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KARL RAHNER Palavras de Inacio de Loyola a um Jesuita de Hoje pram aras COLEGAO IGNATIANA* ORIENTAGAO DA CPJB (CONFERENCIA DOS PROVINCIAIS Rona 10. "1 12. 13. 14, com 16. 17. 18. JESUITAS DO BRASIL) VIDA RELIGIOSA NA COMPANHIA DE JESUS. MENSAGENS A COMPANHIA DE JESUS ORIENTAGOES PARA A COMPANHIA DE JESUS A EXPERIENCIA DE DEUS NA VIDA RELIGIOSA, Pe, ARRUPE, Sw. FOME DE PAO E EVANGELIZACAO, Pe. ARRUPE, S.J. A IGREJA E A ESPERANGA DOS HOMENS, Pe. ARRUPE, S.J. DIRETRIZES PARA A FORMAGAO A OBRA DA ACULTURACAO COMUNIDADE APOSTOLICA DISCERNIMENTO COMUNITARIO © NOSSO MODO DE PROCEDER, Pe, ARRUPE, S.J. COMUNIDADES DE VIDA CRISTA, Pe, ARRUPE, Sw., LOUIS PAULUSSEM, Sw., JOHN REILLY, Sw., JOSE GSELL, SW. PARA CHEGAR AS CVX — PRINCIPIOS E CRESCIMENTO, Po, JUAN MIGUEL LETURIA, S.J. INSPIRAGAO TRINITARIA DO CARISMA INACIANO, Pe, ARRUPE, S.J. COLABORACAO FRATERNA NA OBRA DA EVANGELIZA- CAO, Pe, ARRUPE, S.J. NOSSOS COLEGIOS: HOJE E AMANHA, Pe. ARRUPE, S.J. ANALISE MARXISTA ARRAIGADOS E FIRMADOS NA CARIDADE PALAVRAS DE INACIO DE LOYOLA A UM JESUITA DE HOJE, KARL RAHNER LIVROS RECOMENDADOS SOBRE A ESPIRITUALIDADE INACIANA Santo Inacio de Loyoia Constituigées da Companhia de Jesus Lisboa 1975 Exercicios Espirituais Agir 1968 — S80 Leopoldo 1967 Autobiogratia Edigdes Loyola 1975 Edigdes Loyola 1977 J. C. Dhotel, S.J. Quem és, Inacio de Loyola? Edigdes Loyola 1974 Equipe de Itaici Os Jesuitas Pe. Arrupe e outros Os Jesuitas: Para onde Caminham? Gilles Cussom, S.J, Conduzi-me pelo Caminho da Eternidade Edicdes Loyola 1976 J. R. F. Cigofia, S.J. Oragdo e Libertagao Edigdes Loyola 1977 Ricardo Antoncich A Espiritualidade Libertadora dos Exer Edigdes Loyola 1980 Haroldo J. Rahm Santo Inacio de Loyola, Um Leigo de Oracao Edigdes Loyola 1981 jos de Santo Inacio KARL RAHNER Palavras de Inacio de Loyola a um Jesuita de Hoje PROLOGO EXPERIGNCIA IMEDIATA DE DEUS INICIACAO A EXPERTENCIA PROPRIA | ESPIRITUALIDADE INACIANA INSTITUIGAO RELIGIOSA E EXPERIGNCIA INTERIOR A PREFERENCIA DE DEUS PELO MUNDO . PARTICIPAGAO NA DESCIDA DE DEUS AO MUNDO JESUS SEGUIMENTO DE JESUS . SERVIR A PARTIR DA FALTA DE PODER SEGUIMENTO LOGRADO E SEGUIMENTO MALOGRADO ECLESIALIDADE OBEDIENCIA JESUITICA A CIENCIA DENTRO DA ORDEM POSSIBILIDADES DE TRANSFORMACAO DA ORDEM? ... PERSPECTIVAS PARA O FUTURO 10 un “4 16 18 a 4 26 29 34 37 39 43 PROLOGO A idéia de publicar um livro sobre Inécio de Loyola é digna de todo elogio, porque Indclo 6 uma das grandes figuras da Igre- ja e a influéneia de sua obra continua tendo grande importan- cla em nossos dias, A Bditora Herder procurou um redator pa- ra a apresentagio literdria desta obra. No ambito da lingua ale- m, os mais indicados para esta tarefa teriam sido dois homens que ja haviam dado provas mais que suficientes de seu extraor- dindrio conhecimento de Indcio de Loyola: meu irmio Hugo Reh- ner e meu amigo Burkhart Schnelder. Ambos, porém, tinham falecido: meu trmv, em 1968, © meu amigo, em 1970. Deste mo- do, recaiu sobre mim o encargo de redigir 0 texto introdutério. Pela amizade que me unia a ambos, néo quis recusar tal oferta, embora eu nfo seja historiador e, menos ainda, especialista na historia da Ordem Jesuitica e de seu Fundador. A propésito deste texto introdutério, tenho que fazer algu- mas observacées. Eu era de opinido de que tinha que dizer al- guma coisa acerca do que Indcio ainda pode significar em nos- sos dias, Naturalmente, 0 que eu diga ou faa Indclo dizer nio constitui uma opiniéo autorizada, nem um programa oficial da Ordem para nosso tempo, mas tinica e exclusivamente minha opi- — 5 nigo particular ¢ subjetiva, exposta aliés com plena consciéncia de ter feito uma selecio subjetiva e de nao ter dito tudo que ‘se poderia dizer ou que pessoalmente gostaria de expor. Quan- do fizer Inécio falar pessoalmente, o leitor nfo deveria querer submeter as palavras de Indcio a nenhum tipo de normas lite. rdrias; ¢ também nfio deverd pretender encontrar nas entrelinhas © que poderiam ser confissdes subjetivas de minha parte, Meu trabalho consistiu exclusivamente em expor minha opiniéo so- bre 0 que Indcio pode significar no momento atual. Dado o re- duzido mimero de paginas de que dispunha, nio podia comecar por uma apresentacéo a mais objetiva possfvel de Indcio, sua doutrina e seu exemplo, dentro de seu contexto histérico, para om seguida procurar “traduzilo” para nossa época. Tive que apresentar diretamente a “tradugdo” de Indcio, na esperanga de que resulte pelo menos aceitdvel e pareca digna de crédito, jus- tamente porque uma “traduc&o” deste tipo basela-se sempre, co- ‘mo 6 l6gico, em um critério de escolha proprio da época do “tra- qutor” e por isto podem ser omitidas simplesmente muitas coi sas sobre as quais um historiador propriamente dito deveria in- formar. Este 6 0 motivo pelo qual ful levado a pensar que o mais simples era deixar falar ao préprio Indcio; e foi exatamen- te 0 que fiz. Que 0 leitor procure compreendé-lo e no tente des- cobrir outros mistérios por detras desta forma literdria. ‘Munich, fevereiro de 1978 Karl Rahner, 8. J. Eu, Indcio de Loyola, pretendo, nostas linhas, dizer algo acer- ca de minha vida e da missio dos jesuitas de hoje, na suposi- do de que ainda hoje continuem sentindo-se comprometidos com aquele espirito que estimulou, em mim e em meus primeiros companheiros, o comeco desta Ordem. Nao vou narrar minha vida no estilo de uma biografia historica, J4 vos deixel um re- lato que todos conheceis, no qual exponho como encarava minha vida no final de meus dias, Além disto, em todos estes séculos, escreveram-se suficientes livros sobre mim, cada qual melhor que © outro. Daqui do bemaventurado siléncio de Deus, tentarel di- zer alguma coisa a meu respeito, embora resulte quase impos- sivel e ainda que 0 que se diga, de onde eu estou, tenha que transformarse novamente de eternidade em tempo, e a despeito do que 0 tempo, por sua vez, continue sendo envolvido pelo eter- no mistério de Deus, Nao te apresses, porém, a afirmar, num exoesso de simploriedade, que 0 que cu disser, seré transforma- do de algo meu em algo teu, porque, para que possa ser ouvido, de- veria chegar & tua cabeca e, talvex, também a teu coracdo, de mo- do que dependera de todas as possiveis peculiaridades de ouvin- te e de sua eventual situacdo. Como tedlogo, deverias saber que © escutar néo suprime necesséria e totalmente dizer. Se poes por escrito 0 que tiveres ouvido a teu modo, talvez deixarias de escrever alguma coisa do que cu queria dizer. Por outro lado, se o que eu disser fosse uma repeticéo de minhas palavras na autobiografia, nos Exericios, nas ConstituigSes de minha Ordem —T— ‘ou nos milhares de cartas que escrevi com a ajuda de meu se cretério Polanco; se se pudesse entender trangiiilamente como parte da sisuda sabedoria de um santo, entao eu teria estado fa- lando mergulhado de cheio em minha época, nfo na tua. EXPERIENCIA IMEDIATA DE DEUS J sabes que, como entéo me expressava, meu desejo era “ajudar as almas", isto 6, comunicar aos homens alguma coisa acerca de Deus e de sua graca, de Jesus Cristo crucificado e res- suscitado, que oS fizesse recuperar sua liberdade integrandoa den- tro da liberdade de Deus. Eu desejava exprimilo tal como sem: pre se havia ensinado na Igreja e cria realmente (e era uma crenga certa) que coisas tfo antigas eu podia expressé-las de uma nova maneira, Por qué? Porque estava convencido de que, pri- meiro de modo inciplente durante minha enfermidade em Loyola € a seguir de maneira decisiva durante os dias de minha solidio em Manresa, me havia encontrado diretamente com Deus e de- via participar aos outros, na medida do possivel, tal experiéneia. Quando afirmo que tive uma experiéncia imediata de Deus, no sinto a necessidade de apoiar esta afirmagio em uma disser- tagdo teoldgica sobre a esséneia de tal experiencia, como tam- Pouco pretendo falar de todos os fendmenos que a acompanham, 05 quais, evidentemente, apresentam também suas prdprias pe- culiaridades historias ¢ individuais; nfo falo, portanto, das vi 86e8, simbolos e audig6es figurativas, nem do dom das ldgrimas ou coisas semelhantes, A tinica coisa que digo é que experimen: tei a Dous, ao indizivel © insondével, ao silencioso ¢ contudo pr6. ximo, na tridimensionalidade de sua doacio a mim. Experimen- tei a Deus, também e sobretudo, muito além de toda imaginagso pldstica. A Wle, que, quando por sua propria iniciativa se apro. xima pela graca, nfo pode ser confundido com nenhuma outra coisa, * Daqui, do bem-aventurado siléncio. Semelhante conviegio pode parecer algo muito ingénuo para vossas devotas consideracdes, que funcionam com palavras as mais elevadas possiveis; porém no fundo trata-se de algo tremen- do, tanto se considerado a partir de mim mesmo, que tornei a =j=— experimentar de modo totalmente novo a incompreensibilidade de Deus, como se considerado partindo da impiedade de vossa época, na qual essa mesma impiedade, a unica coisa que sabe fa- ver afinal de contas, ¢ suprimir aqueles idolos que a época pre- cedente, de um modo ao mesmo tempo ingénuo e terrivel, havia equiparado com o Deus inefivel. Uma impiedade que (porque nfo dizé-lo?) penetra inclusive na mesma Igreja, uma vex que es- ta, afinal, para ser fiel ao Crucificado, hd de constituir 0 acon- tecimento capaz de derribar os deuses através de sua propria his. teria, Em verdade, por acaso néo vos hé surpreendido que em mi- nha autobiografia eu tenha chegado a afitmar que minha expe- rigneia mistica me proporcionou tal seguranga na {6 que esta te- ria permanecido inaltervel ainda que as Escrituras Sagradas no existissem? Nao teria sido entéio muito facil acusarme de mis- ticismo subjetivista e de falta de sentido eclesial? De fato, a mim nfo me surpreendeu demasiado que, tanto em Alcald como em Salamanca e em outros lugares, me considerassem um “ilumina- do”. Eu havia encontrado realmente a Deus, ao Deus vivo e ver: dadeiro, 20 Deus que merece este nome superior a qualquer ou tro nome. Que se chame a esta experiéncia de mistica ou se the dé qualquer outro nome, é, no momento, irrelevante; vossos tedlogos podem especular quanto quiserem sobre a possibilidade de se explicar com conceitos humanos um fato desta natureza. Mais adiante tentarei expor qual a causa por que semelhante ex periénela de conhecimento imediato nfo tem por que suprimir a relagéo com Jesus nem a conseqiiente relagdo com a Igreja, Por agora, porém, repito que me encontrei com Deus; que ex perimentei o proprio Deus. Ja entio eu era capaz de distinguir entre Deus, enquanto tal, e as palavras, imagens e experiéncias limitadas @ concretas quo de algum modo levam a Deus. Natu: ralmente esta minha experiéncia teve também sua prépria histé- ria: uma historia que teve um comeco modesto e quase insig- nificante; entio falei e escrevi sobre isto em um tom que agora, naturalmente, a mim mesmo me parece comovedoramente infan. tile que 86 permite ver o que aconteceu de um modo indirelo © distante, O certo é, porém, que a partir de Manresa, comecei a oxperimentar a inefével incompreensibilidade de Deus, de ma- —9— neira cada ves mais intensa e mais pura (como jé entio formu: lou meu amigo Nadal, com seu estilo bastante mais filos6tico). Deus mesmo; era Deuis mesmo que eu experimentei; nfo pa- lavras humanas sobre Ele. Deus e a surpreendente liberdade que © caracteriza e que somente se pode experimentar em virtude de Sua iniciativa, e nfo como o ponto em que se cruzam as reali- dades finitas € os célculos que se podem fazer a partir delas. Deus mesmo, embora o “face a face” de que agora desfruto seja to- talmente diferente (e, contudo, idéntico) e néo tenho nenhuma razio para dar um curso de teologia sobre esta diferenca. O que digo 6 que assim aconteceu; e me atreverla inclusive a acrescen- tar que se deixdsseis que vosso ceticismo a respeito deste tipo de afirmagées (ceticismo ameacado por um sorratelro ateismo) chegasse a suas wltimas conseqtiénolas e desaguasse nfo apenas em uma teoria habilmente formulada, mas também na amargura de viver, entio poderiels fazer esta mesma experiéncia. Porque 6 precisamente no momento em que se produz um acontecimento no qual (juntamente com a sobrevivéncia biol6gica) se chega a experimentar a morte como alguma coisa de radical, seja como uma esperanca autolegitimadora, seja como a desesperagéio abso: luta; e 6 neste mesmo instante que Deus se oferece a si mesmo. (¥ao é de se estranhar que eu mesmo estivesse a ponto de th rarme a vida em Manresa.) E ainda que esta experiéncia cons. titua uma graca, isto nfo significa que, em principio, soja nega- da a ninguém. Precisamente disto ¢ que estava eu convencido, INIGIAGAO A EXPERIENCIA PROPRIA A partir da experiencia de Manresa e durante u resto de mi nha vida, até & solidio de minha morte no mais absoluto isola. mento, nunca considerei que a graca fosse um privilégio especial que se concede a uma “elite”, Por isto dei os Exercicios a quan tos acharem aceitavel meu oferecimento de ajuda espiritual. In clusive dei os Exercfeios antes de haver estudado vossa teologia © de haver conseguido, com bastante esforgo (que agora quase me faz rir), 0 grau de Mestre pela Universidade de Paris; e até mesmo antes de receber os poderes eclesiais e sacramentais por melo da ordenac&o sacerdotal. E por que nfo? Afinal de con- tas 0 Diretor de Exercicios (como o chamarfeis mais tarde) nio ‘transmite oficialmente, em virtude da natureza mesma nos ditos = 0 Exerefcios, e apesar de seu cardter eclesial, a palavra da Igreja enquanto tal, senéo que unicamente com toda circunspeccéo se limita a oferecer (se pode) uma pequena ajuda, com a finali- dade de que Deus e o homem possam encontrarse de um modo direto. Os primetros companheiros que tive néo estavam todos igualmente dotados para isto e, antes de meu periodo parisien- se, verifiquei como se afastavam de mim todos aqueles a quem pretendia ganhar para meus planos por melo dos Exercicios. Vol- tamos ao mesmo ponto. assim to evidente, tanto para 0 es- pfrito eclesial de minha época, como para o ateismo de vosso tempo, que exista ou possa existir alguma coisa assim, de tal modo que nem a época antiga o repelisse como subjetivismo nao eclesial, nem vosso tempo o condenasse como ilusio ou ideo- logia? Em Paris acrescentei aos meus Exercicios as “Regras para sen- tir com a Igreja”; superei além disto com éxito todos os pro- cessos eolesidsticos que abriram contra mim repetidas vezes e submeti & aprovacio direta do Papa meu trabalho e o de meus companheitos. Sobre isto falarei mais adiante. Uma coisa po- rém permanece de pé: que Deus pode e quer tratar de modo direto com sua criatura; que 0 ser humano pode realmente ex. verimentar como tal coisa sucede; que pode captar 0 soberano desfgnio da lberdade de Deus sobre sua vida, 0 que jé nio é algo que se possa calcular, mediante um oportuno e estruturado yaciocinio, como uma exigéncia da racionalidade humana (nem filosética, nem teolégica nem “existencialmente”). ESPIRITUALIDADE INACIANA Esta conviceaio, tio simples e a0 mesmo tempo téo prodigio- sa, pareceme que constitu (juntamente com outras coisas que mais adiante referirel) 0 micleo do que v6s outros chamais mi- nha espiritualidade, Considerado desde 0 ponto de vista da his- toria da espiritualidade da Igreja, tratase de algo novo ou de algo velho? # algo dbvio, ou parece surpreendente? Constitui Por acaso o comeco da “idade modema” da Igreja e tem talvex mais relacéo com as experiéneias de Lutero e Descartes do que © que v6s, jesuitas, quisestes admitir ao longo dos séculos? Tra. tase de alguma coisa que se deve relegar a um segundo plano im — na Igreja de hoje e de amanhé, devido a que o homem jé quase nio suporia a silenclosa solidao diante de Deus e procura refw giarse em uma espécie de coletividade eclesial, quando, na rea lidade tal coletividade tem que edifiearse sobre a base de homens espirituais que tenham tido um encontro diteto com Deus, ¢ nao sobre a base de homens que, afinal de contas, ulilizam a Igreja para evitar de ter que haverse com Deus ¢ sua livre inoompre ensibilidade? Estas perguntas, amigo, deixaram de ter sentido para mim e, por conseguinte, nfio tenho que dardhes resposia; eu nfo sou, aqui e agora, nenhum profeta da histérla futura da Igreja; vés outros, sim, deveis proporvos esta questio e tendes que darlhe uma resposta que implique ao mesmo tempo uma grande claresa teoldgica e uma decisdo histérica. ‘Uma coisa, contudo, continua sendo certa: que o ser humano pode experimentar pessoalmente a Deus. E vossa pastoral deve- ria, sempre e em qualquer circunstancia, ter presente esta meta inexordvel. Se encheis os depésitos da consciéncia dos homens unicamente com yossa teologia erudita e modernizante, de tal modo que, no fim das contas no consiga senio provocar uma es pantosa torrente de palavras; se no fizésseis mais que adestrar os homens em um eclesialismo que os transforme em stiditos in condicionais do “establishment” eclesial; se na Igreja nfo preten- désseis mais que reduzir 0s sores humanos ao papel de stiditos obedientes de um Deus distante, representado por uma autorida- de eclesidstica; se nfio ajudsseis os homens, acima de tudo isto, a libertarse definitivamente de todas as segurancas tangivels e de todos os seus conhecimentos particulares, para abandonarse confiadamente aquela incompreensibilidade que carece de cami nhos prefixados de antemfo; se nao os ajuddsseis a tornar rea- lidade isto nos momentos definitivos e terriveis de “impasse” que se apresentam na vida e nos inefveis instantes do amor e do gozo e, por ultimo, de um modo radical e definitive, na morte (em solidariedade com Jesus agonizante e abandonado de Deus), enti, apesar de vossa pretendida pastoral e de vossa acao mis- sionéria, terfeis esquecido ou atraicoade minha “espiritualidade”. E como todos os homens sio pecadores e miopes, por isto mesmo, penso eu, vés outros, jesuftas, caistes muitas vezes nes- te esquecimento e nesta traigéo, ao longo de vossa historia. Em nfo poucas ocasides defendestes a Igreja como se esta fosse a = y= meta, definitiva: como se a Igreja, quando é fiel & sua propria esséncia, ndo fosse, afinal de contas, o lugar no qual o homem se entrega silenciosamente a Deus, sem preocuparse ja do que Este queira fazer com, ole, porque Deus & precisamente o misté- rio incompreensivel, e somente assim pode ser nossa meta € nos- sa felicldade. Deveria dizer-vos agora expressamente a vis, ateus de hoje seeretos © reprimidos, de que maneira pode o homem encontrar- -se diretamente com Deus, até chegar, nesta experiéncia, ao pon- to em que Deus se torna acessivel em qualquer momento (nio somente em ocasides especiais de cardter “mistico”) e todas as coisas, sem necessidade de desvirtuarse, O fazem transparente. Para falar verdade, deveria tratar das circunstancias que sio es- pecialmente mais adequadas para tal experiéncia, clrcunstdncias que em vossa época nao tém por que serem sempre as mesmas que procurei estabelecer nas “AnotagSes” de meus Exercicios, em- bora também estou convencido de que os Exercicios, tomados quase 20 pé da letra, poderiam ser ainda mais eficazes do que algumas “adaptagbes” que, aqui e acold, estao hoje em moda en- tre vés, Deveria deixar bem claro que provocar uma experién- cia divina deste tipo nfo consiste propriamente em expor dou- trina sobre algo anteriormente inexistente no ser humano, mas consiste em tomar consciéncia mais explicitamente e em aceitar livremente um elemento constitutive e prdprio do homem, geral- mente soterrado e reprimido, que ¢, porém, ineludivel e recebe o nome de graca e no qual Deus mesmo se faz presente de modo imediato. Quicé deveria dizer-vos (ainda que possa parecer cémico) que nio tendes motivo para correr como sedentos desesperados atrés das fontes orientais da autoconcentragio, como se j4 nio houves- se entre v6s fontes de dgua viva; ainda que também nio tendes direito de afirmar altaneiramente que daquelas fontes somente pode manar uma profunda sabedoria humana, nfo porém a au- téntica graca de Deus. No momento, contudo, nio posso conti- nuar falando destes assuntos, Vés mesmos devereis refletir so- bre eles, devereis continuar buscando e experimentando, O ver dadeiro prego que se tem que pagar pela experiéncia & qual me refiro € 0 prego do coracéo que se entrega com fé e esperanca ao amor do préximo. —13— INSTITUIGAO RELIGIOSA E EXPERIENCIA INTERIOR Gostaria de esclarecer, por melo de uma imagem, o que disse até agora. Imaginemos 0 coragéo como um terreno de cultura, Deverd estar eternamente condenado a esterilidade, convertido em um deserto em que habitem os demOnios, ou ha de ser um ter- reno fértil que dé frutos de etemnidade? Pode alguém ter a im pressio de que a Igreja estabelece enormes e complicados sis- temas de regadura, com a finalidade de irrigar e fertilizar o ter- reno deste coragio mediante sua palavra, seus sacramentos, suas estruturas e todas as suas priticas. Ora muito bem; todos estes sistemas de regadura, se assim me € permitido falar, so cer tamente bons ¢ necessérios (ainda que a Igreja mesma confes- Sa que mesmo sonde nfo chegam seus “sistemas de regadura” ossa haver coracdes que produzam frutos de eternidade). Na- turalmente esta imagem é equfvoca, porque a acéo da Tgreja atra- vés do Evangelho ¢ dos sacramentos implica, evidentemente, uma série de aspectos, motivos e evidéncias que ndo se refletem nesta imagem. Mas continuemos com ela, porque exprime perfeitamen. te 0 que quero dizer. ¥ 0 seguinte: junto a estas aguas, em cer- to modo provindas e canalizadas desde fora, destinadas a ala- gar o terreno da alma (falando sem metéforas: junto aos ensina- mentos religiosos, por cima das proposicdes acerca de Deus e seus mandamentos, para além de tudo aquilo que unicamente faz alu séo a Deus, enquanto distinto d’Ele e isto inclui a Tgreja, a Es. critura, os sacramentos etc.), existe no contro deste mesmo ter- reno uma espécie de precipfcio, em cujo fundo hé um manancial do qual jorram as aguas vivas do Espfrito que saltam para a vida eterna, como explicitamente consta no Evangelho de Joo. Co- mo jé disse, esta imagem equfvoca; na realidade, nao ha opo- sico radical alguma entre este manancial proprio de cada um € 0 “sistema de regadura” exterior. Evidentemente ambas as realidades se condicionam mutua- mente, Toda invocagio que se faca desde fora em nome de Deus (e aqui estamos diante de outra imagem), pretende unicamente evidenciar a auto-afirmagio do mesmo Deus e esta, por sua vez, necessita que aquela invocacéo se revista de alguma forma ter- rena, sobretudo se levamos em conta que esta pode ser muito mais variada e humilde do que antes estavam dispostos a admi- tir vossos tedlogos e que uma invocagio exterior deste tipo na === medida em que pode constituir uma chamada & responsabilidade, ao amor e 2 fidelidade, ou uma aposta desinteressada em favor da liberdade e da justiga social, pode soar de um modo muito mais mundano do que vossos tedlogos gostariam de escutar. ‘Tenho, porém, de voltar a insistir obstinadamente em que tais ensinamentos doutrindrios e imperatives externos, tais canaliza- gdes exteriores da graca, somente serdo titeis, em ultima andlise, Se se encontram em algum ponto com esta graca vltima que pro- cede do interior. Nisto consistiu minha verdadeira experiéncia a partir dos primetros exereicios que fiz pessoalmente em Manresa, nos quais se abriram meus olhos do espirito e me fol dado con- templar tudo isto em Deus mesmo. Esta foi também a experién- cla que procurei comunfcar a outros nos Exercfcios que dei. Pareceme evidente que ajudar deste modo a produzir 0 en- contro com Deus (ou talvez se devesse dizer: ajudar 0 homem a experimentar que sempre esteve © continua estando em contac: to com Deus?) € hoje mais importante que nunca, porque, do contrario, correr-seé o risco insuperivel de que toda doutrinacio teol6gica e todos os imperativos morais externos submerjam nes- ta calma Ietal que o ateismo contempordneo espalha em torno de cada individuo, sem que este se aperceba de que esta terrivel calma esté, por sua vez, falando de Deus. Volto a repetir pela enésima vez: eu j4 nfo posso dar Exercicios, e, por conseguinte, minha afirmagio de que se pode encontrar diretamente a Deus, continua sendo, naturalmente, uma afirmacéo por demonstrar, Agora entenderds porque digo que para. vés outros, jesuitas, a principal tarefa, em volta da qual devem girar todas as demais, hé do ser a de dar Bxercicios. Com isto, naturalmente, nio me refiro, em absoluto, a estes cursos organizados de um modo ofi- cial que se dio a muitos de uma vez, mas a uma ajuda de ini- ciagio destinada a que os demais nfo rechacem a proximidade imediata de Deus, mas a experimentem e a assumam claramente. Isto no quer dizer que todos e cada um de vés possais e devais dar Exerefcios desta maneira; 6 preciso que nem todos pensem que podem fazélo, ‘Também nfo se trata de infravalorizar as restantes atividades de tipo pastoral, clentifico ou sociopolitico que achais que deveis realizar no transcurso de vossa histéria, —15— Todas estas coisas, porém, deverfeis considerd-las como pre- arago ou como conseqiiéneia da tarefa que no futuro deve con- tinuar sendo fundamental para vés: ajudar a produir esta expe- niéneia direta de Deus, na qual se revela ao ser humano que esse mistério incompreens{vel que chamamos Deus ¢ algo muito prd- ximo, que se pode falar com Ele e nos salva por si mesmo pre- cisamente quando néo procuramos subordiné-lo a nds, mas a Ele nos entregamos incondicionalmente. Deverieis examinar constan- temente se toda vossa atividade serve a esta finalidade. Se assim for, entio pode perfeitamente cada um de vés ser bidlogo e de dicarse a investigar a vida animica das baratas. A PREFERENCIA DE DEUS PELO MUNDO Quando digo que para © homem de vosso tempo, como para © do meu, é possivel um encontro direto com Deus, estou refe- rindome efetivamente a Deus, ao Deus da incompreensibilidade, ao mistério inefavel, a treva que somente se converte em luz eter- na para quem se deixa absorver incondicionalmente por ela, a0 ‘Deus que néo tem nenhum outro nome. Ora muito bem: é pre cisamente este Deus, e nao outro, que eu experimentei como o Deus que desce até nds, que se aproxima de nds, e em cujo fogo inconcebivel néo nos consumimos, mas adquirimos pela primeira vez 0 ser e a condicao de eternidade. O Deus inefavel se revela a nds; e nesta afirmagéo de sua inefabilidade chegamos & exis: téncla, vivemos, somos amados e alcancamos validade eterna; se nos deixamos arrebatar por Ele, nfo somos aniquilados n’Ele e sim nos realizamos propriamente pela primeira vez, A crlatura insignificante se torna infinilumente importante, indizivelmente grande e bela, a0 receber de Deus 0 dom de Si mesmo. Enguanto, privados de Deus, andariamos errantes pelo espa. ¢o de nossa lberdade e de nossas decisdes em uma eterna inse- guranca e enfim num tédio sem esperanga, jé que qualquer objeto de escolha seria, afinal de contas, uma coisa finita e sempre subs tituivel por outra e, por conseguinte, indiferente, eu tive a expe riéncia de que, no espaco desta minha liberdade e de suas pos- sibilidades 0 Deus infinitamente livre se assenhoreava, com espe- clal amor, de uma de minhas possibilidades e de outra; e aquela € nao esta, deixava transparecer a Deus, sem desfiguré-lo e sim 16 — tornando possivel amar a Deus nela e amé-la em Deus, manifes- tando-se deste modo como “a vontade de Deus”. Quando, entre pressentimentos e tentativas, me encontrava na necessidade de escolher livremente entre as diversas possibi- lidades que me oferecia esta mesma liberdade, sentia que uma de- terminada possibilidade se adaptava ao mesmo Deus com a diafa- nidade da plena liberdade e se tornava transparente a Ele, ¢ isto néo sucedia com qualquer outra possibilidade, ainda que todas elas, cada uma A sua maneira, procedem dEle. Mais ou menos deste modo (6 dificil explicd-lo com clareza) ful aprendendo, in- clusive no terreno do que € objetivo ¢ racionalmente possivel © do que é permitido em nivel sdcio-eclesial, a discernir entre aque- las coisas nas quais a incompreensibilidade do Deus sem mites procurava tornar-se acessivel através do que é limitado e aquelas outras que, apesar de ser empiricamente experimentavels ¢ ter sentido por st mesmas, continuavam sendo de certo modo obs- curas e no deixavam transparecer a Deus. Seria uma verdadeira in- sensatez pretender simplesmente que tudo que é real tenha que ser igualmente transparente para todo ser humano pelo simples fato de ser real ¢, por conseguinte, proceder de Deus; porque neste caso, qualquer decisio da liberdade, mesmo sendo inevitavel, se- ria indiferente. Esta experiéncia da “encarnagio” de Deus em sua criatura, om virtude da qual esta criatura ndo perde sua identidade dian- te de Deus, por muito que d’Hle se aproxime, mas ao contrario, adquire consisténcta, ndo ficou ainda plenamente explicitada, ape- sar de tudo que acabo de dizer. Por incompreensivel que possa parecer, existe, da parte de quem chegou a um contacto tao di- reto com Deus, uma espécie de cooperacdo nesta descida de Deus em diregéo 20 que é finito, 0 qual se vai tornando deste modo progressivamente bom. © Deus inefavel e incompreensivel, 0 Deus que nio pode sujeitarse a nenhum tipo de manipulagio nem de ciilculo, nfo pode por isto desaparecer da vista do homem oran- te e atuante. Deus néo pode ser como um sol, que nos permite ver tudo sem deixar que o olhemos diretamente. Deus continua 36 sendo algo imediato ©, quase me atreveria a dizer, tem que manter todas as outras coisas, com uma clareza inexordvel, na finitude e relatividade delas. —W— ‘Mas justamente isto que 0 amor de Deus, que se oferece a Si mesmo, antepGe a qualquer outra coisa, aparece sob esta luz im- placével como aquilo que Ele quer e prefere, como aquilo que, entre outras muitas possibilidades quo permanecem em seu nada, foi escolhido © destinado a ser. esta preferéncia divina por uma determinada criatura finita é compartilhada pelo ser uma- no que se situa dentro dos limites imprecisos da luz de Deus; € permitido ao homem e ele pode realmente levar a sério essa rea. lidade finita que, por si mesma, é amével, bela, definitiva e eter namente valida porque Deus mesmo pode realizar, e de fato res- iza, 0 inconcebivel milagre de seu amor a0 obsequiar o homem com a doacéo de Si mesmo. Ao participar dessa preferéncia de Deus que O faz descer a0 finito, sem que por isto Deus se diminua ou a realidade finita seja aniquilada, o ser humano j nfo pode continuar sendo aque- Ja eriatura cujo tormento mais intimo e, ao mesmo tempo, cujo Prazer mais secreto consiste em desmascarar o cardter relativo @ insignificante de todas e cada uma das coisas; nem pode tam- Pouco continuar sendo aquela criatura que, ou idolatra uma de- terminada realidade finita, ou acaba por aniquil4la, Esta expe. niéneia de particlpar da preferéncia de Deus por algo que nfo é Deus e que, sem embargo, em virtude de tal preferéncia e apesar de permanecer distinto de Deus, jé néo pode dBle se separar, esta experiéncia, digo, se tem sempre que se toma consciéncia de como uma coisa, ao contrario de outra, é querida por Deus, co- mo 4 indiquel. Como porém esse objeto da preferéncia de Deus 6 concretamente prdximo e nfo uma coisa, a participagio na preferéncia de Deus consistiré no auténtico amor ao préximo, do qual falaremos pormenorizadamente mais adiante. O amor a Deus; que parece ter deixado de lado o mundo, é amor ao mun: do, 6 amar 0 mundo juntamente com Deus ¢, deste modo dar- ‘Ihe oportunidade de se abrir para a eternidade. PARTICIPAGAO NA DESCIDA DE DEUS AO MUNDO Naturalmente tudo isto nfo sfio mais que palavras acerca de uma experiéneia; nio podem, porém, tais palavras, tomar o lugar da experiéncia, A experiéneia desta participagéo tem que ser fei- ta na propria vida, Tampouco neste caso, como em tantos ou- — 18 — tros, pode 0 todo comporse de partes previamente separadas; dove darse como totalidade e somente assim apresentarse em sua unidade e multiplicidade e inserirse, de um modo cada vez mais incondicional na liberdade dos homens: o prdximo tem que ser amado de uma maneira cada vez mais altruistica auténtice, na claridade imediata da vida didria; Deus teré que manifestar- -se cada vez mais claramente em suia natureza absoluta; 0 amor fa Deus e 0 amor ao préximo tem que se oferecer cada vez mais cristalinamente & liberdade do homem em sua indissolivel uni dade ¢ em sua qualidade de condicionamentos miituos. Como, por outro lado, ao ser humano que sempre anda em ‘busca da diversidade do mundo, 0 amor ao préximo se apresen- ta, em um primeiro momento, como a coisa mais natural, ainda que, a0 mesmo tempo, correndo o risco de afundarse na mais desesperante decepelo, por causa da vaidade do que ama ou do ser amado, provavelmente hoje, como sempre, deverseia come- car decididamente a fazer 0 que nfo € tio evidente, a buscar & mesmissimo Deus em Sua presenca imediata, a fazer os Exer- ofcios neste sentido (0 que, em principio, nada tem a ver com casas de Exerofcios, cursilhos organizados oficlalmente, prolixas woutrinagdes teoldgicas etc.). Em todo caso, 0 amor a Deus (a Deus e nfo a uma teoria humana sobre Ele!) constitui o funda- mento ultimo de um amor ao préximo capaz de ser incondicio- nal ¢ de conservarsse realmente livre. Uma meditagéio erista que constitua uma experiéncia da pre- senga imediata de Deus faz com que o mundo nfo naufrague nem desapareca. Vés mesmos deveis comprovar se sucede a mesma coisa através desses métodos orientais de meditagio que exer- cem tanto fascinio sobre vés hoje em dia, como se no cristianis- ‘mo auténtico nada se encontrasse semelhante (é claro que se en- contra). Se isto acontece, enti nada tenho a opor a vossas con- quistas orientais, uma vez que também af estaré atuando Deus, que derrama seu espirito sobre toda carne; mas se isto nfo acon- tece, entdo, tende culdado. Em qualquer hipétese, nio deveis cair hoje na tentagdo de crer que esta silenciosa e indefinida incompreensibilidade que cha- mamos Deus, nfo tenha, para ser ela mesma, nem a possibilidade nem 0 direito de voltar-se para vs em virtude de seu livre amor, = 19 = de adiantarse a vés, de fazer que em vosso interior, no qual Ele esta presente, possais chamat de Tu Aquele cujo nome é um mis- tério, Este € um milagre maravilhoso que destrdi toda vossa me- tafisica e cuja possibilidade somente se entrevé quando alguém se arrisca a enfrentar a realidade; um milagre que é parte integrante da inefabilidade de Deus, que ficaria reduzida a pura formalidade submetida novamente a vossa metafisica, no caso de n&o experi menté-la em sua qualidade de preferéncia por nés. Devels evitar hoje em dia de pensar que esse “TU” seja unicamente 0 que pre- cede & imersio na silenciosa incompreensibilidade de Deus; antes, 6 sua conseqtiéneia, floresce como a culminag&o de nosso confian. te abandono & preferéncia que Deus tem por nés; faz que Deus seja maior do que nés julgamos, contanto que nos consideremos a nds mesmos como seres absolutamente dependentes ¢ insignificantes. JESUS ‘Mas agora tenho que falar de Jesus. Porventura o que eu disse até agora significa que me tenha esquecido de Jesus e de Seu ben: dito Nome? Claro que nao: dEle nao me esqueci. [stava intima: mente presente em tudo que disse, embora ja saiba que entre vés as palavras tenham que seguir corta ordem e nfo se possa dizer tudo de uma vez. Empreguei a palavra “Jesus”, Em vossa “hist6ria da espiritualidade” certamente direis que a devocéo a Jesus que ten- to inculear nos Exercicios nfo 6 mais que a continuagéo e 0 eco da devocio a Jesus que, desde Bernardo de Claraval, passando por Francisco de Assis, fol praticada durante toda a Idade Média e que o méximo que fiz foi retocéla com umas quantas idéias derivadas do feudalismo medieval, que ja entio iniciava seu oca- so na esfera profana, Admito de bom grado que possais descobrir em mim mut- tos indicios deste “jesuismo” medieval, Hoje posso perfeita- mente dispensar-vos de subir ao Monte das Oliveiras a fim de examinar pessoalmento as marcas que 0 Senhor teria ali deixado impressas quando subiu aos céus, Porém porque haveria de afli- girme o fato de me negarem toda originalidade neste particular? Por acaso este “jesuismo” medieval esta to ultrapassado, ou en- cerra uma mensagem que no seja ainda hoje perfeitamente com- preensivel? Porventura nfio esté inclufda nele a promessa de — 20 — realizagio daquilo que pretende vosso moderno “jesuismo” gundo o qual pensais que somente podereis encontrar 0 homem se anunciais, ingénua e pretenciosamente, a morte de Deus, em lugar de perceberdes que 6 precisamente neste homem, enquanto tal, que Deus mesmo se manifestou e se prometeu? Em meu tempo, encontrar Deus em Jesus e Jesus em Deus nfo me trouxe nenhum problema (a nfo ser o do amor e do au. tentico seguimento). Unicamente em Jesus encontrei Deus. Em Jesus, que era alguém tio sumamente conereto, que somente o amor, e néo a razao dissecadora, pode dizer-nos em que hé de con- sistir sua imitagdo, depois que se resolveu segui-Lo. Em Jesus, de quem se podem contar coisas ¢, através destas coisas, se conta a historia do Deus eterno e incompreensivel, sem que seja possivel tornar a diluir esta histéria em teoria, e por isto 6 necessario nar- réla sempre de uma nova maneira, com o que a histéria adquire continuidade. A partir de minha conversio, em Jesus se coneretizava para mim a preferéneia de Deus pelo mundo e por mim mesmo, a pre feréncia em que se faz presente em sua totalidade a incompreen- sibilidade do puro mistério ¢ 0 homem ascende & sua auténtica ple- nitude. A singularidade de Jesus, a necessidade de procuré-Lo em um ntimero muito limitado de acontecimentos e palavras, com a intenc&o de descobrir em tio poucos elementos a infinitude do mis. tério inefavel, nunca me causou transtornos; a viagem a Palesti- na péde constituir para mim a viagem & necessidade de Deus; in- génuos e superficiais sereis vés outros e ndo eu se credes que o de- sejd que abriguel durante quase quinze anos de viajar & Terra Santa nfo passou de um capricho de um homem medieval, ou algo parecido 20 desejo de um mugulmano de acudir a Meca, Minha Ansia por viajar & Terra Santa era o anseio pelo Jesus Conereto, que nfo ¢ nenhuma idéia abstrata. Nao é possivel um cristianismo capaz de descobrir 0 Deus in- compreensivel prescindindo de Jesus, Deus quis que muitos, mt tissimos, O encontrem pelo fato de buscarem a Jesus unicamente. Neste Jesus eu pensava, a este Jesus amava, a este Jesus tencio- nava seguir. Deste modo descobri 0 Deus concreto, sem fazer dle 0 fentasma de uma mera especulagio que nfo me comprometeria a coisa alguma. Somente se pode escapar de uma especulagio deste 2) — tipo se, ao longo da vida, se vai morrendo da auténtica morte; e isto somente se pode conseguir adequadamente quando o homem, junta- mente com Jesus, acelta serenamente este abandono de Deus que constitui 0 tiltimo e surpreendente grau da mistica, Jé sei que com isto nfo expliquei o mistério da unidade da histéria e de Deus, Porém, em Jesus crucificado e ressuscitado, nesse Jesus que 6 a0 mesmo tempo abandonado e recebido por Deus, se encontra definiti- vamente presente esta unidade que pode ser assumida pela £6, a esperanca e 0 amor. SEGUIMENTO DE JESUS Devo contudo acrescentar ainda algo acerca deste Jesus ¢ de seu seguimento, que pode chegar até a imitagio loucamente apai- xonada, embora tampouco pretenda com isto ser absolutamente ori- ginal, porque a antiga mensagem também sai ao vosso encontro desde um futuro ainda nao atingido. 1 verdade que somente se en- rontra totalmente a Jesus e a Deus nEle, quando se morreu com Ele. Mas quando se percebe que esta solidariedade na morte deve realizar-se ao longo de toda a vida, entéo ¢ que, precisamente, de- terminadas peculiaridades da vida de Jesus, apesar de seu carater aparentemente contingente e de sua relatividade histérica e so- cial, adquirem uma enorme significagéo, Nao sei se as peculia- ridades mais coneretas e triviais da vida de Jesus, que para mim foram como se tivessem cardter de lei, tém que ter uma importan- cia vital para todos quantos — de um modo explicito ou andnimo — encontram a Deus e se salvam. Nao parece que tenha que ser assim. Parece que hé, pelo contrério, muitos modos de seguir a Jesus. E nfo parece ter muito sontido remeter estes diferentes modos a um comum denominador, nem procurar deduzir das diferentes for- mas concretas deste seguimento um modo de seguir uniforme, sob © pretexto de que, “em espirito”, se reduzem a uma s6. Pode ser que isto seja exato; naturalmente, existe uma s6 e ultima essén- cia do seguimento de Jesus, do mesmo modo que hé um s6 Deus, um 86 Jesus, e, em ultima andlise, um sé e mesmo modelo de ser humano e uma s6 vida eterna. Mas existem formas concretas de realizar este seguimento; formas que so e se conservam como tremendamente distintase que parecem, inclusive, ameacarse e ne- gar'se mutuamente. — 92 Praticaram Inocéneio III e Francisco de Assis 0 mesmo tipo de seguimento, ou eram ambos os modos de seguimento (uma vex que nfo se pode negar que seguiram a Cristo) tio diferentes que somente em virtude de um amor e de uma paciéncia sem limites podiam suportarse mutuamente? No hé, porventura diversida- de de carismas? Podese realmente compreender tal ou qual tipo de carisma que nio seja precisamente o carisma que cada um possui? Seja como for, eu escolhi o seguimento de Jesus pobre e hu- milde e no outro tipo de seguimento. Tal opgio nfo se deduz do amor conereto; & uma vocago que s6 se legitima por si mes- ma e nio é, de modo algum, algo que, sem levar em conta o modo conereto de entender tal vocacio, se possa impor tio facilmente a todos os cristéos, @ forca de explicarIhes que se trata de uma po- breza e uma humildade de espirito, uma pobreza e uma humildade mentais, De modo algum pretendo ser original; por outra parte, 08 santos do céu no se submetem a comparagdes muituas; porém, prescindindo talvez do modo externo de vida de meus witimos anos como Geral da Companhia, a partir de Manresa durante toda minha vida pratique! @ pobreza com a mesma radicalidade de Fran- cisco de Assis, apesar de que, obviamente, sua época e a minha eram social e economicamente diferentes: isto supunha inevitévels di- ferencas em nossos respectivos modos de vida, tanto mais que, di- versamente de Francisco, eu desejei ¢ tive que estudar; a diversi- dade que isto supunha teria sido entendida e aprovada pelo pré- prio Séo Boaventura, que teria reconhecido que eu seguia real- mente a Cristo pobre, Basta que leias minha autobiografia para entenderes 0 que quero dizer. Além disto, tendo em conta a situagio de entfio, dado que o seguimento de Jesus pobre e humilde me inspirava um estilo de vida espiritual e eclesial que nfo somente era incompativel com posigSes de poder mundano, mas ainda significava a exclusio do poder eclesial e de qualquer tipo de prebendas eclesifsticas e dig- nidades episcopais, tornowse para mim uma realidade palpdvel o fato de que minha vida foi marcada com um cardter de “margina- dade” (passe a expressiio) tanto no campo do profano como do eclesidstico. isto de modo algum me foi imposto de fora. Como era originério de uma das melhores familias baseas e gracas &s mihas relacdes com os grandes do mundo da Igreja =23— de entao, teria sido muito facil para mim “chegar a ser alguém” e além disto poderia té-o sido com a trangiiilidade de consciéncia de que, deste modo, mediante o poder e 0 prestigio, teria podido servir desinteressadamente e com pleno desprendimento aos ho- mens, & Igreja ¢ a Deus; talvez até mesmo me poderia ter con- vencido, sem maiores problemas, de que, elevado aquela posicéo, sermeia mais facil fazer o bem do que tornando-me um pobre e Pequeno infeliz &4 margem da sociedade e da Igreja. (O fato de que depois, devido A fundagio da Ordem e ao meu Generalato me tenha transformado num personagem importante, completamen- te distinto do que eu pretendia, 6 outro assunto ao qual voltarei imediatamente.) Em suma: queria seguir a Jesus pobre e humilde, nem mais nem menos, Queria algo que nao é, em absoluto tdo dbvio, algo que nfo se deduz facilmente da “esséneia do cristianismo”, algo que entio, como também hoje, néo era praticado nem pelos prelados da Igre- Ja nem pelo flustre clero daqueles paises que continuam conside- rando-se 0 centro do cristianismo, Queria algo cujos motivos, em meu caso, nfo eram de ordem ideol6gico-eclesial nem critico-so- cial, ainda que possa acontecer que tenham sua importancia no caso; queria algo que me era inspirado pura e simplesmente como uma lef de minha prépria vida, sem olhar para a esquerda ou a Gireita, por um enorme amor a Jesus; um Jesus a quem eu tinha que considerar em sua realidade coneretissima (apesar de sua fi- nitude e relatividade) uma vez que eu queria encontrar ao Deus infinito e incompreensivel, Isto absolutamente no exclui, antes, implica 0 fato de que minha marginalizagao social e eclesial sup6s para mim uma espécle de exercicio voluntério de morrer com Je~ sus, 0 que constitui o final e feliz destino de todos os homens, mes mo daqueles que no podem ou nfo querem seguir a Jesus deste modo. SERVIR A PARTIR DA FALTA DE PODER Em meu tempo procurei evitar (e 0 consegui) que os meus fos- sem promovidos a cargos episcopais ou coisas semelhantes, e isto no por medo de perder os melhores elementos de meu pequeno grupo. Atualmente, quando um jesuita ¢ nomeado Bispo ou Car- deal, no vedes nisto nada de estranho; no fundo achais que tal =a escolha pontificia é normal e, de fato, tem havido épocas em que a presenca de um jesuita cardeal da Citria foi um fenémeno quase constante. Nao percebeis como sio diferentes neste ponto minha mentali- dade e a vossa? Talvez digais que aqueles eram outros tempos e que hoje, uma nomeagio deste género nfo transforma ninguém em um senhor excessivamente poderoso. Nao estou de acordo. Em primeiro lugar, os cardeais e bispos continuam sendo hoje gente grandemente ameagada pela tentagio do poder. Em segundo l- Bar, mesmo que tivéssels razéo, deveriels perguntar-vos onde se encontram hoje na Igreja os postos, cargos, centros de decisdo ete., aos quais, para serdes fiéis a mou espitito, deverieis renun- ciar resolutamente, com a inteng&o de servir aos homens por meio da Igreja, mas sem “poder”, confiando simplesmente na forca do espirito e na “Ioucura” de Cristo. Bispos do estilo de um Hélder Camara podeis ser hoje com toda tranaitilidade, porque arriscarieis a cabeca e 0 pescogo pe- los pobres, Pensai contudo onde se acham as “sedes episcopais” ou como se queiram chamar hoje, nas quais nfo devels sentar- vos, ainda quando se pudesse demonstrar que so indispensaveis a Igreja. Tenho consciéneia do problema de base que se apresen- ta: como pode uma sociedade carismética, destinada ao seguimen- to radical de Jesus, ser, ao mesmo tempo, uma Ordern institucio- nalizada em nivel eclesial? Naturalmente fiquei muitissimo con- tente com 0 fato de que, ainda em minha vida, a Ordem fosse aprovada oficialmente pelos Papas. Deverfeis procurar que se re novasse constantemente o milagre desta identificacto. Ainda que nunca cunsigais bom resultado, (enta-o uma e outta ves Um s6 destes dois aspectos néo é suficiente. Somente a unio de am- bos crucifica suficlentemente Quando falo do Jesus pobre e humilde que eu queria segui deverieis transpor estas palavras para o nivel de teoria e de pri xis a fim de poder entendélas realmente. Deverieis perguntar a vés mesmos, que significa propriamente hoje, em nosso tempo, “pobre” ¢ “humilde"? Atualmente, quando alguém se toma je suita, se converte, talvez com excessiva rapidez, e naturalidade, em uma pessoa piedosa e em um sacerdote. Isto porém nao quer dizer que seja pobre e humilde. © aspecto concreto que tenha — 3 — de apresentar esta traduc&o prdtica na realidade atual é algo que deveis descobrir por vés mesmos, Qui¢d tenham primeiro de des- cobrilo pessoalmente uns poucos dentre vs, antes que possa re- sultar algo aplicdvel a toda a Ordem, Mas, pelo amor de Deus, nao fiqueis no terreno dos puros sentimentos, pois isto podem ter também os prelados da Igreja. Traduzidas para a situagio atual, a pobreza e a humildade devem significar, em nivel sociopolitico (tanto na esfera da Igreja como da sociedade em geral) um agui- Iho critico, uma desconcertante lembranca de Jesus e uma amea- ga para o funcionamento natural das instituigées eclesidsticas. Do contririo, tal traduc&o de nada servird. Assim sendo, isto s6 pode ser para vés um critério, nio 0 motivo determinante. 0 mo- tivo 6 Jesus, que penetrou nas vascas da morte até o fundo; Je sus e no um céleulo sociopolitico. Somente Ele pode preser- var-vos da fascinagio do poder que de mil e uma formas existe ¢ existiré sempre na Igreja; somente Ble pode libertarvos da, idéia extremamente dbvia de que, no fundo, somente se pode servir ao ser humano quando se tem poder; somente Ele pode fazer-vos compreender ¢ aceitar a santa cruz de sua impoténcia. SEGUIMENTO LOGRADO E SEGUIMENTO MALOGRADO Agora néo posso deixar de dizer-vos alguma coisa acerca do destino que teve dentro de minha Ordem este meu estilo de vida no seguimento de Jesus pobre e humilde. Quando se contempla esta histéria desde a eternidade de Deus, imerso na vontade amo- rosa de Deus, sem o qual nada haveria existido do quanto real- mente existiu ¢ existe, entéo pode-se considerar serena e indul- gentemente a referida histéria, em todo seu sentido e faerie f justiga que Ihe é devida, Entio a pessoa nfo se vé em face do dilema de reclamar para si a hist6ria, como se se tratasse unica e exclusivamente do resultado da propria atividade, ou de conde- né-la como uma traigéo dos filhos ao espfrito do pai. Isto posto, e tendo-vos sempre presentes, a vs jesuitas, tenho que dizer que neste ponto, a Ordem, pelo menos até hoje, nfo seguiu exatamen- te meus passos. Naturalmente, entre vés houve homens realmente pobres e hu- mildes em sua vida e nfo somente no plano das intengdes: um Pedro Claver, 0 escravo dos escravos, na América Latina; um Fran- — 26 — cisco de Régis, que compartilhou a sorte de seus pobres campo- nests; um Friedrich von Spee, que com perigo de sua vida e com risco de ser expulso da Ordem, defendeu as bruxas; a multidéo de jesuitas que em séculos passados viajavam em horriveis em- barcag6es ao Extremo Oriente, na verdade unicamente para se- rem ali assassinados; e tantos e tantos outros, até chegar a teu amigo Alfred Delp, que, antes de ser enforeado em Berlim, em 1945, assinou seus ultimos votos com as méos algemadas. To- dos eles foram certamente seguidores de Jesus pobre e humilde e precisamente em virtude do espfrito que eu Ihes havia trans- mitido por meio da Ordem. Porém, e a Ordem enquanto tal? Sabes perfeitamente como tive que orar e discutir comigo mes- mo durante semanas sobre aparentes mimicias do regime de po- breza da Ordem, objetivando defender por meio de determina: das Regras 0 espirito de Jesus pobre e humilde; minticias que provavelmente vés outros teriels despachado em um par de ho- ras de sensatas discuss6es racionalizantes. E sabes também que, considerando as coisas em sua totalidade com serenidade e hon- radez, nfo pude salvar para 1 Ordem enquanto tal, por meio de Regras, e verdadeiro seguimento de Jesus verdadeiramente pobre, como tampouco o conseguiu Sao Francisco (que me perdoem os Franciscanos). Serd que por casualidade dito espirito n&o pode ser defendi- do mediante regras, seja porque estas matam 0 mesmo espirito que pretendem defender, seja porque inevitavelmente devem per- mitir tal grau de liberdade que seu espaco possa ser ocupado por outro espirito sem contrapor-se & letra da lei? Seré que o refe- rida estilo de vida n&o pode ser o estilo de um grupo numeroso sem que tenha que sofrer cortes essenciais? Seré que eu, e co- migo meus companheiros animados por meu proprio espirito, ul- trapassamos realmente esia fronteira decisiva quando, em 1540, transformamos aquele grupo “carismético” (como o qualificarieis hoje) em uma Ordem aprovada pela Igreja? Mas, porventura no deviamos fazélo, dado que 6 deste modo e nfo de outro, que vém atuando durante séeulos os impulsos decisivos do Espirito de Deus? Porventura a serena e humilde rentincia & pureza e ao card- ter absoluto do “Ideal” nao forma parte também deste espirito — a7 — que € 0 tinico realmente capaz de ir aproximando pouco a pouco de Deus a historia da Igreja e do mundo? Sera verdadeiramente to estranho que num mundo como este, no qual o espfrito ne- cessariamente tem de encarnarse numa sociedade e se vé, por conseguinte, constantemente ameacado de morte, a Ordem se te nha convertido para seus membros em um reftigio de seguranca econdmica e de prestigio, pelo menos em nivel eclesial, mesmo quando nele cada um viva de um modo economicamente modes- to e somente em raras ocasiées (mais raras do que as circuns- tancias poderiam permitir) algum deles chegue a ser bispo, car- deal ou outro tipo de personagem poderoso na Igreja? Tudo isto € normal, ou € de certo modo tragic? Pois bem; deve esta circunstancia do passado, precisamente neste ponto, condicionar o futuro dos jesuitas? Nao poderdo tal- vex no futuro, quer queiram, quer nao, chegar a ser, em nivel de Ordem, economicamente pobres em sentido muito real; viver mi- seravelmente 0 diaadia, como os pobres de verdade e aceitando esta condigfio como a aceitou o Jesus pobre, voluntariamente ¢ sem subterfigios, de modo que constitua (como consequléncia e nfo como motivo) um significativo elemento de critica & socie- dade? Poderao os jesuitas, por motivos que eu nfio fui capaz de prever, tornar a converterse logo, de uma maneira totalmente nova, € diferente, em seres marginalizados dentro da sociedade da Igreja, conservando uma saudvel e carismética distancia com res: peito & hierarquia, A qual naturalmente sempre hdo de respeitar? Faz pouco tempo J. B. Metz nao formulou algumas idéias sobre © assunto, que deveriam ser dignas de reflexio para vés? Para todas estas perguntas {4 encontrei respostas em minha eterni- dade; estas respostas, porém, s6 podem ser traduzidas para vos- so tempo através da histéria em si mesma e néo por meio de palavras antecipadas. De qualquer modo, vés, jesuitas, deveis possuir a coragem do futuro, porque também Jesus, na coneretizacio de sua vida e de sua morte, oferece um estilo de vida legitimo para o futuro. A tni- ca coisa que tendes que descobrir 6 como se deve apresentar es- ta coragem, a fim de que no dia de aman seja realmente um seguimento do Jesus pobre ¢ humilde, Até agora sempre usel a linguagem de minha época para falar de Jesus pobre e humilde, =a Vale @ pena repetir que talvez devais traduzir estas palavras por outras, a fim de que possais entendélas e vivé-las, sem refugiar- -vos de novo nem no puro sentimentalismo nem numa ascese me- ramente privada, como, com muita fregiiéncia, fizestes no wltimo século e meio em que no vistes com muita clareza qual era vossa responsabilidade social com relagdo & Igreja no mundo, como tam: pouco a percebeu a Igreja em geral, apesar de tantas enciclicas Gignas de todo louvor. ECLESIALIDADE Direi também alguma coisa acerca de meu sentido eclesial ¢ do seu significado para vosso tempo. Suponho que todos 0 es- tais esperando, e nfo sem razdo. Se 0 que vos direi depende da importancia objetiva dos temas sobre 0s quais, dentro de sua di- versidade, venho falando, entio deveria serme permitido que so: bre este tema concreto eu seja muito sucinto, Se Deus, Jesus, Seu seguimento e a Igreja, apesar de todo seu entrolagamento miituo, so coisas distintas e tém por conseguinte distinta im- portineia, entio tenho, no somente o direito, mas também o dever de diferenciar realmente, no tempo e na eternidade, estas diferentes realidades, no que atinge sua importancia e seu signi: ficado. Costumam qualificarme de homem da Igreja; Marcuse me chama soldado da Igreja. Realmente, nfo me envergonho deste sentido eclesial. Apds minha converséo, sempre quis en- tregar minha vida ao servigo da Igreja, entendendo este servigo como orientado em ultima andlise, para Deus e os homens e nio para uma instituigao que se buscesse a si mesma. A Igroja pos: sui infinitas dimensdes porque 6 a comunidade crente, peregrina na esperanca, amante de Deus e dos homens, e é formada de homens cheios do Espirito de Deus. Porém a Igreja é também para mim, naturalmente, uma Igreja concreta, soclalmente cons tituida na historia, uma Igreja das instituigdes, da palavra huma- na, dos sacramentos visiveis, dos bispos, do Papa de Roma: a Igreja hierérquica, catélica e romana. E, ao chamaremme homem da Igreja, 0 que me parece Gbvio, querem referirse & Tgreja em sua institucionalidade estrita e visivel, & Igreja oficial, como cos- tumais dizer agora, no sentido pouco amistoso que a expressiio leva consigo. Efetivamente eu quis ser esse homem dessa Igreja —29— @ de corac&o vos digo que isto jamais me causou um conflito in- superdvel com a presenca imediata de Deus em relagio & minha conseiéncia e A minha experiéncia mistica. Interpretarse-ia, porém, mal, minha ecleslalidade se fosse en- tendida como um desejo de poder egoista, confrontante com o fa- natismo ideolégico, que pretendesse passar por cima da conseién- cia; tal como se se tratasse de uma autoidentificagio com um “sistema” que niio tivesse relagio com algo acima de- le mesmo, Uma vez que todos os homens somos miopes e pecadores, nfo quero certamente afirmar que nfo tenha tido em varias circunstancias que pagar tributo a esta falsa eclesialidade e, se vos agrada, podeis com toda calma examinar honradamente minha vida sob este aspecto. Uma coisa, porém, é certa: que minha eclesialidade nao durou, em suma, mais que um momen- to, embora necessdrio, de minha determinacio de “ajudar as al- mas”; determinacio que somente atinge sua meta verdadeira no momento e na medida em que estas almas avangam na {6 na esperanga e no amor, em direglo & presenga imediata de Deus. Qualquer amor & Igreja oficial que néo fosse animado e li miitado por esta determinagio néo passaria de idolatria e part cipacéo no tremendo egoismo de um sistema que busca sua ra- zio de ser em si mesmo. Além do que, isto significa também (e desta afirmacio 6 prova bastante a histéria de minha “via” mi tiea) que 0 amor a esta Igreja, por incondicional que pudesse ser em um determinado sentido, nio ocupou o primelro e defi- nitivo lugar em minha “existéncia” (como agora dizeis), mas uma dimensio derivada da presenca imediata de Deus, da qual ela recebeu tanto sua grandeza como seus limites e sua parti- cular singularidade, Digamos de outro modo: ao participar do interesse de Deus pelo corpo concreto de seu Filho na histéria, eu amava a Igreja €. nesta unidade mifstica de Deus com a Igreja (e apesar de sua mitua e radical diversidade), a Igreja continuou mostrandome Deus por transparéncia e sendo o lugar concreto desta inelaivel relagéo minha com o mistério eterno. # af que tem prigem a fonte de meu cardter eclesial, de minha prética da vida sacra- mental, de minha fidelidade ao Papado e do sentido eclesial de minha missio de ajuda as almas — 30 — Dado que minha eclesialidade ocupa semelhante lugar na es- trutura de minha existéncia espiritual, existe também, sempre de modo eclesial, uma relagdo eritiea para com a Igreja oficial con- creta, Tal relagéo critica € permitida ao cristo, porque seu pon- td de vista néo se identifica sem mais com a Igreja oficial em sua instituoionalidade externa, uma vez que 0 cristéo sempre se encontra na presenga imediata de Deus e de sua inspiracao, ope- rada pela graga (por mais que isto o situe dentro da Igreja e por mais que, Dor sua vez, ele mesmo pertenga & Igteja enquanto comu- nidade de graga) a qual néo tem por que servirse da mediago do aparelhamento eclesidstico e pode perfeitamente ser alguma coisa da qual a Igreja oficial, por meio de seus representantes, tenha algo que aprender, se nao quiser ser culpavel de nao fazer caso destas mogées do espfrito, que, em principio, nao sdo aprovadas oficial- mente. Este relacionamento critico com a Igreja, por sua vez, é ecle- sial em si mesmo considerado, porque também a Igreja como ins- tituigio, em razio do cuidado que dela tem Deus esté sempre, afinal de contas, aberta e submetida a Seu espirito, o qual sem- pre 6 algo mais que instituicéo, lei, tradicéo escrita etc. Natural mente, devido a esta relacao entre espirito e instituico, os con- flitos coneretos entre os cristios carismdticos e os representantes oficiais da Igreja nfo vao desaparecer totalmente e até estes con- flitos assumirao sempre formas surpreendentemente novas, de tal modo que para superélos nio se dispée de receitas e mecanis- mos prefabricados, Em ultima andlise, somente pela {¢ pode um cristéo manter ‘a convicgio de que até o fim dos tempus, em principio, nfio ha motivo para um conflito absoluto entre o espirite ¢ a institui- eGo no seio da Tereja; e no que diz respeito a ele, a tinica coisa que pode fazer ¢ esperar humildemente que a Providéncia de Deus © livre de uma situaco na qual lhe seja impossfvel perceber a compatibilidade simultanea de um ditame absoluto da Igreja ofi- cial e um ditame igualmente absoluto de sua propria consciéneia. Em qualquer caso, estes conflitos parciais ¢ relatives que acon- tecem na Igreja também séo, por sua vez, de certo modo ecle siais, Isto ndo significa que eu tenha que dar aqui receitas con- cretas para resolvélos. Do mesmo modo, a execuc&o literal de uma ordem superior nfo constitui a norma suprema da eclesia- = — lidade e da obediéncia eclesial, e foi por este motivo que eu mes: mo munca exerci 0 governo de acordo com tal norma, no tempo em que ocupel 0 cargo de Geral da Ordem. Se esta fosse a nor- ma suprema, néo haveria, em absoluto, conflito algum na Igreja, Mas, de fato, eles existem; existiram (a partir da controvérsia entre Pedro e Paulo) com os santos e entre os santos e podem continuar existindo. Tampouco hé na Igreja principio algum, segundo o qual as convicgdes e resoluges dos cristios e dos representantes hierdr- quicos tenham de sintonizar, desde o principio, sem qualquer di- ficuldade. A Igreja é uma Igreja do Espirito de Deus infinito e incompreensivel, cuja feliz unidade somente pode refletirse neste mundo fragmentada em elementos muito variados, cuja definitiva e satistatéria unidade reside tnica e exclusivamente em Deus, Nio creiais, porém, que, apesar de minha eclesialidade, eu néo tenha experimentado tais conflitos, ou que os tenha evitado me. Giante uma falsa eclesialidade, Eu néo fui nenhum “janizaro” da Igreja ou do Papa, Tive conflitos com representantes da Igreja em Alcalé, em Salamanca, em Paris, em Veneze, em Roma... Em Alcalé e Salamanca estive varias semanas no calobougo por sen- tenga eclesidstica; inclusive em Roma, todos os vexames que tive que suportar em defesa de minha eclesialidade custaramme mui- to tempo e muita fadiga; quando 0 Hierno Pai me prometeu em La Storta que me seria propicio em Roma, uma das possibilida- des nas quais pensei que poderia consistir este “favor especial” era a de ser crucificado na Roma papal. Tremi dos pés & cabeca quando fot eleito Papa Paulo IV e mandou revistar nossa casa, sendo eu ja entéo Geral de uma Ordem que recebera aprovacio Pontificia; ao aproximarse a hora de minha morte, que me co- Thea sem receber os sacramentos, solicitei sua béncfo, pensando em realizar naquele ultimo momento um gesto de cortesia para com ele; quando Polanco chegou com a bénodo, eu jé tinha mor- rido e, 20 tomar conhecimento de minha morte, a reaio do Papa nfo foi exatamente muito amével. Em suma, fui e continuei sendo sempre uma pessoa com sen- tido eclesial e papal; mas também fui perseguido e encarcerado por eclesidsticos dotados oficialmente de autoridade. Recordar- teds, de que, de modo geral, esta sintese de servico obediente — 32 — e distancia critica relativamente & atitude oficial da Igreja, sin- tese que se deve realizar ao longo da histéria de um modo sem- pre novo, sem que exista uma regra vélida para sempre e capaz de resolver qualquer situacéio, mas que se realiza vez por outra, esta sintese, repito, esteve constantemente prenhe de conflitos. 3 necessdrio examinar as coisas detidamente antes de interpretar © sentido eclesial e papal da historia da Ordem como coisa digna de louvor ou de censura, Um santo como Pio V procurou influir na Ordem sem haver entendido sua natureza auténtica; na chamada “‘Controvérsia sobre a graca”, a Ordem e sua teologia es- tiveram na defensiva em Roma e a tinica coisa que conseguiu fol evitar uma sentenca judicial contréria; a Ordem teve que lutar em defesa de sua teologia moral contra a elianga estabeleoida en- tre Inocénclo XI e 0 proprio Geral da Ordem, Tirso Gonzélez; nos séculos XVII e XVIII perdeu a disputa sobre os ritos ma- labares, diante de Papas mais preocupados com uma prudente de. fesa da ortodoxia do que com encorajar o que poderia significar criatividade; a supressio da Ordem em 1773 por Clamente XIV (mediante 0 sdrdido texto do “Breve de Supresso” @ o indigno encarceramento do Pe. Ricci, Geral da Ordem, por determinagéo do Papa, fatos que hoje teriam motivado a mobilizagio da “Anis tig Internacional”), pressionado pelos Bourbons (que pouco de- pols serlam varridos pela Revolucéo Francesa e que, portanto, bem podiam ter suportado antes um pouco mais de oposicio), nfo se constituiu precisamente numa gloriosa faganha da sabedo ria e valentia papais, por muitas que fossem as explicagées que @ consumada ciéncia dos historiadores pudesse aduzir; 0 pré- prio Sio Plo X esteve a ponto ue desliluir v Geral da Ordem, Ve. Wernz, porque Ihe parecia demasiado pouco integrista, Além destes poderiamos referir outros muitos exemplos se- melhantes de distancia critica entre a Igreja oficial e a Ordem, Seria mais bonito ainda poder afirmar que a negativa da Ordem de aceitar as dignidades episcopal e cardinalicia — que era um verdadeiro distanciamento radical dos altos cargos eclesidsticos, aos quais, naturalmente se acatava e respeitava — teve necessaria mente que provocar de modo natural tais conflitos, se nfo fosse porque © entrosamento entre a Ordem e as esferas oficiais ecle sidsticas adotou, de fato, outras formas de institucionalizagio que — 3 = prejudicaram em parte o auténtico sentido da renincia a estas dignidades eclesidisticas, ‘Naturalmente, com tudo que ficou dito, néo pretendo afirmar que ao longo da secular histéria de minha Ordem, nfo se hajam produzido por vezes identificagdes coneretas entre cla e a Igreja oficial, em ocasides em que o mais indicado teria sido manter uma disténcia critica e uma legitima oposicio, Evidentemente, a Ordem se tornou muitas vezes responsdvel de uma culpabilidade histdrica, ao defender, com sua miopia e imobilismo teol6gico, pas- toral, juridico etc, & instituicéo em face do espirito da Igreja. Nao obstante, continua de pé 0 fato de que, tanto a fidelida- de incondicional & Igreja institucional como a distincia eritica com respeito a ela constituem uma legitima possibilidade em minha concepgio espiritual © na de meus discipulos, e tém sua justifi- cacao real na esséncia mesma da Igreja. Por isto no tendes por que vos envergonhardes de que Paulo ‘VI nao tivesse ficado muito satisfeito com vossa Congregagio Ge- ral XXXII. Muito mais grave foi a situagio com Pio V e Sixto V, que pretenderam impor-vos sensiveis mudancas nas Constituigdes. A excecdo de alguns de vds outros que apresentam, sem divida, uma imagem um tanto estranha e que néo se sabe com certeza Porque continuam sendo jesuftas, em conjunto continuais tendo, tanto quanto eu, um sentido eclesial e papal, e isto supde con- flitos. OBEDIENCIA JESUFTICA Talvez seja este 0 momento de acrescentar ao tema da ecle- sialidade alguma coisa acerca da chamada “Obediéncia jesuitica”. ‘Tampouco neste aspecto da histéria de espiritualidade pretendo ser demasiado original, embora seja Gbvio que este tipo de obe- diéncia é de maior importincia em uma Ordem ativa e que tem uma tarefa comum, do que numa abadia de monjes contemplati- vos. Tanto mais quanto uma Ordem de ambito mundial tem um governo central e, por conseguinte, o relacionamento de seus mem- bros nao pode regular-se exclusivamente sobre a base da amizade e do conhecimento muituos. No essencial, contudo, hoje mante- nho minha posicéo a este respeito em minha doutrina e minha = si = praxis, A boa disposicéo para com a obediéncia, a determinagio de estar em disponibilidade incondicional para uma tarefa comum © de integrarse e submeterse a uma comunidade em beneficio desta tarefa, continua sendo hoje uma atitude da qual nao ha por que se envergonhar. As decis6es que se hilo de tomar em comu- nidade e que comprometem a cada um em particular nem sempre sfio suscetiveis de serem consultadas, discutidas e diferidas até que todos ¢ cada um tenham avaliado por si mesmos a conventéncia objetiva de tals decises. Um proceso de decisio tao “demo- crético” poderd ser muitas vezes coisa muito bonita e até facti- vel em pequenos grupos. # utépico porém pensar que é possivel sempre que se Tequeira uma decisio. Em tais decisGes, que geralmente sio, no todo ou em parte Sobre questdes discutiveis, tampouco se vé sempre com clareza por que a submissio a determinada resolu¢o que, sob 0 ponto de vista pessoal, pode nfo ser a melhor, haja de ferir a propria dignidade. Isto supde, naturalmente, que se aceita a unidade da comunidade e se desea servir a uma causa comum; que se pos- sui aquela indiferenca, aquela serenidade em face das diversas possibilidades da vida e da acio e aquela disponibilidade autocri- tica para nao atribuirse a si mesmo demasiada importancia, co- mo vos foi ensinado no “Principio e Fundamento” dos Exerci cios, como base principal de vossa espiritualidade. Nada direi agora sobre a obediéneia como parte do segui- mento de Jesus. bem verdade que, em minha doutrina sobre a obediéneia nfio son tio “democratico” ao ponto de pensar que sempre em todos 0s casos uma decisio obrigatoria tenha mais possibilidades de ser a adequada e portanto exigivel, quando 6 tomada por uma instancia coletiva e nfo por um sé individuo, na hipstese de que em ambos os casos a decisdo seja contréria ao parecer de alguém a quem ela se destina, Ambas as formas de tomada de decisio apresentam seus prés e seus contras. Uma tomada de decisio co- letiva nem sempre redunda em algo mais ““transparente” e muitas veues ndo se sabe mais tarde a quem responsabilizar por ela. In- elusive no mundo profano de vossos dias parece que néo estd or toda parte to fora de moda um certo “centralismo democré- tico”, Também na minha Ordem (e nisto ela difere notavelmente = 55 — da constituigho da Igreja) a instancla suprema é constituida por uum “Parlamento”, eleito desde a base, a Congregagdo Geral pe- rante a qual 6 responsabilizado o Prepésito Geral, embora este Possua amplissimos poderes no terreno executive. Nio vos cha- mou alguma vez a alencdo 0 fato de que este principio constitu. cional de vossa Ordem seja distinto e mais democratico do que © principio constitucional do Papado, vigente na Igreja universal e pelo qual tendes quebrado langas ao longo de vossa histéria? Refletistes por acaso sobre o fato de que — prescindindo de ou- tros motivos © baseando-se em vosso democratico principio cons- titucional — nao podeis referir-vos ao Prepdsito Geral da Compa. mhia com 0 nome de “Papa Negro”? Além disto, toda a obedién- cla jesuitica se enquadra dentro de uma comunidade fraterna, que no se torna falsa ¢ ineficaz pelo fato de ser sébria e objetiva © por exigir de cada um, na verdade, uma certa rentincla a0 acon- chego familiar, Por outra parte, ¢ apesar de constituir a santa obediéncia uma exigéncia absoluta, podeis perfeitamente desmi- tologizar um pouco a doutrina tradicional sobre a obediénoia, in- elusive aquilo que 0 bom Polanco, por ordem minha, escreveu na famosa “Carta da Obediéneia”. Nem tudo o que esta Carta contém é verdade eterna. Hoje em dia ha menos dificuldades para se admitir que um Superior, com toda sua boa fé, dé uma ‘exdem contra cujo contetido o stidito tenha que opor uma hu- milde mas inequivoca negativa, simplesmente porque ele a vé in- compativel com sua consciéncia, Ainda quando se tenha {6 na Providéncia de Deus sobre 0 go- verno da Igreja e de uma Ordem religiosa, néo ha motivo para crer que os superiores dispdem de uma linha telefOnica direta e permanente com o céu, nem que suas decisdes, apesar de sua obrigatoriedade, sao alguma coisa mais do que decisées opind- veis, adotadas de acordo com seu saber e entendimento, porém com a relatividade e as possibilidades de erro em cada caso con- creto. Quem estiver indiferente, for capaz de fazer autocritica © es- tiver disposto a servir em siléncio a uma causa comum e além disto possuir suficiente humor e for compreensivo e indulgente com as tolices e deficiéncias préprias da historia terrena, néo terd dificuldades especiais e insuperéveis com a obediéncia em uma Ordem religiosa, Tenho até mesmo a impressio de que = 36 = um pai de familia e honrado funciondrio da classe média dispée hoje na sociedade de um espago mais restrito de liberdade do que © de que vés dispondes na Ordem. Apesar das desafortunadas palavras da Carta da Obediéncia, nfo tendes que praticar, em absoluto, a obediéncia “de um cadéver”, Mas deveis ser homens desinteressados, sObrios, servigais. Existe uma “mistica do ser- vigo". Porém tampouco quero falar agora disto, Voltando & desmitologizagio, creio também que ela 6 necessdria com relacao ‘& obediéneia ao poder secular e estatal. Ao longo de vossa his: t6ria tendes sido com demasiada fregiiéncia “stditos” devotos de autoridades mundanas, embora néo deverieis télo sido se tivés seis seguido as teorias de vossos grandes tedlogos do Barroco. Por que niio defendestes, inclusive pela forca, a sagrada experién- cia, no séoulo XVIII, das Reduces do Paraguai em face do atrés colonialismo europe? Porventura devieis deixar-vos expulsar da ‘América Latina como submissos e obedientes cordeiros? A CIENCIA DENTRO DA ORDEM Naturalmente sermeia interessante dizer alguma coisa acet- ca da hist6ria da teologia na Ordem, ainda que disto no se pu- dessem deduzir grandes coisas para o futuro desta teologia, Con- tudo, apenas posso fazer umas quantas observagées, 0 que niio significa que tal histéria nfo tenha sua importéneia, O Proba- bilismo que vossa teologia moral defonden constituiu, na época, uma grande contribuigéio para a defesa do direito & liberdade da cons cléncia individual, embora hoje se devesse formular de outra ma neira o que se queria dizer com tal teoria, Quando, com vossa teologia, vos arvorastes em humanistas do novo modelo de pensamento, e, com certo otimismo a respeito do homem, préprio da nova época, chegastes a apresentar refle- x6es Sobre sua natureza pura; quando, em conseqiiéneia, tiriveis para vossas misses na China e na India determinadas conclu- s6es que Roma niio quis aprovar, tudo isto foi, intencionalmente ou néo, 0 prekidio de uma antropologia teoldgica tal qual deve existir em uma Igreja que quer set a Igreja de todo 0 mundo e de todas as culturas e que nfo pretenda vender em todo o mundo © cristianismo europeu como um artigo de exportagio, Multo bem: com tal modelo otimista de antropologia “de baixo para — 37 = cima” nfo deverieis ter deslocado a graga autenticamente divina (contrariando a convicgio fundamental de meus Exercicios) para um ponto mais além do nfvel consciente, acompanhando a opi. nifio de grande parte de vossos tedlogos, que pensam que com esta graga, alhela a uma experiéncia propriamente dita, se pode aquiescer a um conhecimento através unicamente da doutrinagio externa subministrada pela Igreja, Se vossa teologia, com uma certa justificagdio histérica, con: tribuiu para aquele desenvolvimento da conscléncia crente da Igreja que se objetivou no Coneilio Vaticano I, hoje vossa teo. logia tem também a obrigagiio de continuar desenvolvendo aque las posigdes juridico-constitucionais da Igreja que se manifesta- yam no Vaticano II. Deveis permanecer fisis teologicamente (e em vossa préxis) a0 Papado, porque esta fidelidade é um elemen- to muito especial de vossa heranca; porém dado que a configu. ago concreta do Papado também esté sujeita a uma progres- siva transformacio histdriea, vossa teologia © vosso direito ca nOnico deveriam estar especialmente ao servigo do Papado; e assim devera ser no futuro, a fim de que signifique uma ajuda e nio um embarago & unidade do cristianismo. Por outra parte, bom seré que estudeis Marx, Freud e Einstein e que procureis elabo. rar uma teologia capaz de chegar aos ouvidos e ao coragio dos homens de hoje. Porém o ponto de partida e a meta de vossa teologia, que ainda hoje tem que ter a coragem de formular uma auténtica sistematica, continua sendo Jesus Cristo crucificado e Tessuscitado, porquanto Ele constitui a vitoriosa auto-revelacio do Deus incompreensivel ao mundo e nio uma moda espiritual a mais, que hoje chega e amanha se esvai. ‘Mluitas vezes vossa teologia foi acusada de ser uma espécie de ecletismo de ocasiio. Algo de verdade hé nisto, naturalmen- te, Mas se Deus 6 0 “Deus sempre maior”, em face do qual se torna pequeno qualquer sistema com que o ser humano pretenda dominar a realidade, entéio vosso ecletismo pode perfeitamente expressar também 0 fato de que o homem se reconhece supe- rado pela verdade de Deus se conforma docilmente, Afinal de contas, nenhum sistema existe no qual se possa encerrar toda a realidade unicamente a partir do ponto de vista em que al- guém se coloca. Vossa teologia nfo deve, em conseqlléncla de uma preguica para a reflexio, admilir fécels compromissos, Se. — 38 — ria porém falso um sistema teolégico cuja estruturagao tivesse a transparéncia do cristal. Também no terreno da teologia sois peregrinos que, através de um éxodo sempre novo, andais em bus- ca da patria eterna da verdade. POSSIBILIDADES DE TRANSFORMACAO DA ORDEM? Contudo, ainda, devo falarvos de mim e da histéria de meu ulterior influxo (assim o espero), partindo de um ponto de vista totalmente distinto. Ainda hoje, e baseandome nos aconteci mentos reais da historia, continuase pensando que a Companhia de Jesus ¢ wna Ordem dedicada ao ensino, & erudigio teol6gica, & difusdo de livros, & alta politica eclesidstica e, atualmente, aos meios de comunicagio de massas, Tudo isto pode estar muito bem e pode corresponder & imagem que a Ordem ofereceu ao longo de seus quatro séculos de histéria, J disse anteriormente que, evidentemente, a histéria dos tt Thos nao 6 uma simples repetigao da histéria de seus pais. Tam- bém afirmei que nfo vou emitir um juiao sobre 0 passado da Ordem, Muito bem; suposto isto tudo, eu me pergunto, em aten- go a vos e ao vosso futuro: Considerada em si mesma, que tem esta historia propriamente que ver comigo e com o estilo de vida que me caracterizou, especialmente desde minha época de Man- resa, “de Igreja primitiva” (como eu costumava dizer) até os primeiros anos que se seguiram a meu estabelecimento defini- tivo em Roma, antes que o trabalho de redagio das Constitui- Wes, 0 governo da Ordem e minha enfermidade me absorvessem completamente? Nés outros — meus primeiros companheiros e eu — néo éra- mos nenhuns sébios nem pretendiamos sé-lo, embora Francisco Xavier poderia téJo sido sem grande esforco e Lainez fol um agudissimo tedlogo que causou grande impressiio no Coneilio de ‘Trento, Naturalmente, se alguém esté decidido a servir sem re- servas a Deus, nos homens, com uma radical liberdade de esp ito, sem deixarse prender por nada definitivamente e disposto a tudo, entio, evidentemente, haveré circunsténcias em que, se al- guém tem capacidade pata tanto e a situagio o exige, poderé cul- tivar a alta teologia, escrever ‘ivros, talvez até desempenhar 0 car- — 39 — g0, em nome de Deus, de confessor da corte, escrever cartas a principes e prelados e coisas semelhantes que realmente marca- ram de modo especial a histéria da Ordem durante séculos, Con- tudo, nos anos decisivos fomos certamente diferentes, até 0 pon- to de a histéria ulterior da Ordem nfo refletir adequadamente nossa realidade. Com efcito, éramos e queriamos ser realmente pobres; em nossas correrias pela Franga e Itélia, procuravamos abrigo e re- ftigio nos imundos asilos entéo existentes; culdévamos dos en- fermos nos hospitais (em Veneza, por exemplo, trabalhamos em dois hospitais para doentes sifiliticos incurdveis) © o trabalho en- tao era muito diferente do que atualmente se exige do pessoal das clinicas modernas; pregdvamos pelas ruas, usando nestas prega- ees, quando necessério, uma miscelanea de espanhol, italiano e franeés; mendigévamos a peito aberto; nossa catequese as crian- as, pequeninas e cheias de piolhos, constitufa uma auténtica prixis e néo somente uma piedosa reminiscéncia, como acontece atualmente com a f6rmula dos ultimos votos de vossos professos. H certo que fui eu quem impulsionou a fundagio da Univer. sidade Gregoriana e 0 Colégio Germanico, mas igualmente fundei a Casa de Marta, como refiigio para as prostitutas de Roma; du- rante a carestia de Roma, de 1538 e 1539, organizamos uma enor- me campanha de arrecadacéo de viveres para os pobres, quando na Santa Roma as pessoas morriam de fome e as oriancas vaga- vam fameélicas gatunando pelas ruas; nfo procurel, como se cos- tumava até entio, confinar as prostitutas em conventos, ¢ sim meé esforcei por edueé-las para que pudessem levar uma vida digna no mundo e¢ no matriménio; promovi a fundagéo de um lar para jovens desencaminhadas, fomentel a cringo de orfanatos, cons- tuf uma casa para judeus e maometanos que querlam conver- terse ao catolicismo; nfo me pareceu excessivamente “munda- no” restabelecer a paz entre Tivoli e Castell Madama, quer di- zer, voltar a comprometerme “sociopoliticamente”, em avanca- da idade, como jé 0 havia feito em minha ultima estada no Pais Basco em 1535, quando me hospedei no asilo de Azpeitia e re- partia com os pobres o alimento que havia antes mendigado, ao mesmo tempo que esbogava ¢ punha em prética em minha cidade natal um plano bem elaborado de assisténcia aos pobres, —40— Fui cu mesmo quem fundou colégios € projetou juridicamente sua fundacéo, com o que contribui, desgracadamente, a acomo- dar um tanto 0 estatuto de pobreza da Ordem, até o ponto de que em muitos pafses e em muitas épocas ela se converteu em uma Ordem de colégios e professores, contra o que nada tenho a objetar, realmente, contanto que com isto nfo se desfigure o caréter e a mentalidade geral da Ordem. Nao vos esquecais, po- rém, que em meu tempo aqueles colégios funcionavam de modo gratuito, apresentando assim um cardter eminentemente politico e social, enquanto que hoje nossos colégios tém que ser caros para os alunos, coisa que nAo tenho dificuldade em reconhe- cer. Haveria muitas coisas sobre as quais poderiamos falar copiosamente. Mas a nica coisa que queria perguntar 6 a seguinte: nfo tera até agora a Ordem se esquecido demasiadamente desta face. ta de minha vida? Se assim foi, pode ser que se deve buscar a causa numa necessidade histérica © j4 declarei em vérias ocasides que nfo tenho a pretensio de me apropriar, sem mais nem me nos, da histria da Ordem. Mas as coisas tém que continuar assim? Nao ser porventura possivel que no futuro da Ordem tore a adquirir vigéncia alguma coisa daquilo de que dependeu para mim, verdadeiramente, 0 seguimento de Jesus pobre e humilde ao longo de minha vida? O desafio, que a nova situacio supée para a Ordem, nfo podera contribuir sobremodo para orienté- ‘Ja em uma nova direcdo, precisamente para continuar sendo fiel a suas origens? Em vossa ainda recente Congregacio Geral XXXII, de 1974, proclamastes como tarefa principal du Orden “a luta em favor da justiga” e reconhecestes ‘com arrependimen. to” vosso préprio fracasso “no servico da {6 e no compromisso em favor da justica”. Compreendestes que vosso compromisso pela justia no mundo constitui um reclamo interno e essencial de vossa miso, que no se pespega como um acessério a mais a vossa proclamacéo do Evangelho; falastes de uma “Iiheragio plena e integral do homem, que conduz a uma participagio na vida mesma de Deus”, Espero que tenhais falado para valer. Na- turalmente vossa situagio social ¢ histdrica ¢ totalmente diferen te de minha situacéo no séoulo XVI, no qual ainda nfo era pos sivel pensar que as transformagées programadas e premeditadas — 41 =. da sociedade pudessem, como hoje, constituir a tarefa e o dever do amor cristéo 20 préximo. Mas penso que se adotais com se- riedade as conclusdes da Congregacio Geral XXXII, vossa su- prema instancia decis6ria, estareis caminhando por uma nova ro- ta rumo ao futuro de vossa unica e sempre idéntica missio, que nesse caminhar poderé acompanhar-vos este a quem chamais vosso pai. Nao me cabe profetizar como hé de ser exatamente no futw ro essa luta por uma maior justica no mundo. Em qualquer hi- Pdtese, 6 evidente que néo deveis converter-vos em politicos pro- fissionais e menos ainda em caciques de partido ou em secreté- rios de grandes organizagées politico-sociais nem tampouco em metos tedricos das chamadas ciéncias sociais cristis. Realmente no deveis aspirar ao poder social, nem afirmar que se pode ser- vir tanto melhor ao préximo quanto maior for o poder de que se dispde. Tal pode ser um axioma secreto dos auténticos poli- tieos com o qual (em parte com razfio, em parte sem ela) pre- tendem justificar sua profisstio. Porém nfo pode ser um axioma para vés, nem na sociedade civil, nem na Igreja, nem sequer mes- mo no caso de que tal poder estivesse ao vosso alcance. Se puserdes em pratica o seguimento de Jesus pobre e hu- milde; se, como ja disse, assumis este novo modo de vos colo- cardes 2 margem da vida na sociedade (marginalizagio que tal- vez vos serd imposta no futuro com maior intensidade do que até agora), nao como uma amarga coacéo, mas como uma par- ticipagdo voluntéria na missdo de Jesus, quigé entfo vos encon- treis no ponto justo no qual é possivel realmente levar a bom termo vossa luta pela justi¢a. (Ndo podels de modo algum ima ginar a marginalizacio que supunha, ou melhor, que tinha real- mente que supor na sociedade eclesidstica o fato de que eu ¢ meus companheiros quiséssemos renunciar ao hébito religioso ¢ a ou tros pormenores externos préprios de um status séclo-eclesiis- tico, ainda que, sob este aspecto, nfo se conseguiu grande coi- sa, pelo menos até vossa época. Como afirmava em meu tempo Melchor Cano, e certamente com razdo, instauravase com isto, no seio da sociedade eclesial, um modo de viver verdadeiramente marginal que tinha que resultar irreconcilivel com uma forma de vida religiosa entio autorizada pela Igreja; coisa mais ou me- nos parecida com o que hoje experimenta a Igreja oficial diante — 42 — do fendmeno dos sacerdotes operérios), Podeis, portanto, con- linuar cultivando um tipo de teologia elevada, desenvolvendo es- iratégias politico-culturais, praticando certa dose de politica, par- ticipar dos meios de comunicago de massas ete, Tudo isto po- deis também fazé10. Mas o que néo deveis fazer 6 avaliar vossa vida e a importéncia da Ordem pelos resultados que conseguir des nestes campos, | | Se apenas podeis verificar com tristeza e resignacéo 0 fato de que a Ordem nao tenha recuperado e ndo goze do prestigio politico e eclesidstico que tinha antes de sua supressio, em 1733; se, repito, este simples fato que néo temos motivo para esconder, vos enche de tristeza e de secreta resignag&o, ¢ que nfio enten- destes de modo algun o que tendes que ser: pessoas que, por amor a Deus, procuram esquecerse de si mesmas; que seguem a Jesus pobre e humilde; que anunciam seu Evangelho; que se colocam a0 lado dos pobres e marginalizados no combate para conseguir para eles maior justiga. Sera que j4 nfo podels fazer isto agora e no futuro? Porventura a possibilidade de fazélo de- pende de que a Companhia de Jesus se revista do esplendor e do poder que teve em outro tempo? Nao sera, pelo contrério, verdade que tal poder constitui, no fundo, um tremendo’ perigo de perder a Deus, porque se pretende viver A margem da tragica missfio de Jesus? Se nfo pode nem deve haver nada, dentro ou fora do mundo e da historia, nem no céu nem na terra, que devais buscar e amar de modo absoluto e incondicional, exceto unicamente o mistério de Deus, ao qual quereis entregar-vos sem reservas, entio vossa prépria Ordem, & qual tanto amais co futuro dela, nfo formam por acaso parte das coisas que deveis aceitar serenamente quan- do vos séio concedidas e, com a mesma serenidade, abandoné-las quando vos sao arrebatadas? Porventura nfo disse eu em meu tempo que nfo precisaria de mais de dez minutos para recupe- rar a paz com Deus no caso de desaparecimento da Ordem? PERSPECTIVAS PARA O FUTURO Para finalizar, desejaria dizer algo sobre os que néio sio je suitas. No decorrer de minha vida tive dentro de minha Ordem amigos e companheiros muito leais, mas também tive muitos — 43 — amigos que nfo eram jesuitas: grandes e pequenos, ricos © po- bres, sibios e néo-sibios; ¢ tive também bons amigos, homens mulheres, em outras Ordens religiosas. Nunca pensel que to- dos eles deveriam ser jesuftas; no caso de muitos a quem dei os Exerefcios pessoalmente, o resultado consistiu em uma mu- danga e renovagio radieais, sem que por isto se fizessem jesul- tas, nem mesmo quando as circunsténcias externas eram as mais favordveis ¢ teria sido muito mais fécil do que no caso de um Vice-rei como Francisco de Borja. Isto é certamente evidente por si mesmo, mas € conveniente dizé-lo expressamente. Todo estilo de vida e especialmente um estilo que pretende moldar 0 homem desde o mais intimo de sua alma, apresentase, mesmo sem querer, com uma pretensiio de universalidade e vali- dade geral ¢ tende a ver nos demais estilos de vida crista, com- parando-os com ele proprio, uma espécle de mal menor e de in terinidade, uma incapacidade para praticar normas radieais de existéncia e que no méximo se pode tolerar implicitamente co mo manifestacéo da limitagio humana. N&o tem sido taro, no decorrer de vossa historia, superesti- mar desta maneira, tio compreensivel quanto tola, vosso pré. prio estilo de vida: isto justifica o fato de que muitas vezes se tenha censurado 0s jesuitas por seu orgulho. Quando porém a situagdo histérica concreta faz com que os mais ingénuos possam aceitar tal supervalorizagio do préprio estilo de vida ou seme- Ihante pretenséo de universalidade, surge o perigo oposto: a pes. soa comeca a sentirse insegura em seu proprio estilo de vida; a perder a conviegéo de que seu modo de vida seja absolutamen: te vélido para ela e nem sequer medianamente apto para nin. guém; @ tentar realizar uma sintese de tudo que 4 houve ou ha- vera, com o que nfo consegue senfio produzir uma misturada, sem qualquer caréter especitico, que tal pessoa supée haja de ser @ solugio do futuro, pelo simples fato de misturar tudo que per- tence ao passado. Quem esté aberto a infinita liberdade de Deus, no teré necessidade de atribuirse a si mesmo como algo pro- prio tudo quanto exista ou possa existir, com a finalidade de nfo se sentir inseguro em seu préprio modo de vida. Quando al guém possui, humilde mas trangitilamente, o que Ihe é proprio, nfo tem por que se inquietar por seguir a ultima moda. O fu —4— turo de cada um hé de surgir daquilo que constitui seu proprio patriménio. Afastelme ligelramente do tema e tornei a fazer sermio aos Jesultas. O que, porém, queria dizer ¢ 0 seguinte: 0 mundo nio precisa (hoje menos que nunca) estar integrado por pessoas que sejam jesuitas ou que devam ser avaliadas de acordo com a maior ou menor distancia que mantém com relagéo a vés outros. Nao obstante, tendes, por principio, uma missio relativa a estas pes- soas que nem so jesuitas, nem desojam ser uma réplica deles em escala reduzida, E isto, repito, por principio. Porque nao é possivel caloular de anteméo até que ponto sereis realmente ca- pazes de ter acesso a ditas pessoas; de onde se deduz que o livre designio do inguietante Deus da historia é uma questiio de espe- ranga, nfo de céleulo. Mas, por princfpio, tendes uma missio que, de per si, pode referirse a qualquer ser humano. BE, precisamente por isto, pos- so dirlgir agora algumas palavras a todos os cristéos e a todos os homens em geral, embora eu esteja consciente de que mes mo aquilo que contém um significado geral se concretiza sempre em uma forma historicamente relativa, e, por conseguinte, nio atinge de fato a todos. Feita esta ressalva, tenho que dizer que tudo quanto vivi, disse ou procure fazer chegar aos homens por mim mesmo ou por meio de meus companheiros, continua sendo geralmente valido, Evidentemente podem catalogarme entre as pessoas que fi- guram nos albores da “Idade Moderna” européia; poderseia dl- zer que, apesar de todos os elementos medievais que vivi e trans- miti, 0 que hé de novo e Peculiar em mim ¢ tipico desta Idade Moderna que agora esté chegando ao fim, ainda que no momen- to, ninguém saiba dizer exatamente que é que viré a seguir. Po- deria dizerse que minha “espiritualidade”, tanto por seu indivi- dualismo mistico quanto por sua técnica racional-psicolégica, € ti: picamente moderna e, portanto, esti também a ponto de desapa- recer. Poderia dizer-se que afinal de contas em nada influi para a modernidade ou falta de modernidade da subjetividade o da ra- cionalidade individualistas o fato de estarem inseridas no mons- truoso aparato da Igreja romana e postas a seu servigo, pois se trata de um aparato que, por ser mais antigo ainda, tem menos = Ab Possibilidades de futuro. Porém as coisas nfo sio téo simples, pelo menos no que se refere ao cristianismo e & Tgreja e, concre. tamente, no que toca a determinados fendmenos hist6ricos sur gidos ao longo da histéria desta mesma Igreja e cujos comegos tampouco permitem sem mais, emitir um prognéstico acerca de seu fim, Deixemos porém em paz a teologia da histéria. A tinica coisa que digo é que na Igreja nada desaparece tao rapidamente e tao facilmente devido ao fato de que o comeco de sua mani- festagio se tenha produzido em um determinado momento da his toria da Igreja, Nao estara talvez acontecendo que este meu individualismo religioso que vds qualificais de moderno, comeca a ganhar sig. nificado absoluto, precisamente no momento em que o individuo esté sendo ameagado de ser absorvido e de desaparecer dentro de uma massa ultraorganizada neste periodo “pésmoderno”? No- da tenho a opor (Deus me livre!) a que hoje procurels descobrir, tanto no plano religioso como no puramente humano, a dimensio comunitéria, a vida de grupo, a comunidade de base fraterna e ‘tentels sentit-vos integrados em tudo isto. Todavia, sede pru dentes e sensatos. O individuo jamais fica totalmente absorvido Pela comunidade, A solidi diante de Deus, o sentirse a salvo em sua silencio. Sa presenca imediata, 6 algo que pertence unicamente ao ser hu- mano. E se isto se tornou mais evidente na Igreja nos primér- dios da Idade Moderna, entao quer dizer que faz parte da his t6ria, a qual n&o somente néo esti fadada a perecer, mas pelo contrario, permanece e deve permanecer exatamente gracas a vés outros. ‘Mas, ademais, poderé haver algum dia seres humanos que, por principio e em qualquer momento de sua existéncia, sejam incapazes de ouvir a palavra “Deus”? Poderé haver algum dia seres humanos que, para além das infinitas e multiplas questées concretas, no se questionem acerca do inefavel? Poderd naver algum dia seres humanos que nunca permitam a si mesmos sen: tir autenticamente a proximidade deste mistério que atua de mo do inefaivel em sua existéncia, de maneira singular e que abarca tudo, como causa primeira e fim prototipico; mistério que, a0 permitirnos pronunciar com amor a palavra “TU”, permitenos == mergulhar em seu abismo e faz com que possamos ser livres? Que aconteceria se tudo isto fosse possfvel e chegasse a tomarse realidade? ‘A mim nfo poderia assustar nada deste tipo. Significaria que os homens, como individuos ou como coletividade, teriam regredido ao nivel dos simples animais dotados de certo engenho e que a historia da humanidade, da liberdade, da responsabilt dade, da culpa e do perdio teria chegado ao fim, ¢ assim unioa- mente se teria alterado 0 modo de se produzir este fim, que, de qualquer modo estamos esperando. Por outra parte, os homens realmente dignos deste nome teriam encontrado a vida etema. ‘Também no futuro podersed falar de Deus, se 6 que se en- tende de fato o que esta palavra significa; e sempre haveré uma mistica © uma mistagogia da inefével proximidade de Deus, que criou algo distinto de si, com a finalidade de darse a si mesmo, no amor, como vida eterna, Sempre ser possivel instruir os se- res humanos no sentido de que derribem as imagens finitas dos {dolos que se cruzarem em seu caminho, ou que passem tran- qilllamente a0 largo diante delas; que nio absolutizem nada da- quilo que de modo conereto e determinado, thes sai ao encontro sob a aparéncia de poderes e forcas, de ideologias, metas e fu- turos promissores; que se tornem “indiferentes” e “serenos”, a fim de que nesta liberdade, vazia apenas aparentemente, expe- rimentem quem é Deus. Sempre haverd seres humanos (e no importa quantos se- jam, tanto em nrimeros absolutos como em relagio & humani- dade em geral, contanto que a Igreja continue presente como sacramento de salvagio pare o mundo e no mundo) que, con templando a Jesus crucificado e ressuscitado, detxando de lado todos 0s idolos deste mundo, ousem entregarse incondicional- mente & incompreensibilidade do Deus que ¢ amor e misericér- dia, Sempre haveré homens que, com esta 6 em Deus e em Je- sus Cristo, se unam & Igreja, sejam parte constitutiva dela, a edifiquem e a mantenham, uma vez que ela nfo deixa de ser uma Gimensio historicamente palpavel e institucional e, a meu ver, encontra sua forma mais concreta (e portanto mais dura e mais amarga) na Igreja catdlico-romana, —47 — E sempre haverd este tipo de seres humanos, o que sig- nifica que (ainda que possa parccer presuncao) eu sempre terei uma misséo relativa a todos os homens. Pois a nica coisa que eu desejava era ajudar os homens a entenderem e aceitarem o que até aqui venho dizendo, Em suma, 0 que eu pretendia nao era propriamente um programa excessivamente peculiar, nem uma maneira de entender o cristianismo e a espiritualidade, embora eu tenho consciéncia, naturalmente, de que cada pessoa s6 pode transmitir a seu modo o que é valido para todos e, por isto mes- mo, no pode atingir a todo o mundo, uma vez que de certo modo se exaure em sua prépria limitagio quando se abalanga a anunciar 0 Deus eterno e seu Cristo. Por isto, e para terminar, direi que também carece de importincia a pergunta acerca do possivel efeito histérico de minha vida e de minha doutrina, Seu silencioso desaparecimento poderia constituir seu maior lucro. Por- que, seja como for, Deus continua sendo “o que é cada vex maior”. Sela Ele bendito! Disse muitas e mui variadas coisas, Contudo, esqueci ou omi- ti outras muitas, que talvez tu ou qualquer outro terias desejado escutar de meus labios. Nem mesmo vou mencionar os assun- tos sobre os quais poderia ter falado tanto quanto o que falei so- bre os que tratei aqui. De qualquer forma, o final teria sido o siléncio, no qual tem lugar o eterno louvor a Deus, — 48 —

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