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Vocé é Feliz? O desmascaramento completo do tipo mais comum na face da Terra: o egoista, ou narcisista. Para vocé se livrar mesmo dele — e ser feliz. Flavio Gikovate Pema Flavio Gikovate nasceu em Sao penn ey kd E médico, formado pela USP umes Foi Assistente Clinico no Institute of Psychiatry na London DOF res AAI @ isacclcage: eye rem eons ant Mes Ue dedica-se essencialmente ao trabalho de psicoterapeuta, ja tendo atendido a mais CelroM UU Oe Ianto Atualmente dirige o Instituto de Psicoterapia de Sao Paulo, Além de autor consagrado no Brasil e editado também EW Atanlti eM aueiarsnunice muito solicitado, tanto para atividades académicas como para as que se destin: Fete pita) tweens 0:1 Em 199], comecou a apresentar © programa “Canal Livre”, na Rede Bandeirantes de Televisao, com transmissao para todo o pais. RTE ae ante hole ec NOLO by Pecettententantarest even Reon oa) eee ctor nar (eras) na outra dobra deste liv FICHA CATALOGRAFICA (preparada pelo setor de catalogagao de MG Editores Asociados — Bibliotecdria Diva Andrade) Gikovate, Flavio. Vocé € feliz? Uma nova introdugao ao narcisismo, ‘SGo Paulo, M.G. Editores, 1978. 129 p. 1. Narcisismo. 2. Personalidade |. Titulo. CDD - 152.22 Producao: Florentino Marcondes D'Angelo | Revisdo: Nilza Iraci Silva Capas: CC&C - Cabral, Criagdio & Comunicagao (SP) Foto: Vic Parisi (Manchete) © desta edigdo MG Editores Associados Ltda. Alameda Itu, 1597 CEP 01421 Sao Paulo - SP 18 edigdo: Julho de 1978 Flavio Gikovate Vocé é Feliz? comum na face da Terra: 0 egoista, ou narcisista. Para vocé se livrar mesmo dele — e ser feliz, J INDICE 1. NARCISISMO E ODIO POR SI MESMO....... dome. 1% 2. DESCRICAO DO NASCISISMO 19 a) Egocentrismo e egofsmo 20 b) Desenvolvimento das aparéncias in 28! c) Baixa tolerancia a frustragdo. . 26 d) Incoeréncia légica, imoralidade . ee ee e) Pensamento concreto, sem imaginagao. Pessimismo .... 31 4) Admiracao e inveja de pessoas generosas & PAOOISEIVAS on. one tein weenie PA Rie Hie Re Hee erese eee 33 g) Compromisso com 0 momento histérico e sua realidade h) Improdutividade (relativa); medo de critica e perfeccionismo . i) Racionalidade camuflada por alta “sensibilidad emetividade’’:; isc. coe pcage ae x4 ne Ee AU WIO GN Ss 43 4, NARCISISMO PRIMARIO E SECUNDARIO . 5. NARCISISMO E AMOR . a) Conceito de amor b) Amor por diferenca ¢) Amor por semelhanca . 6. NARCISISMO E SEXUALIDADE . 7, NARCISISMO E PSICOTERAPIA . 1. NARCISISMO E ODIO POR SI MESMO! Escasseiam aqui, de modo horr{vel, as pessoas de- centes, . .Os tratantes gostam de pessoas honradas. .. no o sabia o senhor? Diga-me 0 senhor, com toda a consciéncia, por que todos tém-me em conta de tratante?. ..£ que tom- bém eu me tenho em conta de tratante. F.M, Dostoievski (0 Idiota) O tema tem que ser retomado com energia, pois as mudangas ocorridas no comportamento e modo de pensar do homem ocidental sdo enormes neste século. As coisas esto muito diferentes dos tempos em que ud publicou sua “Introdugéo ao Narcisismo” (1914). Muitas das condutas atribuidas, na época, a estados neu- cos francamente divergentes, hoje séo procedimentos habituais da grande maioria das pessoas. E até visivel- mente estimuladas pela cultura atual, através de um dos seus recursos favoritos que é a publicidade. A utilizagéo de recursos altamente egocentrados para estimular a venda de produtos de toda a natureza vem rapidamente substituindo proposigdes mais gene- rosas; em vez de “dé presentes”, a formula atual é “se ouide”’, “n&o se esqueca de vocé”’! A regra 6: “seja vocé 8& Flavio Gikovate mesmo o seu melhor amigo; dé a ele (vocé). . .” Atitudes antes entendidas como ego/stas — e esta palavra continua’ tendo uma conotacgdo moral negativa, apesar de tudo — hoje sao entendidas como “‘cuidar de si mesmo” e tem uma conotacdo francamente virtuosa — moralmente aceitavel, e mesmo boa, E ébvio — e isto significa que se torna desnecessé- ria demonstragéo — que esté havendo uma profunda alteracéo no julgamento moral de certas condutas, de tal forma que uma pessoa que cuida apenas de si, de seus interesses pessoais (ainda que as vezes exista a neces- sidade de certos disfarces) é hoje entendida como uma Pessoa normal, se comportando de uma maneira légica, e sendo honesta e boa. Esta mesma criatura, ha 50 anos atrés (ou menos) seria vista como extremamente egoista, apenas interesseira, sem menhuma Preocupacado pelos problemas coletivos e, portanto, desonesta e ma. E estas mudancas — que pretendem dar validade e dignidade ao egoismo como expresséo mais profunda e verdadeira na natureza humana, do que condutas ge- nerosas — estdo, é claro, francamente comprometidas com uma visdo pessimista e negativa do ser humano. Em outras palavras, 0 homem é essencialmente mau. E muitos dos argumentos usados na demonstracdo desta tese derivam de observacSes empiricas feitas em certos grupos de mamiferos superiores (certas sub-espécies de macacos € seus comportamentos sociais, por exemplo) Apesar da obvia md intenc&o presente neste tipo de ar- gumento, penso que vale a pena algumas reflexdes que ajudem a reconstruir um modo de pensar mais rigoroso e honesto. Sabe-se que um dos meios mais comuns de se conseguir provar como verdadeiros os pensamentos falsos (sofisma) dar énfase as semelhangas entre duas coisas para provar sua igualdade, ao mesmo tempo que se negligenciam as diferencas. E este tipo de erro — ou VOCE E FELIZ? 2 ma f6 — jé os sofistas (em geral comprometidos com a politica, ou seja, com a luta pelo poder) gregos de antes de Cristo tinham desenvolvido como sendo um dos pi- fares para a demonstracio de falsas hipéteses (sempre Comprometidas com interesses pessoais). As Obvias seme- Ihangas (até mesmo na aparéncia fisica) podem ajudar @0s menos avisados a aceitar como proprio da natureza do homem, fatos e condutas descobertas na natureza de certos tipos de macacos, E se forem descobertas mais @ mais semelhancas, um dia se vai provar, finalmente, que o homem é macaco! Mas até af nao se chega, apenas se demonstram certas semelhancas, exatamente aquelas que, num determinado momento, convém. A diferenca fundamental que torna o ser humano Unico e incom- pardvel, € 0 desenvolvimento da razao, produto sofis- ticado e inexplicével do alto desenvolvimento cerebral, Nossa época tem se empenhado ao méximo em desva- lorizar a razo e a racionalidade — hoje o importante 6 sentir, dar vazdo as emogées espontaneas, etc. - justamente o que distingue o homem como espécie. Depois 0 compara com macacos maus (hd me sacos bons!) © prova que o ser humano é mau. E realmente muito simplorio;’é desprezar 5,000 anos de tentativas de re- solucao do problema da moral; a solucdo encontrada foi acabar com a nogSo de humano e sua singularidade.? Negar a raz8o humana e sua importancia capital para a definigao da espécie € a mesma coisa que negar ao homem seus instintos, pois a razdo é um elemento bio- légico, organico, tanto quanto estes. (A auséncia de Gertas dreas cerebrais torna o homem incapaz de racio- cinar.) As comparacgdes para provar algo acerca da na- tureza humana ndo levam a nada de verdadeiro. Con- Gluise © que se quer: quem quer provar que 0 homem —____ 1, Cook, JM. — In Defense of Homo Sapiens, Dell, Publ, Co., Nova Torque, 1975. 10 Flavio Gikovate & leal, dedicado e generoso que o compare com o co; quem quer concluir que ele é egoista e interesseiro, que 0 compare com o gato! E é bom nunca esquecer que estes dois tipos opostos de animais sdo os preferidos Para o convivio mais (ntimo com os homens. O comportamento basicamenté egoista e o seu modo sofista de pensar (argumento falso, porém con- vincente, em causa prépria), falar, escrever e discursar nao é de modo algum, uma novidade. O novo é o seu elogio, sua pregacdo, e a sua avaliacéo como conduta moralmente aceitavel. Me parece que a quebra dos com- promissos do ocidente com o cristianismo tem facili- tado este processo de tornar aparente uma conduta até entao camuflada. E claro que o “abrir-se o jogo’’ deverd tender (e isto, a0 meu ver, jé ocorre) para desfazer alguns freios exigidos na situagdo anterior, o que levard ao agra- vamento da situagao. O jogo de interesses pessoais nao € novo, mas parece que dar a ele validag3o moral tendera a tornd-lo mais ativo, intenso e “sujo”. O que era “‘pri- vilégio’’ de um pequeno grupo (pessoas que “entendiam” que a pregagdo crista era s6 para ser seguida pelos opri- midos e que nunca tinham sido verdadeiramente as re- gras que governavam as relacSes humanas em nivel “‘su- perior’’, em nivel das classes que detém o poder) passa @ ser a pratica coletiva. O processo é oposto ao que foi a converséo dos barbaros em cristéos. Agora trata-se de “converter” os cristdos em pagdos! Ao que parece, esta nova conversdo esté se dando com muita facilidade e rapidez; e isto nos faz supor que os verdadeiros princfpios da moral nunca foram pro- fundamente apreendidos pela grande maioria das pes: soas. Ao contrério, que estas se governam antes de tudo pelas sugestées e proposigdes do meio. Entendidas as coisas deste modo, fica muito facil entender que o de- senvolvimento da sofisticada e rica cultura ocidental tem estranhas contradigGes, sendo uma delas (a mais voce E FELIZ? 1 falada porque a mais inconveniente para os responsdveis Por estas mudancas) 0 aumento rapido da violéncia crimi nal, especialmente a do tipo gratuito. No mundo “bér- baro” que passamos a viver, tudo 6 vdlido! E muitas Outras surpresas deste tipo deverdo ter sua aparigdo em breve. A idéia de Freud de que a cultura tinha sido capaz de desenvolver um sistema repressivo (de comportamentos contrérios ao interesse social-coletivo) intra-psiquico de tal modo a facilitar a organizagio do homem em so- ciedades maiores e mais complexas; parece que n&o vai se confirmando. A repressdo interna é muito mais frouxa @ superficial do que ele supde, de modo que rapidamen- te tudo volta a um estado muito especial (&, de certo modo, imprevisto de desordem. A conseqiiéncia natural e inevitdvel (talve até mesmo a desejada) é que haverd necessidade de se aumentar os esquemas repressivos externos. O totalitarismo € o Unico meio de controle @ governo possivel para os povos barbaros, desde que se pretenda manter algum tipo de organizagao social! Pensamento moral se confundiu com processo re- pressivo, ildgico, da sexualidade. Alteracdes inevitaveis na conduta sexual se acompanharam de uma tendéncia a entender tudo que sejam regras restritivas como pre- conceitos, ou seja, como conceitos impostos, inveridicos e desnecessdrios. Com a onda da liberacdo sexual se de- sorganizou toda a preocupacdéo moral. A amoralidade pareceu a saida, uma vez que suponho que se entendeu que a funcao da moral era apenas a de reprimir a sexuali- dade. E uma das minhas intencdes é mostrar que isso nao 6 verdadeiro, e sugerir que a constru¢ao de um novo Conjunto de regras — mais adequadas para os tempos modernos — é uma condic¢éo fundamental para a feli- cidade humana. A cultura que prega para o homem uma vida cada vez mais egocentrada, cada vez mais apenas em causa 12 Flavio Gikovate propria, ainda tem seus pudores. Nao gosta, por exem- plo, de ser chamada de individualista. Que outro nome dar a estes comportamentos? Bem, sdo procedimentos que defendem a individualidade, o espago de cada um, os direitos de cada um, os interesses de cada um. Em defesa da sua individualidade as pessoas podem consi- derar inconvenientes as intimidades afetivas maiores, especialmente porque elas contém elementos — ineren- tes e inevitaveis — de cidmes e outras ‘‘possessividades’’. Entende-se por possessividade toda tentativa de pene- trar e participar da vida e pensamento intimo de uma outra pessoa com quem se quer partilhar a vida. Em defesa de sua individualidade, um numero crescente de mulheres acha mau e inconveniente ter filhos (as criancas sé muito exigentes e determinam restricdes a liberdade da mulher, o que é uma invasdo injusta!). A defesa da individualidade, que hoje é confundida com a busca da liberdade individual, é 0 elogio da solidéo do homem sem compromissos e vinculos maiores com outros homens, grupos, idéias, etc... Para o meu dis- cernimento nao hd a menor distingao entre individua- lismo e individualidade, que séo a mesma coisa, na pra- tica. O que parece que est4 ocorrendo,ié um lamentd- vel jogo de palavras em que um comportamento defini- do por uma palavra conotada negativamente se mantém como tal; apenas passa a ser definido por outra palavra (semelhante a anterior) esta sim comprometida com o bom, 0 novo, o evolutivo. Uma idéia que acompanha a todos nds quase que continuamente 6 a de que as coisas novas, modernas, sio um aperfeigoamento em relag3o ao antigo. E uma nocao fatalista de que a evolugdo é sempre positiva, que tudo esté continuamente se encaminhando para melhorar as condigdes de vida do homem na terra.” 2. Monod, J. — O Acaso e a Necessidade, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1972 VOCE E FELIZ? 13 E claro que a partir deste conceito tudo o que aparecer de novo encontra imediatamente uma boa receptividade, inclusive determinando um empobrecimento do julga- mento critico. Assim, ninguém esté muito preocupado com a pergunta fundamental: esté o homem moderno mais feliz? O que 6 a felicidade? Se sente hoje melhor, mais 4 vontade, mais completo do que no passado? Estas questdes sao muito diffceis de se responder, pois envolvem uma avaliagdo subjetiva (felicidade e bem estar) @ jamais poderemos saber exatamente como se Sentiam nossos antepassados. E importante réssaltar também, que 6 bem provdvel que os homens em geral nunca se sentiram muito felizes; mas que no passado 0s problemas concretos ligados 4 luta pela sobrevivéncia fisica eram to mais fundamentais que estas questdes @ram menos essenciais e s6 preocupavam a uns poucos. Talvez — principalmente para se evitar polémicas infin- daveis e de pouca valia — a pergunta correta seja: E o homem de hoje feliz? Nossa cultura, tdo eficiente no sentido de melhorar as condigdes objetivas de grandes parcelas da populagdo,'desenvolveu condigées também para que os homens se sintam mais felizes, mais alegres? Apesar da simplificagéo, ainda restam outras di- ficuldades. O préprio desenvolvimento tecnoldégico cria Novas tensGes, 4s quais cada vez mais se atribuem o poder de gerar infelicidade. O crescimento de centros urbanos, © transito, a poluicdo, a vida prdtica cada vez mais com- petitiva, o desemprego; enfim o subproduto do aprimo- ramento industrial que trouxe os bens de consumo mais fartos e responsdveis pela melhoria das condi¢des de vida so insatisfacSes novas e de avaliac&o ainda diffcil. Sao @stas as causas maiores dos evidentes sinais de insatis- fagio humana (aumento da incidéncia de doengcas pre- coces, aO menos em parte determinadas por uma vida inumana, incidéncia crescente do uso sistematico de drogas de todos os tipos, inclusive o dlcool, etc. . .), ou 14 Flavio Gikovate a insatisfagao decorre desta postura global cada vez mais - individualista que nega e superficializa as relagGes huma- nas em geral? E a diffcil vida das grandes cidades que afasta as pessoas umas das outras (uma das fungGes dos centros urbanos era para se obter exatamente o oposto do que ocorreu!), ou uma filosofia de vida que prega a solid’o — agora chamada de liberdade — em nome de cada um cuidar apenas de si mesmo? Pode o homem solitario ser feliz? A experiéncia clinica e pessoal me sugere a abso- luta impossibilidade de uma pessoa se sentir plena, com- pleta, em si mesma. E mesmo as tentativas mais deses- peradas (orientalismos, elogio das drogas, indiscrimina- ¢&0 sexual absoluta, consumismo, negacdo do consumo — 0 famoso Jess is more da Califérnia de hoje — nao tém sido bem sucedidas, a nfo ser como fonte de fas- cinio de duragdo muito efémera. A impresséo que eu tenho é que q individualismo busca qualquer safda para no ter que por em xeque a si mesmo, E uma ten- déncia para incorporar qualquer ilusio de salvagdo como Possivel, desde que nao se questione o principio bdsico, que € o da existéncia da felicidade solitéria, individual. O ser humano que segue os princfpios individua- listas da cultura atual € 0 tipo cada vez mais comum. E, em geral, uma criatura que se assemelha muito ao tipo que Freud descrevia como sendo o narcisista, ape- sar de existirem claras distincSes. O narcisista como tentarei explicar posteriormente € muito comprome- tido com a realidade externa tal como ela é, de modo que é 0 retrato, em nivel psicolégico, de uma dada cul- tura e de uma dada época. Assim, terd que ser redefi- nido em cada momento, e esta € uma das minhas pre- tensdes neste trabalho. E claro que pretendo também esclarecer alguns elementos teéricos que envolvem o problema, fundamentalmente relacionados com a psi- cologia humana normal. VOCE E FELIZ? 15 © termo narcisista 6 preservado porque descreve com muita propriedade uma das caracter/sticas aparen- ‘tes mais importantes deste tipo de ser humano, hoje nor- mal, que é a de serem profundamente comprometidos com cuidados pessoais, de modo a que se pense, a pri- meira vista que sdo pessoas que verdadeiramente amam a si mesmas. E é deste modo que Freud entendia o pro- blema: retragdo de afetos de modo que a libido se con- Gentrasse inteiramente em si mesmo. Criaturas empenha- das essencialmente em se cuidar, em receber afeto e outros beneficios e absolutamente nada dispostas a dar. E importante repetir que este tipo de comportamento & hoje louvado e tido como sendo o normal, o que néo ocorria no inicio do século. Havia, jé, porém, no tex- to de Freud, um certo fascfnio por este tipo humano, @§pecialmente se fosse mulher e atraente (condicao em que 0 narcisismo era mais comum, como ainda hoje acontece). Da andlise de centenas de pessoas cuja conduta Goincide parcialmente com a descricdéo de Freud e com © tipo que detalharei nas paginas seguintes, uma coisa muito importante me chamou a atencao, e cuja impor- tancia 6 fundamental: a auto-avaliag¢do destas criaturas 6 muito dibia, sendo muitos os momentos em que elas declaram claramente que se odeiam! E isto a primeira vista 6 muito diffcil de acreditar, pois tais criaturas pas- Sam a maior parte do seu tempo a cuidar de si mesmas, @specialmente de sua aparéncia externa, a falar bem de si mesmas, a louvar as coisas que fizeram (até mes- mo existindo uma tendéncia a aumentar a importancia dos feitos). Noutros momentos dizem que se gostam, que estéo satisfeitos consigo mesmas, que absolutamen- te n&o gostariam de mudar. Aqui ja as idéias parecem @m sintonia com o que se pode observar, Esta falta de coeréncia na auto-avaliagdo é parte de uma incoeréncia mais geral, da qual falarei depois, 16 Flévio Gikovate Aqui, o problema é decidir qual das duas afirmagdes (6dio ou amor por si mesmo) & mais profunda, mais consistente, E evidente que nao se pode excluir a hipé- tese de que nenhuma delas seja mais verdadeira, o que nos levaria @ crenea de que so criaturas que afirmam apenas 0 que convém: quando algo n&o dé certo, dizem que se odeiam; quando tudo vai bem, se amam. Apesar de que a conveniéncia é uma caracteristica do homem moderno narcisista, penso haver indicios sugestivos de que 0 elemento fundamental é de édio por si mesmo. Vale registrar que sendo isto verdadeiro, o homem mo- derno € essencialmente infeliz, ainda que nao possa afirmar que ele seja mais infeliz do que seus antepassa- dos (se bem que talvez até isso seja poss(vel supor, em funcao de argumentos que ainda apresentarei). A primeira prova da baixa auto-estima como sendo a predominante deriva mesmo da tendéncia j4 descrita estas pessoas de se cuidarem muito e de louvarem demais Os seus feitos. Parece um desejo continuo de mostrar a todo o mundo uma aparéncia muito positiva; a hiper- trofia da importancia da aparéncia, ao menos como esta- mos acostumados a pensar, teria que estar a servico de camuflar um mundo interior do qual a pessoa nao se orgulha absolutamente. O desejo de aparecer aos olhos dos outros sempre bem, 0 continuo problema de se preo- cupar demais com a opinifo dos outros a seu respeito, de tentar agradar as pessoas para que tenham deles um bom jufzo, é indfcio significativo de auto-avaliagdo ne- gativa, Outro argumento, talvez mais importante, no mesmo sentido, & derivado do fato de que o narcisista 6, em geral, um tipo humano especialmente invejoso. E a in- veja recai particularmente sobre as pessoas mais gene- rosas; Ou, em outras palavras, essencialmente diferentes deles. Sendo a inveja um sentimento que deriva da ad- VOCE E FELIZ? 17 miragéo (impossfvel invejar verdadeiramente a alguém que néo se admire), uma Pessoa que realmente se ama, que estd, de fato, bem consigo mesma, nao deveria sentir tal emogao. E sendo o narcisista o tipo que mais padece de inveja, s6 se pode concluir que ele n&o s6 nao se ama, como tem de si um conceito muito negativo, E, mais uinda: a existéncia da inveja significa a capacidade de perceber a virtude do outro que ndo se possui. A ad- Mirag&o pelo outro significa reconhecer sua superioridade 0m dreas bem definidas e conscientes, o que vale dizer Gonhecer a prépria inferioridade. Sendo assim, nao se pode nem mesmo aceitar um grau relativo de incons- ciéneia (0 inconsciente ndo poderia admirar, e nem, portanto, invejar) no narcisista, de modo a ele se amar mesmo sem ser possuidor de grandes virtudes. N&o 6 a hora de estender este tipo de argumenta- flo, mas creio que vale a pena apontar, desde ié, que © tipo humano narcisista essencialmente egofsta, inveja basicamente as pessoas verdadeiramente mais generosas, © especialmente por reconhecer nelas esta virtude. O que, em outras Palavras, significa que ele reconhece que © egofsmo € um defeito, mesmo quando esté sendo louvado pela cultura (como Ocorre nos tempos de hoje) © praticada pela pessoa como modo de viver. Neste caso, © ddio por si mesmo se impée, assim como o sentimento. de inferioridade, que de fato deve ser entendido como Inferioridade real! Sentimento de inferioridade € um tormo que s6 deveria ser usado Para baixa avaliagao de 4] mesmo, injustificada; quando uma pessoa admira a fjenerosidade e age como egoista, est se comportando dé um modo realmente desaprovado por ele mesmo; Inferior de fato. Freud tomou o termo narcisismo de Nacke (1899), uU@ © usava para descrever um tipo de auto-erotismo. O conceito usado por Freud inclufa mais caracteris- 18 Flavio Gikovate ticas psicolégicas ligadas ao ego do que 4 atividade se- xual, pois na época ele estava particularmente envolvi: do com uma dualidade de instintos que inclufa como um deles os “instintos do ego”. A descricéo é primo- rosa, e se percebe em cada linha o profundo e impecé- vel observador da natureza humana. O modo como des- creveremos 0 ser humano mais comum do nosso tempo (e, portanto, no dominio da psicologia normal) tem suficientes semelhan¢as com o por ele descrito, de modo que acho vdlido continuar usando 0 mesmo termo, ainda que com ressalvas. O projeto é pretencioso: descricao a mais completa poss/vel do narcisista, hipétese acerca de sua origem, que envolvem o desenvolvimento de al- gumas teorias acerca da estrutura da razdo humana; de- senvolvimento da idéia de Freud sobre o antagonismo entre narcisismo e amor (e sua expressdo no campo da sexualidade humana); anotagdes sobre o tratamento psicoterdpico do narcisismo, suas relagdes com a moral e com o problema da felicidade humana. E claro que se trata apenas de uma “nova introdu¢&o ao narcisis- mo’, pois um tema deste porte nao pode se esgotar com tanta simplicidade. 2. DESCRIGAO DO NARCISISMO © senhor é, na minha opinigo, simplesmente um homem vulgarfssimo, como costumam ser os ho- mens, com a diferenca unicamente de ser algo débil de cardter € algo carente de originalidade. Diz 0 senhor que sou um homem pouco original. Olhe, meu caro principe, nada hd de mais ofensivo para um homem de nosso tempo do que dizer-Ihe que nao é original e que é débil de cardter, que carece de talentos especisis, que 6 um homem vulgar. O senhor nem sequer quiz considerarme um velhaco de primeira ordem e saiba que, por causa disso estive hd pouco a ponto de baterthe....Assim que tiver dinheiro, saiba o senhor. .. passarei a ser um ho- mem sumamente original. isto o mais vil eo mais odioso que tem o dinheiro: até confere talento. FM. Dostoievski (O Idiota) A descricgo de tipos humanos 6 sempre uma ta- refa multo dificil. Se descobre, desde o inicio, que cos- turmamos usar termos com os quais jamais nos preocu- amos seriamente, no sentido de precisar os seus signi- fieados; e 6 claro que isto apenas gera mais confusdes # Mal entendidos, Por outro lado, ao tentar definir con- Geltos, encontramos uma brutal dificuldade, talvez até por falta de traquejo para este tipo de atividade hoje to donprezada. Apesar de tudo e com todas as ressal- 20 Flévio Gikovate vas, tentarei. Outro problema, mais de natureza liter4- ria; ao se evitar certas repeticdes, se perde a seqiiéncia do pensamento e a clareza da idéia que se pretende trans- mitir; 20 mesmo tempo as repeticdes Parecem cansa- tivas e de mau gosto. Diante desta contradigdo, opto pela maior clareza possivel das idéias, em prejufzo do estilo. O narcisista serd descrito conforme suas carac- terfsticas principais, uma de cada vez. A énfase 6 dada Para a situagao extrema, quase caricatural, a) Egocentrismo e egoismo O egocentrismo pode ser definido como uma forma de apreender 0 mundo, a vida e a condi¢éo humana ba- sicamente governada pela senso-percepcao direta (infor- magées recebidas pelos érgdos do sentido, especialmen- te visio e audic&o). Voltarei mais detalhadamente ao assunto posteriormente. Aqui gostaria apenas de escla- recer o seguinte: do ponto de vista da visdo, por exemplo, para qualquer lado que uma pessoa dirija sua aten¢do, tudo serd visto sempre tendo o observador como 0 centro de uma circunferéncia que o rodeia (0 mundo exterior), Do ponto de vista puro da senso-percepcdo, era légico que os primeiros astrénomos entendessem a Terra como 0 centro do universo! A decorréncia maior deste tipo de apreensio do mundo é que a énfase maior é dada sempre para coisas que afetam diretamente a pessoa. Os acontecimentos imediatos so mais importantes do que os distantes, ainda que haja Obvia desproporcdo de magnitude. Para uma Pessoa egocéntrica, um terremoto em algum pais dis- tante, com milhares de vitimas € menos grave do que um pequeno acidente pessoal de automédvel! (E claro que haveré uma certa vergonha relacionada com isso © as pessoas tenderéo a demonstrar interesses por as- VOCE E FELIZ? 21 Suntos gerais, de modo a ndo parecerem mesquinhas.) & isto porque no tem a menor capacidade de valorizar, @ntender, aquilo que néo véem ou ouvem. E claro que através de leituras podem saber que fatos ocorreram, mas os distantes nunca ganham importancia_priorité- tla, E isto se percebe mais claramente através dos te- mas favoritos de conversa destas pessoas: acontecimen- 108 pessoais, especialmente os mais pitorescos e engra- Gados, conversa sobre a vida de pessoas conhecidas delas, @specialmente eventos concretos (mudancas de habitagao, alteragées na aparéncia fisica, mudancas na vida amo- Tosa, étc...), problemas com os objetos de uso cotidiano, problemas praticos relacionados com a vida do bairro, © transito, e coisas todas de mundo a determinarem beneficios ou preju(zos pessoais e imediatos. O ego- centrismo assim entendido ndo envolve nenhum elemento de avalia¢do moral; apenas uma decorréncia da énfase Na senso-percep¢ao. O egofsmo & problema bastante mais complexo, pois envolve o problema moral, do qual a psicologia “clentifica” tem tentado se livrar. Corresponde, segundo antendo, a um procedimento arbitrério, no qual o indi- Viduo se atribui mais direitos do que aqueles atribufdos #08 que o cercam. A confusdo a respeito do tema se deve ao fato de confundir egofsmo — conduta com- prometida com arbitrariedade em causa propria — com # tendéncia normal das pessoas de preservarem a pré- pria vida e seus direitos (instinto de autoconservacdo"’, fa linguagem de Freud; veja-se a seguinte expressao, na Introdugé0 a0 Narcisismo. . . “egoismo que atribuimos justificadamente, em certa medida, a todo ser vivo"). Se se confunde cuidar da propria sobrevivéncia e inte. fesse, com egoismo, se cria outra vez a situacdo ideal para mal entendidos, uma vez que se esté usando a mesma palavra com dois sentidos diferentes. Cuidar de si ‘em Gerta medida’ é justo e normal; e a isto se chama de 22 Flavio Gikovate ego{smo derivado do instinto de auto-conservacao. Além de uma “certa medida’ é psicolégico e anormal e a isto também se chama de egojsmo! E mais, qual 6 a “me- dida’’ que torna o cuidar de si justo, e a partir de onde se torna injusto? e por que chamar de ego{smo ao cui- dar de si justo? Talvez agora eu possa ser mais claro: a “medida” que torna a conduta humana justa é aquela que atribui iguais direitos aos outros e a si mesmo. Nestas condicGes, cuidar de si néo deve ser chamado de egoismo. O egofs- mo € um comportamento arbitrario onde a pessoa se atribui mais direitos do que a outros. Segundo entendo, 6 uma decorréncia da visio egocéntrica do mundo, por Parte de uma pessoa que se considera fraca, insegura. E esta é a condicao habitual da crianga pequena, por varios anos muito dependente do meio Para sobreviver. Se vendo como o centro, e insegura, tenderé a proce- dimentos de reasseguramento que a levam ao desejo de ter mais para si; seria um comportamento em que a crianga se sente amada (seu desejo arbitrdrio foi satis- feito!) e, de certo modo poderosa (é capaz de desequi- librar a relacdo interpessoal em seu favor!). A educagao habitual em nossa cultura aceita de uma maneira muito benevolente este tipo de comportamento infantil, tido como normal. E claro que as criancas assim “vitoriosas”, tendem a perpetuar tal atitude, o que apenas em certos momentos provoca a reacdo negativa dos adul- tos. Se nao ocorrer nenhum evento importante no pro- cesso psiquico, néo hé nenhuma raz4o para que tal com- Portamento deixe de existir na vida adulta. E é o que ocorre com o narcisista, adulto arbitrdrio, continuamente desequilibrando as relacdes interpessoais a favor de si mesmo. Um fato curioso é que a razdo atribuida pelo préprio individuo para se sentir com mais direitos é voce E FELIZ? 23 f existéncia de determinadas “‘inferioridades” (assim dizem) imediatamente relacionadas com “traumas” exis- tentes na sua vida passada. Ou seja, em decorréncia de inferioridades vividas (antigas ou atuais) 0 individuc fi@ considera como merecedor de direitos especiais, di- reitos estes que nao atribui aos que 0 cercam. E as expli- gugSes da psicologia servem fundamentalmente para ite fim! Para justificar arbitrariedades. E a concluso feria mais ou menos a seguinte: os fracos e inseguros tom direitos especiais sobre os mais seguros; os mais fortes est&o no mundo para servir aos mais fracos! Se Gontinuarmos nesta linha absurda de raciocinio (que ape- sar de tudo, é muito mais comum do que se possa supor), teremos que concluir que é conveniente ter “traumas”, fer fraco e neurdtico, pois a estes 6 dado todo o poder, todos os direitos; e isto seria o reforco da fraqueza (que # fecompensada fartamente) e 0 desestimulo ao desen- volvimento humano mais sadio e digno. E, segundo eu volo, 6 assim que as coisas acontecem. b) Desenvolvimento das aparéncias: Como jé foi dito sumariamente na Introducdo, uma Garacter{sticas fundamentais do narcisista é a exces- silva preocupacéo com a imagem ptiblica que eles pro- wm, Jé disse também que é deste comportamento am particular, que deriva a idéia de que tais pessoas se aman @ que o exagero com estas preocupagées é algo f@ MOS leva a supor exatamente o contrdrio, ou seja, 4m profundo desprezo por si mesmo, que tem que ser famuflaco de todo o modo. A vaidade ligada 4 aparén- fin felea @ um dos aspectos que mais chama a atencio, especialmente no caso das mulheres. Nos homens este supeeto @ menos 6bvio porque nossa cultura ainda 6 Mult® Gontraditéria quanto a se os homens devem ou 24 Flévio Gikovate nao ter uma preocupag3o com a aparéncia similar & das mulheres; neste caso, eles se Preocupam, mas de um modo que isto nao seja por demais percebido — tais criaturas n&o suportam qualquer tipo de critica. Nao quero ser entendido erroneamente; a vaidade feminina, © se fazer atraente para os homens, me parece ser um fato biolégico indiscutfvel. As mulheres se sentem muito bem — e até mesmo sexualmente excitadas — ao desper- tar © desejo sexual nos homens. E ao exagero desta fun- ¢20 normal que eu estou me rete indo. No caso dos ho- mens,a situagdo 6 mais complexa ainda, porque o corpo masculino por sf,; néo desperta nas mulheres sensagado de desejo similar 4 que uma mulher desperta nos ho- mens; desta forma, a vaidade masculina estaria menos validada pela natureza, sendo hoje estimulada por uma cultura igualitaria que n3o leva em conta as diferengas basicas entre os sexos. Tal problema ainda é muito novo € meus pontos de vista a respeito sio absolutamente incompletos; mas acho importante registré-los, ainda que s6 de passagem. De todo o modo, e resumindo, o narcisista (homem ou mulher) € pessoa comumente de boa aparéncia fisica, e que trata de desenvolver esta aparéncia da melhor maneira Possivel, as vezes exage- rando em cuidados pessoais, especialmente aqueles que chamam a atenc&o; mais mesmo do que os que teriam uma relaedo direta com o aprimoramento da satide, A preocupacao com a aparéncia se estende para todas as coisas materiais diretamente relacionadas com @ pessoa: aspecto da habitacdo, do automédvel, dos mé- veis e utensilios. O desejo é sempre o mesmo, ou seja: chamar a atencdo favoravelmente. E o possuir coisas de indicutivel valor material e valor estético conven- cional (outra vez o medo da critica torna estas pessoas muito timidas quanto a grandes inovagdes obviamente desaprovadas por um bom niimero de pessoas), enten- VOCE E FELIZ? 25 dido como tal, o que se considera belo num determina- do momento e uma determinada cultura. Vivendo num pals como o Brasil, gostam muito de saber o que jd esté Indo usado em locais que langam as modas, de modo 4 serem os primeiros a fazé-lo aqui, e com isto pareceraio precursores, inovadores, coisa que decididamente nao fio, mas que gostariam muito de ser. Quanto ao comportamento social, correspondem 410 tipo comumente chamado de extrovertido. Sdo muito falantes, relativamente féceis no trato com as pessoas, Gspecialmente com desconhecidos; tem sempre um caso ra contar, sempre’ algum acontecimento pessoal curio- #0, Marrado com muitos detalhes — em geral pouco importantes — e com o maior empenho possivel para ferem engragados (e isto muitas vezes é verdade). As onversas sdo sempre muito superficiais, onde proble- mas e dificuldades pessoais nunca sio reveladas; sdo pessoas para quem tudo esté sempre bem, pois mostrar dificuldades € sinénimo de mostrar fraquezas e isto di- minui a imagem que os outros tém deles, além de tor- ni-los mais vulnerdveis a eventuais ataques (“nunca se deve deixar que os outros conhegam os nossos pontos fracos'’, seria uma expresso comum). Os temas prefe- ridos séo sempre amenidades, assuntos gerais onde nin- guém tem que se comprometer com nada; 6 a isso que Gorrespondem as habituais conversas de bar, ou as reu- ni6es sociais, onde tais pessoas sio as que mais se so- bressaem. Um importante fator inibidor 6 estarem numa Gondigio onde se sintam socialmente inferiorizados. A superioridade ou inferioridade 6 entendida aqui em fungllo das aparéncias, ou seja, do que 6 valorizado na- Guele ambiente (em uns seré o poder econémico, nou- {ros a beleza e a juventude, noutros os dotes intelec- tuais @ a cultura). Quando se considera em inferioridade, fica calado e timido; quando em superioridade, é até oxtravagantemente socidvel; e isto é muito légico para 26 Flévio Gikovate quem se preocupa tanto com as aparéncias. Duas con- seqiiéncias também légicas deste fato: o narcisista se empenharé 20 maximo para conseguir uma condigao de superioridade segundo critérios da cultura e do am- biente em que viva; e também preferird se relacionar com pessoas tidas como inferiores, sobre as quais po- derd reinar e com as quais se sentird mais a vontade, desenvolvendo até mesmo certas condutas de aparen- te preocupagao e generosidade, ¢) Baixa tolerancia a frustragéo: Abordo aqui um dos aspectos mais tfpicos e carac- teristicos do narcisismo: a intoleréncia a frustracéo. E € bom deixar claro que em momento algum eu estou querendo dizer que os outros tipos humanos tenham um prazer especial com o sofrimento ou a contrarie- dade. Ninguém gosta de ser frustrado, de que as coisas nao ocorram conforme o previsto ou o desejado; nem mesmo quando a frustragao deriva de algum fator inde- pendente da atitude de qualquer ser humano (é o caso, por exemplo, de alteragdes Metereoldgicas; se se deseja um tempo bom para um fim de semana é claro que se fique contrariado se houver chuva). Porém, a reacdo. diante da frustragdo, da dor, é que € muito distinta. Para algumas pessoas é mais facil aceitar o sofrimento; para outras é absolutamente imposstvel. Aceitar o sofri- mento néo é sinénimo de resignacdo e docilidade; as vezes é apenas a percepcdo de que, naquela situacao determinada, nada hd a fazer senio aceitar a coisa como ela se apresenta; tais criaturas podem ser muito ativas € corajosas em outras ocasides, quando acham que va- le a pena o esforco, quando reconhecem que a situa- ¢d0 poderd ser modificada pelo desempenho pessoal, VOCE E FELIZ? 27 © narcisista toma qualquer frustragao como uma grave ofensa pessoal! Ao menos 6 o que parece, pelo tipo de reago que se pode observar: a hostilidade vio- lanta se manifesta imediatamente; as lamentagdes e mani- fostagSes de dio séo desproporcionais e prolongadas. Acusa imediatamente a alguém, pelo evento, mesmo quando isto ndo é Idgico e nem mesmo Possivel (no oxemplo citado da frustrag3o metereolégica, haverd ma substituicdo, para uma outra contrariedade qual- quer insignificante e que envolva um ser humano, que fd © objeto do édio e a causa da infelicidade), Sobre © acusado recaem as mais graves acusagées, todas elas Vverbulizadas em clima de rancor e légica apenas aparen- 10; silo situagdes em que relembram todas as outras Trustrag6es do passado, determinadas pelo acusado; as lombrangas mostram um édio muito vivo € recente, mesmo Hara acontecimentos muito antigos, Tudo se dé de um modo muito similar mesmo quan- 0 4 verdadeira razdo do fracasso de um empreendimento (que gerou a frustrag%o) se deve a condutas inadequa- do narcisista. Este nunca reconhece sua culpa, nunca #@ V8 © responsdvel por nenhum erro (isto seria uma prove da exist8ncia de imperfeicdo em si mesmo, coisa tii como inaceitdvel). Usa de todos os recursos possi- Welt para inverter @ situagdo e, de vildo, tornar-se vitima. Quando sfo pessoas inteligentes e boas na manipulag3o da palavra — © convivendo com tipos humanos opostos, ‘ompre prontos a assumir culpa por crimes que nio co- Mmoteram — muitas vezes sdo bem sucedidos nesta tarefa. Quando nfo hd meio de conseguir isto, desandam em tm diseurso de auto-comiseracao (‘eu sou uma porcaria, 4) nllo presto para nada mesmo, eu deveria morrer’’, ft...) de modo a, pelo menos, despertar muita pena taquele que, na situagao de fato, era a vitima. A vitima ® vé obrigada, portanto, até mesmo a consolar o vilgo! Flévio Gikovate O narcisista costuma atribuir esta conduta franca- mente infantil e inconveniente (é sempre bom lembrar que as criancas pequenas lidam muito mal com a frus- trago, reagindo violentamente quando contrariadas) a uma alta ‘‘sensibilidade”, de tal modo que ‘‘nele tudo & sentido com mais intensidade, provocando, portanto, maior sofrimento”, o que justificaria e explicaria a ébvia desproporeao entre acontecimento real e reagado objeti- vada. Esta argumento nos obrigaria a concluir que este tipo humano 6 o mais sensfvel, 0 mais sofrido. Mais tarde tentarei mostrar que eu nao considero as coisas deste modo; por hora fica ressaltado apenas o fato de que este raciocinio transforma um comportamento injusto, numa conseqiiéncia inevitével de temperamentos “mais sensiveis’’, excepcionalmente dotados da capacidade de sofrer por pouca coisa, 0 que nao é verdade. Tais pessoas sd so “mais sensiveis’’ quando a situacdo os prejudi- ca diretamente e isto € muito importante para um jul- gamento mais correto da condi¢do, Além do mais, é bom que se diga desde j4, que existem enormes diferen- gas de reac&o a frustragdo, quando a situagdo objetiva impede a resposta explosiva (e isto desqualifica ainda mais a explicagao a si mesmo, dada pelos narcisistas). Cito o seguinte exemplo muito comum: um homem explodiré, em sua casa, com a mulher (e eventualmen- te com os filhos); mas jamais o faré deste modo com o seu chefe, no trabalho (a menos que exista o desejo de ser mandado embora), ou em outras situacées sociais onde tal conduta o desmoralizaria (0 que nao deixa de ser uma importante prova de que a criatura tem plena cons- ciéncia do seu comportamento arbitrdério, e da inopor- tunidade de exercé-lo em certas condigdes ptiblicas). voce E FELIZ? 29 d) Incoer&ncia légica, imoralidade: J&é esté mais ou menos claro, do que foi descrito, que © pensamento do narcisista padece de certas falhas, todas elas relacionadas com o desejo de mascarar suas préprias fraquezas e limitagdes e com a necessidade de 4@ mostrar mais forte, mais bem sucedido, mais capaz, is virtuoso. A busca nao é a da verdade, mas sim do argumento que Ihe dé razao. Alids, o narcisista é extre- mmamente fascinado por uma idéia corrente de que tudo 4 relativo, e que, portanto, as verdades absolutas nao existem, sendo tudo uma questao de opiniao pessoal, dependente da dtica, do modo como se encara o pro- blema. N&o é ainda hora para uma discussdo deste pro- blema, mas o fato a ser ressaltado 6 que em nome desta falatividade total dos conceitos, o narcisista sempre advoga ei causa prépria. Encontra sempre um modo aparen- tamente légico para se beneficiar de todas as situagdes 4 que a balanca sempre se desequilibre em seu favor. 1 para isso vale tudo; uma frase dita hd pouco j4 no # mals verdadeira (“nao é bem isso que eu queria dizer’) \i@ vez que se mostrou inconveniente e o oposto pode- 14 wer afirmado agora como sendo a verdade. Tudo é felativo mas as suas opinides sdo sempre as mais cor- fotos @, principalmente, aquelas que devem prevalecer. J& vimos que em virtude da “alta sensibilidade”’ que determina a baixa tolerancia 4 frustrag&o, tudo de- vera sor feito no sentido de se evitar qualquer tipo de oontrariedade para tais pessoas. E para isto basta que todos a seu redor aceitem suas exigéncias, que sero (ada vez maiores; e esta situagdo tirénica é entendida como légica, pois o privilégio Ihes é devido “em reparo 4 frustragSes! do passado, ou algum sentimento de infe- 30 Flavio Gikovate rioridade atual francamente cultivado para justificar tudo’. Como resultado, se observa a composicao de um modo de pensar que envolve obrigacées para os outros e direitos para si mesmo. Uma dualidade de cédigos: um extremamente severo para os que estdo em volta; Outro francamente complacente e valido para si mesmo. E desnecessério prolongar muito o argumento e a des- crig¢éo, para ficar clara a arbitrariedade e a imoralidade de tal procedimento. Entendo como Jinjusta ou imoral a existéncia de um conjunto de regras de ser e de pensar que tornem os outros com mais obrigagdes e exigéncias @ a si mesmo com mais direitos e regalias. E o pensa- mento que leva a estas conclusdes 6, do ponto de vista légico, incoerente e falso. E 0 erro se baseia na premissa que 6 a da maior “‘sensibilidade’”’ & dor, o que, como ja vimos, 6 falso. Pessoas mais sensiveis, de fato, procuram meios de organizar suas vidas de modo a ter que enfrentar o minimo possivel as situagdes penosas; e isto me parece razodvel, apesar de aparentemente pare- cerem mais covardes a amedrontados (ou timidos e intro- vertidos quando esté em jogo o relacionamento inter- pessoal e 0 temor de serem magoados por outros seres humanos). Continuamente fazer “propaganda” de sua alta sensibilidade, de modo a tiranizar criaturas com quem convivem, 6 um artificio moralmente muito duvidoso, E no se pode atribuir todo este processo a igno- rancia e nem mesmo a mecanismos inconscientes (o que yale dizer: a psicologia encontrar razdes para justificar © pensamento oportunista). A ignorancia deveria envol- ver erros légicos de todos os tipos; alguns em prejuizo da pessoa, outros em seu beneffcio. Porém, quando © erro sempre beneficia, é sinal que se conhece muito bem a situagdo, e que hd uma clara intencionalidade. voce E FELIZ? 31 @) Pensamento concreto, sem imaginagao. Pessimismo: A compreenséo da vida principalmente através i senso-percepefo (egocentrismo) traz consigo uma Outra conseqiéncia fundamental, que é um enorme apego © mundo concreto tal como ele é. A discussdo tedrica #erh desenvolvida a respeito do componente concreto da razio no capitulo seguinte. Aqui, a titulo de des- riglio, vale a pena dizer que as pessoas francamente Gomprometidas com a realidade sdo, em geral, muito Peo imaginativas e pouco criativas; e isto é Idgico, Ole a criatividade deriva de se poder inventar coisas, situagBes e pessoas que ndo existem (6bviamente terdo femelhangas com o que existe), que nunca foram vistas OU ouvidas ou tocadas. A razdo concreta se alimenta de fatos (e o narcisista é muito atento a observagio da fealidade, sé a isto se apegando por n&o ser capaz de inventar mada) e os manipula segundo regras que sdo aprendidas da propria realidade. Assim, um mundo go- vernado por jogos de interesses, por oportunismos de toda a ordem e por: jogos de. palavras que devem dar oerta dignidade moral a condutas injustas e interessei- fis, @ 0 que aprende a senso-percepcao. A imoralidade #0 Oportunismo do narcisista 6 0 resultado da apreensao do mundo tal como ele é (um mundo igualitario mais Justo, 6 0 resultado da imaginagéo humana), nao havendo Nnisto nenhuma inventividade; a capacidade: de manipular fegras observadas com precisdo e rapidez determ farlio © sucesso no mundo concreto e caracterizam um tipo especial de inteligéncia prdtica, comumente chamada de esperteza. Imaginar situagdes nao vividas é algo que muito agrada ao narcisista; e ele costuma, porisso, se ver como uma pessoa muito pouco prdtica, muito ligada a abstra- 32 Flévio Gikovate des. Porém, a anélise mais acurada dos temas dos seus devaneios é surpreendente, pois 0 que se percebe é que tudo gira em torno de situagdes que a cultura atual cos- tuma sugerir como sendo as que levam o homem a mé- xima felicidade. Ou seja, os “sonhos’ do narcisista se assemelham terrivelmente as condigdes de’ sucesso ma- terial e fisico propostas pelos antncios de cigarro ou por revistas “‘hedonistas” tipo Playboy! Até os devaneios sfo estereotipados e “‘criados’’ pela maquina publici- tdria que, até certo ponto, nos governa. E so os mesmos que se repetem continuadamente, infinitas vezes. E quando tais sonhos chegam a se realizar (6 claro que para bem poucos), parece que nao ha mais nada a fazer nesta vida. O tédio, as hipocondrias, o vazio assustador, penetra dentro da pessoa, justo quando definitivamente deveria estar feliz; 6 tudo absolutamente incompreensivel. Algo deve estar muito errado, mas ndo se sabe absolutamente © que 6; bem, o tema nao cabe aqui, e além do mais é assunto de interesse muito restrito! Uma visio concreta, ‘‘realista’’, do mundo, leva inevitavelmente a uma atitude pessimista, N3o ha ne- nhuma razdo para se supor, apenas em fungao dos dados reais, que nada tende a evoluir favoravelmente. Nada nos leva a ter esperancas num mundo mais justo e hu- mano, a nao ser através de ‘abstragSes e construgdes hi- potéticas. O pessimismo leva a uma atitude ainda mais oportunista diante da vida: j4 que nao hd nenhuma espe- ranga para que as coisas se ajustem, entao que cada um cuide de si, e da melhor forma possivel. Deste modo, © pessimismo que deriva da observagao concreta do mun- do passa a ser argumento que justifica uma atitude mais interesseira, oportunista e egojsta, fato que fard perpe- tuar o pessimismo, que geraré mais pessoas ego(stas; € assim tém sido as coisas, vocé E FELIZ? 33 f) Admi: Gao e inveja de pessoas generosas e imaginativas: A este respeito jd fizemos algumas observacées, que aqui serdo parcialmente repetidas e complementa- A inveja deriva da admiracao, ou seja, de se perce- her no outro certas propriedades que se deseja possuir 6 claro nao se possui). Deriva, de fato, de uma dis- Grépfncia entre aquilo que se 6 e o que se quer ser; e Gm isto se pode perceber que a inveja é o produto de uma insatisfagao interna: uma pessoa que é como de- nfo sentiré mais inveja. E isto ndo quer dizer que perderé a capacidade de admirar certas virtudes em outra potsoa, A partir dai o problema se complica: em que Glrounstincias a admiraco determina o aparecimento da inveja, e quando ela permanece como sentimento positivo? O que significa ser como se deseja? Uma das varidveis que deveria ser introduzida agora feria a da ambigao humana; mas nao me vejo ainda em GondigSes de abordar este tema. Por hora, suponho ape- fis que exista, na maioria das pessoas, uma correlagdo entre a ambigdo e a potencialidade de cada um; em outras pulavras, pessoas de maiores talentos ambicionam me- (heres condigdes, que seriam aquelas que criariam as fiowsibilidades de estes serem exercidos; ambicionam também as glérias correspondentes. Dentro deste ra- Gloeinio, seria ilégico, por exemplo, uma pessoa desejar wr miisico quando reconhecidamente n&o tem aptiddo para tal, Ambicionar uma coisa impossivel, ou para a “ual niio se esteja dotado, é se condenar a infelicidade perpétual E isto é absurdo, a menos que esteja a servico le cultivar “sentimentos de inferioridade” para fins HeUNs08, como jd foi referido. Este mecanismo é bas- tunte usual nos narcisistas, mas n&o deve ser conside- faclo como manifestacdo de genuina ambic¢ao. 34 Flévio Gikovate A intensidade da ambig&o e seu contedo medem a distancia existente entre o que se 6 — Ego — e o que se sabe que se poderia ser — Ego ideal. Ou seja, existe um desejo humano de desenvolver todo o potencial exis- tente em si, bem como desfrutar das regalias correspon- dentes. Na nossa cultura, as regalias correspondem a fama e a fortuna (e com essa, 0 acesso a todos os bens materiais disponiveis). O potencial de cada um é varid- vel e subjetivo, mas as regalias sio sempre as mesmas (é claro que existem casos onde prevalece a fama sobre a fortuna, e vice-versa) e correspondem aos ideais de sucesso da cultura — ideal do Ego. Muitas pessoas so- nham apenas com as regalias e estéo mais interessadas nelas do que em tudo o mais; nao raramente buscam meios escusos para a elas chegar, conseguindo — na maio- tia das vezes — apenas a fortuna. Tentam, através do privilégio econédmico, obter, depois, respeitabilidade (realizago do Ego ideal), o que nao conseguem, pois esta sO se consegue através de uma atividade sistemé- tica que visa desenvolver, através dos anos, a potencia- lidade individual. Uma pessoa se torna invejosa quando a distancia entre 0 ego e o ego-ideal 6 grande e nao estd fazendo © esforgo necessdrio para desfazé-la. E isto pode ocorrer por vérias razSes, tais como medo de criticas, falta de perseveranga, mau conhecimento dos préprios potenciais (se atribuir um talento maior do que o verdadeiramente presente aumenta as inibigdes), etc. E invejam aquelas que possuem as propriedades presentes no préprio Ego- ideal. Ou seja, se inveja as pessoas que sao como se gos- taria de ser, sabe que poderia vir a ser, e quando a gente sabe que nao esté fazendo o necessdério para vir a ser! Os ideais da cultura também s&o objeto de inveja, mui- tas vezes até de forma mais visivel. Mas aquelas que os possuem, mesmo sem mérito (por heranga, por exem- voce E FELIZ? 35 plo), continuam a invejar, o que mostra muito clara- Mente que a ambicdo das pesssoas é fundamentalmente Télacionada com o desenvolvimento pessoal, mais até ‘0 que a busca de fama e fortuna. © harcisista é um tipo sempre muito preocupado (om as aparéncias; de modo que deseja muito preen- thier 08 ideais da cultura (ideal do Ego), Mas nunca se ‘Watlifaz apenas com isto, apesar de que muitos estéo Wispostos a qualquer concesséo para obter especialmen- 1 i fortuna. Sao criaturas essencialmente invejosas, e Wivelam prioritariamente a capacidade imaginativa das peiioas; s8o francamente atraidas pelos tipos humanos ‘Wiis generosos e especialmente por aqueles que se de- ‘disim a uma atividade basicamente criativa (musicos, Wilitas pldsticos, poetas, intelectuais académicos, etc). Quando pensam em alguma atividade para si mesmos, wmpre imaginam algo deste género (é claro que se cria i) ehoque quase que inevitével entre este tipo de traba- iii © @ necessidade de se obter sucesso segundo as regras iii Cultural) E este tipo de inveja 6, ao meu ver, muito Wpartante, pois significa a consciéncia das pessoas de ie dentro delas existe uma érea inexplorada. Invejam wiueles que sao capazes de invadir a estranha regido da iente onde outros estimulos (além dos externos) de- teminam outro tipo de pensamento e idéias diferentes; iim dea onde as coisas sdéo vistas no como elas séo, Wiis GOMo se deseja imaginar; sem compromissos com 1) Wxlitente; onde as coisas novas tomam corpo, inicial- WiwNte Sob forma de idéias. A inveja significa consciéncia da existéncia de um ure modo de pensar para além do concreto governado jel senso-percepc¢déo, e o reconhecimento da superio- tiie da abstragdéo (ndo se pode invejar algo sentido vome inferior). Significa o reconhecimento de tal po- tenelal, da sua importancia; e ao mesmo tempo a cons- 36 Flavio Gikovate ciéncia de que ele nao esté sendo desenvolvido, de que nada esté sendo feito neste sentido, E a percepgao de que toda a energia mental estd dirigida para a prética da vida, e que isto significa um enorme Prejuizo para © desenvolvimento Psiquico; que se est4 lutando mais Para obter as regalias — ideal do Ego — do que procu- rando atingir uma etapa superior de desenvolvimento humano — Ego ideal. Que isto é uma inversio de valores de resultados catastréficos, E desnecesséria a descrig&o pormenorizada da ati- tude invejosa. Se trata de uma conduta agressiva, nao de muito forte intensidade, porém continua e, na maio- tia das vezes, sutil. Como ela deriva da admiracao, é uma forca agressiva mas nao repulsiva. A inveja determina a presenca de agressdes entre pessoas atrafdas pela ad; Tacdo. As pequenas exclamagdes desnecessarias, as in retas de mau gosto, o ficar triste quando ha sucesso para © outro, o ficar muito solicito quando hé infelicidade Para © outro, so os sinais mais evidentes desta forma de agressividade no adulto civilizado, e todos nés a co- Nnhecemos muito bem! 9) Compromisso com o momento hist6rico e sua realidade: Aqui vou abordar mais uma decorréncia do modo concreto de pensar. S6 a titulo de recordacao, estou chamando assim ao processo de raciocinio que se ali- menta fundamentalmente dos dados obtidos através de drgéos dos sentidos (especialmente viséo e audi¢ao). Deste Angulo de observacéo, é claro que sé existem as coisas e as situagdes que podem ser percebidas; e é bom ressaltar mais uma vez que eu nao estou querendo, em hipétese alguma, negar a importancia da realidade obser- vada e de se raciocinar sobre os dados daf derivados; VOCE £ FELIZ? a # nem negar as consegiiéncias importantes desté pro- GoRKO especialmente relacionadas com o desenvolvimento as ciéncias, em particular da fisica. S6 tenho tentado @ Mostrar a limitagao deste processo para a compreen- Wio plena da mente humana. Se sé existem as coisas fu® percebo, entao fica claro que a importancia que ® Meio externo, tal como ele 6, exerce sobre mim, é Maxima. Ou seja, o mundo é aquilo que eu, hoje, vejo. Pica até dificil imaginar situagdes anteriores, em que Weterminadas comodidades no eram conhecidas. Fica Impossivel imaginar outros tipos, ao menos teoricamente pousiveis, de organizacao social, politica e econémica. Se a percepgo da realidade, tal como ela 6, é maxima, W & capacidade de imaginacéo é minima (como jé foi tilarido), e se a realidade é percebida dentro de suas vordadeiras regras interesseiras de relacao interpessoal ue levam a conclusdes pessimistas acerca do animal Human, muito poucas serfo as chances das pessoas moreditar em que haja alguma solucdo mais justa para Os problemas da organizagao social do homem. Pouco #18 © empenho nesta direco, de modo que toda a ener- tilt doverd ser concentrada em sofisticar a compreensao tli roalidade, se adaptar cada vez melhor a ela, com a finalidade de tirar “o maximo proveito da vida’, desta efémora vida que a natureza nos oferece. Nao hé tem- i para mais nada, nada mais interessa a nao ser tratar le \sufruir ao maximo os beneficios que a realidade ual Nos oferece: 0 consumo de bens materiais, o culto tli beleza fisica e da elegdncia, o turismo, e tudo aquilo (8 Vierem a inventar e que venham a dizer que se trata le im prazer (sensorial) superior. Tudo aquilo que a tlincla = @ esta para as pessoas concretas é a Unica forma Wiperior de expresso humana — vier a eriar_ em bene- {alo do aumento das comodidades humanas seré sempre hem vindo © imediatamente incorporado como mais uma 3 Flavio Gikovate conquista, E a este respeito o senso critico seré muito mais baixo, pois ndo se pode contestar nada do que esta sendo criado, que serd sempre uma evolucdo, um pro- gresso no sentido de libertar 0 homem da necessidade de trabalho e de facilitar sua vida de usufruto de coisas materiais. No se questiona a importancia do trabalho para 0 homem; se percebe que os tempos atuais louvam © lazer e dirigem a organizagdo econémica para que todos possam vir a se beneficiar do “‘enorme volume de con- quistas’’; portanto, isto deve ser bom! Tudo que é mo- derno € bom! E, as vezes, eu me pergunto: como é que vi- viam as pessoas inteligentes hd 100 anos atrés, para quem apenas o prazer da leitura existia? Séré que eram muito mais infelizes do que somos nds, na atualidade? E por que esta necessidade de nos refugiarmos periodicamente em campos despovoados ou praias semi-desertas, se vi- ‘vemos numa sociedade tao fascinante? Nos tempos atuais é indicutivel a importancia ca- pital do dinheiro. Quem o possui é principe e a estes (poucos) foram reservados todos os prazeres, E como s prazeres sensoriais rapidamente se tornam repetiti- vos e€ monétonos, é necessério recriar novos meios de satisfag&o. E isto significa que se necessita cada vez mais de mais dinheiro. E este deve ser ganho a qualquer custo, pois é 0 passaporte para o acesso a tudo o que é “bom’’ e “belo”, E é claro que tudo é efémero, que tudo tem que se renovar, pois o novo dé mais prazer, além da ha- bitual preocupac&o das pessoas em mostrar as outras tudo 0 que sao capazes de conseguir. Me parece bastante obvio que as pessoas assim empenhadas no terZo nenhu- mma preocupacdo social e politica maior. Estaréo apenas tentando defender os seus interesses pessoais, usando para isso quaisquer recursos; a moral n&o existe; 0 que existe de fato é o dinheiro, que dé acesso a todos os prazeres, sempre relacionados com a sensibilidade, com Voce £ FELIZ? 39 © sensorial em geral, como n&o poderia deixar de ser @ Moda nos tempos em que vivemos. E s6 0 hoje existe; o passado e o futuro sao abstra- 950s intteis. O que conta é o “aqui e agora’! E esta OXxpressio reflete o compromisso definitivo entre este Modo de pensar e o momento particular em que se vive, Huma determinada organizacao social, politica e econ6- mica. A atitude reaciondria, utilitéria e profundamente Honservadora seré sempre a posicdo verdadeira de pes- do tipo narcisista. E claro que muitas vezes — e Isto basicamente na dependéncia de interesses pessoais We cardter econdmico ou de prestfgio — se mostrarao Muito revoluciondrios e mesmo a favor de organizacdes elais mais justas. Se vivermos um perfodo em que esteja prestes a haver importantes mudancas na organizacdo Woolal, veremos tais criaturas se bandearem para 0 lado (8 vai ganhar (a postura oportunista, o pessimismo fm geral e o desejo de estar sempre no Papel de van- (iiarda impSe estas mudancas, em pessoas que, de fato, flo tem nenhuma conviccdo a respeito de nada a n&o fer de que elas devem estar sempre de bem com o poder #0 Mais perto possivel do dinheiro). hi) Improdutividade (relativa); medo de critica e perfeccio: anions A partir da observacio da realidade, o tipo con- fret de pensar concluisque a virtude maior, com a fi- Wilidade de se obter sucesso — especialmente no plano Material — 6 a esperteza, ou seja, a capacidade de tapear # outro, Ihe passar a perna, ou criar condigdes que facam fem que oUtras pessoas se sintam com obrigagdes. (di- vidi moral) para consigo. Se soma a isto uma atitude infantil de rapidamente parar de achar graca num de- 40 Flavio Gikovate terminado assunto, desde que j4 seja conhecido (a maio- tia das criancas enjoa muito depressa dos seus brinquedos, @ menos que sobre o objeto propriamente dito coloque @ sua prépria imaginacao; por exemplo uma boneca des- perta interesse muito momentdneo, a menos que a me- nina “converse” com ela, Ihe dé vida, papéis imaginérios, etc.) em seus aspectos externos mais visiveis. Acrescen- te-se também uma “natural’’ tend&ncia mais a ser ser- vido do que servir — preguica — que também 6 normal da crianga e se chega a uma das caracteristicas mais co- muns (apesar de ndo ser sempre presente) do narcisismo: a falta de persisténcia, ou, como também se costuma chamar, falta de fora de vontade. E dificil se imaginar uma pessoa produtiva se nfo for capaz de persisitir continuadamente em uma deter- minada atividade. Sdo as criaturas que iniciam muitas coisas, muitos cursos, muitos tipos de trabalho; mas logo acabam abandonando. E muito mais comum que este tipo de comportamento seja feminino, pois neste caso o trabalho esté muito menos relacionado com a necessidade direta de ganhar a vida (é claro que hd ex- cecdes, mas a regra ainda é esta). Elas préprias recla- mam de si, mais persisténcia para o trabalho, especial- mente nos Gltimos tempos, quando o trabalho feminino virou uma espécie de exigéncia social, de modo que a mulher se sente socialmente desmoralizada por nao ter algum tipo de atividade — porque é af que o problema se manifesta mais, mas esta virtude falta em geral. E talvez uma das raz6es mais importantes envolvidas é o fato de que a energia para perseguir uma meta derive muito fundamentalmente da conviccéo que se tenha nas idéias que estejam envolvidas, na importancia do que se vai realizar e de sua utilidade, nfo apenas no sen- tido pessoal, mas também no aspecto de interesse para outros seres humanos. O narcisista no se interessa por voce E FELIZ? 41 War nada a outras pessoas e nunca se familiarizou com 0 prazer que dai pode derivar; além disso, é um pessi- Mista e@ nunca tem grandes convicgSes em nenhum tipo @ idéjia. Falta-Ihe, portanto, o estimulo derivado da wrosidade e do ideal que é o que move a todo o tipo ie atividade que nao seja governada pelo interesse eco- fdmico ou pela recompensa sensorial imediata (lazer). Quando a Pessoa reconhece a necessidade de lutar pela iia Sobrevivencia econémica (6 0 caso da maioria dos homens) ganha af um estimulo que torna o seu com- portamento mais regular e persistente, apesar da relativa Wobreza deste est(mulo, solitariamente para as ativida- tas mais sistemdticas e habituais, onde a recompensa iaterlal costuma ser apenas um dos elementos em jogo. olaro que quando surgem Oportunidades para a reali- wagilio, em plano grandioso, das ambigGes materiais, a coisa Muda de figura e o estfmulo, mesmo tnico, se torna Muito eficaz. As atividades que nao levam a recompensa (fama #/ou fortuna) mais ou menos répidas, também costumam fr abandonadas, pois uma das caracteristicas do nar- lita (tal como a crianca) é um enorme imediatismo. A jironsa nfo é de realizar uma tarefa; é de se ver recom- fensdo por té-la feito! Quanto maior for o tempo que «amore entre o inicio da realizago de esforcos e o inf- flo das recompensas, maior a probabilidade de que a miittide seja abandonada. © medo da critica — e a tendéncia perfeccionista U8 6 acompanha como uma tentativa de no dar mo- {vos para que ela ocorra — é outra das manifestacdes tl0 tipo humano que estou descrevendo. E nao é sé 0 fwrolulsta que a teme; o desejo de ser-bem aceito, de wradar, 6 universal, O que esté em jogo é apenas 0 modo i reagir a situagao; a intensidade do pavor, que aqui © torna absolutamente paralizante. E evidente a corre- 42 Flévio Gikovate lagdo entre o medo de ser criticado e a tendéncia.a evi- tar situagdes de avaliagdo da competéncia, como costuma Ocorrer com freqiiéncia nas atividades de trabalho. A relagdo é imediata também com o medo de assumir res- ponsabilidades (especialmente as maiores) solitariamen- te, de modo que um erro nao possa ser imputado a outra Pessoa, que seria a maneira mais comum de reagir a cri- tica de um narcisista. E Gbvio também como 0 medo de criticas e o per- feccionismo funcionam como elementos inibidores da criatividade, da tentativa de inovagao de qualquer tipo. No plano do trabalho levam a tendéncia das pessoas a uma evoluco inferior ao seu potencial intelectual, o que gera ressentimentos e inveja crescentes. Estando uma pessoa consciente deste seu modo de ser, terd tam- bém mais um elemento para n3o ser muito persistente, pois a evolucao profissional leva a um aumento das res- ponsabilidades, aumento do risco de erros, os quais sendo apontados por terceiros levariam a uma ofensa insupor- tavel para a vaidade da pessoa assim constitufda. O aumen- to das responsabilidades e o perfeccionismo so incom- pativeis entre si — é impossfvel controlar tudo direito quando se tem que cuidar de muitas coisas ao mesmo tempo — e esta é outra contradigZ0 que leva a um beco sem safda. A solucio 6 aceitar atividades menores, onde © risco de fracasso seja desprezivel; porém af a insatis- faco corréi a pessoa, que no pode estar bem consigo mesma, apesar de viver tentando provar para todo o mundo o contrério. Apenas a titulo de esclarecimento e reforco das idéias que venho defendendo, vale a pena ressaltar o fato de que o medo-pénico que estas pessoas tém da critica de atitudes e atividades nas quais se revelem mais intimamente, € outro indicio importante de baixa acei- tagéo de si mesmo e de uma auto-avaliacéo muito pre- céria. Voce £ FELIZ? 43 1) Racionalidade camuflada por alta “‘sensibilidade” e "“omotividade” : A primeira impressdo que se tem do narcisista — e jue coincide com o que este diz de si — é que se trata A lum tipo de pessoa de muito alta sensibilidade e emo- tividade. Estes termos s4o usados com muita freqliéncia ‘Na linguagem popular, apesar de que séo de definicao ® Gonceituaggo muito imprecisas; corresponderiam a Propriedades presentes em pessoas que se emocionam 0M muita facilidade, que se doem demais por qualquer ‘Holt, que lidam mal com a dor fisica e moral, que cho- WM mesmo por motivos pequenos; e também capazes de Guptar no ar, eventos e emocdes que os outros nem Hotam. Tais pessoas seriam mais fraégeis e necessitariam 6 um tratamento muito especial, cauteloso, porque Wino logo se magoariam e isto desenvolveria uma reacdo Wfagional e violenta do cardter agressivo. Tals propriedades de conduta sf0 comumente re- ponies com um temperamento que, como jé disse, | Mareisista costuma se atribuir. Dos artistas se aceita Welhor a irracionalidade e desproporcao nas reacdes, Pls wlio criaturas de sensibilidade especial. Porém, a willie mais acurada mostra que estes comportamentos gilli diretamente relacionados com o que ja foi dito ® feipelto da baixa tolerancia a frustrac30. Sendo mais jiwelio, a observaciio mais delicada mostra que o nar- tislsta @ uma pessoa que tem uma reac&o explosiva de filo toda vez que 6 contrariado em algum desejo ou Wierene. Nada mais do que isto. E todo o elogio da pria sensibilidade nada mais é do que uma forma de itificar = @ perdoar — a conduta arbitrdria e egofsta. Meagir de maneira explosiva quando contrariado # \i procedimento infantil e, na pratica, bastante efi- 44 Flavio Gikovate ciente. E uma das formas de tiranizar o meio. A explo- sao 6 téo assustadora, téo constrangedora para os outros, que a soluc&o a ser buscada seré sempre a de se fazer qualquer tipo de concesséo para evitar que tal situacéo se repita. E proceder desta forma néo é possuir uma sensibilidade especial e sim usar de um recurso assusta- dor ou comovente com a finalidade de escravizar as pes- soas em causa propria. Faz parte de uma racionalidade oportunista que estou tentando caracterizar da melhor forma possivel. A racionalidade é constante; até as explosdes sdo criteriosamente estudadas. O choro é controlado e esté sempre a servico de alguma finalidade. A compaixdo surge sempre na hora certa, e dura o tempo exato. As pessoas deste tipo confessam suas fraquezas quando assim julgam conveniente e para as pessoas certas. Se aconselham com aquele que vo Ihe dar razéo e s6 com esta finalidade (usar a opinigo de uma outra pessoa para reafirmar a sua). Um dos comportamentos mais surpreen- dentes e caracteriticos deste modo “artistico” e “‘dramé- tico’’ de lidar com as emogies é consubstanciado no seguinte exemplo: uma criatura do tipo narcisista esté no auge de uma discussao fntima com 0 cénjuge ou um familiar qualquer; surge em cena alguma outra pessoa que nao deve presenciar o atrito, ou a eventual ‘‘crise’’ de choro. Imediatamente o estado emocional se desfaz, a pessoa se recompde com a mesma facilidade com que se muda de estado um televisor e mantém com o intruso 0 didlogo mais correto e sereno!!! A surpresa se justifica, pois tal mudanga de atitu- de sugere com muita veeméncia a superficialidade das emogGes (talvez se deva entender o ddio como a tnica emogao mais séria e profunda) manifestadas. E esta super- ficialidade nao aparece sé na dramdtica reagdo a frus- tragio; as efusiantes manifestagdes de afetividade, de voce £ FeLIz? 45 fimizade e solidariedade também padecem da mesma Taluldade. Como j& disse antes, o narcisista é um tipo foclalmente muito bem sucedido, pois € muito falante (aposar de nada dizer de sério a respeito de sua intimi- (ade), muito facil em manifestagdes fisicas de afeicao e fornura, Pena que seja tudo falso! E, o que é mais tris- 1#i @ grande maioria das pessoas introvertidas e inibidas fonham desesperadamente em conseguir se comportar desta maneira! A conclusao triste se impSe: o narcisista ndo tem fwnhum interesse verdadeiro pelo outro. Estando mal HONGO mesmo se considera com direito de cuidar apenas tl i @ dos seus interesses. Quer ser amado, receber. Nao Wii @ nfo quer dar nada; todo o dar é falso e oportu- Hila; tem sempre uma segunda intencdo, e aquele que feeobe um dia vai pagar em dobro. E todo este processo # hom consciente e racional, ao menos na grande maioria tl Gasos que conheci. Nao existe, portanto, o perdio ii ineonsciéncia, que o narcisista insiste em querer atri- Wy 4 si, nos momentos polémicos. E um tipo perfei- nt® capaz de controlar suas emocgdes — até mesmo |. E 0 argumento mais forte a este respeito é que Wio sempre pessoas mais explosivas com os intimos (fa- Willares) do que nas situagdes em que a habilidade ea ‘Woiilidade se impée (ambiente de trabalho, por exemplo). ‘Wie explosivos quando convém; quando nao, so déceis ‘# até humildes. E tudo estudado, programado. A vida # entendida como um jogo de papéis que deve ser de- Wmipenhado a contento, seguindo o principio basico de ietender sempre, da melhor forma possivel, os interesses osoaln, Dizem elas que sou uma excéntrica, mas néo sei _ distinguir, Porque 0 coracéio € 0 principal e 0 de- mais absurdo, Também a inteligSncia é necesséria, _ naturalmente, ,. talvez fosse a inteligéncia também. 0 principal, No te rias, Aglaia, que no me contra- igo, © burro com coragdo e sem inteligéncia € um burro td infeliz como o burro com inteligéncia ‘sem coracéo. E uma verdade rangosa. Sou uma burra com inteligéncia mas sem coracdo: somos infelizes, as duas, sofremos, as duas, FM. Dostoievski (O Idiota) lo estudo do narcisismo, e, também, mo- conviccdo intima da importancia da razao ‘oldgico das pessoas normais, minha voltado cada vez mais para a compreen- A ntar com o auxilio do estudo compa- outros mamiferos. Mas o estudo da razdo ‘permite tais recursos, pois é o que faz este inico e especial; no passado, a tendéncia era 48 Flavio Gikovate homem as limitagdes préprias da condigao animal. Na medida em que as conviccdes religiosas foram caindo’ por terra, era Idgica a tendéncia a dar énfase ao corpo. Mas penso que isto é um empobrecimento da compreen- séo do homem, téo ou mais grave do que a visdo religio- sa, que dava ao espirito importancia capital e Unica. Vou tentar aqui uma viséo de conjunto do pro- cesso racional humano, apesar da precariedade de dados e de sintese tedrica em que me encontro a respeito. E apenas uma observacao preliminar, que pretendo poder completar no futuro; apesar destas ressalvas, penso que a importancia do assunto justifica sua apresentacéo em estado embriondrio. E uma drea delicada, em que a psi- cologia se aproxima da filosofia, da religiéo, e da moral. Esta drea foi desprezada pela psicologia deste século, em virtude de suas compreensiveis vinculagdes com a fisiologia e as ciéncias bioldgicas em geral. Mas acho que jd é hora de revises, pois cada vez mais me parece impossfvel dar continuidade 4 compreensio do homem, sem se introduzir 0 elemento moral. A partir das primeiras semanas de vida, fica claro que a relacdo da crianga com a realidade exterior se dé através dos érgaos dos sentidos, A importancia do tato, do olfato e do paladar s3o mais evidentes até o 3° més, quando entram em mais eficaz funcionamento a audi¢éo e a visdo, que passarao a ter uma importancia cada vez maior ao longo da vida. Todo o aprendizado corresponde a associar determinadas imagens percebidas a figuras deé seguranca, provedoras de alimentos e outros cuida- dos necessdrios ao bem estar fisico. Associa determina- dos sons a estas imagens, da mesma forma que correla- ciona com elas certas sensacdes tdcteis. As pessoas, do mesmo modo que as coisas, séo percebidas através da visio; a elas se associa um som que corresponde a0 no- me dado a pessoas e coisas; e também se associam expe- voce E FELIZ? 49 rlancias técteis. Assim se formam conjuntos de sensagdes ue definem os objetos que circundam a crianga. Pessoas e coisas, j4 definidas por uma imagem, uma {' toxtura palpdvel e por sons que as denominam, passam a i ter agora correlacionadas com suas respectivas fungdes. a Algumas pessoas e objetos tém funcdes diretamente _ filigionadas com o bem estar da crianca — mae, bab, MWamadeira, cama cobertores, etc. — e despertam mais Wtoresse (e mais imediato!). Outros objetos chamam # Atencio em funcdo de alguma propriedade extravagan- te; rufdo do chocalho, chama do isqueiro, radio, etc.; fst vai passando a interessar na medida em que suas fungSes possam vir a ser compreendidas e a ser titeis Wii prazerosas: cadeira, triciclo, televisdo, automével, Assim, com o passar dos anos, 0 mundo real 6 com- jeendido progressivamente, sempre segundo as mesmas feuraw: identificacéo do objeto, compreensao de sua fun- go (ou Util — alivio de algum tipo de mal estar fisico — i prazeroso — estimulacdo agraddvel de alguns dos i los dos sentidos, muitas vezes relacionada com a “Weiinlidade, e simultaneamente, percepco de que os “thjetos So propriedade de alguém (ao menos quase hee que trata de preservd-los como seus. Forma, © propriedade, eis 0 que a senso-percepcao de- ‘1808, Com o desenvolvimento neuronal o processo pode ‘W Wolisticar de tal modo que os objetos possam se rela- WHHAF Lins com os outros assim como suas fungSes, e TenOmenos cada vez mais complexo de correlagdes pos- ‘WH Wr entendidos e registrados na meméria. As fér- ‘Willis verbais correspondentes aos processos mentais ili Gomplexos comegam a aparecer de modo que a liuagem define bem o fenémeno. As correlagdes so wade vez mais complexas, mas dependentes sempre das iieinas varidveis de forma, fungao e propriedades. 50 Flavio Gikovate Vai-se compondo assim esta razdo que eu estou chamando de concreta, pois corresponde a um acimulo crescente de dados que derivam da apreensao, através da senso-percepedo, do modo concreto que nos cerca. Do mesmo'modo, o processo’mental se abastece de certas percep¢Ses advindas do préprio corpo: sensacao de fome, frio e todos os tipos de desconforto. O principio que governa esta forma de razdo consiste na continua tenta- tiva de harmonizar necessidades corporais e as condicdes objetivamente percebidas no meio externo. Além das necessidades corporais, existem os ‘‘desejos’’ ou pro- cedimentos que se sabe de experiéncias anteriores, que podem provocar sensacdes prazerosas. Aqui se incluem Os processo instintivos derivados da sexualidade e também certos prazeres aprendidos e nao diretamente relacionados com © prazer sexual (comer certo doces, mesmo sem se ter fome, por exemplo). Sintetizando, a razdo concreta se ocupa de perce- ber forma, funcao e propriedade relacionadas aos objetos do meio exterior; necessidades e desejos derivados das percepcdes do proprio corpo; tenta resolver tais neces- siades e desejos em sintonia com o meio externo obser- vado. A nao satisfacdo das necessidades (e depois também dos desejos) cria um estado de inseguranga e irritacdo que desencadeia fendmenos agressivos. Tais processos se dao também quando a satisfacdo é interrompida por qualquer razao. Em virtude da existéncia de memoria, a simples anteviséo da situacao de frustracao (nao satis- fagdo de necessidades e desejos) j4 pode provocar reacGes similares. Ja assinalei que o egocentrismo deriva inevitavel- mente do processo de apreensdo do mundo que advém da senso-percepgao direta. E se a percepgdo detecta a no- cdo de propriedade para todos os objetos do meio exte- rior, me parece Idgico supor que o egoismo (o desejo VOCE E FELIZ? 51 ir todos os objetos possiveis) é uma decorréncia val do egocentrismo em um mundo governado noglio de propriedade. E tais procedimentos sio ls nas criancas, ao menos até os 6-7 anos de | tendo o processo mental relativamente simples lar 80 que descrevi até agora. N3o existem grandes i, 8 néo ser quando necessidades (e, cada vez ‘desejos) no estejam sendo | satisfeitas, A propria de dependéncia prolongada e muito radical estimula (e, de certo modo, justifica) 0 egois- 6 claro, se torna mais exaltado nas situagdes guranga (quando as necessidades nfo esto ade- inte satisfeitas) . partir dos 6-7 anos de idade algumas criangas iM @ manifestar os primeiros sinais de um outro Mecanismo mental diferente do descrito até 10 Sendo o processo concreto de resolver neces- desejos através da interagdo com pessoas e coisas las no meio externo. Me é imposs{vel atualmente faz6es que levam algumas pessoas a transcender lo Goncreto de raciocinar e quais os fatores que com que a maioria dos seres humanos esteja sub- 0 86 @ este processo por toda a vida adulta. Nao i{vel que o encontro de um certo equilfbrio na i das necessidades seja uma pré-condicdo para ‘orle certa disponibilidade para outros eventos 0%; porém isto nao resolve o impasse uma vez @ pode saber porque algumas criancas chegam @ equilfbrio e outras nao (necessidades e desejos | intensos predisporiam ao equilibrio? Pode-se uma certa insaciabilidade biolégica? O mundo mais rico de estimulacées externas, e mais criador 0 on torna este equilibrio cada vez ficil?). © outro tipo de mecanismo psiquico corresponde tentativas de compreenséo das pessoas e do meio fi- $2 Flavio Gikovate sico, para além do processo utilitario de conhecimento das coisas com a finalidade de, através delas, conse- guir alivio para tensSes derivadas das necessidades inter- nas. Ou seja, a capacidade de se interessar por assuntos que nao tenham nenhuma utilidade imediata. Os pri- meiros sinais correspondem a frases ditas por criancas a respeito de eventuais sensagdes ou sofrimentos que outras pessoas ou animais estariam sujeitos: ‘‘coitado do cachorro! 14 fora com este frio deve estar passando mal. Seré que nao é melhor trazé-lo aqui para dentro?” Tais processos podem se estender a objetos dos jogos infantis (bonecas por exemplo). Correspondem a capa- cidade de sair de dentro de si mesmos e tentar entender como o outro estard se sentindo numa situacdo diferen- te daquela que a prépria crianca se encontra. E claro que 0 processo de entender o outro se dé por meio de lembrangas da crianca, de como ela um dia se sentiu em situagdo similar a de outra pessoa ou animal, com a qual estd tentando agora se identificar, com a fina- lidade de entender seu estado subjetivo, e sua eventual dor ou alegria. A capacidade de observar 0 mundo através dos olhos do outro, de sair de dentro de si mesmo para ten- tar perceber como 0 outro esta se sentindo numa outra situagdo 6, ao meu ver, 0 principio do processo mental a que se chama de imaginacéo. Corresponde a quebra do processo egocéntrico derivado da senso-percep¢ado imediata. E claro. que existe influéncia da senso-percep- ao uma. vez que se imagina a situac¢Zo e a dor do outro baseando-as em lembrangas que se tem de situagdes simi- lares jf vividas. E a capacidade de sair de si e observar © mundo de fora, o que vale dizer, um mundo para além do jogo da realizagao, de necessidades corpéreas. O mundo pode ser observado através de como o outro o estaria percebendo de fora, como um todo que inclui o pré- prio observador, agora observado por si mesmo. vocé € FELIZ? 53 ' & infinita a riqueza que o processo mental ganha ‘86 #0 familiarizar com este outro tipo de funcionamento, \ wapacidade de imaginar situagées significa poder ultra- | f © jogo simplério da luta pela realizagdo das ne- dads @ desejos. E claro que se pode também usar Imaginétio para, através dele, realizar desejos que a c l@ esté impedindo. Este processo é bastante dis- daquele que eu estou tentando descrever, pois 6, vez, muito simplério e pobre; apesar , COS- fer a Gnica forma de imaginar da maioria das pes- (0 que corresponde aos chamados sonhos de rea- lo de desejos). A capacidade de pensar para além i lades pessoais significa o encontro do mundo fatuidade, a verdadeira curiosidade de entender me- ¥ coisas, do saber por saber, mesmo no corres- Wilendo a nenhuma finalidade imediata. Atinge-se, | fit® cCaminho, o infinitamente mais rico mundo das ii, das abstrag6es, da criatividade. Este mundo nao WeVverna por jogos de interesses (como 6 0 caso da io do ser humano com o meio externo que o ), mas sim pelo pensamento correto, aquilo que ini de pensamento Iégico, ou o processo mental tlo qual se busca a verdade. _ Viirlas so as conseqiiéncias desta evolucio. Uma iii desperta um interesse particular. A capacidade i; obiervar o mundo também através de se imaginar ‘Wtuaglio do outro (e este processo 6 concomitante § vistio egocéntrica) modifica fundamentalmente pioldade de lutar apenas pela defesa dos interesses ls. Um exemplo esclarecedor se impde: um me- pode se sentir irritado pelo comportamento de ® (0 esta situagdo é bastante comum no periodo Hselmento da abstraggo, ou seja, no chamado perio- 6 We laténcia); isto desperta imediatamente um impul- ©) auremlvo em diregdo Aaquele que o incomodou. Vendo 54 Flévio Gikovate a situagéo apenas do ponto de vista do seu interesse egocéntrico, trataré imediatamente de executar sua agrés- sdo. Porém, se tiver desenvolvido a capacidade de ana- lisar a situago também segundo os olhos do outro, se tiver a possibilidade de imaginar a dor que a sua agréssdio provocaré no outro, imediatamente estas duas varid- veis tornardo sua agressividade bloqueada. Desenvolverd um processo mental em que tenta entender as duas par- tes envolvidas e s6 sera agressivo em muito raras ocasiGes. Apesar de que a nossa cultura costuma chamar a este tipo de menino de covarde (covarde eu entendo como sendo o que tem medo de bater — e nao de apanhar — por ser capaz de imaginar a dor que vai provocar no outro), penso que seu cornportamento traz o princi- pio daquilo que se chama de justiga: a busca de todas as varidveis’ envolvidas na situagdo, e nao apenas a visio unilateral que o egocentrismo imp3de. A nog&o do que 6 justo, nasceda quebra do processo egocéntrico de obser- var o mundo e de pensar. Deriva da capacidade de ver os dois lados de uma quest&o, as razdes de todas as pes- soas envolvidas. O verdadeiro pensamento moral deriva do mesmo processo: 0 homem deixa de se ver como especial e se vé com iguais direitos, pois ao ver o mundo de cima se reconhece apenas como mais um ser humano. Deste modo, sé esté autorizado a agir com os outros do mesmo modo que espera que ajam com ele. E este é 0 princfpio bdsico de toda a moral. Fazer.o bem e 0 mal a outra pessoa é facil de ser percebido, pois se tem a capacidade de entrar na mente do outro e saber qual @ repercussdo sobre ele da nossa conduta; tal repercus- so é similar aquela que existiria em si mesmo, se 0 pro- cesso fosse invertido. Resumindo: a raz&o abstrata est4 intimamente re- lacionada com a justiga e com o pensamento moral. Corresponde aquilo que Freud chamava de Super-Ego, voce £ FELIZ? 55 que 6 conveniente se fazer a seguinte ressalva: que nao desenvolvem adequadamente o lado tia razfo (e que so a grande maioria) aprendem is da moral apenas como um conjunto de regras Guja transgressdo implica em sangdes; apa- to, Como uM sistema repressivo incorporado l@ por medo das punigdes, um sistema muito perficial do que a incorporacéo do principio ii © pensamento moral verdadeiro. Basta que ges nas punig&es externas para que o sistema #8 8@ modifique, ajustando-se assim as mudancas “miglo social determina. Em outras palavras, o Su- ode corresponder a uma viséo superior critica 8 que devem existir nas relagdes interpessoais que se descobrem atribuindo iguais direitos 68 seres humanos envolvidos, coisa sé possivel - pereeber com uma abordagem n&o egocéntrica gio) aceitas verdadeiramente pelo individuo, ) Conjunto de regras que tém que ser seguidas “wiieaga de severas punigdes (e aqui nao existe a com- dos fenémenos envolvidos, sendo as regras in- das sem critica e sem discernimento — precon- A confusao feita a respeito destes dois processos ‘mas que sao |muito semelhantes quanto aos finais, fez com que a quebra de determinados tos — especialmente alguns relacionados com orientadoras da vida sexual — se convertesse gio do pensamento moral verdadeiro. Junto ®, a 6nfase foi dada ao pensamento concreto cla, © corpo e suas necessidades e desejos assu- a importancia maior, ao mesmo tempo que o fmamento abstrato foi desprezado e associado apenas Piweonceitos repressores da sexualidade. As conse; ie isis empobrecedoras da criatividade que daf derivam wentidas com grande clareza a partir dos anos 50. 56 Flavio Gikovate O desenvolvimento da ciéncia ganhou 0 seu apogeu (a ciéncia 6 o produto superior da razdo concreta), mas as artes, a filosofia e mesmo a psicologia tém tendido a estagnagao. 4 Espero estar sendo claro a respeito das graves con- seqiiéncias dos equivocos cometidos. O desenvolvimento das ciéncias em geral, e da fisiologia em particular, cria- ram um compromisso sério com a nogdo simpléria de que o processo mental deve ser governado por mecanis- mos do tipo est/mulo-resposta, descobertos no estudo da neuro-fisiologia animal. Deriva daf a negac&o de todo © processo néo relacionado diretamente com a senso- percep¢do; o cérebro humano é entendido segundo as leis da cibernética. O mundo das idéias e dos ideais deve ceder lugar ao homem-rob6. A alma nao existe; 0 pensa- mento religioso perde terreno. O racionalismo nao tem mais sentido, pois 0 homem 6 governado por processos instintivos e emocionais inconscientes. A moral é um conjunto de preconceitos a servico de organizar a conduta sexual humana dentro de regras aceitéveis por uma estrutura social, O mundo egocén- trico 6 um mundo de verdades relativas, em que tudo passa a depender do Angulo em que se observa um de- terminado fenémeno. O certo e o errado séo relativos e cada um decide como vai ver as coisas; ndo ha nada mais de sagrado, E a criatividade humana, como expli- cé-la? Bem, ainda encontraremos os processos que a definem! E o solo fértil para o sofisma; a vida se resume num jogo de interesses. O novo Deus é 0 dinheiro, a via de acesso a tudo. A maior virtude é a esperteza, ou a capacidade de conseguir tudo como mfnimo de esforco, mesmo que através de procedimentos prejudiciais a ter- cerios; 6 0 salve-se quem puder. As relagdes humanas sé0 desconfiadas, e com raziio. A sexualidade é exaltada e enaltecida, pois faz parte dos “desejos” do corpo e voce E FELIZ? 57 pte esteve sob severa vigiléncia. O amor, a amizade, IigagSes humanas profundas e desinteressadas? Isto | existe, 6 invengdo dos poetas romanticos para iludir O amor é€ apenas uma expressao do instinto No meio deste caos, me surge cada vez mais forte Honvicgio de que as pessoas inteligentes sdo funda- lalmente governadas pelas idéias. O que dé condicdes uilfbrio e motivacdo para seguir vivendo é a capa- de acreditar num conjunto de idéias e trabalhar Oonseguir realizd-las. A satisfagao de necessidades jo8 corpdreos é insuficiente, e se torna rapidamen- diosa. Mas como compor idéias e ideais neste mundo voz mais pratico e que garante que elas nao exis- ‘OU que nao tem importdncia ou utilidade alguma? § lidar com gratuidades se tudo tem que ter uma de? Fungo passa a ser quase sin6nimo de utili-. Nilo 6 facil tentar revalidar o mundo da abstra- uiNana num momento como este. Nao é facil tentar Wminho sem parecer ridiculo e antiqiiado. Porém que é@ mais do que oportuno este procedimento, # que jd sdo bastante claras as conseqiiéncias deste rio (e simplista) de se entender pero ter sido suficientemente claro no sentido if que o nosso século faz o elogio da raz&o con- la ciéncia que é 0 seu produtor maior, e do nar- ) que 6 © tipo psicolégico que a ela corresponde. arigio do narcisismo fica evidente 0 compromisso pessoas (hoje a maioria) apenas com o mundo © @ com a relatividade dos conceitos da moral justipa que vém justificando cada vez maiories ar- iedacos. Para eles, as regras da moral, que nunca vordadeiramente entendidas em profundidade, /errepondiam @ um conjunto de regras a serem seguidas, 58 Flavio Gikovate Por medo das represdlias. A cultura permissiva que vi- vernos faz com que tais tipos manifestem cada vez mais claramente a imoralidade que os governa e se tornem cada vez mais destrutivos. A raz&o concreta se desenvolve em todas as pessoas (ao menos naquelas que nao tenham problemas com a senso-percep¢ao) desde o nascimento. Num mundo complexo e cheio de estimulos externos como o que vivemos, ela tem que ser exercida continuamente ao longo da vida adulta. A razdo abstrata se desenvolve em uma pequena porcentagem de seres:humanos, a par- tir dos 6-7 anos de idade (desconheco as razdes que determina tal fato), sob a forma de uma verdadeira preo- cupacdo com os outros seres. O seu desenvolvimento n&o exclui o funcionamento do lado concreto, prdtico, do processo mental, se bem que existe certa tendéncia para a diminuigéo de sua importancia. Desta maneira, podemos distinguir dois tipos de adultos: os compro- metidos apenas com a razdo concreta = egocéntricos, egofstas, arbitrdrios, narcisistas como estéo sendo chama- dos aqui — e os tipos mistos, comprometidos tanto com a 'razo concreta como com a abstrata — nfo egocén- tricos, preocupados com a justiga e a moral, generosos. Os tipos exclusivamente comprometidos com a abstra- g4o sGo hoje praticamente inexistentes, mas podemos relaciond-los com certas figuras da historia das religides (santos) e€ do pensamento humano (fildsofos, poetas, miusicos, etc). O narcisista, por ser 0 produto de uma razdo que se alimenta exclusivamente da senso-percepeao, é sempre muito influenciado pelo meio social e época em que vive. Sdo criaturas muito parecidas entre si, e todas se assemelham ao modelo proposto pelo meio. E a con- trapartida psicoldgica da estrutura social e econédmica em que se vive. O tipo de razao mista (concreta e abs- VOCE E FELIZ? 59 ) & varldvel, pois as proporgSes em que a abstracdo NO conjunto do processo sio muito variadas, Quanto of @ influéncia do mundo das idéias, menor seré prometimento com a moda tfpica do tempo e iM que se viver, apesar de que alguma influéncia oxistird, A raz&o concreta é historicamente de- |. A abstrata é a histérica e define os aspectos i humano que sempre apareceram, quaisquer que i) Ws condigSes em que vivem; é o que aproxima Hern do pensamento construido em qualquer época quer cultura. E o que faz com que uma misica local quaiquer seja capaz de emocionar a todos | problema esta apenas esbocado. Muitas sfo as @ dificuldades. O principal problema é o de se | ior que algumas pessoas desenvolvem o processo if abstrato e a maioria 6 incapaz disto. E nao ue isto seja fun¢do direta da inteligéncia, pois | Gonhecido pessoas muito bem dotadas e gover- Bpenas pela raz concreta. Ao mesmo tempo l@ fica patente a limitaggo determinada pela visio itrica do mundo, as pessoas que assim procedem hte desejam de fato se modificar. A postura opor- | @ egofsta que deriva do egocentrismo costuma ito bem gratificada na vida prética, o que fun- fomo um reforgo deste tipo de processo mental, | (jtatificagdo obtida é a do tipo imediato, como con- ‘A necessidades e desejos do corpo, A capacidade orificar 0 hoje, em fungao de recompensas maiores ils consistentes no futuro, é quase que inexistente. Waisténcia, que em parte deriva da convicc3o de 8 gratificagSes a longo prazo s&o mais sdlidas, é Istente. As metas perseguidas sdo apenas as glérias lentdneas e altamente valorizadas pelo meio (bele- fortuna e fama). A razao concreta (e sua dependén- | da senso-percepgao) levam o individuo a entender 60 Flavio Gikovate a si mesmo e a vida apenas como um processo de inter- relacdo de si com o meio externo, Nao hd introspeccdo, vida interior. E claro que dai deriva uma indiscuttvel importancia da aparéncia fisica; e uma grande preocu- pagdo com as aparéncias em geral. A criatura tem que estar continuamente interagindo com o meio, sendo incapaz de se deter longamente em devaneios e sonhos. Tem que estar continuamente em atividade, conversando, assistindo televiso, lendo sobre algum assunto excitante por si. Se esta interagéo com outras Pessoas € coisas € bem sucedida (o narcisista 6, em geral, uma pessoa expansiva, brincalhona e falante), se compée um vo- lume razodvel de satisfagdes que fazem com que a si- tuagdo tenda a se cristalizar. A arbitrariedade moral, que faz com que estas pes- soas se sintam com direitos especiais e os exijam, costuma ser, aO menos temporariamente, bem sucedida. Tais pessoas conseguem, desde a infancia, um volume razod- vel de vantagens e uma indiscutivel superioridade pra- tica, especialmente’ diante das pessoas de pensamento misto, comprometidas com a justica e cuja tendéncia costuma ser oposta, isto é, para 0 comportamento gene- roso. Ora, se 0 procedimento egocéntrico é bem recom- pensado e os “direitos especiais’ exigidos sio satisfei- tos, se cria um sistema de reforco de tal conduta que a partir daf tenderd a ser perpetuar. Na medida em que uma pessoa é capaz de se colocar no lugar de outras, imaginar sua dor, perde muito em Capacidade agressiva. Se torna, ao menos para fins ime- ditos, um tipo fraco. A preocupagdo em agradar 0 outro se instala (ndo 0 agradar oportunista, também presente no narcisista) e se descobre uma enorme alegria e prazer em dar; dar ao outro, coisas e atencSes que poderiam ser para si mesmo. Se reconhece inclusive um prazer maior no dar do que no receber. Reduzido na sua agres- sividade e tendo descoberto o prazer de dar, se torna VOCE E FELIZ? 61 fiicil de tipos narcisistas, que, gracas a sua indis- vel esperteza, logo percebem o modo mais eficaz ( tirar © maior proveito. O processo costuma ' Sofisticadas chantagens emocionais em que ‘oMO o narcisista é carente e necessitado, como ‘traumatizado por sua vida passada e como ele, fraco, tem que ter tratamento especial e regalias ) 0 tipo. Em virtude do seu “’temperamento explo- Muito sensivel’’ tem que ser tratado com muito , pois sendo logo se exalta (e os tipos mais gene- dio mal no terreno da agressividade!). Com mmbém na vida adulta, existe uma tendéncia a # @ eficiéncia no modo de ser do narcisista, que iio terd para querer se modificar. agora falamos do aspecto pratico e das recom- fdeeis que o narcisista obtém. Deveria ser, por- ma criatura feliz e realizada. Em geral consegue ‘wmado, satisfeito em muitas de suas necessidades. i) dos Gritérios que me parece importante para “me- bem estar intimo seria a auséncia de fortes sen- | de inveja. E a prdtica mostra que o narcisista |po de pessoa profundamente contaminada pela ‘fe jrrita brutalmente com o sucesso do outro lo ser bastante prestativo na hora de desgracas, nifo quer dizer nada). Admira profundamente ‘propriedade, apenas néo realizada pela falta de Ou de perseveranga; porém isto nao é verda- ‘ma vez que as pessoas realmente criativas sdo ‘Muito persistentes (as vezes até exageradamente!), Pelo fato de estarem sempre recebendo mais do Jando, nfio podem deixar de reconhecer a existén- lm forga humana maior nas pessoas generosas: Jono tem sobrando ‘e pode dar; o narcisista tem 10 @ precisa receber! E apesar de bem sucedido fetirar do bolo uma fatia maior para si, ndo pode

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