Вы находитесь на странице: 1из 10
Revista da Faculdade de Levas “SLINGUAS E LITERATURASs Porte, XVI, 2000, pp. 251-260 CASAS DESTRUIDAS A revisitagao de Casa na Duna em Finisterra de Carlos de Oliveira ‘There is the future (i! y a de lavenir), There is something to come (il y @ a venir). ‘That can happen... that can happen, and promise in opening the future or in leaving the future open. Jacques DERRIDA 1 Entre os miltiplos fios que estretecem a complexidade narrativa de Finisterra,' destaca-se aquele que expie a decadéncia de uma familia (c de uma classe social) através da progressiva ruina de uma casa. Assim, no é de admirar que, na Nota Final a esta obra, Carlos de Oliveira esta- belega uma relaglo entre a casa minada pelas gisandras em Finisterra e “outra (sua) casa destruida”, numa alusfo clara ao seu primeiro romance, Casa na Duna, publicado em 1943 € desenvolvido em torno da mesma tematica. Insistindo no parentesco entre as duas obras, o escritor prossegue: obsessbes pessoais e sociais idénticas? Nao Ihe parece grave, dada a frequéncia com que sucede aos romancistas repetirem o essencial (para eles) enredos. Grave seria, com certeza, nfo as ter aprofundado um Onivetna, Carlos de — Finisterra, Obras, Lisboa, Caminho, 1992 (1 ed. 1978). 2 Ouiveina, Carlos de — Casa na Duna, Coimbra, Coimbra Editora, 1943. 3 Otivetea, Carlos de — Finisterra, Obras, p. 1155. 251 ROSA MARIA MARTELO A que espécie de aprofundamento se refere Carlos de Oliveira? A questo € tanto mais pertinente quanto 0 romance Casa na Duna, vindo a pablico quando o autor tinha apenas vinte ¢ dois anos, fora ja objecto de intensa reescrita aquando da terceira edigio, em 1964, No longo preficio que acompanhava essa nova versio, Mario Dionisio sublinhava, de resto, a amplitude de uma renovagdo que incidia sobretudo no plano discursivo e que fazia alastrar, para esta primeira tentativa ficcional, a con- tencdo a capacidade alusiva que o escritor desenvolvera apenas em obras subsequentes: “Visto (...) & luz do que originariamente conta na criagio estética,” — chegava mesmo a afirmar 0 autor de A Paleta e 0 Mundo, indo na importancia da linguagem como matéria da escrita — “Ieio este velho romance como um livro novo”.* Antes, porém, nao deixara de registar 0 que transitava de uma edigo para a outra: a hist6ria da formagao, esplendor e decadéncia de uma quinta, fruto de determinado tipo de exploragao agréria que a alteragio dos sistemas econé- micos de produsao ¢ organizagdo arrasta para a ruina total.S A tragos largos, podemos reconhecer esta mesma histéria também em. Finisterra, embora num outro enredo, ou, mais exactamente, num cruza- mento de enredos. E ¢ certamente a este nivel que certas “obsessdes pes- soais € sociais [sto] idénticas” nos dois romances. Procurarei mostrar, no entanto, que esta revisitagdo do tema da casa destruida se faz sob uma forma substancialmente diferente em Finisterra, ja que esta narrativa opera, na verdade, a desconstrugao de Casa na Duna, questionando nio sé os seus fundamentos ideolégicos mas também os principios estéticos de matriz realista que tinham presidido elaboragaio deste primeiro romance. Acrescente-se que, se a estrutura discursiva de Casa na Duna fora ja objecto de reelaboragdo, sera certamente a este nivel que Carlos de Oliveira vé ainda necessidade de aprofundamento. A verda- deira ponte entre um ¢ outro texto, aquilo a que Carlos de Oliveira chama “o essencial” na “Nota” que comecei por referir, podemos encontri-la * Dionisio, Mério — “Preficio”, in OuiveiRa, Carlos de — Casa na Duna, 3+ ed. Lisboa, Portugélia Editora, 1964, p.35, 5 sbidem, 252 CASAS DESTRUIDAS nessa palavra igualmente dita “essencial” num texto sobre Micropaisagem, incluido em O Aprendiz de Feiticeiro: a palavra brevidade.® Toda a obra de Carlos de Oliveira, tanto poética como ficcional, se escreve sob 0 signo da brevidade, de uma “opressiva brevidade” que 0 escritor decompoe em miltiplas memérias perceptivas ¢ existenciais: (40) materiais vindos de longe: saibro, cal, rvores, musgo. E gente, numa grande solidéo de areia. A paisagem da infancia que nfo é nenhum paraiso perdido mas a pobreza, a nudez, a caréncia de quase tudo. (..) Casas construidas com adobos que duram sensivelmente 0 que dura uma vida humana. Pinhais que 0s camponeses plantam na inffineia para derrubar pouco antes de morrer, A propria terra é passageira: dunas modela~ das, desfeitas pelo vento.” Depois de afirmar que & destes elementos que se sustenta a sua escrita, ora explicitando-os, ora limitando-se a sugeri-los na “brevidade dos textos”, o autor interroga-se ¢ interroga o leitor: Que literatura poderia nascer daqui que no fosse marcada por esta opressiva brevidade, por este tom precirio, demais a mais to coincidentes com os sentimentos do autor? Repare-se que “brevidade” tem, neste texto, trés significados correla- tos € extensiveis poética de Carlos de Oliveira como trés principios estruturantes desse “essencial” que se repete de obra para obra: as nogdes de caréncia, de transformacio e de precaridade. A primeira corresponde a uma opgdo no jogo das contradigdes sociais e exprime a solidariedade ‘com os desapossados de si ¢ do mundo; a segunda activa um principio geral do pensamento dialéctico com 0 qual se articula uma visio da Historia subordinada ao grande discurso clissico de emancipagdo, especitfi- camente ao materialismo historico; a terceira perspectiva subjectivamente 08 dois anteriores ¢ introduz a dimensdo individual, as “obsessbes pes- soais” do escritor. Na palavra brevidade, Carlos de Oliveira faz convergir uma opgdo no conflito de classes, reportando-a & meméria da caréncia observada na sua inffincia rural na regio da Gandara; mas dessa memoria vem também a © Ouiveiea, Carlos de — Obras, p. 588. 7 bide. 253 ROSA MARIA MARTELO evidéncia da permanente transformagdo do mundo fisico (“dunas modela- das, desfeitas pelo vento”), agora alargada a condigdo ontol6gica, e ainda a experiéneia da perecidade, o entendimento da vida como um “rumor pre= cério”. E este “o essencial” que a obra de Carlos de Oliveira permanente- mente retoma, seja na poesia seja na fic¢do, primeiro apenas como tema, depois também como textura discursiva, através de uma linguagem que tende para a contengdo, para a fragmentagdo e para a instabilidade inerente 4 reelaboragdo levada a cabo pela reescrita, E A luz deste conceito de brevidade que devemos entender ¢ aproxi- ‘mar a ruina das duas casas nos dois romances (e poderemos até perguntar se nio se tratard, afinal, sempre da mesma casa): em ambos os casos 0 materialismo ¢ a dialéctica marxistas so convocados como quadros de referéncia externa ¢ em ambos os casos se combinam com um profundo sentimento de precaridade, isto é, de finitude ¢ mortalidade. Todavia, a dosagem dos ingredientes é substancialmente diferente, Casa na Duna & um romance publicado nos alvores do Neo-realismo, © Carlos de Oliveira esta indiscutivelmente ligado ao periodo de formagao deste movimento. Até 4 sequéncia final, quando a progressiva loucura de Mariano Paulo explode no gesto desesperado de pegar fogo a velha casa de familia, assistimos as varias tentativas de sobrevivéncia dos Paulos, bur- guesia rural cujo poder econdmico se fundava na posse da terra ¢ na explorago de camponeses expoliados, obrigados a vender a pouca terra que possuiam por quase nada —- “a canecas de vinho”® — nos anos de més colheitas. Quando a abertura de novas estradas vem alterar as frageis relagdes econdmicas locais, os Paulos ndo tém capacidade para reconverter uma quinta que desconhece a mecanizagio e que vive “fora do tempo”? A tentativa irreflectida e incipiente de criar uma fébrica de telha nos terrenos da quinta falha também, incapaz de suportar a concorréncia vinda do exte- rior através dos novos meios de comunicagao. Paralclamente, a familia dos Paulos desagrega-se: a mulher de Mariano morre de parto, deixando-Ihe um filho que hi-de crescer fragil ¢ timorato e que morrera assassinado as mios de um camponés na sequéncia de um frustrante tridngulo amoroso, no qual as relagOes passionais so simultaneamente relagées de poder ¢ de impoder. § Ouiverra, Carlos de — Casa na Duna, Obras, p. 607. ° dem, p. 657. CASAS DESTRUIDAS Como resume Jo%o Camilo dos Santos, em Carlos de Oliveira “fas hist6rias individuais s6 adquirem todo o seu sentido quando analisadas entendidas luz do contexto histérico-social em que surgem”.!° E, de facto, 0 colapso individual das personagens bem como a crise familiar em que se debatem sdo insepardveis da situagiio de transformagdo das relagdes econémicas ¢ sociais descrita no romance. Como € proprio do romance neo-realista, © pathos individual ndo pode desligar-se da Histéria. Embora este sistema de valores esteja também presente em Finisterra, ¢ haja mesmo miltiplos pontos de contacto a nivel diegético entre as duas obras, os seus contornos so agora muito diferentes, desde logo porque a estratégia narrativa utilizada é muito mais complexa, assi- milando a ampla renovagao de que o romance portugués seré objecto entre os anos 60 € 70. Estruturalmente, Finisterra subordina-se & figura do labi- rinto, exigindo uma leitura construtiva, feita do prazer de perder-se e de se saber reencontrar, de forma que, tal como as personagens, o leitor desta narrativa s6 pode construir interpretagdes sempre sujeitas a auséncia de orientagiio global. Quer como tema quer como figura estrutural, o labirinto esté preci- samente associado A perda de visio totalizante, embora constitua um desa- fio que admite a possibilidade de se encontrar ainda uma ordem."" Esta significagdo simbélica explicaria, alids, a sua recorréncia na arte ¢ na lite- ratura desenvolvidas na segunda metade do século XX, quando se torna dominante uma “ontologia fraca”.'? E, de facto, em Finisterra, a versdo- de-mundo "> ontologicamente forte que Casa na Duna encontrara no pen- samento marxista, designadamente ao nivel de uma visio teleolgica ¢ holistica da Histéria, embora permaneca, surge agora relativizada numa multiplicidade de versdes-de-mundo que nem se excluem nem se legiti- 1 santos, Joo Camilo dos — “Apresentagdo de um romancista neo-realista: Carlos de Oliveira”, Vértice, 38, Maio de 1991, p. 32. MCE, CaLanRese, Omar — A Idade Neobarroca, Lisboa, Edigoes 70, 1987, p. 147, 12 Varnmo, Gianni — O Fim da Modernidade. Niilismo ¢ Hermenéutica na Cultura Pés-moderna, Lisboa, EdigBes 70, 1987, p.143. 83 Goopman, Nelson — Maniéres de Faire des Mondes, Nimes, Editions Jacqueline Chambon, 1992 (I.? ed. 1978) 255 ROSA MARIA MARTELO mam entre si. Concomitantemente, € porque 0 Neo-realismo, como qual- quer realismo, funciona por referéncia a uma “ontologia forte”, a propria Possibilidade de uma poética realista é também questionada Finisterra & uma natrativa auto-reflexiva onde a relagao entre texto ¢ mundo é também ela objecto de discurso, como se 0 enunciado narrativo Procurasse apreender ¢ mostrar o proceso da sua enunciagao. Confiontadas com uma situagao idéntica do seu criador, as personagens Procuram captar e reproduzit 0 mundo instivel em que se movimentam, Todavia, elas habitam Finisterra, o fim da terra, o ponto extremo de um mundo. Como sugere Manuel Gusmao,'* 0 préprio titulo Finisterra recorda 0 inicio de Casa na Duna: “Na Gandara ha aldeolas ermas, esque- cidas entre pinhais, no fim do mundo”.'5 Porém, esta referéncia essencial- mente geografica e social adquire agora um sentido ontologico: se estas Personagens se confrontam com o fim de um mundo social,'® elas con- frontam-se igualmente com a possibilidade do fim de um mundo de refe- réncias ideoldgicas, politicas e sobretudo filosbficas. Nao é por acaso que, apesar de podermos reconhecer ainda na paisagem que envolve a casa a Gandara dos romances anteriores, em Finisterra este nome nunca ocorre. Sem nome, a Gandara é a atopia e a pantopia, uma condigiio do funciona- ‘mento alegérico da narrativa, E por esse motivo que através do desenho, da pirogravura, da foto- grafia, dos papéis encontrados numa pasta, da maquetagem, do animaté- grafo ¢ da topografia, as personagens tentam construir modelos de mundo — mas estes modelos nunca sio coincidentes entre si. A obra abre narrati- vas sob narrativas, numa rede de versdes-de-mundo que se relativizam entre sie que, por isso mesmo, nunca podem ser totalizadoras, Ao contré- rio do que se passa em Casa na Duna, onde as personagens se movem num mundo cuja complexidade é controlada pelo poder ordenador de um narrador extradiegético-heterodiégético, em Finisterra 0 ponto de vista modifica-se sistematicamente em fungdo da focalizagio de diferentes per- sonagens confrontadas com um mundo de “complexidade ambigua”,!? do qual tém percepgées localizadas e instveis. A principal caracteristica do § GuswAo, Manuel — “Introdug8o", in Carlos de Oliveira — Uma Abelha na ‘Chuva, Lisboa, Circulo de Leitores, 1987, p. XIV. 'S Ouivenea, Carlos de — Finisterra, Obras, p. 603. "6 CE GusmAo, Manuel — ibidem. 17 Cavaprese, Omar — op. city p. 147. 256 casas DEsTRUIDAS mundo em que se movimentam € a permanente transformaco; mas com que finalidade, e segundo que mecanismos cla acontece? E, desconhecendo isso, como representi-la? — No almofadao de cameira pirogravada pela mae na tentativa de reproduzir a paisagem instével que rodeia a casa, “o sulco do estilete nunca se interrompe” e desenha “uma teia castanho-eseura no castanho mais aberto do material”.'* Personagens sem nome, além daquele que designa um papel social ou uma relagiio familiar, movendo-se entre o interior ¢ as proximidades de uma casa sem lugar preciso, dedicam-se obsessivamente a “reproduzir”, “copiar”, “repetir”, “construir”, “reconstruir”, “filtrar”, “imitar”, “captar” a paisagem visivel da janela, que permanentemente se altera sob 0 efeito da luz: ‘Ao fundo, uma nesga de azul pode parecer ao mesmo tempo céu & mar; placa de zinco a incendiar-se, ou apenas um reflexo turvo da luz.!? ‘A instabilidade da paisagem em termos perceptivos esta metaforica- ‘mente ligada a outra relagdo instivel: a relagdo com o objecto epistemolé- gico. E, se a paisagem nunca ¢ abordada fora do enquadramento decor- rente de um olhar, isso significa que todas as suas representagdes devem ser relativizadas em fungdo de um determinado quadro de referéncias. Por outro Iado, podemos ver nas sucessivas tentativas de apreensio da paisa- ‘gem fevadas a cabo pelas personagens um exemplo dessa visdo sectorial ou localizada que € a tnica possivel a quem percorre um labirinto, ou, para usar um termo muito recorrente em Finisterra, um enigma, Sé a par- tit do pormenor € possivel inferir a complexidade de um todo cuja totali- zagdo se desconhece. & nesse sentido que a paisagem constitui uma siné- doque generalizante da infinitude incontornvel do real. Ha em Finisterra uma personagem em dois tempos, ou duas perso- nagens que convergem numa s6: a crianga e 0 adulto. Uma desenha, 0 outro constréi uma maquete, e ambos fazem incidir explicitamente sobre a paisagem (metonimia do mundo) 0 marxismo como quadro de referéncia externa, No desenho da crianga, que mantém uma rela¢o hipertextual com © Livro do Apocalipse, embora subordinando-o a esse quadro de referéncia marxista, € sugerida uma interpretagdo positiva pata a progressiva indife- 8 OuiverRa, Carlos de — op. cit, p. 1014. 9 idem. 257 ROSA MARIA MARTELO Tenciagdo a que estdo sujeitas a casa ¢ a paisagem. Os camponeses cuja aproximacdo a familia teme e vigia de dentro de casa aparecem entio como “os escolhidos”, aqueles que terio um papel primordial a desem- penhar, Carlos de Oliveira parece atribuir a crianga essa solidariedade primi- tiva com “a pobreza”, com “a caréncia de quase tudo” observada na sua infancia gandaresa, essa solidariedade que exprimira em Casa na Duna. Mas, ao mesmo tempo, parece remeter também para o passado uma visdo optimista e teleolégica da Histéria, segundo a qual a emancipagio dos oprimidos ¢ expoliados dos meios de produgo seria imperativa — como se essa visto decorresse de uma vivéncia de algum modo ingénua e sobre- tudo afectiva do marxismo. Neste sentido, a crianga de Finisterra repre- senta também a inffncia da obra, uma infincia de que fizera parte, por exemplo, a nota comovida que acompanhava a segunda edigdo de Casa na Duna, em 1944, ¢ que foi suprimida nas edigbes seguintes: Este romance tem 0 seu caminho. Que © percorra pela mao daqueles ara quem 0 escrevi. Um camponés dos meus sitios disse-me, depois de o ter: ‘A nossa vida € assim mesmo. Mas muitas vezes no pensamos nisso. Se um ano de trabalho teve a virtude de obrigar um gandarés a medir 4 sua condigao, no posso deixar de me sentir pago.° E para a maquete construida pelo adulto que convergirdo todas as sequéncias narrativas anteriores: reencontraremos entdo os camponeses/ Iperegrinos do desenho da crianga, € 6 af eles sero os agentes do repo- voamento da paisagem, os principais actores no nascimento de um novo mundo ¢ de uma outra ordem. $6 ento a crianga pronunciard a palavra que sublinha a consumagao hé muito esperada: “amen”. No entanto, o lei- tor nao pode deixar de ver que assiste a uma ficgdo dentro de outra ficgio, € a remediagdo do erro primordial — a posse da terra — toma-se apenas ‘mera possibilidade: Actos absorvidos em cadeias de actos, postos ao servigo de qué? Ha, hho entanto, certa aresta quase visivel do problema: julga que proceso € ‘acaso se confundem (nela). Como finalidade, nao; apenas porque 0 meca- 2 Ouiveira, Carlos de — Casa na Duna, 2* ed,, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, 258 CASAS DESTRUIDAS nismo historico é assim, ¢ a sua natureza intrinsecamente moral (apesar de tanta circunstancia perversa). Quanto ao resto, quem quiser perder tempo. A tal geometria submersa na realidade (visualizagio dos mecanismos) pode mostrar-se aqui e ali, mas esconde (sem excepgdes) a esséncia © os designios.?! Como em toda a obra produzida ou reescrita depois de 60, também em Finisterra Carlos de Oliveira no supera 0 passado da obra, isto é, nko pode esquecer 0 pasado, Tal como acontece com a poesia, drasticamente reescrita sobretudo na década de 70, também entre estas duas casas, tam- bém nesta revisitagiio 4 grande Casa Matricial que foi para ele o pensa- mento marxista, o escritor estabelece uma tensdo entre visio totalizante e visio fragmentiria, entre cosmogonia ¢ relativizagao. No excerto acima transcrito, podemos verificar que 0 escritor nao abdica do discurso de Emaneipagio ainda que se resigne a desconhecer a sua teleologia. Paralelamente, o labirinto ndo € ainda a auséncia de totali- dade: 6, sim, a perda de visao totalizante, € a ordem que excede o poder ordenador daquele que 0 atravessa. Finisterra nio & exactamente a superagao do passado porque ¢ a sua reelaboragao, 2 sua revisitago sob forma dubitativa: no lugar da certeza surge o dilema, no entanto, a crise paradigmética combina-se com a obses- so de cosmogonia. Ou, dito de outra forma, a Historia como processo conducente Emancipagdo continua a ser uma possibilidade, mesmo se a “esséncia e os designios” se relativizam numa pluralidade de verdades “versbes-de-mundo”. S6 um olhar absoluto poderia ver integralmente o labirinto, Finisterra 6 a recusa dessa visto de angulo nenhum. Julgo que € no apa- gamento desse olhar totalizador que reside, afinal, 0 aprofundamento ambi- cionado por Carlos de Oliveira na “Nota Final” a Finisterra. Na versio de Terra de Harmonia (1950) incluida em Trabalho Poético (1976), ha um pequeno texto significativamente intitulado “O cir- culo”. E um texto inquieto, feito da mesma inquietag’o de Finisterra, tanto mais que é inserido estrategicamente no passado da obra apenas na versio de 76. Trata-se de um texto que é langado na terra mais harmoniosa do 21 Ouiverea, Carlos de — Finisterra, Obras, pp. 1140-1 259 ROSA MARIA MARTELO passado como uma pedra dissonante. Vale a pena recorda-lo aqui, por- quanto, na sua trajectéria de desajustamento do passado da obra, esse texto nos ajuda a compreender sentido desta e doutras revi do passado, 0 sentido deste e doutros “aprofundamentos” to procurados por Carlos de Oliveira: Caminho em volta desta duna de cal, ou dum sonho mais parecido com ela do que a areia, s6 para saber se a dspera exortagdo da terra, 0 seu revérbero imével na brancura, pode reacender-me os olhos quase mortos. © que eu tenho andado sobre este circulo incessante; ¢ ao centro 0 polo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta hd muito, possivelmente imaginada, conduz-me sem descanso, prende-me como um iman a0 seu rigor jd cego.” Rosa Maria Martelo 2 Ouiveina, Carlos de — Terra de Harmonia, Obras, p. 161. 260

Вам также может понравиться