lugar em que o artista manifesta a dor, a vergonha e o pavor dos cafdlos (pense-se, para citarmos apenas um. exemplo entre todos, no fresco de Masaccio na Cappella Brancacci, em Florenga), adquire aqui a mesma inexpressividade gélida, ja ndo é rosto. Seja como for, € um aspecto essencial que também aqui, como na performance de Vanessa Beecroft, a nudez ndo tenha tido lugar. E como se a corporeidade nua e a natureza caida, que funcionavam como pressuposto wxhien dave es sem sido ambas eliminadas e 0 desnudamento jé nada tives- se, por isso, a desvelar. Hé somente a veste da moda, isto € ‘um indecidivel de came e pano, de natureza e de graga. A mo- oruceuebnerre Le da é a herdeira profana da teologia da veste, a secularizagao mereantil da condig&o edénica pré-lapséria. 16, Na narrativa do Genesis, 0 fruto que Eva oferece a Adio provém da drvore do conhecimento do bem ¢ do mal e, segundo as palavras tentadoras da serpente, destina-se a fazé-los «abrir os olhos» e a comunicar-Ihes esse conhec' mento («Depois de comerdes dele, os vossos olhos abrir-se- “Zo © tomnar-vos-eis como Deus, conhecendo 0 bem e 0 mab», Gen. 3, 5). E, com efeito, os olhos de Adio e Eva a- brem-se logo a seguir, mas aquilo que entio conhecem ¢ de- signado na Biblia somente como nudez: «Entdo os seus olhos abriram-se e conheceram que estavam nus.» O nico contetido do conhecimento do bem ¢ do mal ¢, portanto, a nudez: mas 0 que é a nudez como primeiro objecto ¢ con- tetido do conhecimento? Que se conhece quando se conhe- ce uma nudez? Rashi, comentando este versiculo da Biblia, escreve: «Que significa “conheceram que estavam nus"? Significa que ti nham recebido de Deus um tinico preceito ¢ se tinham desfei- to dele.» E 0 Génesis Rabd? precisa que o homem ¢ a mulher se tinham privado da justiga e da gléria que a observancia do mandamento comportaria. Segundo 0 dispositivo que j4 deve- 3 Ou Bereshit (N. 7.) 96 Giorgio Agamben Tia tet passado a ser-nos familiar, o conhecimento da nudez 6 uma Vez mais, reconduzido a uma privacdo, é somente o co- rhecimento de que qualquer coisa de invisivel e de insubstae Sial (a veste de graga, a justica da observancia) se perdeu. Desta auséncia de contetido do primeiro conhecimento hu- lerpretacio € possivel, todavia, Que o pri- 'o seja desprovido de contetido pode, com luc aquele nao ¢ conhecimento de alguma coisa, mas de uma pura cognoscibilidade; que, conhecendo a hudez, nio se conhece um objecto, mas somente uma ausér: Cia de véus, Somente uma possibilidade de conhecer. A nude, Si, este ser pura visibilidade ¢ presenga. E ver um corpo nu significa aperceber a sua cognoscibilidade pura para alem de todo © segredo, para além ou para aquém dos seus ptedicados objectivos. mento 40 pel efeito,/ culmini Ihe tira «ele par Deus, ¢ queda n didaea mas ah 18.A ca cifra sofia ed nhecime mudum do con cimento que con moum da sensa pouco a imento hu- Que o pri- pode, com de alguma ahecendo a ma ausén- r Anudez, Jo os seus da ilatén- possivel o e de graca s a luz da essuposta, detris de | Corpo nu a além de Nudez o7 Vela no €, pois, uma falta e um defeito na natureza humana, que a intervengao da veste de graga cobriria: consiste. pelo sontrato, no aperceber como falta a plenitude que definia a condi¢ao edénica. Se o homem tivesse continuado no Paraiso, escreve Basi lio, nio deveria as suas vestes nem a natureza (como os ani mais) nem a técnica, mas somente a graga divina, que comes- Pondia ao amor que ele enderegava a Deus. Obrigando-o a abandonar a beatitude da condigdio edénica, 0 pecado precipi- ‘2 homem na va pesquisa das técnicas e das ciéncias que o distraem da contemplagio de Deus. A nudez, nesta tradigao, ndo se refere, como em Agostinho e na tradi¢do latina, & cor- Poreidade, mas 4 perda da contemplacéo — que é conheci- mento da cognoscibilidade pura de Deus — ¢ a sua substitui- $20 pelas técnicas e saberes mundanos. No Paraiso, com ‘feito, Adio goza de um estado de contemplagiio perfeita, que Gulmina no éxtase, quando Deus o faz cair adormecido para ihe tirar a costela («Através do xtase», esereve Agostinho, “cle participa na corte angélica e, penetrando no santudrio de Deus, compreende os seus mistérios», Gen. ad lit. 1X, 19). A gueda no € queda da carne, mas do espirito: a inocéncia per- ‘ida ¢ a nudez nao se referem a um certo modo de fazer amor, mas & hierarquia e As modalidades do conhecimento, 18. A nudez — ou melhor, 0 desnudamento — como mar- = cifrada do conhecimento faz parte do vocabulério da filo- ofia e da mistica. E nao s6 no que se refere ao objecto do co- Becimento supremo, que é 0 «ser nu» (esse antem Deus esse dum sine velamine est), mas também ao proprio proceso conhecimento. Na psicologia medieval, 0 meio do conhe- ‘to € a imagem, ou «fantasma», ou espécie. O proceso Conduz ao conhecimento perieito é descrito, portanto, co- © um progressivo por a nu deste «fantasma» que, passando sensagdo a imaginagio ¢ & memoria, se despoja pouco a co dos seus elementos sensfveis para se apresentar, no fi- Bio Agi nal, uma vez consumada a desnudatio perfecta, como «esp& Cie inteligivel», imagem ou intengao pura. No acto da inte- lec¢lio, a imagem esté perfeitamente nua e — esereve Avice. na — «¢ tomar-se-ia nua, se 0 no estivesse j4, porque 2 faculdade contemplativa a despe de modo a que nenhuma afecetio material nela permanega.» O conhecimento perfeite € contemplagao numa nudez de uma nudez. Num sermiio de Eckhart, esta conexio entre imagem ¢ nudez € desenvolvida posteriormente num sentido que faz da ima. gem, identificada com a «esséncia nua», qualquer coisa como © mcio puro e absoluto do conhecimento. «A imagem, expli- ca ele, «é uma emanagao simples ¢ formal, que transfunde na Sua totalidade a esséncia nua, tal como a considera 0 metafisi- o [...]. Euma vida [vita quaedam, que podes conceber como uma coisa que comega a dilatar-se © a tremer {intumescere et bullire| em si e por si mesma, mas sem pensar a0 mesmo tem. Po o seu expandir-se fora [necdum cointellecta ebullltione|», Na terminologia de Eckhart, bullitio indica tremor ou a ten. Sao intema do objecto na mente de Deus ou do homem (ens cognitivum), enquanto ebullitio significa a condigao do objec- ‘o real, fora da mente (ens extra animam). A imagem, enquan- to exprime o ser nu, é um meio perfeito entre 9 objecto na men- te € 4 Coisa real e, como tal, no € um simples objecto légico nem um ente real: € qualquer coisa de vivo («uma vida»), € 0 tremor da coisa no meio da sua cognoscibilidade, ¢ 0 frémito em que se dé a conhecer. «As formas que existem na matérian, escreve um discipulo de Eckhart, «tremem incessantemente [continue tremant), como num estreito mar em ebuligao [tan quam in eurippo, hoc est in ebullitionel |...]. Por isso nada de certo nem de estiivel se pode dele conceber.» A nudez do corpo humano € a sua imagem, isto é 0 tremor que © toma cognoscfvel, mas que se mantém, em si, ina- Preensivel. Daqui o fascinio muito especial que as imagens exercem sobre a mente humana. E precisamente porque a imagem nio € a coisa, mas a sua cognoscibilidade (a sua nu- o Agamben mo «espé- to da inte- eve Avice~ , porque @ > nenhuma to perfeito emenudez az da ima- coisa como env», expli- nsfunde na o metafisi- ceber como umescere et nesmo tem- ullitione|». or ou a ten- jomem (ens 0 do objec- m, enquan- cto na men- jecto I6gico vida»), € 0 ¢ 0 frémito 1a matéria», ssantemente uligdio [tan- sso nada de € o tremor em si, ina- as imagens e porque a e (a sua nu- Nudez 9 dez), nao exprime nem significa a coisa; ¢, todavia, na medi- da em que nao é mais do que 0 doar-se da coisa a0 conheci- mento, © seu despojar-se das vestes que a cobrem, a nudez niio € diferente da coisa, € a coisa mesma. 19. Benjamin levou a cabo uma tentativa de pensar a nudez na sua complexidade teoldgica e, simultaneamente, ir mais Jonge do que ela. Ao aproximar-se do final do ensaio sobre as Afinidades Electivas, a propésito do personagem de Ottilia (em que via uma figura da mulher que amava nesse momen- to, Jula Cohn), interroga-se sobre a relagéo entre véu ¢ vela- do, aparéncia ¢ esséncia na beleza. Na beleza, 0 véu ¢ 0 vela- do, 0 invélucro eo seu objecto esto ligados por uma relagio necessiria que Benjamin define como «segredo» (Geheim- nis). Belo, por outras palavras, é 0 objecto ao qual o véu é es- sencial. Que Benjamin esté consciente da espessura teolégica desta tese, que liga irrevogavelmente 0 véu ¢ 0 velado, € su- gerido pelo facto de a reportar «i antiquissima ideia» segun- do a qual no desvelamento o velado se transforma, pois sé sob o invélucro permanece «igual a si prdprio». Por isso a be- leza é, na sua esséncia, indesvelavel: «Desvelado, 0 objecto belo tornar-se-ia infinitamente inaparente [...]. Se s6 belo, e nada fora dele, pode existir essencialmente yelado ¢ perma- necendo velado, entio é no segredo que est o fundamento di- vino da beleza. A aparéncia, nela, € precisamente isto: no 0 inv6lucro supérfluo da coisa em si, mas 0 necessério das coi- sas para nés. Este véu 6 divinamente necessério em determi- nados tempos, tal como é divinamente estabelecido que. des- velado fora de tempo, se volatiliza em nada esse Inaparente, com 6 qual a revelagiio dissolve os segredos.» Em contrapartida, precisamente no que se refere ao ser hu- mano ¢ a sua nudez, esta lei que, na beleza, une inseparavel- mente véu e velado falta de modo inesperado. Devido & uni- dade que nela 0 véu e 0 velado formam, a beleza, escreve Benjamin, s6 pode existir como esséncia onde nfo haja a dua- Tidade da nudez ¢ da veste: na arte e nos fenémenos da reza nua. «Quanto mais claramente, pelo contririo, se exp me esta dualidade, para se intensificar 20 maximo no ser mano, mais evidente se toma que, na nudez sem véus, essencialmente belo desaparece e, no corpo nu do homem, alcangado um ser para além de toda a beleza: 0 sublime uma obra para além de todo 0 produto: a obra do eriador. No corpo humano — e, em particular, no romance, em OF tilia que € o paradigma desta aparéncia pura — a beleza s6 po- de ser aparente. Por isso, enquanto nas obras da arte e da na- tureza vale o prinefpio da indesvelabilidade, no corpo vivo afirma-se, implacdvel, 0 principio oposto, segundo 0 qual «nada de mortal é indesvelavel». Nao s6, portanto, a possibi- lidade de ser desnudada condena a beleza humana & aparén- cia, como a desvelabilidade constitui de certo modo a sua marea cifrada: no corpo humano, a beleza é essencial e infi- nitamente «desveldvel» — pode ser sempre exibida como me- ra aparéncia. Ha, todavia, um limite. Para além do qual nao se encontra uma esséncia que no pode ser posteriormente des- velada nem a natura lapsa, mas o proprio véu, a propria apa- réncia, que ja no € aparéncia de nada. Este residuo indelével de aparéncia, na qual nada aparece, esta veste, que j4 nenhum corpo pode envergar, € a nudez humana. E ela que resta, de- pois de retirado 0 véu a beleza. E sublime, porque como, se gundo Kant, a impossibilidade de apresentar sensivelmente 2 ideia se inverte, em certo ponto, numa apresentago de ordem superior, em que €, por assim dizer, a propria apresentagao a ser apresentada; deste modo, na nudez sem véus, a aparéneia acede ela prépria & aparéncia e mostra-se, assim, infinitamen- te inaparente, infinitamente desprovida de segredo, Por outras palavras, a aparéncia é sublime enquanto exibe a sua vacui- dade e, nessa exibigdo, deixa acontecer © inaparente. Por isso, no final do ensaio, ¢ precisamente a aparéncia que é confiada «a esperanga mais extrema» e o principio, segundo 0 qual é absurdo querer a aparéncia do bem, «sofre a sua tinica ex- Nudez 101 ccepedo». Se a beleza era, no seu fntimo, segredo, isto € relagio necessdiria de aparéncia e de esséncia, véu e velado, aqui a apa- réncia desfaz-se desse vinculo e¢ brilha por um instante por si sé ‘como «aparéncia do bem». A luz de que esplende €, por isso, ‘opaca, como s6 nos é dado encontré-la em certos textos gnésti- ‘cos: niio jé invélucro necessério ¢ indesveléivel da beleza, é ago- aa aparéncia, na meciida em que nada aparece através dela. O lugar em que esta inaparéncia, esta sublime auséncia de se- gredo da nudez humana se marea de modo eminente, é 0 rosto. 20. Entre o fim dos anos 20 ¢ o infeio dos anos 30, Benjamin ligou-se a um grupo de amigas muito sedutoras — entre as quais Gert Wissing, Olga Parem e Eva Hermann — que via te- rem em comum uma mesma relaciio especial com a aparéncia. Nos didrios mantidos na Céte d’Azur entre Maio e Junho de 1931, procura descrever essa relagdo, associando-a ao tema da aparéncia que enfrentara anos antes no ensaio sobre o romance de Goethe. «A mulher do Speyen>, escreve Benjamin, «trans- mitiu-me estas surpreendentes palavra da Eva Hermann, nos seus dias de depressfio mais profunda: “Se jé sou infeliz, nem por isso tenho de sair com uma cara cheia de rugas”. Esta frase fez-me compreender muitas coisas, e em primeiro lugar que o 102 Giorgio Agamben contacto periférico que nos tltimos tempos tive com essas pes- soas — a Gert, a Eva Hermann, ete. — € apenas um eco fraco ce tardio de uma das experiéncias fundamentais da minha vida; a da aparéncia [Schein]. Falei disto ontem com o Speyer, que pelo seu lado também tem refleetido sobre essas mesmas pes- Soas ¢ fez @ curiosa observagiio de que néio tém qualquer senti- do da honra ou, antes, que 0 seu c6digo de honra é dizer tudo. Observaciio muito-justa e que mostra como € profunda a obri- gagio que sentem em relagdo 4 aparéncia. Porque o seu “dizer tudo” tende antes do mais a anular 0 que ¢ dito ou, melhor, a torné-lo, depois de anulado, um objecto: s6 enquanto aparente [scheinhaf] isso se torna assimilivel para elas.» Poderia definir-se como «niilismo da beleza» esta atitude, comum a muitas mulheres belas, que consiste em reduzirem a suia beleza a aparéncia pura, e em exibirem a seguir, com uma espécie de tristeza desenganada, essa aparéncia, desmentindo obstinadamente qualquer ideia de que a beleza possa signifi- car seja que outra coisa for além de si pr6pria. Mas precisi- mente a auséncia de ilusdes sobre si prépria,a nudez sem véus que a beleza alcanca deste modo, que Ihe fornece a sua atrac- <0 mais temfvel . Este desencantamento da beleza, este niilis: mo especial atinge 0 seu estidio extremo nas manequins ¢ nas modelos, que aprendem antes do mais a anular no seu rosto to- da a expresso, de maneira a qué este se torne puro valor de exposigdo e adquira, por isso, um fascfnio particular. 21, Na nossa cultura, a relagdio rosto/corpo € marcada por uma assimetria fundamental, que quer que o rosto se mante- nha as mais das vezes nu, enquanto @ corpo esta por norma co- berto. A esta assimetria corresponde um primado da cabega, que se exprime das mais variadas maneiras, mas que perma- nece mais ou menos constante em todos os dominios, da polf- tica (na qual o titular do poder se chama capo) a religido (a 4 Que tanto pode significar «cabera» como «chefer (N. 7) Zz on awee oe iio Agamben n essas pes- m eco fraco minha vida: Speyer, que nesmas pes quer senti- : dizer tudo. nda a obri- 9 seu “dizer 1, melhor, a ito aparente sta atitude, eduzirem a r.com uma esmentindo ssa signifi- s 6 precisa z sem véus a sua atrac- este niilis- quins e nas eu rOsto to- ro valor de Nudez 103 metdfora cefélica de Cristo em Paulo), da arte (na qual se po- de representar a cabega sem corpo — 0 retrato —, mas néio — ‘como é evidente no , pode dizer-se bela a apa- réncia que na nudez alcanga 0 seu estédio supremo. Que no se possa chegar & claridade da nudez nem da beleza nfo sig- nifica, todavia, que haja, nelas, um segredo que no conse- guimos trazer & claridade. Uma aparéncia assim seria miste- riosa mas, precisamente por isso, nao seria invélucro, porque se poderia sempre continuar a procurar 0 segredo que nela se esconde. No inv6lucro inexplicavel, pelo contrério, no ha segredo algum e, desnudado, ele mostra-se aparéncia pura. O belo rosto, que exibe sorrindo a nudez, diz. apenas: «

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