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NIALL FERGUSON CIVILIZACAO OCIDENTE X ORIENTE Copyright © Niall Ferguson, 2071 Todos os direitos reservados. Titulo original: Civilization ~ The West and the rest Prepanagio: Dida Bessana Reviséo: Mauricio Katayama Diagramagdo: Balio Editorial Capa: Marcilio Godoy Dados Internacionais de Cataloga¢io na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) F392¢ Ferguson, Niall, 1964- Civilizagio : Ocidente X Oriente / Niall Ferguson ; traducéo Janaina Marcoantonio. - Sao Paulo : Planeta, 2012. 432p.: 23 em ‘Traducéo de: Civilization : the west and the rest ISBN 978-85-7665-888-7 1, Histéria moderna. 2. Civilizagio comparada. 3. Oriente e Ocidente. I. Tieulo. 12-2130 CDD: 909.08 CDU: 94(8) 2012 Todos os direitos desta edigéo reservados & Eprrora Praneta po Brasit Lrpa. Avenida Francisco Matarazzo, 1500 — 3* andar — conj. 32B Edificio New York 0501-100 ~ Séo Paulo-SP wwweditoraplaneta.com.br atendimento@editoraplaneta.com.br Introducdo: A pergunta de Rasselas Ele nao admitia civilieaedo [na quarta edi¢éo de seu diciondrio], apenas civilida- de, Com todo o respeito, acredito que 0 termo civilisagdo, do verbo civilizar, é mais apropriado, no sentido oposto a barbdrie, do que civilidade, James Boswent ‘Todas as definigoes de civilizacio [..] pertencem a uma conjugagéo deste tipo: “Eu sou civilizado, vocé pertence a uma cultura, ele € um barbaro”. Fetipe Fern4Nnez-ARMESTO Quando Kenneth Clark definiu o termo civilizagdo em sua série homénima de TY, deixou perfeitamente claro para os espectadores que se referia & civili- zacio do Ocidente — e sobretudo & arte e & arquiretura da Europa Ocidental, da Idade Média até o século XIX. O primeiro dos 13 filmes que ele fez para a BBC, ainda que sem ser indelicado, ignorava totalmente a Ravena bizantina, as Hébridas celtas, a Noruega viking e até mesmo a Aachen de Carlos Magno. Os tempos obscuros entre a queda de Roma e 0 Renascimento do século XII simplesmente néo se qualificavam como civilizacdo na concepgio que Clark tinha da palavra. Esta s6 reviveu com a construgéo da catedral de Chartres, habilitada — apesar de nao conclufda — em 1260, ¢ estava mostrando sinais de fadiga com os arranha-céus de Manhattan de meados do século XX. Extremamente bem-sucedida, a série de Clark, transmitida pela primeira vez na Gra-Bretanha quando eu tinha cinco anos de idade, definiu civilizacao para toda uma geracao no mundo angléfono. Civilizagéo eram os chateaux do > Loire, Eram os palazei de Florenca. Era a Capela Sistina. Era Versalhes. Dos interiores sébrios da Repiblica holandesa 4s fachadas exuberantes do Barro- co, Clark soube explorar seus conhecimentos de historiador da are, A misica a literatura fizeram suas aparigdes; a politica e até mesmo a economia asso- 25 Civiuizagio mavam de vez em quando. Mas a esséncia da civilizagao de Clark era, clara- mente, alta cultura visual. Seus herdis eram Michelangelo, Da Vinci, Diirer, Constable, Turner, Delacroix.t A série de Clark — sejamos justos — recebeu o subtitulo Uma visdo pessoal, E ele estava ciente da implicagdo, jé problemética em 1969, de que “a era pré- -cristé e 0 Oriente” fossem, em certo sentido, incivilizados. No entanto, com © passar de quatro décadas, tornou-se cada vex. mais dificil conviver com a visdéo de Clark, pessoal ou nao (isso sem falar de seu leve ar de supetioridade). Neste livro, adotarei uma abordagem mais ampla e comparativa, ¢ espero scr mais simples do que sublime. Minha ideia de civilizagio esté tio associada com canos de esgoto quanto com arcobotantes, se nao até mais, porque sem uma rede hidrdulica ptiblica eficiente as cidades so armadilhas fatais, trans- formando rios ¢ posos em paraisos para a bactéria Vibrio cholerae, Sem ne- nhum constrangimento, estou téo interessado no custo de uma obra de arte quanto em seu valor cultural. Para mim, uma civilizagao € muito mais do que © acervo de algumas poucas galerias de arte de prestigio. E uma organizagao social extremamente complexa. Suas pinturas, estétuas ¢ edificios podem muito bem ser suas realizacgGes mais cativantes em termos visuais, mas so ininteligiveis sem alguma compreensio das instituices econdmicas, sociais politicas que as conceberam, financiaram, executaram — e preservaram para gis pieeanieemiectaple ts “Civilizacao” & uma palavra de origem francesa, usada pela primeira vez pelo economista francés Anne-Robert-Jacques Turgot em 1752, ¢ publicada pela primeira vez por Victor Riqueti, marqués de Mirabeau, pai do grande revoluciondrio, quatro anos mais tarde. Samuel Johnson, como a primeira epigrafe a esta Introducéo torna claro, no aceitava o neologismo, preferin- do “civilidade”. Se barbarismo tinha um anténimo para Johnson, era a vida urbana educada (embora as vezes também completamente rude) que ele tanto apreciava em Londres. Uma civilizagao, conforme indica a etimologia da palavra, gira em torno de suas cidades, e em muitos aspectos sio as cida- des as herofnas deste livro.s Mas as leis de uma cidade (civis ou n4o) sio tao importantes quanto seus muros, sua constituicao ¢ seus costumes — os habi- tos de seus habitantes (civis ou nfo) -, tfo importantes quanto seus palé- cios.* Civilizagdo ¢ tanto os laboratérios dos cientistas quanto os sétaos dos artistas. E tanto as formas de posse de terra quanto suas paisagens. O suces- so de uma civilizacio € medido nao apenas por suas realizagbes estéticas, 26 | q Inrropugio: A rercunta pe Rasseias mas também, ¢ sem diivida esse é o aspecto mais importante, pela duragdo ¢ pela qualidade de vida de seus cidadaos. E essa qualidade de vida tem mui- tas dimensoes, nem todas facilmente quantificaveis. Podemos ser capazes de estimar a renda per capita dos povos em todo o mundo no século XV, ou sua expectativa média de vida ao nascer. Mas e quanto a seu conforto? Hi- giene? Felicidade? Quantas pecas de roupa tinham? Quantas horas precisa- vam trabalhar? Que comida conseguiam comprar com seu salério? As obras de arte, por si s6s, podem oferecer pistas, mas néo conseguem responder a essas perguntas. Claramente, de todo modo, uma cidade nao faz uma civilizacio. Uma civilizagio é a maior unidade de organizacdo humana, maior até que um im- pério, embora mais amorfa. As civilizacoes so, em parte, uma resposta prati- ca das populagdes humanas a seu meio ~ os desafios de se alimentar, se hidra- tar, se abrigar e se defender —, mas também so de carter cultural; muitas veres, ainda que nem sempre, religioso; muitas vezes, ainda que nem sempre, unidas por uma lingua.’ Elas so poucas, mas néo raras. Carroll Quigley con- tou duas dezenas nos tiltimos dez milénios.‘ No mundo pré-moderno, Adda Bozeman identificou apenas cinco: o Ocidente, a India, a China, Bizdncio e 0 Isla.” Matthew Melko contou 12 ao todo, das quais sete desapareceram (a mesopotamica, a egipcia, a cretense, a classica, a bizantina, a centro-america- na ¢ a andina) ¢ cinco permanecem (a chinesa, a japonesa, a indiana, a iski- mica ¢ a ocidental).* Shmuel Eisenstade contou seis, agregando ao clube a civilizacdo judaica.? A interacao dessas poucas civilizacées umas com as ou- tras, ¢ também com seu préprio meio, estd entre os motores mais importan- tes de transformacao histérica.” O mais surpreendente a respeito dessas interacées & que as civilizagées auténticas parecem permanecer validas inter- namente durante longos periodos, apesar das influéncias externas. Conforme afirma Fernand Braudel: “Civilizagao é, de fato, a histéria mais longa de to- das {...] Uma civilizagio [...] pode persistir ao longo de uma série de econo- mias ou sociedades”.” Se, em 1411, voct tivesse sido capaz de circum-navegar o globo, provavelmen- te teria ficado muito impressionado com a qualidade de vida das civilizacoes orientais. A Cidade Proibida estava sendo construida na China da dinastia Ming, ¢ haviam comecado as obras para a reabertura ¢ melhoria do Grande 27 Crmzacio Canal; no Oriente Préximo, os otomanos estavam se aproximando de Cons- tantinopla, que finalmente tomariam em 1453. O Império Bizantino dava seu Ultimo suspiro. A morte do guerreiro Timur (Tamerléo) em 1405 havia elimi- nado a ameaca recorrente de hordas invasoras assassinas provenientes da Asia Central — a antitese da civilizacdo. Para o imperador Yongle, na China, ¢ 0 sultao otomano Murad II, o futuro era brilhante. Jéa Europa Ocidental, em 1411, 0 teria impressionado por ser um lugar remoto ¢ miserével, recuperando-se das devastagdes da peste negra — que ha- via reduzido a populacéo & metade conforme se propagou para o leste entre 1347 € 1351 — e ainda assolada por péssimas condicées sanitérias ¢ guerras apa- rentemente incessantes. Na Inglaterra, o rei leproso Henrique IV ocupava 0 trono, depois de haver destronado e assassinado Ricardo II. A Franga estava & mercé da guerra interna entre os seguidores do duque de Borgonha ¢ os do duque de Orléans, que havia sido assassinado. A Guerra dos Cem Anos entre a Franca e a Inglaterra estava prestes a ser retomada. Os outros reinos belico- sos da Europa Ocidental - Aragio, Castela, Navarra, Portugal ¢ Escécia — aparentavam estar um pouco melhores. Um muculmano ainda governava Granada. © rei escocés, Jaime I, era prisioneiro na Inglaterra, apés ter sido capturado por piratas ingleses. As partes mais prosperas da Europa eram, de fato, as cidades-estados do norte da Itélia: Florenca, Genova, Pisa, Siena e Veneza. Quanto 4 América do Norte, no século XV era uma selvageria andr- quica em comparagio com os reinos dos astecas, dos maias ¢ dos incas nas Américas Central e do Sul, com seus templos grandiosos ¢ suas estradas em meio as nuvens. Quando vocé terminasse sua volta a0 mundo, a nocdo de que o Ocidente poderia vir a dominar 0 restante durante grande parte dos 500 anos seguintes pareceria absolutamente fantasiosa. ) Mas aconteceu. Por alguma razio, 2 partir do fim do século XV, os pequenos Estados da Europa Ocidental, com suas Iinguas bastardas emprestadas do latim (e, em menor medida, do grego), sua religido provcniente dos ensinamentos de um judeu de Nazaré e suas dividas intelectuais 4 matemética, 4 astronomia ¢ & tecnologia orientais produziram uma civilizacéo capaz nfo sé de conquistar 08 grandes impérios orientais e subjugar a Africa, as Américas ¢ a Austrélia, como também de converter os povos de todo 0 mundo ao modo de vida oci- dental — uma converséo alcangada, no fim das contas, mais pela palavra do que pela espada. 28 IntRoDUGAO: A PERGUNTA DE RassELas Hé aqueles que contestam tal afirniacdo, alegando que todas as civilizacbes sio iguais em certo sentido, e que o Ocidente nao pode reivindicar superiori- dade sobre o leste da Eurdsia, por exemplo.” Mas tal relativismo é comprova- damente absurdo. Nenhuma civilizacéo anterior foi capaz de exercer a domi- nagdo que o Ocidente exerce sobre o restante do mundo. Em 1500, as futuras | poténcias imperiais da Europa dominavam cerca de 5% da superficie da Terra, € quando muito 16% de sua populacéo. Em 1913, 11 impérios ocidentais* con- trolavam aproximadamente trés quintos de todo o territério ¢ populacao, ¢ quase trés quartos (surpreendentes 74%) da producéo econdmica mundial... A expectativa de vida média na Inglaterra era de quase duas vezes a da India. Os padrées de vida mais altos no Ocidente também se refletiram em uma dicta melhor, até mesmo para os trabalhadores agricolas, e estatura mais alta, mes- mo para os presos e para os soldados comuns.* A civilizagéo, conforme vimos, sio as cidades. Segundo esse critério, também, 0 Ocidente aparece em primei- ro, Em 1500, até onde podemos saber, a maior cidade do mundo era Pequim, com uma populacao entre 600 mil ¢ 700 mil habitantes. Das dez maiores ci- dades do mundo naquela época, somente uma — Paris — era europeia, ¢ sua populacao nao passava de 200 mil. Londres tinha, talvez, 50 mil habitantes. As taxas de urbanizacéo também eram mais altas na Africa do Norte e na América do Sul do que na Europa. Mas em 1900 observa-se uma reviravolta impressio- nante. $6 uma das dez maiores cidades do mundo nessa época era asidtica, e essa cidade era Téquio. Com uma populagao de cerca de 6,5 milhées, Londres era a megalépole global. O dominio do Ocidente tampouco terminou com o declinio ea queda dos impérios europeus. Com a ascenséo dos Estados Uni- dos, 0 abismo entre Ocidente e Oriente tornou-se ainda maior. Em 1990, a renda per capita dos norte-americanos era 73 vezes a dos chineses.” ‘Além disso, ficou dlaro, na segunda metade do século XX, que a nica forma de diminuir a enorme distancia quanto & renda era que as sociedades orientais seguissem 0 exemplo do Japao, adotando as mesmas (embora nao todas) instituigées ¢ maneiras de operar do Ocidente. Em consequéncia, a ci- * Os m impérios eram Austria, Bélgica, Franca, Alemanha, Itélia, Holanda, Portu- gal, Espanha, Rissia, Reino Unido e Estados Unidos. Destes, somente Franca, Portugal e Espanha existiam em 1500 de forma similar 3 do inicio do século XX. Sobre a reivindicac4o da Ruissia de ser considerada parte do Ocidente, ver a seguir. 29 Crmuzacio vilizagéo ocidental tornou-se uma espécie de modelo para 0 modo como o frestante do mundo aspirava a se organizar, Antes de 1945, é claro, havia varios modelos de desenvolvimento — ou sistemas operacionais, para usar uma me- téfora da computacao — que podiam ser adotados pelas sociedades nio oci- dentais. Mas os mais atraentes eram todos de origem europeia: 0 capitalismo liberal, 0 socialismo nacional, o comunismo soviético. A Segunda Guerra Mundial matou o segundo na Europa, embora tenha sobrevivido com outros nomes em muitos paises em desenvolvimento. O colapso do império sovigti- co entre 1989 ¢ 1991 matou 0 terceiro. » Sem diivida, muito se falou, no inicio da crise financeira global, sobre os modelos econémicos asidticos alternativos. Mas nem mesmo o relativista cul- tural mais fervoroso recomenda uma volta As instituig6es da dinastia Ming ou dos mongéis. O atual debate entre os proponentes dos livres mercados ¢ aqueles da intervengao estatal é, em esséncia, um debate entre escolas de pen- samento notadamente ocidentais: os seguidores de Adam Smith e os de John Maynard Keynes, com alguns poucos dévotos obstinados de Karl Marx que ainda persistem. Os lugares de nascimento de todos os trés falam por si s6 Kirkcaldy, Cambridge, Tréveris. Na prética, a maior parte do mundo hoje estd integrada a um sistema econdmico ocidental em que, conforme reco- mendou Adam Smith, 0 mercado estipula a maior parte dos precos e deter mina o fluxo de comércio e a divisio de trabalho, mas 0 governo desempenha um papel mais préximo daquele vislumbrado por Keynes, intervindo para tentar abrandar 0 ciclo de negécios ¢ reduzir a desigualdade de renda Quanto as instivuigSes no econdmicas, nao hd nenhum debate digno de nota. Em todo o munds, as universidades estéo convergindo para as normas ocidentais. Isso também é valido para o modo com que a ciéncia médica é organizada, das pesquisas abstrusas aos sistemas de satide na linha de frente, A maioria das pessoas, hoje, aceita as grandes verdades cientificas reveladas " por Newton, Darwin e Einstein e, mesmo que nio aceitem, ainda procuram avidamente pelos produtos da farmacologia ocidental diante do primeiro sin- toma de gripe ou bronquite. Sé algumas poucas sociedades continuam a re- sistir invaséo dos padrées ocidentais de marketing ¢ consumo, bem como a0 proprio estilo de vida ocidental. Cada vez mais seres humanos seguem ‘uma dieta ocidental, vestem roupas ocidentais e vivem em uma casa ociden- tal. Até mesmo 0 modo tipicamente ocidental de trabalhar — cinco ou seis dias por semana, das 9h as 17h, com duas ou trés semanas de férias — est se 30 Percentuais do total mundial Percentuais do total mundial OO ee 40 304 20-4 ro} IrRopugao: A PERCUNTA DE RAssaLas Futuros Impérios Ocidentais (1500) TTerctorio, Populaga PIB emer na createed oa] eee “Terra natal” Populagao Territério, (em milhas quadradas) BL | Civiuzacko tornando uma espécie de padréo universal. Enquanto isso, a religiéo que os missiondrios ocidentais procuraram exportar para o restante do mundo é se- guida por um terco da humanidade, e vem fazendo Progressos notdveis no pais mais populoso do mundo. Mesmo o ateismo, pioneiro no Ocidente, vem avancando de maneira impressionante. A cada ano que passa, mais e mais seres humanos compram como nés, fir cam saudaveis (ou doentes) como nés e rezam (ou nao rezam) como nés. Hambirgueres, bicos de Bunsen, Band-Aids, bonés de beisebal e Biblias: nao € possivel sc livrar deles facilmente, aonde quer que se v4. Apenas na esfera das instituig6es politicas ainda resta uma diversidade global significativa, com uma ampla gama de governos pelo mundo resistindo & ideia do Estado de di- reito, com sua protecao aos direitos individuais, como a base para um gover- no representativo significativo. E tanto como ideologia politica quanto como religido que um Isla militante procura resistir 20 avango das normas ociden- tais do século XX de igualdade de género ¢ liberdade sexual.* Portanto, nao é “eurocentrismo” ou (anti) “orientalismo” dizer que a as- censio da civilizacio ocidental ¢ 0 fendmeno histético mais importante da segunda metade do segundo milénio depois de Cristo. E uma afirmago do Sbvio. O desafio ¢ explicar como isso aconteceu. O que houve na civilizacio da Europa Ocidental depois do século XV que Ihe permitiu sobrepujar os impérios visivelmente superiores do Oriente? Sem diivida, foi algo mais que a beleza da Capela Sistina. A tesposta facil, se ndo tautolégica, a essa pergunta é que o Ocidente domi- nou 0 Oriente por causa do imperialismo.® Ainda hoje, hé muitas pessoas * que podem se sentir profundamente indignadas com os excessos dos impérios curopeus, Excessos decerto existiram, ¢ nfo estéo ausentes destas paginas. Também esté claro que as diferentes formas de colonizacio — povoamento versus exploracao — tiveram impactos muito diferentes a longo prazo.*® Mas, Para a histéria, o império nao € uma explicacéo suficiente da supremacia oci- dental. Houve impérios muito antes do imperialismo denunciado pelos mar- xistas-leninistas. De fato, 0 século XVI viu uma série de impérios asidticos aumentarem significativamente seu poder ¢ sua extensio. Entretanto, apds 0 Fracasso do projeto de Carlos V ~ de um grande impétio dos Habsburgo es- tendendo-se da Espanha & Alemanha, passando pelos Paises Baixos -, a Euro- IxtRopugao: A renGUNTA DE RASSELAS pa ficou mais fragmentada do que nunca. A Reforma desencadeou mais de um século de guerras religiosas europeias. Um viajante do século XVI dificilmente deixaria de notar 0 contraste. Além de abarcar a Anatélia, o Egito, a Arébia, a Mesopotamia e o Iémen, 0 Império Otomano ~ sob Solimao, 0 Magnifico (1520-66) ~ estendeu-se até os Baleds ¢ a Hungria, ameacando os portées de Viena em 1529. Mais ao leste, 0 Império Safavida, sob Abbas I (1587-1629), estendia-se de Ispaa e Tabriz. a Kandahar, a0 paso que o norte da India, de Déli a Bengala, era governado pelo poderoso imperador mongol Akbar (1556-1605). A China Ming também parccia serena € segura atrds do grande muro. Poucos europeus que visitassem a corte do impe- rador Wanli (1572-1620) poderiam ter previsto a queda de sua dinastia menos de trés décadas apés sua morte. Escrevendo de Istambul no fim da década de 1550, 0 diplomata flamengo Ogier Ghiselin de Busbecq — 0 homem que trans plantou tulipas da Turquia 4 Holanda — comparou, nervoso, a situacao fratura~ da da Europa com a “grande prosperidade” do Império Otomano. E verdade que o século XVI foi uma época de intensa atividade europeia no além-mar. Mas, para os grandes impérios do Oriente, os navegantes por- tugueses ¢ holandeses pareciam 0 exato oposto dos portadores de civilizacio; eram apenas 0s tiltimos barbaros a ameacar o Reino do Meio, de fato mais que mais atraia os curopeus 4 Asia além da qualidade superior dos tecidos in- dianos e da porcelana chinesa? Foi sé em 1683 que um exército otomano marchou até os portées de Viena —a capital do império Habsburgo — e exigiu que a populacio da cidade se ren- desse ¢ se convertesse ao islamismo. E sé apés o levantamento do cerco que o mundo cristio pode comecar, pouto a pouco, a repelir 0 poder otomano na Europa Central ¢ Oriental ao longo dos Balcas em direcao ao Bésforo, e levou muitos anos até que algum império europeu pudesse se equiparar as conquis- zas do imperialismo oriental. A “grande divergéncia” entre 0 Ocidente ¢ 0 Oriente foi ainda mais lenta de se materializar em outros lugares. As diferengas snateriais entre a América do Norte e a do Sul nao estavam muito bem demar- cadas até meados do século XIX, ¢ até 0 inicio do século XX a maior parte da Afiica no esteve sob dominio curopeu; s6 umas poucas faixas litoraneas. Se a supremacia ocidental nao pode, portanto, ser explicada nos velhos —simplesmente uma questio de sorte? Foi a geografia ot 0 clima da extre- me 1 repulsivos — ¢ certamente mais malcheirosos — que os piratas do Japio. Eo, os gastados do imperialismo, teria sido — como afirmam alguns estudio- Crmzacio midade ocidental da Eurdsia 0 que fez com que a grande divergéncia aconte- cesse? Os europeus s6 tiveram a sorte de tropecar nas ilhas do Caribe, com sua localizagao tao ideal para o cultivo de acticar, rico em calorias? O Novo Mundo proporcionou a Europa os “acres fantasmas” dos quais a China care- cia? E é s6 por causa da Lei de Murphy que os depésitos de carvéo da China eram mais dificeis de explorar e transportar do que os da Europa? Ou serd que a China, de alguma forma, foi vitima de seu proprio sucesso — presa na “armadilha do equilibrio”, devido & capacidade de seus agricultores de forne- cera um grande ntimero de pessoas apenas a quantidade suficiente de calorias para sobreviver?* Ser mesmo possivel que 2 Inglaterra tenha se tornado a primeira nacao industrial porque a falta de saneamento ¢ as doencas mantive- ram a vida excepcionalmente curta para a maioria das pessoas, dando aos ri- cos € aos empreendedores melhor chance de transmitir seus genes? O imorral lexicégrafo inglés Samuel Johnson rejeitou todas essas possiveis explicagées para a supremacia ocidental. Em seu livro Histéria de Rasselas: principe da Abissinia, publicado em 1759, ele leva Rasselas a perguntar: Por que meios [...], cntéo, os curopcus séo poderosos? Por que, jé que cles po- dem visitar a Asia ¢ a Africa com tanta facilidade para 0 comércio ou para a conquista, os asidticos e afticanos no conseguem invadir sua costa, implementar col6nias em seus portos ¢ impor leis a seus principes naturais? O mesmo vento que os traz de volta nos levaria para lA.” A qual o filésofo Imlac responde: Eles séo mais poderosos do que nés porque so mais sdbios, Siz; 0 conhecimento sempre predominaré sobre a ignorincia, da mesma forma que © homem governa 0s outros animais. Mas por que 0 conhecimento deles ¢ maior que 0 nosso, cu nao sei que outra razdo pode ser dada além do desejo insondivel do Ser Supremo.” * De fato, essa questo estava sendo levantada nos impérios ndo ocidentais durante 0 século XVIII. Em 1751, 0 escritor otomano Ibrahim Mi que as nagées cristas, que foram téo débeis no passado em comparacéo com as na- ges muculmanas, passaram a dominar tantas terras e até mesmo a derrotar os ou- ferrika perguntou: “Por trora vitoriosos exércitos otomanos?”. 34 Inrropucio: A pERGuNTA DE RassELas De fato, conhecimento é poder, quando proporciona maneiras melhores \ de navegar, escavat materiais, usar armas de fogo ¢ curar doengas. Mas seré ‘mesmo que os europeus tém mais conhecimento que outros povos? Talver ti- ‘vessem cm 1759; a inovagéo cientifica, por cerca de dois séculos e meio apés 1650, foi quase exclusivamente de origem ocidental.* Mas ¢ em 1500? Con- forme veremos, durante séculos a tecnologia chinesa, a matemética indiana e a astronomia arabe estiveram muito 3 frente. 4 Foi, portanto, uma diferenca cultural mais nebulosa o que permitiu que) os europeus safssem & frente de seus pares orientais? Esse foi o argumento do sociélogo alem4o Max Weber. Manifesta-se de varias formas — o individualis- mo inglés medieval, o humanismo e a ética protestante ~, ¢ foi buscado em toda parte, da forga de vontade dos agricultores ingleses as regras de eviquera das cortes reais, sem falar dos livros contabeis dos mercadores mediterrancos. Em A riqueza e a pobreza das nagées, David Landes defende o argumento da diferenca cultural, afirmando que a Europa Ocidental liderou 0 mundo de- senvolvendo uma pesquisa intelectual auténoma, 0 método cientifico de veri- ficagao e a racionalizacao da pesquisa e sua difusio. Mas mesmo ele admitiu que algo mais era necessério para que aquele modo de operagio florescesse: intermediérios financeiros e um bom governo.** A chave — ¢ isso torna-se cada vez mais visivel — est4 em suas instituicdes. E claro que as instituigdes s4o, em certo sentido, produto da cultura. Mas, uma vez que formalizam um conjunto de normas, costumam ser aquilo que mantém uma cultura no rumo certo, dererminando até que ponto esta con- duz ao bom comportamento c néo ao mau. Para ilustrar esse argumento, 0 século XX fez uma série de experimentos, impondo instituic6es muito dife- rentes a dois conjuntos de alemées (ocidentais e orientais), dois conjuntos de coreanos (do Norte e do Sul) e dois conjuntos de chineses (dentro e fora da Republica Popular). Os resultados foram muito impressionantes, e a ligéo, clarissima. Se tomarmos 0 mesmo povo, com mais ou menos a mesma cultu- ra, ¢ impusermos instituigées comunistas a um grupo ¢ capitalistas a outro, quase imediatamente haver4 uma divergéncia no modo como se comportam, Hoje, muitos historiadores concordariam que havia poucas diferencas sealmente profundas entre as extremidades oriental e ocidental da Eurdsia =m 1500. Ambas as regides adotaram desde cedo a agricultura, as trocas base- adas no mercado ¢ as estruturas estatais centradas em cidades.*” Mas houve ‘ema diferenca institucional crucial. Na China, consolidou-se um império s: Crvizacko monolitico, ao paso que a Europa permaneceu politicamente fragmentada, Em Armas, germes ¢ ago, Jared Diamond explica por que a Eurdsia havia avancado mais que o restante do mundo.” Mas foi s6 em seu ensaio “Como ficar rico” (1999) que ele deu uma resposta a pergunta de por que uma ponta da Eurdsia esteve, até agora, & frente da outra. A resposta era que, nas plani- cies da Eurdsia Oriental, os impérios orientais monoliticos freavam a inova- $40, ao passo que, na Eurdsia Ocidental, montanhosa e dividida por tios, varias monarquias e cidades-estados se engajaram na competicéo criativa e na comunicacio.” E uma resposta atraente. Mas ainda nao basta. Observemos as duas séties de gravuras chamadas “As misérias da guerra”, publicadas pelo artista Jacques Callot, de Lorraine, nos anos 1630, como que para alertar o restante do mun- do dos perigos do conflito religioso. A competicdo entre os pequenos Estados da Europa ~ ¢ também no interior deles — durante a primeira metade do sé- culo XVII era desastrosa, despovoando grandes extensdes de terra da Europa Central ¢ mergulhando as ilhas britanicas em mais de um século de disputas recorrentes e debilitantes. A fragmentacao politica muitas vezes tem esse efei- to. Se vocé duvida, pergunte aos habitantes da ex-lugoslivia. A competicio & certamente uma parte da histéria da supremacia ocidental, conforme veremos no Capitulo 1; mas sé uma parte. Neste livro, quero mostrar que 0 que distinguiu o Ocidente do Oriente — as molas propulsoras do poder global — foram seis novos sistemas de instituices identificdveis ¢ as ideias ¢ os comportamentos associados a eles. Para simplifi- car, abaixo eu os resumo em seis topicos: 1. A competicao 2. A ciéncia 3. Os direitos de propriedade 4. A medicina 5. A sociedade de consumo 6.A ética do trabalho Para usar a linguagem do mundo computadorizado e sincronizado de nossos dias, estes foram os seis “incriveis aplicativos” (ou apps) que permiti- 36 Inrropucio: A rencunta pe Rassias ram que uma minoria da humanidade, originando-se no extremo oeste da Eurdsia, dominasse o mundo durante a maior parte dos dltimos 500 anos. Agora, antes que vocé escreva para mim indignado, reclamando que es- queci algum aspecto crucial da supremacia ocidental, como 0 capitalismo ou a liberdade ou a democracia (ou, aliés, armas, germes ¢ aco), leia as seguintes breves definicé 1. A competicéo: uma descentralizacdo da vida politica « econdmica, que criou as condigées para o surgimento dos Estados-nacio e do ca- pitalismo. 2. A ciéncia: uma forma de estudar, entender ¢, finalmente, transformar © mundo natural, que deu ao Ocidente (entre outras coisas) uma im- portante vantagem militar sobre o restante. 3. Os direitos de propriedade: 0 controle da lei como um meio de prote- ger os proprietétios privados ¢ solucionar pacificamente as disputas entre eles, que assentou a base para a forma mais estivel de governo representativo. 4 A medicina: um ramo da ciéncia que possibilitou uma importante melhoria na sauide e na expectativa de vida, inicialmente nas socieda- des ocidentais, mas também em suas colénias. 5. Asociedade de consumo: um modo de vida material em que a produ- ¢4o ¢ a compra de roupas ¢ outros bens de consumo desempenham um papel econémico central, ¢ sem 0 qual a Revolugéo Industrial te- tia sido insustentavel. 6. A ética do trabalho: um sistema moral ¢ um modo de atividade deriva- dos do cristianismo protestante (entre outras fontes), que fornece coesio 4 sociedade dinamica e potencialmente instavel criada pelos itens ra 5. Nao se engane: esta néo é mais uma versio presungosa do “triunfo do Ocidente”.» Pretendo mostrar que néo foi s6 a superioridade ocidental que levou & conquista ¢ A colonizacao de grande parte do restante do mundo; foi também a fraqueza fortuita de seus rivais. Na década de 1640, por exemplo, uma combinacao de crise fiscal e monetatia, mudanca climética ¢ epidemia desencadeou uma rebelido ¢ 0 colapso da dinastia Ming. Isso no teve nada a ver com o Ocidente. Da mesma maneira, 0 declinio politico ¢ militar do Im- pério Otomano teve mais causas internas do que externas. As instituigbes po- 37 CC EIIE;’'s~,; Civitrzacio liticas norte-americanas floresceram & medida que ctesciam as feridas da América do Sul; mas o fracasso de Simén Bolivar em criar os Estados Unidos da América Latina nao foi culpa dos gringos, O ponto critico é que a diferenca entre o Ocidente ¢ 0 restante do mundo cra institucional. A Europa Ocidental superou a China em parte porque no Ocidente havia mais competieao tanto na esfera politica quanto na econémi- ca. A Austria, a Prissia ¢, mais tarde, até mesmo a Ruissia se tornaram mais cficazes em termos administrativos ¢ militares porque a tede de comunicacéo que levou & Revolugio Cientifica surgiu no mundo cristéo, mas néo no mu- gulmano. A razao pela qual as ex-col6nias norte-americanas se sairam muito melhor que as da América do Sul € que os colonizadores ingleses estabelece- ram no Norte um sistema de direitos de propriedade representagéo politica completamente diferente daquele implementado por espanhis ¢ portugueses no Sul. (O Norte era uma “ordem de acesso aberto”, em ver de fechado, ad- ministrada segundo os interesses de elites exclusivas ¢ em busca de privilé. gios.)" Os impétios europeus foram capazes de penetrar na Africa no sé por- que tinham a metralhadora Maxim; eles também conceberam vacinas contra doengas tropicais as quais os africanos eram igualmente vulnerdveis. Da mesma mancira, a industrializagao precoce do Ocidente refletia vanta- Sens institucionais: a possibilidade de uma sociedade de consumidores em massa caistia nas ilhas britanicas bem antes do advento e da disseminacéo da eneigia a vapor ou do sistema fabril. Mesmo quando a tecnologia industrial estava dispo- nivel quase universalmente, a diferenca entre o Ocidente ¢ 0 restante do mundo Petsistiu: de fato, tornou-se ainda maior. Sem um maquindrio totalmente padro- nizado de fiacao e tecelagem de algodio, o trabalhador curopeu ou norte-ameri- cano ainda era capaz de trabalhar de maneira mais produtiva, ¢ seu empregador Gapitalisea de acumular riqueza mais depressa do que seus pares orientais.* © investimento em satide ¢ em educacéo piblica deu bons resultados; onde nao houve investimento, as pessoas continuiaram pobres.* Este livro € sobre todas cssas diferencas — por que existiram e por que foram to importantes, Até agora usei palavras como “Ocidente” e “ocidental” de maneira mais ou me- nos aleatSria. Mas exatamente a que— ou a que lugar eu me refio quando digo “Giilzagdo ocidental’? Os homens brancos anglo-saxdes protestantes do pos “guerra costumavam situar Ocidente (também conhecido como “o mundo li- 38 Inrropugio: A peRGUNTA DE RASSELAS vre”), de maneira mais ou menos instintiva, em um corredor relativamente estrei- to que ia (certamente) de Londres a Lexington, Massachusetts, e (possivelmente) de Estrasburgo a Séo Francisco. Em 1945, quando esses homens tinham acabado de voltar dos campos de batalha, a primeira lingua do Ocidente era o inglés, se- guida de um francés hesitante. Com 0 sucesso da integracéo europeia nos anos . 1950 € 1960, o clube ocidental se expandiu. Hoje, poucos discordariam que os Pafses Baixos, a Franca, a Alemanha, a Itilia, Portugal, a Escandindvia ¢ a Espa- nha pertencem ao Ocidente, ao passo que a Grécia é um membro extraoficial, apesar de sua fidelidade posterior ao cristianismo ortodoxo, gracas 3 nossa divida duradoura para com a filosofia helénica antiga ¢ as dividas mais recentes dos gre- gos para com a Unio Europeia. Mas e quanto ao restante do sul ¢ do leste do Mediterraneo, abarcando nao s6 os Balcas a0 norte do Peloponeso, como também a Africa do Norte ea Anatélia? E quanto ao Egito ¢ & Mesopotamia, bercos das primeiras civiliza~ g6es? A América do Sul — colonizada por europeus tanto quanto 2 América do Norte, e geograficamente no mesmo hemisfério — ¢ parte do Ocidente? E quanto 4 Russia? A Russia europeia é verdadeiramente ocidental, mas a Riis- sia além dos montes Urais serd, em alguns aspectos, parte do Oriente? Duran- te toda a Guerra Fria, a Unio Soviética e seus savélites foram chamados de “bloco oriental”. Mas sem diivida hd raz6es para afirmar que a Unido Soviéri- ca foi um produto da civilizacdo ocidental tanto quanto os Estados Unidos. Sua ideologia central tinha a mesma origem vitoriana que o nacionalismo, o abolicionismo ¢ o suftégio universal feminino: nasceu ¢ se formou na velha sala de leitura circular da Biblioteca Britinica, E sua extensio geogréfica era um produto da expansio e da colonizagZo europeia tanto quanto 0 povoa- mento das Américas. Na Asia Central, assim como na América do Sul, 0s eu- ropeus governavam os nao europeus. Nesse sentido, 0 que aconteceu em 1991 foi simplesmente a morte do ultimo império europeu. Mas 2 mais influente das definigoes atuais de civilizacdo ocidental, a de Samuel Huntington, exclu nio s6 a Ruissia como todos os paises com tradicao religiosa ortodoxa. O Oci- dente de Huntington consiste apenas de Europa Ocidental (excluindo o Les- += Ortodoxo), América do Norte (excluindo 0 México) ¢ Australdsia, Grécia, Israel, Romania e Ucrinia nao foram escalados; nem as ilhas caribenhas, ape- sar do fato de muitas serem tao ocidentais quanto a Flérida.¥ “O Ocidente”, entao, é muito mais do que apenas uma expressao geogr: ca. E um conjunto de normas, comportamentos ¢ instituigées com frontei- 39 NN LLL ee Cmuzagio ras nebulosas ao extremo. As implicacées disso sao dignas de andlise. E real- mente possivel que uma sociedade asidtica se torne ocidental a0 adotar as formas ocidentais de se vestir e fazer negécios, como fez 0 Japéo a partir da era Meiji, e como grande parte do restante da Asia parece estar fazendo agora? ‘Tempos atrés, esteve em voga insistir que o “sistema mundial” capitalista im- -punha uma divisao de trabalho permanente entre 0 Ocidente — 0 centro —¢ 0 Resto — a periferia.* Mas e se 0 mundo inteiro acabar sendo ocidentalizado, ys Pelo menos quanto 4 aparéncia ¢ 20 estilo de vida? Ou serd que, conforme argumentou Huntington, as outras civilizacées s4o mais resilientes — sobretu- do a civilizacéo “sinica”, ou seja, a Grande China, ¢ o Isla, com suas “entra- nhas ¢ fronteiras sangrentas”? Até que ponto a adogao de modos ocidentais de operar é meramente uma modernizacio superficial, sem qualquer profun- didade cultural? Essas perguntas serao abordadas a seguit. Outro enigma com relagao & civilizagao ocidental é que a falta de unidade parece ser uma de suas caracteristicas dec ivas. No inicio dos anos 2000, muitos analistas norte-americanos reclamavam do “alargamento do Atlanti- co” —a ruptura dos valores comuns que uniam os Estados Unidos a seus aliae dos da Europa Ocidental durante a Guerra Fria.” Se, em comparagao com a €poca em que Henry Kissinger foi secretério de Estado, ficou um pouco mais facil saber a quem um estadista norte-americano devetia chamar quando qui- sesse falar com a Europa, ficou mais dificil dizer quem atende o telefone em nome da civilizagéo ocidental. Mas a divisdo atual entre a América do Notte ¢ a “Velha Europa” é branda e amigavel em comparacio com os grandes cismas do passado, por religiao, por ideologia—e até mesmo pelo significado da pré- pria civilizacdo. Durante a Primeira Guerra Mundial, os alemaes afirmaram estar travando a guerra de uma Kultur mais elevada contra uma civilisation anglo-francesa espalhafatosa e materialista (a distingao foi feita por Thomas \, Mann e Sigmund Freud, entre outros). Mas essa distingao foi dificil de conci- liar com 0 incéndio da Biblioteca da Universidade de Leuven e as execucées »° sumérias dos civis belgas na primeira fase da guerra. Os propagandistas brita- nicos replicaram, definindo os alemaes como “hunos” ~ bérbaros além dos , * £ uma nogao peculiar que uma das civilizagGes mais venerdveis do mundo tenha um nome que néo é conhecido por ninguém, a nfo ser por um teérico politico. Em seu ensaio original de 1993, Huntington usou o termo “confuciana’. 40 InrropugAo: A PERGUNTA DE RassELas limites da civilizac4o — e chamaram a propria guerra de “a grande guerra pela civilizagéo” em sua medalha da vitéria.* Falar do “Ocidente” como civiliza- 40 unitaria tem mais sentido hoje do que em 1918? Por fim, vale lembrar que a civilizacio ocidental ja havia decaido ¢ su- cumbido antes. As ruinas romanas espalhadas por toda a Europa, pelo Norte da Africa e pelo Oriente Préximo servem como lembretes contundentes dis- so. A primeira versio do Ocidente — a Civilizagéo Ocidental 1.0 — surgiu no chamado Crescente Fértil, estendendo-se do vale do Nilo 4 confluéncia dos rios Eufrates e Tigre, ¢ alcangou seu auge com a democracia ateniense ¢ 0 Império Romano.” Os principais elementos de nossa civilizacdo atual — nao s6 a democracia, como também o atletismo, a aritmética, o direito civil, a geomettia, o estilo cléssico de arquitetura e uma proporcio consideravel das palavras em inglés moderno — tém suas origens no antigo Ocidente, Em seu apogeu, o Império Romano foi um sistema incrivelmente sofisticado. Graos, manufaturas ¢ moedas circulavam em uma economia que ia do norte da In- glaterra & cabeceira do Nilo; os estudos académicos floresceram; havia lei, me- dicina e até centros de compras, como o Férum de Trajano, em Roma. Mas essa versio da civilizagéo ocidental se deteriorou rapidamente no século V 4.C., arruinada por invasées barbaras e divis6es internas. No espaco de uma getago, Roma, a grande metrépole imperial, estava em ruinas, os aquedutos, quebrados, os espléndidos mercados ao ar livre, desertos. O conhecimento do Ocidente cléssico teria sido totalmente perdido se nao fosse pelos bibliotecd- rios de Bizancio,® pelos monges da Irlanda* e pelos papas ¢ padres da Igreja Catélica Romana ~ € nao podemos esquecer os califas abéssidas.# Sem sua li- deranga, a civilizagio do Ocidente nao poderia ter ressurgido como ressurgiu na Itélia renascentista. O declinio ¢ a queda séo o destino que paira sobre a Civilizacao Ociden- tal 2.0? Em termos demogréficos, faz muito tempo que a populacao das so- ciedades ocidentais representa uma minoria dos habitantes do mundo, mas hoje ela esté visivelmente definhando. Um dia téo dominantes, as economias dos Estados Unidos ¢ da Europa estao atualmente diante da possibilidade real de ser superadas pela China em 20 anos, ou mesmo em dez, ¢ o Brasil e a In- dia no ficam muito atras. O poderio militar e econdmico do Ocidente pare- & estar se desgastando no Grande Oriente Médio, do Iraque ao Afeganistao, 25 passo que o “Consenso de Washington” sobre a politica econémica de livre mercado se desintegra. A crise financeira que comecou em 2007 também pa- 4r Ni Crvmuzagio rece indicar uma falha fundamental no cerne da sociedade de consumidores, com sua énfase na terapia do consumo estimulada pelas compras a prazo. A ética protestante da prosperidade, que um dia pareceu téo central ao projeto ocidental, praticamente desapareceu, Enquanto isso, as elites ocidentais sio acossadas por medos quase milenares de um apocalipse ambiental vindouro. E, 0 que é ainda mais grave, a civilizacao ocidental parece tet perdido a confianga em si mesma. A comecar por Stanford em 1963, uma sucessio de importantes universidades parou de oferecer 0 curso de histéria da “Civiliza- ¢40 Ocidental” a seus graduandos. Nas escolas, também, as grandes narrativas da ascensio ocidental estio fora de moda, Gracas a uma nova mania entre os educadores de — em nome da “Nova Histéria” — dar mais importancia as “ha- bilidades histéricas” que ao conhecimento histérico, somada as consequéncias nao intencionais do processo de reforma curricular, muitos estudantes britani- cos saem do ensino médio conhecendo apenas fragmentos desconectados da histéria ocidental: Henrique VIII ¢ Hitler, com uma pequena dose de Martin Luther King Jr. Uma pesquisa com estudantes do primeiro ano de Histéria de uma importante universidade britinica revelou que apenas 34% sabiam quem foi o monarca inglés na época da Armada, 31% sabiam a localizagao da Guerra dos Béeres, 16% sabiam quem comandou as forgas britinicas em Waterloo (mais que 0 dobro destes pensava que tivesse sido Nelson em vez de Welling- ton) ¢ apenas 11% foram capazes de mencionar um tinico primeiro-ministro britanico do século XIX. Em uma pesquisa similar, 17% dos adolescentes in- gleses entre 11 ¢ 18 anos pensavam que Oliver Cromwell havia lutado na bata- Iha de Hastings e 25% situavam a Primeira Guerra Mundial no século cerrado. Além disso, em todo o mundo angléfono, ganhou terreno o argumento de que devemos estudar as outras culturas, e nfo a nossa. A colecio musical enviada Para 0 espaco com a aeronave Voyager em 1977 continha 27 faixas, e somente dez delas eram de compositores ocidentais, incluindo nio sé Bach, Mozart ¢ Beethoven como também Louis Armstrong, Chuck Berry e Blind Willie John- son, Uma histéria do mundo “em cem objets”, publicada pelo diretor do Museu Britanico em 2010, inclufa ndo mais de trinta produtos da civilizacéo ocidental.« Mas qualquer histéria das civilizages do mundo que subestime sua su- bordinacao gradativa ao Ocidente depois de 1500 nao dé conta do ponto es- sencial — aquele que mais requer uma explicacdo. A ascensio do Ocidente é, pura ¢ simplesmente, o fendmeno histérico mais notével da segunda metade 42. Intropucdo: A rencmwta DE RAsseLAS do segundo milénio depois de Cristo. E a histéria no proprio cerne da histé- tia moderna. E, talvez, o enigma mais desafiador que os historiadores tém de resolver. E devemos resolvé-lo nao s6 para satisfazer nossa cutiosidade. Pois é sé identificando as verdadciras causas de nossa supremacia que podemos es- perar estimar com certa precisao a iminéncia de nosso declinio e queda. 1 Clark, Civilisation, 2 Braudel, A History of Civilizations. 3 Ver também Bagby, Civhure and History; e Mumford, The City in History. 4 Sobre costumes, ver Elias, The Civilizing Process. 5 Ver Coulborn, The Origin of Civilized Societies e, mais recentemente, Fernénder- -Armesto, Civilizations. 6 Quigley, The Evolution of Civili 7 Bozeman, Politics and Culture in International History. 8 Melko, The Nature of Civilizations. 9 Eisenstadt, Comparative Civilizations and Multiple Modermities. 10 McNeill, Zhe Rise of the West 1 Braudel, A History of Civilizations, p. 34 ss. 12 Ver Ferndndez-Armesto, Millennium; Goody, Capitalism and Modernity ¢ The Eur- asian Miracle; Wong, China Transformed. 13 McNeill, The Rise of the West. Ver também Darwin, Afier Tamerlane. 14 Com base em dados de Maddison, The World Economy. Os ntimetos histéricos so- itions. bre a producéo mundial (Produto Interno Bruto) devem ser tratados ainda com mais cuidado que aqueles sobre a populacio, devido as suposigdes heroicas que Ma- ddison teve de fazer para construir suas estimativas, e também porque ele escolheu calcular o PIB em termos de paridade de poder de compra para levar em conta os precos muito mais baixos de produtos ndo comercializados em paises relativamente pobres. x5 Detalhes em Fogel, The Escape from Hunger and Premature Death, tabelas 1.2, 1.4. x6 Dados de Chandler, Four Thousand Years of Urban Growth. 17 Calculado em délares atuais, do banco de dados on-line dos Indicadores de Desen- volvimento Mundial do Banco Mundial. 18 Ver uma esclarecedora discussio em Scruton, The West and the Rest. 15 Ver, por exemplo, Laue, “The World Revolution of Westernization”. 20 Acemoglu et al., “Reversal of Fortune”; Putcerman e Weil, “Post-1500 Population Flows’. 2x Pomeranz, The Great Divergence. 43 Civmuzacio 22 Elvin, The Pattern of the Chinese Past. 23 Clark, A Farewell ro Alms. 24 Johnson, The History of Rasselas, p. 56 ss. 25 Murray, Human Accomplishment. 26 Landes, The Wealch and Poverty of Nations. 27, Hibbs e Olsson, “Geography”; Bockstete ct al “States and Markets”. 28 Diamond, Guns, Germs and Steel. 29 Diamond, “How to Get Rich”. 30 Ver, por exemplo, Roberts, The Triumph of the West. ar Ver North, Understanding the Process of Economie Change: North et al., Violence and Social Orders. 32 Clark, A Farewell to Alms, p. 337-42. 33, Rajan c Zingales, “The Persistence of Underdevelopmene’; Chaudhary et al., “Big BRICs, Weale Foundations”. 34 Huntington, The Clash of Civilizations. 35 Wallerstein, The Modern World-System. 36 Huntington, The Clash of Civilizations. 37 Ver, por exemplo, Kagan, Of Paradise and Power ¢, mais recentemente, Schuker, “A Sea Change in the Atlantic Economy?” 38. Ver mais recentemente Osborne, Civilization. 39 Mortis, Why whe West Rules. 40 Brownworth, Lost 10 the West. 41 Cahill, How the Irish Saved Civilization, No momento em que este livro esté sendo escrito, ainda ¢ preciso saber se o elogio seré retribuido. 42, Dawson, The Making of Europe; Woods, How the Catholic Church Built Western Civilization. 43. Matthews, “The Strange Death of History Teaching”; Guyver, “England and the Bartle”, 44 Amanda Kelly, “What Did Hitler Do in the War, Miss?”, Times Educational Sup- plement, 19 de janeiro de 2001. 45 MacGregor, A History of she World in x00 object.

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