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Introdução

Há cerca de quatro anos, quando a internet começou a ser comercialmente explorada


no Brasil, eu tive meu primeiro contato com a rede, sem saber o quanto ela modificaria a
minha vida.
Na época, aos 30 anos, eu morava na zona sul de São Paulo. Era casada e tinha
absolutamente tudo o que eu poderia querer. Seria feliz, se não houvesse uma grande
frustração dentro de mim: queria escrever.
Filha única, de uma família de classe média alta e descendente de italianos, tive uma
educação extremamente rígida. Quando chegou o momento de optar por uma profissão,
tomei um caminho completamente diferente. Formei-me em Educação Física. Achava que,
diante da pouca vivência que eu tinha, não havia nada de novo que eu pudesse falar às
pessoas. Escrever sobre o quê? Fui deixando essa idéia para trás, sufocando a minha
vontade.
Quando descobri a internet, imediatamente identifiquei o seu potencial. Vi, ali, um
novo universo surgindo. Apaixonada por informática e tecnologia, acompanhava a rede de
longe, através de publicações e livros, e via o quanto ela estava modificando o mundo.
Pensando em conhecer a fundo esse universo e, posteriormente realizar o meu sonho
de escrever, busquei por grupos de pesquisas sobre internet, em São Paulo. Qual não foi a
minha surpresa ao descobrir que ainda não havia tais grupos! A saída foi partir para uma
pesquisa empírica.
Durante algum tempo mergulhei na rede, buscando traçar um esboço para definir a
minha linha de trabalho. Foram as salas de bate-papo - os chats – que me fascinaram pela
riqueza de elementos. A partir daí, iniciei meus primeiros contatos, descobri as principais
regras e descobri tendências, características, perfis. Logo, conhecia bem aquele ambiente.
Inventei personagens, conversei com muita gente, diverti-me muito. Mas, aprendi também.
Na maioria das vezes, identificava-me como pesquisadora e recebia a ajuda espontânea de
pessoas que me contavam suas experiências nos chats (ou a partir deles), revelando um
universo com características bem próprias. Essas incursões na rede, renderam-me um
extenso banco de dados, com as mais diferentes histórias.
O que eu não esperava era que, em meio a esse trabalho, eu própria fosse envolver-
me em enredos de sedução virtual. Se fosse hoje, com o conhecimento adquirido durante
todo esse tempo, eu saberia que, naquele momento, eu estava mesmo vulnerável. Não
estava feliz com o meu casamento e queria dar uma guinada profissional. Queria recomeçar
a minha vida de outro jeito, mas também tinha medo de jogar tudo para o alto. Lembra-se
da minha família? Educaram-me para uma vida, tal qual descrita naquela música da Paula
Toller, com “trabalho, dinheiro, família, filhos e tal...”. J
A rede me deu outra visão do mundo, ao mesmo tempo em que me abriu para a vida
e para novas experiências. Minhas duas histórias de sedução virtual que passaram para a
vida real deram origem ao meu primeiro livro, “Sedução na Internet”.
Hoje, passados quatro anos, o intercâmbio com estudiosos possibilita que eu embase
cientificamente meus conhecimentos. Ao mesmo tempo, há uma boa variedade de material
sobre a internet e o que ela vem mudando em nossas vidas, sob os mais variados aspectos.
Foi muito importante, nesse segundo livro, a ajuda de todos os repórteres com os
quais eu tive contato, desde o lançamento do primeiro , em agosto de 1998. Através das
discussões e das entrevistas que eu venho dando ao longo desse tempo, fui identificando as
principais dúvidas das pessoas em relação à internet e busquei respondê-las de forma direta

1
e objetiva. Também os usuários de internet e leitores que lotam minha caixa postal
diariamente, têm papel importante neste novo romance, uma vez que aquelas situações que
mais se repetem foram identificadas e discutidas aqui, com a intenção de mostrar que o que
parece estranho para uma pessoa, está acontecendo com freqüência com muitas outras.
“O Amor na Era da Internet”, mostra que é possível e confortável viver dentro
daquilo que Bill Gates define como “estilo de vida web”, em seu livro “A Empresa na
Velocidade do Pensamento”1 . Ao mesmo tempo, proponho uma nova visão acerca dos
relacionamentos, que julgo mais coerente com o novo século e mais adequada às mudanças
que a tecnologia vem fazendo em nossas vidas.
Espero colaborar com o traçado desse novo universo e para que as pessoas
incorporem cada vez mais a internet às suas vidas. É preciso que elas percam o “medo” da
rede, que usufruam o que ela tem de melhor e, de forma natural, sem censuras, sem
radicalismos, sem traumas, cortem pela raiz o que ela tem de ruim.
Não tenho a pretensão de invadir áreas da Psicologia, da Sociologia ou da
Antropologia. Apresento, em meu trabalho, conclusões pessoais. Muitas dessas conclusões
surgiram do contato com estudiosos que pesquisam a internet nas mais diversas áreas. Mas,
acho importante frisar que, antes de tudo, sou uma experiente usuária da rede, que pesquisa
sobre o assunto por achá-lo fascinante. E que tira, das muitas histórias que conhece nessa
pesquisa, lições de vida.
Hoje, além de escrever para revistas, jornais e sites de conteúdo, mantenho uma
coluna, às quintas-feiras, no programa Hipermídia, na rádio CBN, em cadeia nacional.

Agradecimentos

Para Gabriel Priolli, cujo estímulo impulsionou-me a correr atrás daquele que eu acreditava
ser o meu caminho profissional.

Para Simone Jaeger, que, com paciência, ensinou-me muita, muita coisa nesse pouco
convívio via e-mail.

Para Marcos Emílio Gomes que, certo dia, abriu-me uma porta profissional, com toda a sua
simpatia, e me encheu de confiança.

Prezado (a) leitor (a),


Nas representações de
chats e e-mails foi usada
linguagem coloquial,
visando dar maior
autenticidade ao texto.

1
Editora Cia das Letras, 1999

2
Capítulo I

Quando os fogos explodiram no céu de Copacabana, já era o ano 2001 e a alegria se


espalhou por toda a orla. Giulia olhou para cima, maravilhada com aquele show de luzes
cintilantes, que desenhavam figuras na clara noite de reveillon. No mar, de um navio
estrategicamente colocado, partiam mais fogos coloridos, saudando o novo ano. O primeiro
ano de um novo século.
Os fogos se intensificaram e desenhavam, agora, cascatas no céu. Por um instante,
surpreendida pela beleza dos fogos de cor azul, ela sentiu-se bem no meio de uma
constelação, pairando no Universo. Uma súbita paz tomou conta dela. Aqueles fogos,
naquela cor, mais pareciam uma chuva de estrelas caindo sobre a multidão reunida ali.
A festa de Ano Novo em Copacabana era realmente maravilhosa. Dias antes de 31
de dezembro, o mar entrava em festa, recebendo oferendas e orações. As mais diferentes
crenças, uma enorme variedade de culturas e religiões convivia pacificamente na areia da
praia. A Bíblia da senhora católica , a oferenda da velha mãe-de-santo, as velas acesas pelas
crianças em buracos cavados na areia. Havia um ar de misticismo naqueles dias, tomando
conta das pessoas. E elas pareciam mais solidárias, mais felizes.
Os turistas traziam um ar de novidade para os velhos prédios do bairro. Aquelas
ruas conhecidas e queridas estavam agora tomadas por diferentes idiomas, tipos físicos
variados, modas mais ainda. Que ninguém critique a alegria da camisa florida do turista,
muito menos, a excentricidade do turbante do velho senhor. Misturar a sua cultura à nossa
é, antes de tudo, sinal de respeito.
E nesse clima de expectativa e esperança, as pessoas reuniam-se numa enorme
confraternização na praia à noite. Era o quarto ano que Giulia passava o reveillon alí. Em
outros anos, vira a festa carioca pela televisão. Mas, nada comparava-se à emoção de estar
naquela praia, naquele momento.
A variedade de formas desenhadas no céu parecia não ter fim. Por todos os lados
ouviam-se estouros de garrafas de champagne. Pessoas de diferentes idiomas saudavam-se,
entendendo-se completamente pelo olhar, pelo abraço, pela alegria. No meio da festa,
Maurício Kubrusly transmitia aquela emoção, pela TV, para todo o país.
Por fim, restava a tradicional cascata do hotel do Leme. Ela olhou fixamente para
aquelas luzinhas douradas caindo do topo do edifício. Era como se fossem gotas de ouro
abençoando a cidade e todo aquele povo em festa.
Sentiu o corpo de Felipe junto ao seu. Ele estava em pé, atrás dela e a envolvia em
um abraço forte, apertado, carinhoso.
Chorou de emoção. Estava feliz. Nem sempre foi assim.
O século XXI chega em um momento de profunda e rápida transformação. A
tecnologia, aliada à ciência, modifica nossas vidas e nossas perspectivas a todo instante.
Mais do que nunca, é preciso estar atento e mudar com o mundo. É hora de adequar nossas
idéias, nossos conceitos e nosso comportamento à nova realidade que se apresenta.

3
Capítulo II

Mais de um ano antes, Giulia vivia com Felipe em Parati, uma pequena cidade no
litoral carioca, e voltavam ao Rio sempre que sentiam necessidade. Tinham um esquema de
vida bastante privilegiado. O contato com a natureza era constante, não só em função do
lugar onde moravam, mas também porque a tecnologia permitia-lhes muito tempo livre.
Ambos eram apaixonados pela sua profissão e utilizavam todas as ferramentas tecnológicas
ao seu alcance para aumentar a produtividade e dirigir sua vida profissional dalí mesmo, de
sua casa. Não perdiam horas em trânsito, não se estressavam com horário, trabalhavam com
disposição. Disciplinados, faziam suas horas de trabalho render excelentes resultados .
Provavelmente por isso, eram saudáveis e estavam em plena forma física. Ela
olhava para Felipe e o via mais bonito a cada dia. Desde que a conhecera, ele incorporara a
musculação aos esportes que praticava e estava visivelmente mais forte, mais definido. Não
aparentava ter quase quarenta anos. Sua pele bronzeada pelo constante sol de Parati
adquirira um tom ainda mais dourado que contrastava com os seus cabelos castanhos
claros. Seus olhos estavam mais expressivos do que nunca, denunciando toda a sua
vitalidade.
Ela, aos trinta e poucos anos, também era extremamente cuidadosa com seu corpo e
aparentava muito menos. Estava bem diferente do dia que trocara São Paulo pelo Rio de
Janeiro, para ficar perto dele. Hoje, muito mais morena., era também mais saudável.
Ganhara alguns quilos e os cabelos, pretos, eram agora longos.
A internet 2 fazia parte da vida deles há muito tempo e possibilitou-lhes o privilégio
de morarem em um lugar maravilhoso, mas distante de um grande centro urbano, sem
perder o contato com o mundo.
Tudo o que podiam, faziam pela rede. Não ficavam horas em filas de bancos, pois
executavam todas as transações financeiras pela rede. Liam jornais e revistas na internet, de
modo que podiam obter um número muito maior de informações . Aproveitavam as idas ao
Rio para pedir as compras de supermercado pela rede e as recebiam no apartamento que
mantinham naquela cidade. Se quisessem um CD, pediam pela internet, ou simplesmente
baixavam um arquivo MP3, entre os muitos disponíveis. Nem mesmo o aniversário de um
amigo ou parente os preocupava. Havia várias floriculturas e lojas de café-da-manhã que
aceitavam encomendas pela rede. Assim, sempre dispunham de uma simpática lembrança, a
qualquer momento.
Felipe descobrira ultimamente os sites3 de ensino à distância4 . Passava horas
estudando as mais modernas linguagens de programação e as mais recentes versões de
softwares5 , em um site de uma universidade americana. Contagiada pelo entusiasmo dele,
logo Giulia passou a acompanhá-lo nessas sessões de estudos via internet. Além disso, ela
ainda aprimorava seu inglês, nos cursos de línguas que as universidades brasileiras estavam
disponibilizando na rede.

2
Você escreve internet ou Internet? On-line ou online? Leia “Quando o Chão se Move” – Bruno Rodrigues -
WebWorld
3
Site é um servidor ou uma página da Internet que oferece serviços aos usuários
4
Sistema educacional no qual o professor e os estudantes estão separados no tempo e no espaço e usam
tecnologias como a Internet para se comunicar
5
Software é o nome dado ao programa de computador

4
E havia as salas de bate-papo - os chats . Giulia ainda lembrava-se da sensação de
entrar pela primeira vez em um chat. Foi logo que a internet começou a ser comercialmente
explorada no Brasil, no fim de 1996. Apaixonada por informática, o computador entrou
muito antes em sua casa, como ferramenta de trabalho e de entretenimento. Mas, a rede a
seduziu de imediato e estreitou seu relacionamento com a máquina. A idéia de estar
conectada ao mundo e de poder ir aonde quisesse com um simples click do mouse a
fascinava. No início, nem tinha muita consciência da extensão daquele novo meio de
comunicação. Rapidamente, contudo, movida por uma imensa curiosidade, foi percebendo
que a internet tinha o tamanho do mundo. E que o mundo era muito maior do que ela estava
acostumada a ver.
Chegar ao canal de bate-papo foi conseqüência natural dessa exploração que ela
vinha fazendo da rede. Nos primeiros dias, manteve-se conectada quase que
ininterruptamente, acessando canal por canal. Queria conhecer tudo, todos os recursos,
todas as possibilidades daquele novo universo, até que descobriu os chats. Se hoje para ela
era a coisa mais banal do mundo entrar em uma sala e ficar conversando com as pessoas, a
sensação que ela teve quando mandou sua primeira mensagem e recebeu resposta imediata
foi muito diferente. Não dava para imaginar que aquilo fosse verdade, que do outro lado da
linha alguém pudesse comunicar-se com ela em tempo real. Estabelecer contato tão
próximo com uma pessoa que ela não conhecia, que ela sequer sabia que aparência tinha,
era muito estranho. Pouco tempo depois, descobrir novos mundos, novas formas de pensar,
falar com pessoas que moram do outro lado do planeta ou na outra ponta do país, sem sair
do seu quarto, tornou-se um enorme prazer. No início, contudo, por ignorar como era o
ambiente virtual, o medo era o sentimento que predominava toda vez que ela se via
conectada. Receava tudo, desde ver seus dados pessoais descobertos até, muito pior que
isso, ver-se identificada como a autora das fantasias que vivia navegando pelos chats.
Hoje, ela divertia-se ao lembrar disso. Porém, na época, aquilo mexeu com Giulia
de tal forma que ela não pode deixar de imaginar como deve ter sido, tempos atrás, quando
os primeiros telefones foram instalados nas casas.
- Certamente, ela pensou, as pessoas tiveram essa mesma sensação. Devem ter
estranhado aquela invasão de privacidade, até se darem conta da sua importância e o
incorporaram à suas vidas, com naturalidade.

A internet entrou na vida de Felipe, mais ou menos na mesma época, de modo


natural. Autodidata e sempre atento a todas as novidades na área tecnológica, começou a
navegar, muito mais interessado na parte estrutural da rede. Logo, estava fascinado pela
internet. Para alguém como ele, sempre em busca de conhecer mais e mais, sobre variados
assuntos, nada poderia ser melhor. Na sua visão, era muito mais do que um meio de
comunicação. Encontrava nela a informação, sob formas diversas: conhecimento, prazer,
estímulo e fantasia. Comparava a sua criação à do carro. Se este deu liberdade ao corpo, de
locomover-se e estar onde quisesse, a internet libertou a mente humana da mesma forma.
Ele a integrou ao seu cotidiano e passou a utilizar muitos de seus recursos. Gostava
dos chats, porque os considerava uma forma bastante interessante e divertida de conhecer
pessoas. Enquanto muitos ainda estranhavam o bate-papo pelo computador, ele olhava para
o futuro e percebia nitidamente que aquela seria uma forma de relacionamento humano que
conquistaria o mundo. Quando não estava com vontade de sair com os amigos ou com a
namorada, ele passava horas conversando nas salas de bate-papo, sem ter que enfrentar filas
em estacionamentos, sem precisar suportar lugares lotados, protegido da violência urbana..

5
Percebeu rapidamente que as salas de bate-papo, como qualquer forma de convívio
social, possuem regras. E que nem todas as regras estão nos manuais de segurança dos
provedores. Facilmente assimilou essa nova forma de relacionar-se. Logo, estava
completamente à vontade naquele ambiente.
Quando terminou um longo namoro, ainda sem muita vontade de misturar-se às
pessoas, foi na rede que Felipe encontrou um modo de não se sentir sozinho. Em cada sala,
podia conversar com muitas pessoas diferentes e ir escolhendo as mais interessantes, sem
trabalho, sem cobranças, sem grandes compromissos.
A primeira coisa que aprendeu foi que, tal qual na vida real, não se pode confiar em
tudo o que lhe diziam naquelas conversas online. Nas primeiras vezes em que saiu com
pessoas que conheceu na internet, teve algumas surpresas nada agradáveis.
Hoje ele achava graça quando lembrava o dia em que foi, entusiasmado, conhecer
uma garota de 27 anos, que morava na Lagoa. Ela lhe mandara uma foto muito bonita.
Morena, tinha olhos lindos e seu cabelo era longo, liso, do jeito que ele gostava. Não
acreditou quando a viu com os cabelos curtos, rentes à nuca, e muitos quilos mais gorda
que na foto. Nem parecia a mesma pessoa. Pior que isso, ela insistia em dizer que cortara os
cabelos há alguns dias e que engordara “no final de semana”.
O ruim dessa história foi sentir-se enganado. Se ele passava horas selecionando
pessoas que atendessem aos seus pré-requisitos, não era justo ela ter mentido daquela
forma. Ele não ignorava que o anonimato que o computador propicia faz com que as
pessoas sintam-se seguras e ousem coisas que não fariam na vida real. Mas, ela mentiu
deliberadamente, ao assumir uma imagem que não correspondia mais à realidade. A foto
que ela lhe mandara era, certamente, bem antiga. Ela havia criado uma armadilha,
aproveitando-se das características daquele meio de comunicação. Certamente imaginou
que o envolveria muito antes dele dar-se conta de que ela não mais correspondia àquela
imagem agradável da foto. Ledo engano. O que ela fez foi criar uma fantasia e frustrá-la a
seguir. Ambos perderam tempo e a oportunidade, talvez, de tornarem-se bons amigos.
Depois disso, ele começou a tomar mais cuidado na rede. Sem censura, sem limites, sem
repressões, muitas pessoas assumem personagens e contam histórias fictícias de suas vidas.
Muitas são, na vida virtual, o que não podem ou não conseguem ser na vida real.
Experimentam comportamentos diversos, emitem opiniões que nunca ousariam, inventam
afinidades que não existem. O problema começa quando elas fazem dessas fantasias a sua
realidade perante a outra pessoa e a envolve nessa mentira. A tal garota aprendeu da pior
forma possível que é um erro muito grande acreditar que, nas salas de bate-papo, tem-se
total liberdade, inclusive para mentir. A não ser que se pretenda passar o resto da vida no
plano virtual. Ele nunca mais a procurou.
Percebendo que mentiras eram comuns nos bate-papos virtuais, ele começou a se
precaver. Muitas vezes, repetia a mesma pergunta, com um espaço de tempo, de formas
diferentes. Ou então, trocava algumas frases pelo chat e, quando se interessava pela pessoa,
levava a conversa para o telefone. Esse aparelho, tão familiar, é muito útil nessas horas. As
pessoas, ficam mais desarmadas e têm menos tempo para elaborar as respostas. E nunca,
nunca mesmo, ele esperava tempo demais para encontrar pessoalmente quem chamava a
sua atenção na internet.
Paquerar, contudo, não era o único interesse de Felipe na rede. Assim, fez grandes
amizades alí e, através delas, conhecia realidades distintas da sua. Eram pessoas de outros
estados, pessoas muito mais novas e com idéias completamente diferentes. Podia falar dos
mais variados assuntos, buscando as salas por interesse, e exercitar o inglês e o francês nas

6
salas por idiomas. Divertia-se, enfim, e descobria novas formas de ver o mundo, sem sair
de casa. E, em tempos de crise, gastando pouco dinheiro.
Foi na internet que ele conheceu Giulia. Ela, morando em São Paulo e ele no Rio,
foram pegos de surpresa certa madrugada em um chat. Começaram brincando e, quando
perceberam, havia amanhecido. Ele quis ouvir a voz dela. Ela quis que ele ligasse. E foram
mais horas ao telefone, até que eles fossem dormir, com o sol no meio do céu.
Aquela paulista brincalhona, com um nick instigante, chamara a sua atenção. Nunca,
contudo, imaginou, por um só momento, que fossem viver uma história. A distância que os
separava, para ele, era um empecilho. Mas, as coisas foram acontecendo e ele não lutou
contra nada.
Quinze dias mais tarde, ela estava indo conhecê-lo. A atração foi imediata, foi amor
à primeira vista.
- Amor à primeira teclada – brincavam.

No início do namoro, Giulia passava três ou quatro dias no Rio e voltava para casa.
Logo, passava mais tempo nessa cidade, na casa dele, do que em sua própria casa. Fizeram
planos e concretizaram-nos, numa rapidez que assustou suas famílias e seus amigos. Para
eles, acostumados à velocidade da rede, onde tudo é imediato, não havia nada de anormal.
Então, ela mudou-se de vez para perto de Felipe. Foram morar cercados pela
natureza e servidos pela tecnologia, fazendo uso dela para manter-se no mercado de
trabalho. Ambos trabalhavam com alta tecnologia, de modo que montaram uma moderna
estrutura de comunicação. Dessa forma, trabalhavam em casa e enviavam o que produziam
pela rede. O resto do tempo, dedicavam às coisas que mais gostavam de fazer. Esportes,
caminhadas pela areia, passeios de barco ou de moto, longas tardes de estudos ou,
simplesmente, não fazer nada. Apostavam que, em pouco tempo, a exemplo do que
acontece nos Estados Unidos, as empresas brasileiras despertariam para os benefícios de
manter seus funcionários trabalhando em casa, colaborando para melhorar a qualidade de
vida das pessoas. Além disso, novas relações de trabalho vinham se estabelecendo, com a
facilidade de comunicação proporcionada pela internet. Cada vez mais, a terceirização dos
serviços propiciava oportunidades de trabalho onde o que interessava era a capacidade do
profissional e não a sua idade, aparência ou modo como se vestia. Acreditavam que, em um
futuro próximo, haveria oportunidades para quem realmente detivesse o conhecimento.
Previam um futuro onde sequer haveria a obrigatoriedade de se viver nas grandes cidades,
tendo que se sujeitar a seus problemas e a sua violência e muitas outras pessoas poderiam
desfrutar do que eles, naquele momento, consideravam um privilégio As barreiras
geográficas deixariam de existir, ampliando o mercado de trabalho de forma monstruosa6 .
Para as empresas isso significaria redução de custos e aumento da produtividade. Com a
privatização das companhias telefônicas e a transmissão de dados através de outros meios, a
internet estava cada vez mais rápida, facilitando a comunicação. Além disso, proliferavam
no país os provedores gratuitos.
Giulia e Felipe mantinham um apartamento no Rio de Janeiro e iam para lá sempre
que sentiam saudades do ritmo da grande cidade. Então, passavam dias indo aos shoppings,
freqüentando os restaurantes que gostavam, saindo para dançar, assistindo a shows e peças
de teatro, visitando os amigos. Depois de um tempo, voltavam para casa, morrendo de
saudades dos seus cães, e retomavam sua calma rotina. Gostavam das mesmas coisas,

6
Bill Gates em “A Empresa na velocidade do Pensamento”- Companhia das Letras - 1999

7
tinham as mesmas vontades e os mesmos sonhos. Eram amigos em todas as horas, acima de
qualquer coisa. Mas, entre eles, havia também um forte desejo, que transformava seus
momentos de amor em verdadeiros rituais. O sexo, para eles, ia muito além do físico. Havia
uma intensa troca de energia, como se eles fossem uma só alma, forte, feliz, luminosa.
Ambos eram pessoas em busca de crescimento espiritual. Muito mais adiantado nessa
busca, Felipe ensinava Giulia, mostrando-lhe os caminhos que já havia percorrido e
dividindo com ela suas reflexões sobre a vida e sobre o Universo.
Cada um tinha seu próprio computador e sua própria conexão à internet, de modo
que podiam navegar quando bem entendessem. Um não tinha acesso à caixa postal do
outro, o que preservava a privacidade de ambos. Sabiam que podiam viver no mundo
virtual sem deixar que este se misturasse ao real, se quisessem. Eles queriam.
Muitas foram as vezes em que ficavam horas teclando7 , cada um em seu
computador, com outras pessoas. Isso, para seus amigos parecia estranho, mas, para eles
tinha uma explicação muito normal. Enxergavam perfeitamente que hoje, com a vida que se
leva nas grandes cidades, com as preocupações de sobrevivência em um mundo em
constante evolução, nosso núcleo familiar é muito menor. Nosso círculo de amigos, muitas
vezes, confunde-se com nosso ambiente de trabalho e a competitividade da vida moderna
tornou as pessoas mais individualistas, mais voltadas para si e para as suas metas. Essa
estrutura, completamente diferente das nossas raízes, onde vivíamos em tribos, organizados
em grandes grupos familiares, acaba gerando uma carência enorme de estar com outras
pessoas. Por vezes, jogamos toda essa carência em uma só pessoa e destruímos um
relacionamento que poderia ser maravilhoso. O chat é uma forma muito prática e imediata
de suprir essa carência. Ali, sempre há alguém disposto a nos ouvir, a ser nosso amigo, a
nos fazer companhia, mesmo que por alguns minutos. Muitas vezes, descobrimos que nosso
grande problema não é o maior de todos, nem mesmo o mais triste.
Giulia gostava de conversar com as pessoas nas salas de bate-papo. Nem sempre
dizia que seu coração estava completamente ocupado, pois isso poderia condená-la ao
isolamento ou atrair pessoas com outros fins. Nas poucas vezes em que tentou dizer que
vivia com Felipe, logo no início de uma conversa, a resposta vinha em forma de propostas
nada decentes. Invariavelmente, achavam que ela ali estava em busca de aventuras. Logo
descobriu o porquê disso. Pessoas casadas, em busca de amantes na rede, eram cada vez
mais comuns. Sem o risco de expor-se e sem muito trabalho, pessoas insatisfeitas com seus
casamentos podiam facilmente achar ali quem lhes suprisse as necessidades.
Isso a preocupou, quando Felipe começou a ficar mais tempo conectado do que ela.
Então, eles tiveram um problema.

Capítulo III

Houve uma época em que ele começou a inquietar-se. Era fim do ano de 1999 e eles
foram passar as festas de fim de ano no Rio. Cada vez que iam para a capital carioca,
parecia que mais famílias estavam morando nas ruas. O país, depois de algum tempo de
estabilidade, passava por um novo momento de insegurança e as pessoas já não estavam
mais acreditando no governo reeleito no ano anterior. Isso o entristecia.
E não era só isso. Embora conversassem muito, ela não prestou atenção quando ele
começou a dar sinais de que a sua vida não caminhava como ele planejara.

7
O verbo “teclar”, no vocabulário da internet, é usado no sentido de “estar conversando com”.

8
Giulia suspeitava que aquela era apenas mais uma fase de reflexão na vida dele.
Felipe amava a vida com tal intensidade que não cessava de buscar respostas. Como não
existem respostas objetivas para o que é subjetivo, ele passara por várias fases reflexivas
desde que se conheceram. Talvez, ele achasse que a vida deles estava certa demais, pacata
demais. Podia ser que ele estivesse sentindo falta de desafios, porque era, acima de tudo,
um empreendedor. Quem sabe, precisasse de novos sonhos, pois concretizara grande parte
dos antigos. Ela não tinha certeza do que o estaria incomodando. A questão é que ela
poderia ter esperado que o tempo passasse e lhe trouxesse uma resposta sobre o que
realmente acontecia com ele. Não foi assim que ela agiu.
O Natal e o Ano Novo não foram alegres como sempre. Ele insistia em lhe dizer que
não havia nada de errado acontecendo. Não queria precipitar-se, porque ainda não sabia
definir exatamente o que estava sentindo. Contudo, ela via que, gradativamente , ele perdia
o interesse pelas coisas que mais gostava. Via sua alegria se apagando, seu olhar se
entristecendo.
Para ela, o relacionamento deles era um conto de fadas, com direito a príncipe
encantado. Desde que o conhecera, sua vida girava ao redor dele. Como moravam e
trabalhavam juntos, passavam quase todo o tempo lado a lado. Embora Felipe a
incentivasse a cultivar hobbies e outros interesses, Giulia preferia sempre acompanhá-lo nas
coisas que ele gostava de fazer. O prazer dela era fazer tudo como ele gostava. Não
importava onde estivessem ou o que estivessem fazendo. Ela alegrava-se ao vê-lo sorrindo,
brincando, feliz e fazia o impossível para que ele estivesse sempre assim. Algumas vezes,
eles brigavam. Normalmente, essas desavenças surgiam quando ele queria um tempo só
para si ou quando ela descobria que ele estava programando alguma coisa com os amigos,
onde ela não cabia. Na sua lógica, nada mais justo que ser o centro da vida dele. Afinal, ela
largava qualquer coisa para estar com ele e esperava dele a mesma atitude.
Giulia também saia do sério quando sentia ciúmes. Ultimamente, esse problema
vinha agravando-se por causa, principalmente, do tempo que ele passava na internet.
Desconfiada, nas poucas vezes que ele saía sozinho, ela fazia uma verdadeira rota de
investigação em suas coisas. Não havia uma gaveta do seu escritório que ela não
remexesse, nenhuma anotação que ela não lesse. Quando ele voltava, ela sempre dava um
jeito de vasculhar o seu carro, à procura de pistas comprometedoras. Ela só não vasculhava
seu computador porque ele, cuidadoso, mantinha-o com senha de acesso.
Ela começou a procurar onde estava o problema, quando viu Felipe cada vez mais
introspectivo e sisudo. Se ela fazia de tudo para ele e ele dizia amá-la, não havia um motivo
para o fato dele não ser mais o homem apaixonado dos primeiros tempos de romance. Para
ela, contos de fadas sempre tinham finais felizes. E como não conseguiu achar outra
explicação para a apatia dele, o caminho mais natural foi imaginar que houvesse outra
mulher na vida de Felipe. Só podia ser isso: havia outra pessoa monopolizando a atenção
dele.
Ele tinha um comportamento diferente do dela nos chats. Nunca dizia que tinha
alguém em sua vida, mandava fotos para quem quisesse vê-las e nunca negava o número do
celular quando conhecia uma mulher interessante. Ela lhe cobrava isso, mas ele lhe dizia
que não havia com que se preocupar.
Ela, entretanto, cada vez mais, convencia-se de que encontrara a vilã da história.
Dali em diante, não tiveram mais paz. O fantasma de uma possível traição ficou grande
demais no mundo deles.

9
O que ela não enxergava é que não havia ninguém monopolizando a atenção dele,
simplesmente porque Felipe, acima de tudo, amava a sua liberdade. As conversas na rede
não passavam de distração, naquele momento. Amava Giulia, mas não deixava de fazer
amizades, de ter uma vida própria. Além disso, a paixão do início abrandara e ele achava
que era hora de construírem um relacionamento sobre outras bases. Na internet, ele
conhecia o universo feminino cada vez mais, de modo diferente de como fizera até então.
Felipe nunca teve dificuldades para conquistar quem lhe interessasse. Tempos atrás,
contudo, o jogo de sedução era outro. O que primeiro o atraía eram rostos bonitos, corpos
sinuosos, cabelos saudáveis, sorrisos encantadores. Muitas vezes, por trás dessas
qualidades, descobria vidas sem graça e personalidades sem brilho.
Em tempos de internet, o jogo era diferente. Felipe hoje seduzia virtualmente com a
mesma facilidade que o faria frente a frente com uma mulher. Não que ele as iludisse. Era
muito mais um exercício da fantasia, um meio de estar presente no mundo, sem estar
fisicamente alí. Facilmente agradava as mulheres com quem conversava. Seduzia sim, mas
também conhecia o universo delas. Ensinava o que podia e crescia no contato com outras
pessoas. Descobria sentimentos, desejos e sonhos, mas raramente deixava que um encontro
virtual se transformasse em uma aventura real. Isso só acontecia quando alguém lhe parecia
muito interessante. Invariavelmente, essas pequenas aventuras lhe davam novo ânimo e ele
voltava para Giulia, mais doce e carinhoso do que nunca, cheio de saudades.
Seu maior problema vinha sendo exatamente a dimensão de sua vida. Chegara onde
queria. Tinha tudo o que planejara ter. Começava a sentir que estava renunciando ao
mundo, como se nada de diferente pudesse mais lhe acontecer:
- Quem não tem nada, tem um mundo de possibilidades. Quem tem tudo, esgotou
todas elas.
.
Inúmeras vezes ele lhe repetira essa frase. Agora, servia exatamente para o que ele
estava sentindo.
Felipe tinha uma visão muito especial da vida, o que lhe permitia calcular riscos e,
ao mesmo tempo, viver de acordo com a vontade de seu coração. Encontrara um meio
termo entre o mundo material e o espiritual e o resultado disso era uma constante paz. Não
que ele nunca sofresse. Tinha seus momentos de tristeza sim, mas sabia superá-los. Desde
que conhecera Giulia, ele lhe ensinara muito do que aprendera ao longo da vida e de suas
reflexões.
Quando começou a ter dúvidas quanto à vida que eles estavam levando, ele
esperava que ela mostrasse o quanto havia aprendido com ele. Queria abrir seu coração e
ser compreendido. Não estava certo de que separar-se dela era a melhor solução, mas
também, não podia continuar sentindo-se preso daquela forma. Quis conversar, imaginando
que, juntos, poderiam encontrar uma solução que fosse boa para ambos
A reação dela, contudo, foi inesperada. Ela revoltou-se e não quis ouvir o que ele
estava sentindo. Ela já tirara as suas conclusões e não abria mão delas. Para ela, tudo era
simples como uma equação matemática.
- Você quer que eu vá embora para poder ficar com outra – acusava.
- Não, não é isso. Estamos quase no século XXI, precisamos remodelar os
relacionamentos , ele tentava lhe dizer.

- Sim, é isso – ela teimava .A vida deles transformou-se em eterna discussão.

10
Ela, então, evocava cada uma das pistas que, por mais cuidadoso que Felipe fosse,
acabava deixando.
- Seu celular tocou, ontem, a uma da manhã. Eu vi o número no identificador de
chamada e liguei para ver quem era. Atendeu uma tal de Renata. Aliás, outro dia eu fui
trocar dinheiro na sua carteira e vi um papelzinho com esse número. Quem é ela?

Quando ele achava que ia ter um pouco de paz, Giulia recomeçava:


- De quem é esse número do Rio, que aparece tantas vezes na nossa conta
telefônica? Sim, você havia guardado na sua pasta para pagá-la, mas eu fui busca-la lá,
porque achei que vencia hoje.

Felipe estava desistindo. Ela não conseguia entender o que estava tão claro, porque
enxergava a situação somente a partir de si mesma. Ele não estava interessado em outra
mulher. Estava interessado em viver do jeito que ele bem entendesse, sem restrições, sem
dar explicações para ninguém. Ela, com toda aquela vigilância, estava limitando sua
liberdade. Não que ele não quisesse aquela vida, que não quisesse Giulia. Queria sim. Mas,
planejara isso para muito, muito mais tarde. Contudo, o encontro deles aconteceu naquele
momento, quando ele estava perto dos 40 anos e pensava em quanto tempo ainda teria para
aproveitar a vida integralmente. Grande parte de sua juventude fora gasta construindo um
futuro onde pudesse ter conforto e tranqüilidade financeira. Quando conquistou seu
objetivo, olhou para trás e viu o quanto isso lhe custara. Sentia que estava em uma fase de
transformação. Uma metamorfose, como preferia dizer. Olhava ao redor e via que, nessa
nova fase, ele já não era o mais jovem. Mas, questionava se não era cedo demais para ter
feito escolhas definitivas. Se continuasse vivendo daquela maneira, certamente suas
escolhas seriam cada vez mais irreversíveis.
- Você não compreende isso, Giulia, porque é muito mais nova, tem muito mais
tempo pela frente. E eu, lhe dou toda a liberdade. Você não tem vida própria porque não
quer.

Embora ele não quisesse perdê-la, a vida que havia fora do mundo deles começou a
parecer atrativa demais para Felipe. Ele sentia-se forçado a fazer uma opção.
- A vida é feita de trocas, Giulia. Do jeito que estamos vivendo, só eu, que tenho
minha vida e meus interesses, tenho coisas a acrescentar no nosso relacionamento.

Pela última vez, ele tentou encontrar uma solução para os problemas que vinham
enfrentando. Se ela fosse capaz de compreendê-lo, de dar-lhe aquilo que ele precisava
naquele momento, poderiam preservar o relacionamento deles. Resguardariam o que
haviam construído naqueles anos de convívio e que lhes fazia tão bem: a amizade, a
confiança mútua, o companheirismo, o amor. Poderiam continuar juntos, seguindo seus
caminhos lado a lado, mas sem cobranças, sem compromissos, sem prisão. Ela, contudo,
não entendia o seu anseio por liberdade e nem queria ouvi-lo. Se o fizesse, talvez pudesse
ter a certeza de que era ela quem ocupava o coração dele. Sentindo-se mais segura, seria
mais fácil para ela compreender o seu comportamento.
- Seu problema, Giulia, é que se as coisas não acontecem exatamente iguais ao
padrão ideal que você tem na sua cabeça, você conclui que elas estão erradas.

11
Houve um dia que ela quis saber como era o comportamento de Felipe nos chats.
Escolheu criteriosamente um nickname que, ela sabia, chamaria a sua atenção. Criou uma
personagem perfeita, em medidas e opiniões. Frente a frente, cada um em seu computador,
ela o provocou na sala de bate-papo, para conhecer a vida virtual dele. Preparou-se para
tudo. Estava disposta a ir até onde não agüentasse mais.

(16:50:00) Loirinha RJ : entra na sala


(16:58:39) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Que lugar do Rio?
(16:59:01) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha : Parati, princesa, mas tenho um
apartamento em Copacabana. E vc, é de onde?
(16:59:15) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Lagoa, Rio. Quantos aninhos?
(17:00:11) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha RJ: Lagoa é legal, já morei aí. 38 e
vc?
(17:00:36) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: 25.
(17:01:09) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha : É gatinha?
(17:01:50) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Sou. Vc está muito ocupado ou dá
prá conversar com mais uma?
(17:02:28) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Vc tem prioridade total . Como vc
é fisicamente?
(17:03:04)Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Acredito na
prioridade....hehehe...E vc, é gatinho? Fale a verdade, hein...
(17:06:30) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Eu sou gato tb. Moreno, 1.80m,
75Kg, cabelos lisos meio compridos e muito malhado. E vc?
(17:07:31) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Mais baixinha que vc, muito mais
magrinha que vc, se vc é muito malhado, eu sou malhadinha . Cabelo comprido o seu?
Como assim?
(17:08:35) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Não é compridão, mas tb não é
batido, na nuca. Tem foto?
(17:09:04) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: É liso???????
(17:09:42) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Meio liso...ondulado pra liso...
(17:10:13) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Ahhhhh...tem homem que não fica
bem com cabelo liso...
(17:10:28) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Tô sentindo que tu deve ser uma
princesinha.Tem tel? A gente podia trocar uma idéia...
(17:10:51) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Calminha, né? Pq a pressa? Vai
sair do chat?
(17:11:09) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Se vc me conhecer por foto, vai
ficar apressadinha.. risos
(17:12:05)Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Tem tanta certeza assim? Olha
que meu ex arrebenta, hein!
(17:12:12) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Como é o seu cabelo?
(17:12:39) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ : É escorrido, comprido e liso
(17:12:57) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Nossa! Cabelo do jeito que eu
gosto! Gamei, tô amarradão! Me dá o teu tel pra gente não se perder?
(17:13:16) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Ahhhhhh.Amarradão em cinco
minutos?

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(17:13:17) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Tô amarradão sim.... quero vc pra
mim.. pode? Quer ver minha foto?
(17:14:10) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Não sou fácil assim...heheheheh
(17:15:46) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Falando sério...beleza é
fundamental, mas tem que bater outras coisas. Vc não acha? Me responde. Isso não é papo
de mocréia não...
(17:16:10) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: É o visual é pré-requisito.... o
resto a gente vê depois... Pô, gatinha, a gente nasceu um pro outro.
(17:17:02) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Como vc sabe isso em cinco
minutos? Dez, vai...hehehehe
(17:18:05) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Pelo visual que vc descreveu.
Gosto de mina do teu tipo e vc falou que é gata. Então, tá no esquema!
(17:19:37) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Ainda por cima, mora pertinho do
meu apartamento aí...
(17:20:09) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Liga pra mim então.... eu te dou
meu tel.... quer ver minha foto?
(17:21:42) Felipe RJ fala reservadamente com Loirinha: Me dá o teu tel, gata. Não tem
essa de pressa, estamos no século XXI. Quer deixar pra depois pra que? Não maltrata
assim, não.Falou que é gata, me deixou com água na boca e agora fica judiando....
(17:22:34) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Eu dou, fica calmo...Me dá o teu,
vai...

O número, na tela, era do celular de Felipe. De certa forma, não havia surpresa para
Giulia. Mas, ela estava atônita com o comportamento sedutor dele.
Ela resolveu levar aquilo adiante. Rapidamente, abriu outra janela no navegador e
abriu uma caixa postal nova, em um site de e-mail grátis. Dessa forma, sua identidade
estaria completamente protegida.

(17:22:34) Loirinha fala reservadamente com Felipe RJ: Anota o meu e-mail... e me
escreve, certo?

Ele prometeu escrever, usando doces palavras, que Giulia estava acostumada a
ouvir.
Durante alguns dias, trocaram mensagens, cada vez mais carinhosas. Ela o
instigava, queria ver até onde ele ia. Até o dia em que, numa mensagem, ele lhe pediu uma
foto. Pediu, também, que ela ligasse para ele. “Se você for tão bonita quanto eu imagino,
vou querer te conhecer”, ele escreveu. “Liga pra mim”.

Ela não conseguiu se conter. Sequer desligou o computador. Saiu atrás de Felipe,
que estava tomando sol na piscina:
- Seu celular está desligado. – disse.
- Eu sei, deixei de propósito. – ele respondeu. Ele segurou a mão de Giulia e a
puxou, carinhosamente, para perto de si.
- E como você queria que a Loirinha ligasse?

Ele a soltou e olhou para ela, sem entender o que estava se passando.

13
- Loirinha? – ele procurava ganhar tempo para pensar.
- Você pediu para ela ligar.
- Meu computador tem senha. Como você... – ele não completou a frase.
Imediatamente compreendeu o que acontecia.
O que se seguiu, eles levaram muito tempo para esquecer. Nunca antes haviam se
desentendido de forma tão hostil. Ela o acusava de traição. Ele se defendia, dizendo que
aquilo não passava de mera fantasia.
- Acaba na hora que você desliga o computador – ele gritava. Era raro vê-lo gritar
assim.
- Acaba? Isso se você não quiser conhecer a gata virtual, né?– havia fúria nos olhos
de Giulia. – Eu sempre confiei em você e você fica procurando outra para me substituir
pela internet?
- Que história é essa de substituir? Você está entendendo tudo errado! Não quero
substituir ninguém!

Aquela não era a melhor hora para conversar com Giulia. Ela estava transtornada.
Felipe levantou e se trancou na sala de ginástica.

Foram horas caminhando pela praia, sem que ela conseguisse entender o que estava
acontecendo. Se eles se davam tão bem, se tinham a vida que planejaram, por que Felipe
não se contentava? Por que ele não era feliz com ela? O que o fazia passar horas naquele
jogo de sedução pela internet? Aos seus olhos, só havia uma explicação. Ele se cansara dela
e estava em busca de uma mulher que o fizesse feliz. Nas salas de bate-papo, ele podia
achar qualquer tipo de mulher, com pouco trabalho, com discrição e com certa segurança.

Era tarde da noite quando ela voltou para casa.


- Estava preocupado. Não é seguro você ficar andando sozinha, à noite, por aí. –
ele disse, tentando conversar com ela. Estava calmo e concluíra que eles ainda mereciam
uma chance de tentar se entender. A última.

Começou a falar o que estava se passando com ele. Não consegui terminar nem a
primeira frase. Parecia que Giulia sequer ouvia o que ele lhe dizia. Quanto mais ele se
esforçava para explicar, mais ela banalizava a situação.
- Nós estamos quase no século XXI. Não é possível continuarmos hipócritas, presos
a convenções, enquanto o mundo está mudando.
-Ah, é? E onde está a grande novidade em você me trair? O que a evolução do
mundo tem a ver com isso? – havia tristeza na voz dela.
- E quem está falando em traição? Estou querendo abrir o jogo, ser honesto. Trair
é enganar. Eu estou apenas sendo coerente com o que eu estou sentindo. Os tempos são
outros, as coisas não podem permanecer iguais.
- O que você quer? Quer que eu aceite que você tenha aventuras, que tenha uma
amante, que veja isso com entusiasmo? Quer que eu divida o homem que eu amo com outra
mulher?

Pela última vez, ele tentou explicar:

14
- Tudo é uma questão de ponto de vista. Você enxerga dessa forma. Eu vejo de
outra. Você fala em dividir, como se eu fosse uma propriedade sua. Eu não vejo dessa
forma. E também não quero trocar você por ninguém, a menos que você continue
transformando nossas vidas nesse inferno.

Ele ficou pensativo, por alguns momentos. Então, completou:


- Quero liberdade, quero fazer o que eu tenho vontade. Preciso disso para estar
feliz. No fundo, todos precisam . A diferença é que não assumem. Preferem trair, enganar,
viver embaixo de mentiras.
- Vai querer me convencer de que todos os homens traem as mulheres? – ele sabia
que a ironia era uma forma de Giulia defender-se.
- Pode ser que existam aqueles que sintam-se atraídos por outras mulheres e
reprimam isso. Mas, você acha que viver reprimido é viver feliz? Não basta o que nos
tolhem aí fora, quando nos impõem horários, pressões, padrões, ainda somos obrigados a
fazer o mesmo com as nossas emoções? Você, por acaso, nunca sentiu atração por outro
homem?

Ele mal terminou de falar e arrependeu-se. Sabia que o amor que Giulia nutria por
ele era incondicional. Apesar de ser uma pessoa completamente adaptada ao seu tempo,
esse era o seu lado romântico. Ela acreditava no amor verdadeiro e eterno. Felipe, para ela,
era a realização desse sonho. Pensava nisso enquanto ela ainda lhe respondia. Ele não
prestou atenção no que ela falava. Quando ela calou-se, ele disse apenas:

-Se você continuar vendo o mundo com os mesmos olhos dos nossos pais, vai sofrer
muito - concluiu

Para Felipe, as coisas eram claras e simples. Acima de tudo, amava a vida de tal
forma que queria crescer , aprender, evoluir, sem estar limitado a pessoas ou a situações.
Poderiam continuar juntos indefinidamente, se ela aceitasse que ele vivesse o que
escolhesse viver, na hora em que bem entendesse. A amizade e o carinho que havia entre
eles era muito maior que qualquer aventura que ele pudesse vir a ter.
- Aí está a nossa grande diferença, Giulia. Enquanto eu valorizo muito mais o
sentimento que nós temos um pelo outro, você valoriza a sua possessividade, a sua
necessidade de controlar a minha vida.

Como ela não fazia nenhum esforço para compreendê-lo, ele começou a sentir-se
aprisionado. E ele não nascera para viver assim.
Quando ela precisou passar alguns dias no Rio, a situação agravou-se. Embora eles
tivessem duas linhas telefônicas, sempre que ela ilgava para casa à noite, encontrava a linha
que Felipe usava ocupada. A outra linha chamava até a secretária eletrônica atender.
Invariavelmente, ela lhe mandava um e-mail, reclamando que ele estava navegando na
internet. Todos os dias era a mesma coisa.
- A internet nos uniu e agora vai nos separar, reclamava Giulia.
- Não, anjinho, você vai nos separar, se continuar vendo o mundo desse jeito. A
internet não tem esse poder todo. – ele respondia.

15
Ele ainda era paciente com ela, sempre carinhoso em suas mensagens.

* Assunto : EU TE AMO!
Data: Quarta-feira, 01 março de 2000 02:03:00 hs
De: Felipe
Para: Giulia

Poxa, deixa de ser insegura...vc é a coisa mais linda do mundo... Como eu não
poderia te amar, minha gatinha linda?

Ela aquietava-se um pouco com a resposta dele. Por um tempo, achava que estava
sendo tola demais, infantil demais. Mas, na noite seguinte, quando tentava ligar para casa,
novamente se desesperava ao ver a linha de Felipe ocupada e a outra linha muda. Pior que
isso, ele não atendia o celular e desligava o ICQ8 . Ficava incomunicável. Ela passava horas
tentando se controlar, imaginando quem era a dona da atenção dele, o que estariam
conversando, o que estariam combinando. Novamente, era pelo e-mail que Giulia lhe
cobrava atenção.
- É a tecnologia deixando as mulheres dos bonitões malucas – ele brincava.

No terceiro dia em que isso se repetiu, ele custou a responder. Quando a mensagem
dele chegou, ela entendeu porquê. Ele não brincava como sempre, embora ainda fosse
carinhoso. E escreveu muito, muito mais do que costumava fazer.

* Assunto : Insegurança...
Data: Sexta-feira, 10 de março de 2000 02:03:00 hs
De: Felipe
Para: Giulia

Sabe, Giulia, eu já me senti assim, como vc se sente hoje...insegura, sentindo esse


horror só de pensar em perder a pessoa, sentindo-se emocionalmente dependente de
alguém. Antes eu era assim, agora não sou mais. É complicado explicar. É claro que tenho
alguns momentos de insegurança, de incerteza...mas, eu olho e procuro ver aquela pessoa
como um oásis no meio do deserto. Vc pode ficar embaixo daquela sombra pra sempre,
pode parar um tempo e ir em frente, pode achar que tem coisa melhor mais adiante, pode
tudo...só não pode achar que a pessoa é propriedade tua, que aquela pessoa apareceu na tua
frente, por tua causa. Tem que ter humildade, saber que somos falíveis, saber que a
qualquer momento aquela sombra pode desaparecer após um belo sonho. Ter sabedoria
para perceber que nada nos pertence, somente os momentos que vivemos.
Cada momento de felicidade deve ser visto como uma dádiva, um bálsamo com que
o Universo te presenteou. Como pode vc ficar triste se perder isso? Como vc pode Ter
medo de perder uma coisa que nunca te pertenceu? Por acaso esse mar que a gente ama
tanto e que nos inspira momentos especiais nos pertence? É nosso? Certamente que não,

8
ICQ (www.icq.com) é um programa gratuito da AOL (América OnLine). “I seek You”, como é conhecido,
permite que as pessoas cadastrem seus amigos e comuniquem-se com eles. Esse programa mostra na tela
quais pessoas da lista estão online, naquele momento.

16
mas enquanto nós o olhamos ele é como se fosse nosso, único...Vc tem que se libertar desse
tipo de sentimento. Só assim vc vai se sentir mais segura.
Antes eu era assim. Quando conhecia alguém que me deixava zonzo, ficava com
medo de perder, achando que nunca mais ia encontrar alguém igual. Agora eu sei que vc
pode amar de verdade, como eu te amo, ter um sentimento todo especial por esse alguém
sabendo que toda hora pode ser a hora.
Claro que existem pessoas especiais pra gente. Nessas horas, como é contigo, eu
penso que eu posso fazer tudo certinho, andar na linha e mesmo assim, no fundo, eu sei que
vc tem vontade própria e que qualquer dia eu posso acordar e vc pode não estar mais aqui.
Tem que entender e aceitar isso porque é da natureza das pessoas. Vc tem que estar sempre
preparada. Se vc tem esse tipo de sabedoria, naturalmente vai vindo um sentimento
grandioso no seu coração em relação às coisas. É como se o Universo se aproximasse mais
de vc e dissesse: “Fica tranqüilo que eu sempre vou estar ao teu lado, sempre virão coisas
legais prá vc...” Quer ver uma coisa? É como uma criança que ama o pai. Ela nunca pensa
se amanhã o pai vai estar ali, do lado dela. O casal não pode se separar? Pode, mas a
criança não fica insegura. Ela ama os pais e pronto.
Esse tipo de sentimento, Giulia, eu tenho em relação a tudo. Lógico que eu vou ficar
arrasado se sofrer uma perda. Mas, aí já era. É começar de novo, correr atrás. E vou pensar
nos momentos bons que eu tive. Vou agradecer ao Universo e rezar prá ter outra vez o que
eu julgo importante. Mas, acima de tudo, vou agradecer por estar vivo e ter tido tudo
aquilo. E vou rir à toa com as lembranças, pensar que eu tive coisas que muitas pessoas
nem sonham em ter. Esse estado de ser não é fácil . Vc tem que cultivar no teu coração e
com o tempo vai perceber que isso não é alienação. É desapego, é aceitação. É, acima de
tudo, humildade prá reconhecer que vc não pode tudo, que tem coisas que acontecem na tua
vida e que a gente acha que não merecia...mas, as coisas que sacodem a nossa vida podem
estar vindo prá isso mesmo, prá vc mudar de estrada, porque lá na frente tem coisa mais
importante pro teu desenvolvimento espiritual. Como a mãe que leva o filho à escola pela
primeira vez. A criança chora, sofre, mas a mãe sabe que aquilo passa e que a escola vai
fazer do seu filho uma pessoa com condições de viver no mundo.
Quando a gente passa por momentos difíceis na vida, a gente desenvolve uma
sensibilidade, uma confidência toda especial, se liga mais no Universo. Então, conversa
com teu coração. Na vida, é sempre assim: tem uma saída fácil pros problemas, que flui
com naturalidade e vc flui junto. E tem a saída difícil, aquela em que vc fica se debatendo,
luta e nada dá certo, fica completamente cego pelas emoções que embotam a tua visão.
Agora é escolher o certo ou o errado. Nessa hora é que a gente cresce espiritualmente. Vc
está vivendo um momento chocante. Não pode ficar triste só porque eu não estou todos os
dias ao teu lado ou porque vc não consegue falar comigo. O Universo está te dando tantas
coisas, está cuidando legal de vc e vc só pode mostrar uma grande felicidade em retribuição
a tudo isso. Retribuir amor ao maior amor de todos. Como vc pode ficar triste? Isso que vc
tá fazendo é triste, grave mesmo e pode fazer com que Ele lhe tire tudo o que tá te dando
prá vc aprender a dar valor. Olha à tua volta e me diz se não é prá vc estar chorando mas é
de felicidade?
Olha, Giulia, eu sinceramente espero que vc tenha entendido alguma coisa do que
eu escrevi aqui, porque se eu escrevi isso é porque o Universo está me usando e usando a
minha sensibilidade prá te dar um toque. Eu escrevi muito e isso não é normal. Esse
impulso não é normal em mim, então, abre teu olho, que pode não ser por nada, mas pode
ser por tudo.

17
Um beijo enorme na minha gatinha dos olhos mais lindos. Que esse imenso
Universo te abençoe, é o que eu rogo.
Felipe

Ela não pode mais ignorar o que ele estava lhe dizendo. Ele era doce demais, amigo
demais, amado demais para ela transformasse a vida dele naquela confusão que vinham
vivendo. Sentiu-se ridícula pelas atitudes que vinha tomando. Num relance, as palavras dele
vieram à sua mente:
- Tudo é uma questão conceitual, depende do seu ponto de vista. Quando você
enxerga o mundo com outros olhos, vai entender o que hoje lhe parece tão estranho.

Compreendeu, bruscamente, que enxergara os problemas de uma forma muito


materialista. O problema não ia além da necessidade dele de sentir-se livre novamente, de
buscar novas emoções, novos caminhos. Se ele tinha dúvidas quanto ao relacionamento
deles, ela haveria de calar-se e deixá-lo ir adiante. Não sentia-se forte para dividí-lo com
outras mulheres. Cada palavra dele estava gravada em sua mente, mas ela ainda não
conseguia entender o significado do que ele lhe dizia:

- Lembra-se do “Show de Truman”9 ? Nos ensinaram a enxergar o mundo de uma


forma, mas nós temos que ter coragem e buscar coisas novas, porque o mundo está
mudado. A tecnologia está mudando todo nosso modo de agir e de nos comportarmos.

Preferiu deixar as coisas nas mãos do Universo. Se o amor deles fosse verdadeiro,
em algum momento ele haveria de ver isso. Mas, se em seu coração não houvesse mais do
que um grande carinho por ela, seria melhor mesmo que se separassem enquanto ainda
eram grandes amigos e podiam reconstruir suas vidas com outras pessoas.
No dia seguinte, voltou para Parati.

Capítulo IV

Ela o encontrou caminhando na praia, carregando a prancha de surf. Ele parecia um


garoto, com seu porte físico perfeito, com os músculos definidos e os cabelos, lisos e
vastos, emoldurando seu rosto. Naquele horário, o céu ficava mais bonito ali. Em outros
tempos, ela estaria radiante em um dia assim. O céu azul, sem nuvens, ficava avermelhado
no crepúsculo e até o mar mudava de cor.
Naquele dia, porém, ela buscou na natureza a energia que precisava para conversar
com Felipe.
O reencontro deles era sempre alegre. Ele lhe deu um abraço forte e eles foram
caminhando até a outra ponta da praia. Estavam sozinhos. Raramente aparecia alguém por
aqueles lados.
Ela não teve coragem de falar até o anoitecer. Não quis estragar aquele momento,
que poderia não mais se repetir.

9
“O Show de Truman – O Show da Vida”, filme com Jim Carrey

18
Fazia tempo que eles estavam alí, quando ela finalmente falou.
- Quer ir embora ?

Ele não entendeu:


- Quer ir para casa? Vamos ficar mais um pouco...
- Não é isso que eu estou falando, Felipe. Perguntei se você quer ir embora de
vez...

Ele, então, pode falar o que sentia. Abriu seu coração. Giulia o ouvia atentamente,
mas ele nem precisava ter dito mais nada. Ela podia não estar entendendo o que se passava
com ele, mas também não agüentava mais insistir vê-lo triste daquele jeito. Horas depois,
ainda estavam no mesmo lugar. Soprava uma brisa deliciosa do mar. Ela correu até a água e
a sentiu, morna ainda, em seus pés.
Quando voltou para perto de Felipe, ele estava distraído, procurando um isqueiro no
bolso da bermuda.

Alí, sentados sob as estrelas, pareciam estar conectados a elas.


- Fica calma que eu sempre vou cuidar de você – ele dizia.

“Cuida, cuida de mim, que eu estou levitando...Vem comigo, vem...”

Viajando pelo espaço, ela via suas almas brincando no infinito, ligadas por um
cordão brilhante.

- Nós temos essa coisa de alma...isso não vai morrer nunca, independe da nossa
vontade... – ela dizia – “Nossas almas são brancas, transparentes, você consegue ver?”.
- Pode ficar tranqüila, conta comigo. Mas não tira minha liberdade de escolha.
Deixa a natureza seguir seu curso. Deixa o instinto se expressar. É assim que o Universo
se manifesta e mostra o caminho. Se eu tiver que ficar contigo, eu vou ficar.

Ela chamou a atenção dele para o céu cheio de estrelas.


- Olhando assim, de longe, vendo todas essas estrelas juntas, não existe solidão...
.
Ele ficou olhando para as estrelas.
- Observa como o Universo tem um padrão repetitivo, um padrão que se reproduz
nas dimensões intermediárias, para cima e para baixo. Para cima, ele se abstrai, para
baixo, ele se detalha..
- Como assim? – ela foi obrigada a aterrissar da viagem ao céu. Não entendeu o que
ele dizia:
- Digo que se todos os padrões se repetem em todas as dimensões , como os
planetas girando no sistema solar. A resposta de todas as verdades e todas as perguntas
está na sua frente. É só procurar e enxergar. Essas respostas vêm em forma de sentimento,
não tem como racionalizar. Você percebe a resposta, sem precisar racionalizar nada.

Giulia deitou-se na areia. Não conseguia tirar os olhos do céu. “Queria poder ir
para junto das estrelas, ficar lá com elas, não ter medo de sentir solidão. Se eu pudesse
virar uma estrela ...”

19
- Isso quer dizer que não existem coincidências? E que se conseguirmos observar e
identificar os padrões, podemos prever o que vai acontecer? – ela prestava atenção ao que
ele dizia. “Eu não consigo sair do chão, estou presa aqui no corpo...Será que eu consigo
virar uma estrela? Me sinto tão pequena olhando para elas daqui de baixo...”

Felipe deitou-se junto dela. Ela se aninhou nele. Adorava o contato do seu corpo.
- Prever, não. É saber, simplesmente, o que vai acontecer, como se você tivesse
vivido aquilo antes e aquela coisa estivesse repetindo-se novamente. Você olha e sente.
Como nós estamos olhando para o céu limpo agora e temos a certeza de que não vai
chover. Você simplesmente sabe, sem dizer nenhuma palavra e nem ficar pensando nisso.
Você simplesmente sabe, porque já viu acontecer antes.

“O tempo podia parar nesta noite...O mundo bem que podia congelar neste instante
e nós nunca mais íamos sair daqui. Não íamos precisar nos separar” . Ela chegou mais
perto de Felipe e entrelaçou suas pernas às dele.
- Quanto mais de longe você olhar esse padrão, mais informações ele lhe dá.
Quanto mais perto, mais concentrada é a informação. E ela muda de acordo com o seu
ponto de vista.
Ela encostou mais a cabeça no peito de Felipe. O coração dele batendo a atraía mais
e mais.
”Eu estou tão perto do seu coração...bate...bate...bate...em um padrão... Será por
isso que eu sinto que o conheço tão profundamente?”

- Mas, não adianta você perceber isso, tem que saber interpretar. Tem que
aprender a interpretar antes de acontecer. Hoje, a gente só vê as coisas depois que
acontecem.

A voz dele era cada vez mais doce. Parecia uma linda música, daquelas que
emocionam, tocam o coração de maneira especial.
Ela chegou mais perto dele. “Quero ouvir melhor, toca mais alto essa música...não
quero nunca mais deixar de ouvir...tem que ser essa música.”

Eles ficaram, algum tempo, quietos. Somente o barulho das ondas do mar rompia o
silêncio. Felipe acariciava o rosto de Giulia e ela sentia o calor do seu corpo, contrastando
com o frescor da areia.
De repente, ele estava em pé e a puxou para junto de si. Virou-a de costas e eles
estavam de frente para o mar. Acariciava o seu corpo, enquanto a despia. “Nua assim, eu
sou uma fêmea solta na natureza...”
Então, ela o sentiu dentro de si e sentiu as mãos dele buscando seus seios, seu
ventre, sua virilha. Ela retesou todo o corpo, jogou a cabeça para trás e o peso do seu corpo
sobre ele.
“Completamente sua, meu amor, meu corpo, minha alma...Fico toda sensível
assim...Queria ser mais alta, esticar mais meu corpo, tocar o céu...”

Felipe era, então, um macho selvagem, o mais lindo que ela já vira. Sentia o corpo
forte dele atrás de si. “Parece um leão faminto...vem, eu sacio essa fome...”

20
Ele a jogou no chão e caiu sobre ela. Agora, era ela quem se deliciava com o corpo
dele. Ele se exibia para ela. Dançava enquanto a penetrava, retesava a musculatura
enquanto ela o acariciava. Sentia-se rendida, completamente submissa àquele homem.
“...Parece escultura...”

O amor deles, naquele momento, era do tamanho do Universo. O barulho das ondas
se misturava a gemidos e gritos. A lua parecia dirigir um raio de luz sobre eles, para fazê-
los brilhar. O céu parecia em festa, enfeitado pelas estrelas. A areia da praia, se moldava
para aninhá-los. E uma brisa soprava. “Essa brisa passando por aqui justo agora...em
constante movimento...como todas as coisas...Tudo se movimenta...tudo muda...Que cheiro
gostoso tem esse macho...”

Depois do mais profundo orgasmo, sentiu-se pronta para morrer. “Prazer maior
profundo que esse, só se for na hora da morte...”. Mas, a morte não chegou naquele
momento.

“...Agora eu entendi...essa energia que gera vida...que dá partida em tudo...estou


me sentindo a própria mãe Natureza aqui...E você, Felipe, neste momento, é o Universo no
qual eu existo...”

Faltava pouco para amanhecer quando eles deixaram a praia.

Capítulo V

O despertador arrancou Giulia de seus sonhos. Fazia poucos dias que se mudara
para aquele apartamento e suas coisas ainda não estavam em ordem. Ela nem parara muito
tempo em casa. Ainda não se acostumara à ausência de Felipe. Sofrera tanto com a
separação que limpou de sua memória os últimos tempos, desde o dia em que decidiram
separar-se, naquela praia linda, até aquela manhã chuvosa. Agora, olhava para frente e via
uma nova vida começando. O único jeito de ainda continuar viva era acreditar que, adiante,
haveria coisas boas esperando por ela. Restava-lhe achar o caminho para chegar lá.
Um verdadeiro temporal caía sobre a cidade. Embora ainda fosse maio, parecia um
dia de inverno. O dia escuro não lhe deixou opção, a não ser, finalmente, colocar seu
apartamento e a sua vida em ordem.
Ela ligou o computador e o conectou à internet. Todos os dias, era a primeira coisa
que fazia ao acordar, para checar a caixa postal. Somente depois disso é que planejava o seu
dia. Preparou o café e conectou-se ao canal de jornais. Leu vários deles e foi em busca das
novas edições das revistas. Quando procurou pela manteiga, deu-se conta de que esquecera
de guardar as compras de supermercado, que haviam chegado no dia anterior.
“Sorte que vêm nessa embalagem térmica!”, pensou, aliviada.

Então, ela vestiu uma roupa confortável e começou a colocar ordem no caos. Em
todos os sentidos. No começo da noite, só faltava guardar os álbuns de fotografias que ela

21
deixara para o fim. Queria revê-las. Eram fotos da infância, da adolescência e do primeiro
casamento. Mas, a grande maioria era de sua vida com Felipe.
Fotografia era um dos hobbies dele. E como tudo o que ele fazia era bem feito,
havia fotos maravilhosas ali.
- Daqui há pouco essas fotos vão virar relíquias, substituídas pelas fotos digitais –
ela pensou, enquanto folheava os álbuns.

Não pode deixar de lembrar-se da época em que ficava com ciúmes das horas que
Felipe ficava conectado, com medo que ele a traísse. Fazia tão pouco tempo que isso
acontecera e hoje ela pensava de modo muito diferente. Ela não mudou da noite para o dia.
Quando aceitou a separação, Giulia o fez porque viu que, mais cedo ou mais tarde,
Felipe iria embora. Ela quis apenas preservar a amizade deles, para que nenhuma desavença
os afastasse para sempre. Mas, sofreu dia após dia a ausência dele e, mesmo depois de ter
passado algum tempo, ainda acordava procurando pelo corpo dele em sua cama, ainda
sonhava com ele ao seu lado.
Foi desse jeito dolorido e penoso que ela cresceu. Se pudesse voltar no tempo, ela
teria agido de outro jeito. Teria feito qualquer coisa para não passar pela dor de perdê-lo,
pelo vazio de viver sem ele. Teria procurado, principalmente, compreendê-lo, porque sabia
que o decepcionara. Quando ele lhe mostrou a sua necessidade de liberdade, ela não soube
recuar e avaliar. Não parou para pensar se estava agindo conforme seu coração lhe
mandava ou se simplesmente seguia padrões de comportamento que lhe foram ensinados,
desde pequena. Brigava com ele, quando o via horas teclando com outras mulheres, sem se
perguntar porque isso acontecia. Irritava-o, enfrentava-o com toda a sua agressividade, sem
perceber o quanto aquilo o entristecia. Fora capaz de magoar várias vezes aquela pessoa tão
querida, em nome do seu orgulho e pela sua incapacidade de ouví-lo, para saber o que se
passava em seu coração. Agora via, claramente, que o que Felipe fazia não era traição. Se
ele tinha o desejo de aventuras, fora sincero o suficiente para jogar limpo com Giulia.
Colocara o relacionamento deles acima de qualquer outra coisa e ela não percebeu isso. O
caminho mais fácil, para ela, foi culpar a internet e os relacionamentos virtuais. Hoje, via
que, no plano virtual, os vínculos são frágeis demais para ameaçar um amor verdadeiro ou
um casamento sólido. Se levados para a vida real, esses relacionamentos podem até ser
considerados como traição. Mas, daí a separar um casal, havia uma grande diferença.
E mesmo assim, ela questionava o que era a traição. Tempos atrás, um casamento
poderia durar toda uma vida, mesmo que não trouxesse felicidade às pessoas. Depois,
quando as separações começaram a ser aceitas pela sociedade e as pessoas puderam,
finalmente, corrigir eventuais erros na escolha do parceiro, elas também descobriram que
não existe uma escolha perfeita. Os relacionamentos se tornaram cada vez mais voláteis e
até hoje, nesses tempos tão livres, essas mesmas pessoas reclamam dos desencontros entre
homens e mulheres.
Depois que separou-se de Felipe, Giulia começou a ver o casamento de outro modo.
Concluiu que é preciso avaliar se há amor suficiente para fechar os olhos àqueles deslizes,
que nós chamamos de traição. Achava mesmo que essa palavrinha, que dói tanto, é, muitas
vezes, confundida. “Sentir desejo por outra pessoa é traição?”- ela se perguntou inúmeras
vezes. Se fosse, todos nós seríamos traidores. Todos nos sentimos atraídos por outras
pessoas, em algum momento de nossas vidas. Por que, então, um desejo tão comum, põe
tantas vezes a perder relacionamentos felizes? Hoje ela sabia que, quando um dos dois
sobrepõe o desejo à razão, o melhor que o outro pode fazer é avaliar se vale a pena manter

22
o casal, zelar pela sua integridade, com a cabeça fria. Nessas horas, se ambos se deixam
levar pela emoção, o resultado será apenas brigas e desentendimentos, que podem por a
perder uma relação verdadeira, onde havia também companheirismo, amizade, carinho.
Minutos de descontrole podem custar um longo tempo de busca, muitas vezes infrutífera,
de uma nova pessoa que nós possamos rotular como “ideal”. Ela finalmente, entendeu o
significado do que Felipe tantas vezes lhe repetia:

-“ Lembra-se do “Show de Truman”10 ?Depende do ponto de vista ...”

Não que isso signifique enganar o parceiro. Mas, desenvolver uma relação de
tamanha confiança na qual se compreenda os altos e baixos pelos quais todo casal passa. E
avaliar se vale a pena renunciar à exclusividade e consentir que o outro vá viver as
sensações que está buscando. E, quando ele estiver renovado, sentir de novo as mais lindas
emoções ao seu lado. Ela, finalmente, concluiu que, sem mentiras, não há traição.

Enquanto guardava as fotos, colocava em ordem, também, a sua mente. Claramente


percebia que uma mudança de padrão de comportamento se desenhava naquele momento e
que aquilo não era uma coisa inédita. Ao longo do século XX, outros fatores modificaram o
comportamento humano e todos se adaptaram. Primeiro, foi a pílula, que libertou
sexualmente as pessoas. Depois, veio a AIDS e acabou com a festa. Novamente, todos se
adaptaram. Desta vez, a tecnologia veio modificar nossas vidas, na medida em que torna as
pessoas mais próximas e os encontros mais fáceis. Isso sem falar na inversão de valores.
Passamos as últimas décadas cultuando o corpo e agora as máquinas vêm nos lembrar que
existem valores dentro desse corpo. E muitas vezes, tamanha é a nobreza desses valores,
que eles são capazes de harmonizar o desarmônico e desenhar beleza em traços comuns.

Hoje,quando ouvia alguém reclamar que o parceiro passava noites conectado, ela
sabia que isso era uma conseqüência de um relacionamento cheio de conflitos e não a causa
deles. Estava convencida de que era momento das pessoas adotarem um novo modelo de
união, onde o respeito mútuo e a amizade fossem fortes o suficiente para entender que
aquela pessoa que está ao nosso lado é alguém de carne e osso, passível de paixões e
desejos e não uma propriedade nossa, exposta ao nosso comando e às nossas vontades. Ela
lembrou-se dos muitos “Casados” e “Casadas” que via nas salas. Cada vez havia mais deles
pelos chats. Lembrou-se das propostas que recebera. Lembrou-se, principalmente, do que
lera em um livro e não esqueceu mais: “O amor virtual só acontece quando existe espaço
vazio em um coração”11 .

Ela fez tudo errado. O medo de perder o homem que ela amava tanto foi tão grande
que ela quis aprisioná-lo, controlá-lo. Se fosse hoje, teria dado-lhe liberdade para ir buscar
o que ele sentisse necessidade: desafios, conquistas, sexo. E confiaria que ele voltaria
inteiro e revigorado para ela. Sabia o que plantara no coração dele.
Hoje, ela própria dava imenso valor à liberdade. Libertar Felipe seria, sobretudo,
libertar o seu próprio espírito dos medos e da insegurança. Crescer, enfim. Já concluíra que,
em tempos de internet, é melhor mesmo cultivar a qualidade da relação com o parceiro.

10
“O Show de Truman – O Show da Vida”- filme com Jim Carrey
11
Em “Sedução na Internet”, da mesma autora

23
Porque com a facilidade que se tem em arrumar companhia, o melhor a fazer é garantir que
ele volte, quando resolver ir.
“Preocupam-se tanto com a possibilidade da máquina substituir o homem, mas
ninguém percebe que é exatamente ela que vai resgatar sentimentos como compreensão,
respeito, amizade, amor.” – ela concluiu, finalizando a arrumação de seu apartamento.

A chuva, que não parara o dia inteiro, continuava forte noite adentro. Em muitos
momentos, ela sentia falta de Felipe. Mas, nessas horas, estava aprendendo a respirar fundo
e buscar conforto na fé que agora desenvolvia. Nos últimos tempos, começou a voltar-se
mais para o seu espírito. Descobriu que, com tranqüilidade, ela poderia desanuviar a visão e
enxergar o mundo e os caminhos que ela estava percorrendo. Olhou para trás e viu, passo a
passo, sua vida transformando-se em um caminho. Lembrou dele lhe falando dos padrões
do Universo. Percebia esse caminho, mas não sabia ainda interpretá-lo. Haveria de
aprender, no futuro.
Se ainda contasse com os ensinamentos e com as palavras dele, sempre ditas nas
horas certas, tudo seria mais fácil. O vazio que ele deixara em sua vida era imenso. Ela
acreditava mesmo que ninguém nunca poderia preencher o espaço daquele homem que,
para ela, era tão especial. Arrependia-se por ter sido tão inflexível, fechando os olhos
quando ele quis lhe mostrar que eles ainda poderiam salvar seu relacionamento. “Nós nos
preocupamos tanto em encontrar a nossa alma gêmea, mas não nos preparamos para esse
encontro. Ficamos esperando que ela venha pronta para se encaixar como uma luva em
nós, como se existisse para nos fazer as vontades. Esquecemos que é uma alma com
desejos e necessidades próprias.”

Ela entendeu isso tarde demais. Cansada, resolveu entrar em uma sala de bate-papo,
esperando o sono chegar. Queria distrair-se um pouco e escolheu um nick que desse
margem a brincadeiras e conversas com duplo sentido. Escolheu uma sala aleatoriamente e
não acreditou quando se deparou com um nick tão familiar.

(22:30:07) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: De qual bairro vc é ?


(22:31:40) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: Copa, princesinha! E vc, é do
Rio?

Ela não teve dúvidas de que se tratava de Felipe. Conhecia o seu jeito de teclar e de
se expressar na internet. Além disso, ele não devia fazer questão de esconder-se dela, caso
contrário, trocaria simplesmente seu nickname.

(22:32:16) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Vim de Parati, dei umas voltas
pelo Rio e te reencontrei aqui...no meio de tanta gente...
(22:33:27) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: É vc?! Me achou pela
procura12 ?

12
Recurso que os maiores canais de chat possuem, que possibilita que se ache uma pessoa, se ela estiver em
uma das suas salas, digitando o seu nick .

24
(22:34:03) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Que nada, foi coincidência
mesmo...quer dizer, vc não acredita em coincidências...risos...
(22:34:50) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: Vc está bem?
(22:35:26) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Estou ! E vc?

Conversaram durante algum tempo sobre as novidades do dia-a-dia, que eram


muitas. Falaram de suas vidas, de seus planos, de suas carreiras. Ela falou dos seus projetos,
ele falou das suas realizações. Contou que passara os primeiros tempos da separação saindo
com os amigos, matando as saudades dos lugares que costumava freqüentar antes de
conhecê-la. Durante algum tempo, conversaram animadamente, como velhos e bons
amigos. Ele não falou de alguém especial em sua vida e ela também teve medo de
perguntar. De repente, uma onda de saudade a fez sentir-se incapaz de continuar ali,
teclando com ele, como se nunca tivessem sido mais do que bons amigos. Embora fizesse
um grande esforço para realmente mudar seu modo de ser, algumas vezes ela fraquejava,
deixando-se levar pela emoção e pela saudade. Não querendo demonstrar isso a ele, ela
inventou uma desculpa para desconectar:

(23:56:01) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Eu preciso ir dormir...Estou


com sono...
(23:57:39) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: O que tu tá fazendo aqui ainda,
ô sonâmbula!
(23:58:26) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Risos...conversando com
vc...Tô tão calminha...Tô me sentindo outra pessoa...Posso falar uma coisa séria?
(23:58:50) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: Pode...
(23:59:57) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Eu andei crescendo esses
tempos. Aprendi a parar, a refletir, a não me deixar levar por impulsos. Aprendi a respirar
fundo e olhar as coisas por todos os lados e não só pelo meu...
(00:00:51) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: É isso aí, Giulia, tem coisas que
a gente só entende refletindo, com o coração quieto, a alma sossegada, no canto escuro do
quarto e com as estrelas da noite como companhia. Seu coração é o seu maior conselheiro,
mas ele fala baixinho. Às vezes, é difícil escutar. Sua alma é muito frágil, como uma
criança. Então vc tem que cuidar dela, protegê-la, acalentá-la...
(00:02:59)PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: Inútil sofrer por ignorância, né?
Por não parar e pensar...Lembrei do que vc me falou uma vez...Vc me disse que quando eu
entrasse numa roubada, fizesse alguma bobagem ou mesmo acontecesse algo fora do meu
controle era prá eu esperar a tormenta passar. Pensar muito e procurar uma saída. Seguir
meus instintos e, deixar o Universo me mostrar a saída. Tô começando a aprender...
(00:03:50) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: Isso, tem que ter controle,
sangue frio. Tem que se proteger, lembra? Proteger sua alma querida...Escuta teu coração.
Seja confidente contigo mesma. Quer ver um exemplo na natureza? Quando cai uma
tormenta e destrói tudo, inunda os campos, o que a bicharada faz? Fica empoleirado
esperando...fazer o quê? Depois, vem aquele sol...Deixa passar, que depois tudo fica legal
de novo. O negócio é não se esquentar muito com nada...
(00:04:37) PRINCESA fala reservadamente com Felipe RJ: :) Vc é grande ! Não fosse por
vc eu ia estar perdida no mundo, sem saber que o Universo é tão poderoso, sem ter a

25
certeza que eu tenho hoje de que existe uma força por trás de tudo. Que nada é por acaso,
como dizia o mundo materialista em que eu cresci. Eu vou dormir...Beijo carinhoso prá vc!
(00:05:02) Felipe RJ fala reservadamente com PRINCESA: Beijos!

Sentada em frente à tela, ela não conteve algumas lágrimas. Mas, logo, uma súbita
força tomou conta dela. Pensou no que ele acabaram de conversar e se acalmou:
- “Tudo é uma questão conceitual, depende de como se vê as coisas.”

Ela ainda foi fechar as cortinas e olhou a noite lá fora. A chuva diminuía aos
poucos. Sequer incomodava-se com os poucos pingos que ainda caíam. A tormenta tinha
passado.

Felipe, naquela noite, estava há algum tempo passeando pelo canal de bate-papo.
Mudava de uma sala para outra, mas não conseguia levar nenhuma conversa adiante.
Estava distraído demais, teclando enquanto assistia a um filme. Quando entreteve-se
durante algum tempo conversando com uma garota bastante interessante, ela, de repente,
desconectou. Sua última mensagem avisava que o marido chegara em casa.
Ultimamente, ele vinha observando uma mudança no perfil das pessoas que
encontrava nos chats. Cada vez mais, as salas de bate-papo refletiam a vida real. Hoje, a
variedade de pessoas, com os mais diferentes níveis e idéias, era imensa. Bem diferente do
início, quando grande parte das pessoas que as freqüentava trabalhava com computadores.
Ou, ainda, eram pessoas que encontravam ali uma oportunidade de se relacionarem com o
mundo, superando timidez, traumas e tantas outras limitações..

“No futuro, relacionar-se pela internet vai ser uma coisa absolutamente normal. As
pessoas vão deixar de encarar os relacionamentos pelo computador como uma coisa
estranha e vão fazer deles uma opção a mais de convívio. ”- concluiu.

Ele gostou de conversar com Giulia naquele dia. Não se viam há algum tempo,
desde o dia em que se separaram. Ela parecia estar mais madura, mais segura. Sabia que ela
ainda não estava tão forte quanto demonstrava, mas isso era questão de tempo. Ela estava
se esforçando e ele sabia que contribuíra para essa mudança. Ele vivia, agora, uma nova
fase em sua vida. Sem compromissos, cobranças ou obrigações, sentia-se livre, aberto ao
que a vida lhe trouxesse. Não fazia planos. Vivia um dia de cada vez, aproveitando os bons
momentos.
Estava quase desconectando, quando alguém prendeu a sua atenção. Sua
interlocutora, uma garota do sul do país, tinha alguma coisa de diferente e ele quis
descobrir o que era. Teclavam há algum tempo e ela fazia de tudo para que a conversa se
estendesse.

(00:47:07) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Quantos anos vc tem ?


(00:47:35) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Tenho 31 anos, mas estou inteira,
malho bastante. Dizem que os cariocas são muito soltos e isso me agrada.
(00:48:01) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Vc parece de bem com a vida.

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(00:48:27) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Sou uma garota que adora
amizades, principalmente masculinas. Adoro meu trabalho, vivo numa boa, extremamente
feliz e com quem eu amo. Conheço pessoas de todo o Brasil e do exterior, pelos chats e por
causa da minha profissão. Adoro conversar, curtir som, cinema, adoro transas longas, gosto
de curtir a pessoa inteira na cama.
(00:49:19) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Emancipadinha, hein, que fera!.
(00:50:38) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Se tu que é carioca pensaste isso,
imagina os outros... Tu saíste com alguém daqui da Net?
(00:51:33) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Já conheci umas minas aí super
legais, umas chatas e uma completamente maluca. Duas viraram amigas mesmo. Rolou uns
beijinhos, rolou transa...É bom que vc sai com uma pessoa que vc escolheu. Digo
fisicamente...
(00:52:17) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Que tipo de mulher te atrai
fisicamente ?
(00:53:39) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Tem que ter um rosto bonito, um
cabelo maneiro e um corpinho transado...E tem que gostar de rir muito, brincar, ser do tipo
alegre. Tem que ser chapinha, aí não tem erro, é dessa que eu gosto.
(00:54:26) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Me diz o que é chapinha...
(00:55:47) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Chapinha é amiga, que veste a tua
camisa...Como tu é fisicamente?
(00:56:07) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Tenho 1,66m e peso 50 kg, tenho
cabelos encaracolados. Eu estou em forma, bundinha empinada, musculatura definida.
Adoro usar minissaia e não uso sutiã. Uso blusinhas provocantes, do tipo que revelem
sutilmente os mamilos, mas me faço de desentendida. Gosto de calcinhas pequenas, mas
também adoro sair sem calcinha, sem ninguém saber. Adoro fantasias e minha imaginação
é fértil. Para mim, a beleza está dentro da pessoa, no magnetismo e na sensualidade.
00:57:58) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Fala a verdade, emancipada desse
jeito, tu consegue manter um relacionamento por quanto tempo?
(00:58:37) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Estou num relacionamento há 5
anos...Por que tu me chamas de emancipada? Por eu curtir a minha sexualidade? Por eu
curtir o meu corpo? Por gostar de calcinhas pequenas e te contar?
(00:59:53) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Pô, não precisa ficar grilada assim,
desculpe...
(01:00:35) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Não fiquei grilada, não, fica
tranqüilo. Quero te contar mais sobre minha vida porque ela é interessante e sei que a
maioria dos homens gostariam de estar no lugar do meu amado.
(01:01:24) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Já vi de tudo aqui no Rio, nada
mais me surpreende. Estou até sacando, tu faz sexo com ele e com outra mina ou algum
lance parecido, não é?
(01:02:23) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Viu como eu sei que todo homem
gostaria de estar no lugar dele? Acertaste em cheio. Vivo com duas pessoas casadas há 16
anos. Sou o tesão da vida deles. Os dois são o meu tesão. Nunca transei com um homem tão
gostoso. E ela me dá muito tesão, tb. Adoro o toque suave de uma mulher. Acho nossas
transas super-eróticas. Somos amigos acima de tudo e nosso casamento é fechado. Não
temos relacionamentos fora dele. E tu és muito esperto!

27
(01:03:24) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Acho legal, o importante é a gente
se sentir bem, ser feliz...
(01:04:05) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: Mas, fala a verdade, qual dos dois
te dá mais tesão?
(01:04:52) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Os dois, cada um de um jeito. Ela
sabe exatamente como eu gosto de ser tocada. Ele sabe exatamente como transar comigo.
Quase sempre transo só com ele. Às vezes, só com ela. É raro ficarmos os três juntos, por
causa dos nossos compromissos profissionais. Quando acontece é uma festa, mas é difícil
rolar. Entre nós duas tem uma ligação fortíssima, coisa de alma mesmo. E nós três somos
muito amigos. Não tem posse entre nós.
(01:05:01) Felipe RJ fala reservadamente com G@T@: E até quando tu fica nessa?
(01:05:35) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Não sei, talvez pinte um homem
por quem eu me apaixone. Não se sabe, a vida é muito louca...

A conversa, então, continuou em seu rumo natural. Ela contou detalhes de sua vida
com o casal, mas deixou claro que queria uma vida com marido, casa e filhos.
- Qual mulher não quer? – ele se perguntava.

Não que ele achasse errado o fato de uma mulher sonhar com isso. Muito pelo
contrário. O problema, para ele, era que, no caso de uma separação, quem fica com todo o
ônus é sempre o homem. Não bastasse a justiça privilegiar sempre a mãe quanto à guarda
dos filhos, o homem ainda tem que arcar com pensões. Isso sem falar que, quando há bens,
o patrimônio, construído em uma vida, é dividido, não importando o quanto a mulher
colaborou ou não para construir esse patrimônio. Dessa forma, enquanto a mulher fica livre
para reconstruir a sua vida, o homem faz as contas para ver como pode reconstruir a sua.
Ele não achava isso justo.
“Em uma sociedade que preconiza a igualdade entre os sexos, chega a ser
hipocrisia.” – costumava dizer.

Sua esperança era que a virada do século mostrasse às pessoas que, hoje, nós
vivemos em uma sociedade onde homens e mulheres têm papéis profissionais ativos, onde
ambos têm condições de conquistar seus espaços. E que, portanto, é mais do que tempo de
realmente se igualar homens e mulheres em direitos e deveres. Hoje, vivemos em um
mundo, onde a capacidade profissional cada vez mais sobrepõe-se a preconceitos e onde o
espaço para a mulher que se anula profissionalmente em função de um casamento ou dos
filhos diminui a cada dia. Mesmo porque, em tempos de revolução tecnológica, ela pode
trabalhar até sem sair de casa.

(01:25:44) G@T@ fala reservadamente com Felipe RJ: Você já fez sexo virtual?

A pergunta na tela pedia resposta. Ele buscou o controle remoto e abaixou o som da
TV. Embora a chuva ainda não houvesse cessado completamente, dentro do quarto de
Felipe a temperatura começou a esquentar.

28
Capítulo VI

Quando abriu a sua caixa postal, Giulia ficou indignada. Há alguns dias, ela pedira
informações, por e-mail13 , a várias agências de viagens. Havia lhe ocorrido a idéia de
passar uns dias viajando. Mas, acabou desistindo, diante de um novo projeto profissional,
que exigiria sua presença física em alguns momentos.
Contudo, uma das agências que ela consultara, somente agora lhe respondia. Pior
que a demora, foi o teor da mensagem:

* Assunto : Informações
Data: Sexta-feira, 28 de abril de 2000 01:00:06 hs
De: Agência de Viagens
Para: Giulia

Recebemos sua mensagem com pedido de informações. Pedimos o favor de


contactar-nos pelo telefone que consta em nossa home-page.

Cordialmente,
Agência de Viagens

Ela nem terminou de ler a mensagem. Deletou-a, assim como deletou a tal agência
de seu catálogo de endereços. Aquela, certamente, não era uma empresa adequada ao perfil
do consumidor da internet.
Essa era uma das coisas que Giulia não conseguia entender. Como é que empresas,
buscando acompanhar a inovação que a rede propiciou, pagam para colocar uma home-
page na rede, disponibilizam endereços eletrônicos e não analisam as características do
consumidor que vai utilizar esses serviços? Como esquecem um conceito tão básico quanto
conhecer as características do público-alvo ? Imediatismo, com certeza é uma dessas
características. A velocidade com que as coisas acontecem na rede é muito maior que na
vida real. Na internet, não precisamos de transporte para pular de um concorrente para
outro. Não precisamos estacionar o carro ou pegar um táxi, não andamos embaixo de um
calor de 30º para pesquisar preços ou obter informações sobre um determinado produto.
Um click do mouse é suficiente para levar-nos para outras ofertas se não achamos o que
procuramos em um site.
Ao mesmo tempo, ela via o esforço de outras empresas, buscando adequar-se ao
perfil do consumidor internauta. Como as opções de compras pela internet crescem na
proporção em que aumenta o hábito do comércio eletrônico14 , ela concluiu que, num futuro
próximo, a grande maioria das empresas estariam adaptadas à rede.

13
E-mail é o endereço eletrônico, que, tal qual nosso endereço físico, é utilizado para que a mensagem
chegue, pela internet, na nossa caixa postal. Coloquialmente, usa-se “e-mail”para designar a mensagem,
também.
14
O comércio eletrônico (ou e-commerce) é a atividade comercial que acontece por processos digitais através
de uma rede. Boa parte das novas transações empresa-empresa e empresa-consumidor está se efetuando pela
Internet

29
Sobre isso, lera uma previsão bastante interessante, de Bill Gates15 , segundo a qual,
se os anos 80 privilegiaram a qualidade e os anos 90 a reengenharia, a primeira década do
século XXI privilegiará a velocidade. Segundo ele, “a questão será com que rapidez a
natureza dos negócios mudará, quão rápidas serão as transações comerciais e como o
acesso à informação irá alterar o estilo de vida dos consumidores e sua expectativa em
relação às empresas”. Ele segue dizendo que, embora estejamos na Era da Informação há
cerca de trinta anos, muito dessa informação ainda circula em papel. A tecnologia digital,
ele conclui, pode ser decisiva na medida em que pode criar novos processos para melhorar
radicalmente o funcionamento das empresas, obter pleno aproveitamento de todas as
capacidades dos funcionários e dar-lhes velocidade de respostas que irão precisar para
competir no mundo dos negócios de alta velocidade que está surgindo.

Ela estava entretida em meio à sua correspondência. Vinha conhecendo pessoas pela
rede e fora dela. Começava, agora, a ampliar e renovar o seu círculo de amizades. Saía mais
pela noite carioca, divertia-se, enfim.
Em meio às mensagens, havia uma de Felipe. Eles trocavam e-mails com
regularidade, mas aquela mensagem, falando de coisas do cotidiano, levou Giulia a tempos
atrás. Ela, novamente, sentiu saudades dele. Respondeu-lhe, convidando-o para ir conhecer
sua casa.
Alguns dias depois, ele foi visitá-la. Não se viam desde a separação. Mas, parecia
que nada havia mudado. Passaram a noite inteira conversando, falaram de passado, presente
e futuro. Nada, contudo, era mais importante do que aquele momento alí, em que eram os
grandes amigos de sempre.
Logo perceberam que vinham tendo o mesmo problema. Como alternavam
programas com os amigos e noites nos chats da rede, eram cobrados por isso. Embora eles
usassem a internet como uma alternativa e não como um padrão de convívio social, muitos
achavam que eles substituíam a vida real pela virtual.
- Um amigo meu veio me perguntar como é namorar pelo computador, sem sentir o
toque, o gosto, o perfume da mulher. – disse Felipe, rindo.

Ela sorriu. Estava acostumada a ouvir a mesma coisa.


- Nossos amigos pensam que a gente abraça o teclado, beija o mouse e transa com
o monitor. – ela brincou.

Não que eles ignorassem que existem as pessoas que trocam programas sociais
pelas horas à frente do computador, construindo um mundo virtual que substitui o real.
Mas, essas pessoas são exceções. Elas chegam a trocar horas de sono pelas noites em frente
ao monitor, descuidam-se de sua alimentação, ficam ansiosas quando não podem conectar.
Exageradas na dose, tornam-se viciadas e precisam de tratamento. Nenhum exagero é
saudável.
- Existem psicólogos que dizem que quem se vicia em internet, tem um perfil
característico, que poderia levá-la a viciar-se em qualquer outra coisa16 .– ela falou,
enquanto lhe servia mais uma taça de vinho.

15
No livro “A Empresa na Velocidade do Pensamento”- Companhia das Letras -1999
16
Kimberley Young (psicóloga americana) e Ivan Goldberg (psiquiatra de Nova York)

30
O caso deles, contudo, como o da grande maioria dos internautas, era bem outro.
- Há outra linha de estudos que conclui que não existe exatamente vício, mas sim
uma grande curiosidade em torno do que é ainda novidade17 .

Eles se enquadravam naquele grupo de internautas que passou horas conectado à


rede quando ela ainda era novidade. À medida em que foram integrando-a ao seu cotidiano
e descobrindo os usos possíveis para melhorar a sua qualidade de vida, passaram a a usá-la
de forma mais equilibrada.
Os relacionamentos que eles começavam pela rede, em pouco tempo eram levados
para a vida real. E nesse primeiro encontro, os sentimentos eram redefinidos de forma
espontânea. A fantasia, substituída pela realidade, podia gerar o mais puro deslumbramento
ou uma grande decepção .

- Sabe o que eu acho engraçado? Se você disser que ficou em casa assistindo
televisão a noite inteira, ninguém chama você de viciado. – ela comentou.

Os amigos de Giulia, grande parte deles ainda distante da rede, não conseguiam
entender a sua interação com a internet. Muito menos a sua família, cuja faixa etária era
muito alta.
- Pior é que esse não é um problema só meu, Felipe. Enquanto muitos idosos
descobrem a rede como uma alternativa de lazer, chegando a recuperar o interesse pela
vida através do contato social que os chats propiciam, a grande maioria resiste à ela.
Quando a influência desses idosos restringe-se à esfera familiar, o dano não é tão grave. O
problema é quando eles estão à frente de postos de comando e teimam em ignorar a rede,
como se pudessem fazê-lo.

Eles enxergavam claramente que as mudanças que a rede trouxe para nossas vidas
eram irreversíveis. Viam que os internautas de hoje são, sem dúvida, protagonistas de uma
nova cultura que a revolução tecnológica trouxe. Mas, nem todo mundo ainda havia
percebido isso.
Havia um outro aspecto ainda que preocupava certamente, não só a eles , mas a
todas as pessoas que já vivem completamente integradas à rede. Vemos aumentar a
distância entre aqueles que acompanham cada inovação tecnológica e aqueles que sequer
têm acesso à rede, seja por falta de equipamento ou de linha telefônica. Um artigo sobre o
tema, publicado em uma revista especializada chamara a atenção de ambos.18 Nesse artigo,
havia o importante alerta para o fato de, enquanto que em países como os EUA existe já
uma legislação que obriga a existência de um serviço universal de acesso à rede, no Brasil
ainda se pensa pouco sobre o assunto. Era mais do que momento de se trabalhar para que
essa nova cultura em formação fosse diluída e integrada ao nosso cotidiano, de uma
maneira natural, antes que novas tecnologias e novos aparelhos aumentem ainda mais essas
diferenças, trazendo desastrosas conseqüências para a sociedade como um todo.
Otimista como sempre, Giulia sonhava com o dia em que todas as nossas crianças19 ,
desde cedo, iam ter acesso à informação através do computador.

17
Prof ª Ana Maria Nicolacci-da-Costa , “Nas Malhas da Rede” (Editora Campus – 1997)
18
“O Abismo se Alastra”- Carlos Alberto Teixeira- Catiripapo, Revista Internet Br – Abril - 1999
19
“ Coisa de Criança” – Roberta Correa (psicóloga formada pela PUC –RJ), Aqui! – Janeiro - 1999

31
- Aí, vai ser a mesma coisa que nascer com toda a sabedoria do adulto. Já pensou?

Mas, além da rede, ambos tinham muitas histórias para contar. Histórias engraçadas,
outras sem graça, histórias picantes e histórias comuns. Vinham experimentando, de novo,
a vida, sozinhos. A internet era uma de suas opções, mas não a única.
Quando perceberam, era meio da madrugada. Felipe foi embora e deixou a casa de
Giulia cheia de luz. E o seu coração, cheio de alegria. No fundo, havia uma ponta de
saudade. Mas, ela estava empenhada em aprender a viver sem ele. Não haveria de fraquejar.
Nem poderia.

O dia seguinte amanheceu ensolarado. Era sábado e Felipe ficou indeciso sobre o
que fazer naquele dia. Pensava em encontrar os amigos para um jogo de vôlei, mas desistiu
quando viu o sol desaparecendo em meio às nuvens.
À tarde, ele entrou em um chat.

(15:31:26) Felipe RJ : entra na sala...


(15:33:08) Bia : entra na sala...
(15:33:26) Bia : Ninguém a fim de um papo manero com uma carioquinha?
(15:35:45) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Oi princesa.... Moro em Copacabana. E
vc?
(15:36:02) Bia sorri para Felipe RJ: Moro em Ipanema
(15:37:29) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Já morei ai... adorava... quantos anos?
(15:38:11) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: 23. e vc?
(15:38:57) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Teu nome é lindo ... Beatriz.... se eu
tivesse uma namorada com esse nome ia ficar muito besta. Tenho quase 40, mas ninguém
diz não.
(15:39:36) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Anna Beatriz. Tua namorada não tem
nome bonito ? Ou tu não tem namorada?
(15:40:16) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Tenho uns rolos...E tu?
(15:41:31) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Eu tinha um carinha especial, mas tava
faltando molho...Cai fora.
(15:42:01) Ted boy murmura para Bia: Psiu...Não vai me dar atenção não?
(15:43:08) Bia murmura para Ted boy: Eu sou malvada...
(15:44:16)Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Amor pra dar pra vc é que não falta
aqui...comigo
(15:44:46) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Tu é sarado?
(15:45:20) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Tu gosta de gato malhado?
(15:45:23) Ted boy suspira por Bia: Malvada com chicotinho, igual ao da Tiazinha20 ? !
(15:45:31) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Muito...
(15:46:37) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Então deixa eu ser seu gatinho....
(15:47:12) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Assim, sem nem saber como eu sou ?
Que pressa...
(15:47:34) Ted boy fala para Bia: Bia! Não me abandona...

20
Personagem de Suzana Alves

32
(15:47:59) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Pode ser que o mundo acabe amanhã..
então corre e aproveita.... risos
(15:48:03) Bia briga com Ted Boy: Cara, deixa de ser chato...
(15:48:14) Ted boy fala para Bia: Eta carioca durona...
(15:48:57) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Tu parece ser legal... tava precisando
de um papo assim...
(15:49:12) Ted boy fala para Bia: está bem. estou indo....snif.. mas um dia eu volto...
(15:49:31) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Tu tb... tem o meu jeito...
(15:50:57) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Como vc é?

Depois de algum tempo conversando com Bia, Felipe descobriu que ela gostava de
esportes, o que era raro por ali. Grande parte das pessoas, tal qual na vida real, dizia não ter
tempo para cuidar do corpo e da saúde. Isso o incomodava. Cuidar do corpo e mantê-lo
saudável era, para ele, muito mais que vaidade. Era, acima de tudo, cuidar do que o
Universo lhe deu, cuidar do que propiciava à sua alma a oportunidade de estar neste
mundo, aprendendo e crescendo. Por isso, muitas vezes tinha a impressão de que as pessoas
que praticam esportes eram as mais equilibradas. Enquanto pensava nisso, a conversa
rolava na tela. A empatia entre eles havia sido imediata. Ele achou graça no modo dela
expressar-se, com um vocabulário cheio de gírias. Isso era relativamente comum na net.
Expressando-se do mesmo modo como fariam cara a cara, as pessoas acabam evidenciando
mais seu modo de ser. A única coisa que ele não perdoava era erro de Português. Escrever
com erros grosseiros nas salas de bate-papo causa a mesma má impressão que falar com
erros de concordância. Ele entrou no jogo dela, expressando-se do mesmo jeito.

(16:15:30) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Cara, vai cair a maior chuva. Eu ia
correr na praia...Ia..
(16:16:05) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Pô me amarro em correr na areia... tu é
show.... tu fala de um jeito, parece que anda com o pessoal que pega onda...
(16:16:35) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Às vezes, ando sim. Isso é intuição ou
vc enxerga aqui ?
(16:16:50) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Tu tem um jeito chocante... como eu
gosto.. só falta ter um shape no esquema...
(16:17:16) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Tu é que é legal. Tem cara que entra
aqui e vai logo direto ao assunto...risos...Encontrar alguém assim é muito legal
(16:17:58) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Foi só por vc.. por tua causa... não sou
sempre assim não..
(16:18:24) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Não ? Como vc é normalmente?
(16:18:34) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Normalmente eu peço a ficha
primeiro... pra depois atacar.. risos....
(16:19:04) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: E pq comigo tu agiu diferente ?
(16:20:19) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Por esse seu jeito, gostei de vc. Tem
que ter molho, gracinha . Olha eu vou te dizer uma coisa... a gente gosta mesmo pra valer
quando a pessoa tem muito ver com a gente, quando gosta das mesmas coisas.
(16:21:00) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: E se eu for gatinha mesmo?
(16:21:56) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Eu pego vc e te levo lá pra chapada..
subo num morrão daquele lá no meio das estrelas e endoido contigo lá.......

33
Imaginação era o que não faltava para eles, naquela tarde. Ao contrário do que
sempre fazia, Felipe ainda não lhe pedira uma foto. Estava gostando tanto de conversar com
ela que deixou isso para mais tarde. Eles nem perceberam o tempo passando.

(17:41:52) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: gostei de vc.... tô amarradão...


(17:42:50) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Recíproco, meu chapinha...Ainda mais
se tu for brincalhão, se gostar de dançar...
(17:43:07) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Pô Aninha.. tu deve ser uma desgraça
na pista de dança.... desgraça pro teu namorado... que vai morrer de preocupação. Como tu
é fisicamente?

Felipe conhecia bem o jogo de sedução na internet onde, muitas vezes, o interesse
desaparece tão logo se descobrem mentiras contadas como realidade. Outras vezes, era a
fantasia que atrapalhava, indo muito além da verdade.
Continuaram o jogo. Ela deu a sua descrição. Ele, deu a dele. Cada um de seu lado
do monitor, criou as suas expectativas em relação ao outro. Quem estava atrás do teclado,
começava a ter uma forma na imaginação do interlocutor. As palavras digitadas na tela
tinham, agora, medidas e dimensões. Como não é todos os dias que se encontra alguém
interessante, mesmo pela internet, Felipe achou que era momento de pedir a foto dela. Anna
Beatriz atendia a grande parte dos seus pré-requisitos e ele quis logo conhecer como era
aquela garota, antes que seu entusiasmo crescesse demais.
Ela era muito diferente do que ele imaginara. Aliás, a fantasia, neste caso, nunca
corresponde à realidade. É mesmo excitante o momento em que se abre um arquivo de
computador que traz a imagem daquela pessoa que, de alguma forma, despertou o nosso
interesse. Substituir a imagem que a nossa imaginação criou pela realidade, pode ser
motivo de grande alegria ou de grande decepção. Contudo, mesmo diferente do que ele
havia imaginado, ela era muito bonita.

(18:48:35) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Vc não tem vontade de me conhecer
não? A gente podia trocar tel.. assim eu não te perdia... A gente podia se dar muito bem....
(18:48:56) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: E eu, não vou ver sua foto não?
(18:47:18) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Vai, coisinha linda... eu tenho uma HP..
as fotos estão lá.. é só entrar e ver.. assim, molinho, princesa ...

Alguns minutos depois, ela voltou e enviou seu telefone. Ele nem precisou de um
pretexto para lhe telefonar. Ela lhe deu a chance.

(18:53:33) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Eu acho que hoje eu vou ficar em
casa...L
(18:54:22) Felipe RJ fala reservadamente com Bia: Não vai. Eu vou te ligar e eu vou
encontrar vc e te cobrir de beijinho.
(19:54:53) Bia fala reservadamente com Felipe RJ: Vc vem me encontrar mesmo ?

A voz meiga dela no telefone o convenceu a transformar aquela brincadeira do chat


em realidade. Enquanto se arrumava para sair, Felipe pensava que, em tempos de internet,

34
os encontros, realmente, são muito mais fáceis. Antes da rede, quando queria conhecer
pessoas diferentes, a única opção era sair com os amigos, freqüentar bares e boites. Nem
sempre encontrava alguém que o agradasse e, algumas vezes, acabava a noite sozinho. Era
muito pior nos momentos em que queria alguém especial ao seu lado, alguém para namorar.
Na internet, o assédio consentido faz com que homens e mulheres se encontrem com mais
facilidade e com menos barreiras. Sem preconceitos, libertam-se e se expõem mais. Em
muitos casos, valores que ficariam ofuscados por uma aparência menos atraente ou por um
comportamento contido, acabam aflorando em uma sala de bate-papo. Isso facilita a vida de
pessoas que não se enquadram dentro dos padrões estéticos normais ou de pessoas que
tenham dificuldades para se relacionar. Ali, elas descobrem que, antes de mais nada, são
pessoas iguais às outras, com seus defeitos e suas qualidades. E que, aprendendo a lidar
com os rótulos que a sociedade teima em lhes dar, vão poder expor o que têm de bom e vão
viver muito mais felizes.

Felipe apostava que Anna Beatriz estava acima da média da mulheres que ele vinha
conhecendo pela rede. Ele nunca se preocupava com a impressão que ia causar nelas.
Conhecia seu poder de sedução. Sabia que as agradava. Ficava muito mais preocupado com
o que ia encontrar pela frente. Não que seja necessário coragem para concretizar um
encontro que começou no plano virtual. Ao desligar o computador, vamos encontrar uma
pessoa de carne e osso, com todas as qualidades que ela nos mostrou teclando e com
defeitos, que vamos conhecer no momento em que a virmos. Neste caso, contudo, ele
pensava que existiam tantas afinidades entre eles, que certamente tornariam-se, no mínimo,
bons amigos.
Quando esses encontros ainda eram uma novidade, ele se enchia de expectativa. A
descoberta do desconhecido o encantava. Ver a realidade se sobrepor à sua fantasia era uma
idéia que o fascinava. O que não o fascinava eram as mulheres por trás daquelas realidades.
E ele começou a precaver-se das mentiras. Ficou muito mais difícil conhecer alguém
interessante. Quando isso acontecia, como naquele dia, era um momento especial.
Ele não negava que esperava, sim, gostar da garota. Ela, na sua espontaneidade,
garantiu que a foto era recente.
Eram quase nove e meia. Quase hora de seus olhares se encontrarem e de poderem
ler suas almas. Quase hora daquela fantasia na mente de Felipe ganhar forma, voz e
movimento. O resultado podia ser encantamento ou decepção. Naquela noite, ele apostava
na primeira opção.

Giulia há alguns dias vinha teclando com Rodrigo. Eles logo trocaram fotos, após
descobrirem várias coisas em comum.
Ela bem que gostaria de ter ido conhecê-lo pessoalmente, assim que ele despertou o
seu interesse. Mas, aqueles dias estavam conturbados para ele e uma série de imprevistos os
impediu de se encontrarem. Passavam horas nos chats, depois no telefone, até o meio da
madrugada.
Ela percebia que estava começando a se envolver demais. Não gostaria que isso
acontecesse antes de estar com ele. E se ela se apaixonasse por uma fantasia? E se a
química entre eles não funcionasse?
Desconfortável essa situação, de estar se apaixonando sem saber como é a vida que
está por trás de uma fotografia! Por isso é que ela sempre preferia partir logo para o
encontro real. Porque quando os olhares se encontram, somos nós e a nossa realidade, para

35
conquistar ou afastar o outro. Imaginava que quanto mais o tempo passasse, maior e mais
distante da realidade seria a sua expectativa.
“São perigosas essas fantasias que nós inventamos na nossa cabeça acerca do
outro. Daqui a pouco, ele vai virar o homem perfeito, o príncipe encantado. Melhor ir
conhecê-lo logo.”- ela pensava.

Contudo, os desencontros prosseguiam . Parecia que ela estava voltando há tempos


atrás, quando viveu sua primeira paixão virtual. Naquela época, ainda desconhecendo o
universo dos chats, Giulia relacionou-se pelo computador durante dois meses, sem nem
mesmo receber uma foto do seu namorado virtual. Apaixonou-se de tal forma pela fantasia
que criou que, quando foi conhecê-lo, não o enxergou como ele era. O sapo ficou escondido
atrás do príncipe. Foram mais quatro meses de ilusões, enganos e mentiras. Um dia, ela
olhou para ele e viu a realidade. Foi embora na mesma hora.
Rodrigo estava começando a fazer parte da vida dela e era cedo demais para que
isso acontecesse. Procurava não valorizá-lo demais, tentava lembrar-se sempre que ele
haveria de ter defeitos, como todo mundo. Ultimamente, aliás, ela andava muito mais
exigente em relação aos homens que conhecia e menos tolerante também. Comparava-os a
Felipe e nenhum deles levava vantagem nesse confronto. Rodrigo, pelo menos, exercia
sobre ela uma grande atração. Mesmo assim, ela fazia de tudo para lembrar-se que,
enquanto não o visse, não o tocasse, não sentisse seu cheiro e seu gosto, estava apaixonada
pela imagem que criara dele.
“Eu não vou me deixar envolver sem conhecê-lo”.- ela pensava.

Entretanto, quando chegava uma mensagem dele – e eram várias durante o dia – seu
coração disparava. Respondia imediatamente, já ansiosa em receber resposta. À noite,
ficava aguardando o momento de teclar com ele. Depois, conversariam pelo telefone até o
sono chegar.
Quando isso começou a virar rotina, ela se preocupou. Principalmente porque
percebeu que estava acostumando-se à sua presença sem nunca tê-lo visto. Não confiava
em tudo o que ele lhe dizia, ficava sempre procurando cruzar informações em busca de
prováveis mentiras, mas não encontrava nada. Apenas, ele se esquivava de ir conhecê-la.
Chegou um momento em que ela sentiu que não podia esperar mais. Moravam
perto, tinham todas as facilidades para se encontrar e ele estava ocupando demais os
pensamentos dela. Não estava disposta a prolongar aquele relacionamento virtual. Por mais
que gostasse do jeito dele, ela precisava ter certeza de que aquele homem seria capaz de
satisfazer os seus cinco sentidos e todos os seus desejos.
- Não quero mais continuar esse relacionamento sem conhecer você. - ela lhe disse
ao telefone.

Ele ficou surpreso:


- Por que não? Qual é o problema de nos conhecermos primeiro por dentro? Nós
trocamos fotos, sabemos que podemos interessar um ao outro.

Ela lembrou-se que ele ainda era novato nas salas de bate-papo. Ela era a primeira
mulher que o interessara, desde que ele entrara nos chats, há cerca de dois meses.
- Rodrigo, eu tenho experiência nesse tipo de relacionamento. Me escuta, isso pode
machucar.

36
- Eu não vejo como – ele respondeu – É apenas diferente do que estamos
acostumados. Quando conhecemos uma pessoa, em qualquer outra situação, nós a
avaliamos primeiro por fora. Aqui é ao contrário. Conhecemos primeiro o interior da
pessoa. Acabamos nos abrindo mais e conhecemos a pessoa mais profundamente também.
- Sim, eu sei disso, mas de que adianta isso se a pessoa não agradar você , se
quando seus olhares se encontrarem ela não fizer seu coração bater mais forte?
- Eu concordo com você que é fundamental a pessoa mexa conosco, que tenha um
jeito que nos seduza. Mas, no nosso caso, um sabe como o outro é e nossas fotos são
atuais. Você é uma mulher muito interessante e eu sei que você gostou de mim. Por que
não posso primeiro descobrir você por dentro?
- Uma foto só mostra a forma. - ela respondeu.
- Isso mesmo! E você mostra seu coração pelas suas palavras, pelo seu pensamento,
pelo modo como você se expressa. Então, eu vou conhecendo você inteira.
- Mas, isso vai além de conhecer. É a coisa da química. Você pode amar meu
coração, mas eu posso não despertar o seu desejo, o seu instinto. Ou você não despertar o
meu. Podemos ter formas harmônicas, bonitas, mas pode não haver brilho por trás delas.
Em qualquer um desses casos, nada vai funcionar.
- Você acha que tem alguma chance de nós não nos sentirmos atraídos um pelo
outro? Como isso poderia acontecer, se já nos damos tão bem?
- Isso acontece quando você olha para a pessoa e não sente aquele desejo que faz
você querer tocar nela. Isso acontece quando o beijo da pessoa não emociona você,
quando o gosto não agrada ou o cheiro não excita. Ou, como se costuma dizer, a química
não funciona.
Ele ficou quieto, alguns instantes. Ela lhe deu tempo para absorver suas palavras e
continuou:

- Então, você descobre que se apaixonou por uma fantasia, porque aquela pessoa
perfeita, pronta para ser a pessoa da sua vida, para você amar para sempre, não existe.
Você descobre que passou horas conversando com um produto da sua imaginação, porque
a pessoa só é daquele jeito na sua mente. E isso frustra você, machuca. Por isso eu não
acho saudável um relacionamento virtual se prolongar por tanto tempo. Entendeu, agora?

Naquele dia, ela o convenceu a se encontrarem. Ela nunca esquecia as regras de


segurança nesses casos. Combinou o encontro em um restaurante conhecido da cidade, de
modo a garantir que estaria cercada de pessoas. Dirigiu-se para lá em seu próprio carro,
resguardando assim o seu endereço. Na verdade, o que ela fazia nessas situações era tomar
os mesmos cuidados que tomaria ao lidar com pessoas desconhecidas. Nunca confiava
imediatamente, avaliava com freqüência suas atitudes e posturas, protegia-se até sentir-se à
vontade. Era simples assim. Errado seria acreditar na aparente intimidade que o computador
propicia e baixar as defesas. Errado seria sentir-se absolutamente segura com alguém que
conhecera virtualmente.
Insistir em encontrá-lo foi a melhor coisa que Giulia fez. Eles davam-se muito bem,
mas nada funcionou entre eles. Não tinham nada a ver um com o outro. Ambos disfarçaram
o mal-estar, conversaram sobre banalidades e voltaram para suas casas. Era dessas coisas
que não têm explicação. Tinham tudo para dar certo. Deu tudo errado.

37
Capítulo VII

No fim de junho, Felipe vinha saindo com freqüência com Anna Beatriz. Embora
não planejasse ter, tão cedo, outra pessoa em sua vida, Bia tornou-se uma companhia mais
assídua. Ela era alegre, amiga e companheira de todas as horas. Além disso, era doce,
meiga e bonita. Tinha muitas coisas que ele gostava em uma mulher. A atração entre eles
foi imediata. No dia em que se conheceram, teclaram a tarde inteira e encontraram-se à
noite. No início, uma grande atração física os uniu. Pouco a pouco, iam surgindo
sentimentos como carinho e amizade e eles sentiam imenso prazer na companhia um do
outro, de modo que ele foi levando adiante aquele namoro.
Logo percebeu que o relacionamento deles lembrava muito o seu envolvimento com
Giulia. Ele pensava nela com freqüência. Embora hoje levasse a vida exatamente do jeito
que queria, ele se questionava porque não conseguira ficar com ela. Às vezes, achava que
eles viveram tudo muito rápido. Outras vezes, achava que ela ainda era imatura para levar
adiante um relacionamento que poderia ser definitivo.
Mas, a verdade é que, em muitas horas, sentia falta dela.
Nos últimos tempos, abandonara um pouco os chats, mas não totalmente.
Continuava achando fascinante conhecer outras pessoas e não abria mão de algumas horas
conectado. Em função disso, acabava tendo com Bia os mesmos problemas que tivera com
Giulia. Era difícil a namorada entender que, para ele, aquilo não passava de diversão.
- Eu tenho uma amiga que perdeu o marido assim – ela dizia.
- Ele fugiu de casa com o computador ? – ele brincava, tentando evitar a discussão.

Então, ela repetia a mesma história e ele não duvidava de que isso realmente podia
acontecer. Ele mesmo ouvia, vez por outra, histórias de casamentos desfeitos porque um
dos dois envolveu-se com alguém que conheceu na internet. Mas, na sua maturidade, sabia
que havia muito mais por trás daquela atitude do que noites passadas nos chats.

- E foi de uma hora para outra, sem que a minha amiga esperasse – ela
completava.
- Bia, essas coisas não acontecem sem aviso. O casamento deles não devia ir bem,
antes dele resolver passar noites na internet. – ele tentava explicar.
- Ia sim, ela dizia que estava feliz.
- Ela estava feliz. E ele?
- Ele nunca reclamou.
- Tem gente que não reclama. Aliás, nem devia ser preciso ele reclamar. Ela devia
ter percebido.
- Então, isso quer dizer que nós não estamos bem ? Você vive na internet...
- Mas, eu não troco você por ninguém que eu conheço na rede, é diferente. Não
saio do virtual para o real.

Ele lhe contou das muitas horas que passava ao lado de Giulia, cada um em seu
computador.
- Existe uma grande diferença entre você entrar nos chats porque quer conhecer
pessoas, quer ampliar o seu círculo de amizades e estar ali procurando uma nova
realidade, porque não está feliz. Durante muito tempo, enquanto eu estive com a Giulia,
nós dois mantínhamos uma vida virtual paralela à real e éramos felizes.

38
- E qual é o limite entre as duas situações? – ela perguntou, desconfiada.
-Não é fácil descobrir esse limite. Mas, no meu caso, eu desligava o computador e
tinha uma vida fora dele que me satisfazia, como eu tenho hoje. Não misturava a vida
virtual com a real. A virtual era uma grande brincadeira, uma diversão que, às vezes,
extrapolava para a vida real. Mas, não passava de farra, eu não me envolvia.

Ele a puxou para perto de si e ela sentou em seu colo. Depois de um longo beijo, ele
concluiu:

- Bia, quando a pessoa usa o computador como fuga da realidade, buscando opções
para a vida real, a culpa não é da internet. O homem ou a mulher que troca a companhia
do parceiro pelas muitas horas na rede, não está satisfeito naquele relacionamento. Se
hoje essa pessoa passa horas conectado, tempos atrás estaria passeando pela noite ou
teria alguma outra relação por aí, durante o dia mesmo.
Ela não se satisfez com a explicação dele.
- Quem me garante que você não sai essas mulheres da internet quando eu não
estou aqui?

“E daí se eu sair? Isso quer dizer o que, que eu não gosto de você? É tão difícil
entender que se eu estou com você, é porque eu quero, pois nada me obriga a isso?”

A resposta dele não saiu do pensamento. Ela não havia entendido nada e ele também
não estava disposto a explicar melhor. Enquanto separava o material de mergulho, percebeu
que estava irritado com aquela conversa. Via pessoas culpando a internet e os
relacionamentos começados no computador por separações e desencontros de casais.
Achava que já passara da hora das pessoas compreenderem que a rede era apenas mais um
meio de comunicação. E que os poderes de transformar nossas vidas em um paraíso ou em
um inferno estão dentro de nós.

Bia estava distraída, organizando o que eles levariam naquela viagem. Tinham um
fim de semana de sol para aproveitar em Angra dos Reis. Ele olhou para ela e a achou mais
bonita do que nunca. Mas, a sensação de estar preso, começava novamente a incomodá-lo.

Capítulo VIII

Dias como aquele, com sol brilhante e brisa fresca realçavam a beleza do Rio de
Janeiro. A cidade ficava ainda mais linda. Giulia, sensível à Natureza, tinha alguns lugares
para os quais fugia por algum tempo, sempre que podia. A Urca era um deles.
Ela foi correr na areia de Copacabana enquanto o sol ainda não estava muito forte e,
mais tarde, chamou o amigo Gustavo para ir com ela até lá.
- Que sono é esse? Foi boa a noite? – ela brincou, vendo que ele bocejava.
- Você nem imagina... – respondeu – Saí com uma menina que veio de São Paulo.
- O quê? - Giulia espantou-se.

39
Sabia que a namorada dele era extremamente ciumenta. Estavam juntos há dois anos
e ele dizia, para quem quisesse ouvir, o quanto a amava. Mas, ela também sabia como eram
os amores virtuais. Ela mesma percorrera aquele caminho São Paulo-Rio. Vivera já aquela
situação de apaixonar-se por uma pessoa sem nunca tê-la visto, sem nunca tê-la tocado. O
poder das palavras digitadas na tela é potencializado quando existe um coração por trás
dela, ávido por emoções, sejam elas quais forem.
- Ela trouxe umas amigas, tive que chamar meus amigos. – ele continuou. Divertia-
se ao ver que Giulia ficava confusa com a situação.

Eles pararam o carro perto do Forte e sentaram na mureta, de frente para o mar. A
água limpa deixava ver cardumes inteiros passeando calmamente por ali. O mar andava
mais verde do que nunca naqueles dias. Ela ouvia o amigo.
- Me explica isso aí. Você está mal com a sua namorada? Ou simplesmente deu
uma escapadinha?
- Nós brigamos, às vezes, mas eu nunca vou deixá-la. Ela é a mulher da minha
vida, tenho certeza disso.
- Eu pensei que ela fosse única na sua vida. Por isso, me espantei.
- Ela é a única que eu amo e tenho certeza que vai ser a única que vou amar. O
problema é que a gente se encontrou cedo demais. Com 23 anos, eu ainda tenho que viver
muita coisa, me divertir por aí...

Ela podia entendê-lo. Há muito, modificara seu conceito acerca dos


relacionamentos.

- Sabe, Giulia, na minha idade, eu quero quantidade mesmo. Quero experimentar,


conhecer, colecionar conquistas . Mas, quando surge um sentimento no meio disso, a gente
não tem como fugir. Aconteceu comigo antes do que eu esperava. Então, concilio meus
dois lados: o conquistador e o apaixonado.
- Mas, Gustavo, você fez a menina vir de São Paulo para cá por uma aventura?
- Não, isso foi uma coincidência. Ela vinha mesmo para o Rio, com as amigas.
Vieram fazer um curso aqui. Eu a conheci em uma sala de bate-papo e as coisas foram
acontecendo. Eu não escondo de ninguém que eu tenho namorada e que sou louco por ela.
Abri o jogo e, mesmo assim, ela quis me conhecer.

- Lógico que a sua namorada nem imagina isso... – ela sorriu, pensando se não seria
uma boa idéia dar um mergulho. A água parecia deliciosa.
- Ela é muito nova, nunca entenderia. Só iria machucá-la.

Nisso ele tinha razão. Carolina, aos 18 anos, era uma linda garota, mas era
extremamente possessiva. Morria de ciúmes do namorado, a ponto de ser agressiva com
qualquer mulher que se aproximasse dele. Ela nem queria saber qual era o assunto. Tratava
logo de mostrar que alí, a rainha era ela. Isso, muitas vezes, causava constrangimentos para
Gustavo e eles acabavam brigando. Mas, no fundo, ele entendia a insegurança da namorada
e acabava achando que a maturidade a modificaria.
Ele contou para Giulia como havia sido o encontro com as paulistas.
- Engraçado isso que você falou...você conta que tem namorada e mesmo assim, as
meninas querem sair com você, porque acham você uma pessoa legal. Meu amigo, essa

40
nova geração tem uma cabeça muito mais leve... – ela lembrou-se das vezes em que falara
de Felipe nas salas de faixa etária mais alta. Nessas ocasiões, a reação dos interlocutores era
bem diferente. Ou a deixavam falando sozinha ou partiam de vez para a clássica pergunta:
“O que busca aqui, uma aventura?”

Enquanto conversavam, ela desceu da mureta e foi cuidadosamente caminhando


pelas pedras, em direção à água. Gustavo a seguiu.

- Eu acho que isso não tem a ver com idade - ele falou, pensativo – Acho que a
maioria das pessoas está sentindo falta de diálogo, quer ser ouvida, quer atenção. Estamos
em um ritmo de vida muito acelerado, com muitas cobranças, muita pressão. Se você não
cuidar do seu relacionamento, se não olhar para as necessidades de quem está com você, a
pessoa vai buscar isso em outros lugares. E os chats são ideiais para novos encontros,
novos relacionamentos, novas amizades.
- Espere...então você está me dizendo que a sua namorada não está satisfazendo
você em algum aspecto.- Giulia questionava, procurando entendê-lo.

- Em algum aspecto, não está mesmo. Ela não entende que, nesse momento, eu
preciso de liberdade. Como eu não quero perdê-la, eu levo uma vida que ela desconhece. É
o que eu falei, quando há sentimento verdadeiro no meio, a gente não tem como fugir. Eu a
amo, mas quero aproveitar a vida.

Ela ficou algum tempo pensando nas palavras dele. Entendia perfeitamente o que
ele estava falando, mas sabia que essa compreensão era aprendizado dos mais difíceis para
a alma humana. “Quem sabe, a partir de agora, – ela pensou - os mais jovens assimilem
melhor essa nova forma de relacionamento que surge espontaneamente, porque cresceram
convivendo com a tecnologia e com as facilidades que ela trouxe.” Felizmente, os
adolescentes e jovens de hoje, vivem uma realidade onde a internet mudou a forma das
pessoas não só relacionarem-se entre si, mas com o mundo e consigo próprias. Não têm
medo de se deixarem levar pela rede e pelo computadores, porque sabem que eles nunca
vão poder substituir o lado humano das relações. Essa geração percebe melhor do que
ninguém todas as possibilidades da internet e os melhores usos para ela.
“A beleza da vida não está na matéria, mas nas emoções subjacentes a ela.”

Parecia que Felipe lhe soprava aquelas palavras no ouvido, outra vez. Mais do que
nunca, elas faziam sentido.
Ela jogou-se na água e uma deliciosa sensação percorreu seu corpo. A luz do sol
deixava o mar mais bonito. O calor era bem-vindo naquela tarde de outono. Ela olhava para
aquele cenário à sua volta e agradecia ao Universo pela saúde, pela vida, pelas coisas que
vinha aprendendo. Nos últimos tempos, parecia que sempre havia uma mensagem do
Universo para Giulia, fosse nas palavras de um amigo, fosse no que lhe acontecia. Ela
percebia beleza nas coisas mais simples do cotidiano. Dia após dia, sentia crescer dentro
dela uma enorme fé e um grande amor à vida. Via-se superando medos e dores antigas.
Estava mais forte, pronta para enfrentar o que a vida lhe trouxesse. Se fosse bom, haveria
de agradecer novamente. E se viessem coisas ruins, haveria de buscar um motivo, uma
explicação e um caminho novo.

41
- Gustavo, vocês que hoje crescem fazendo amigos nos chats, têm uma oportunidade
maravilhosa. Vocês, com toda segurança que o anonimato propicia, podem superar medos
e inibições, podem aprender a vencer suas dificuldades e experimentar novos
comportamentos. Isso tudo, sem se exporem a nenhum risco. Vão aprender a viver muito
mais rapidamente do que nós. Vão ter chance de serem mais fortes e mais felizes, com
muito menos idade. Vão viver em um mundo muito melhor.

Ficaram mais algum tempo ali, conversando. Aqueles pensamentos a


entusiasmaram. De repente, pensou que aquele era o mundo em que seu filho ia viver,
quando ela o tivesse. Ela quis ir embora antes de escurecer. Queria levar para casa a
imagem do sol brilhante, forte, alegre. Tal qual sentia seu coração naquele dia.

Quando deixou Gustavo em casa, ele falou:


- Por que você não vai hoje à noite ao luau lá de Ipanema? Tem uma galera da
internet que se encontra toda semana . Quem sempre dá uma canja por lá são os
Detonautas21 .

A noite chegou clara, quente e convidava, sim, a um luau na praia.


Encontros como esses, em que grupos de amigos formados na internet reúnem-se
periodicamente, eram cada vez mais freqüentes. Eram pessoas que, por entrarem sempre
nas mesmas salas, acabavam fazendo amizades virtuais e estas passavam para a vida real.
As mais diferentes personalidades podiam ser encontradas no mesmo grupo e essa era uma
das características das amizades começadas no computador. Se na vida real todos nós
tendemos a selecionar nosso círculo de amigos, procurando pessoas que tenham afinidades
conosco, que tenham padrões culturais e sociais similares aos nossos, na internet não é
assim. Pessoas muito diferentes podem participar do mesmo grupo de amigos, se houver
algum interesse em comum. Conversando em um chat da rede, descobrimos outros
mundos, vemos como pensam e como sentem pessoas dos mais variados tipos. Isso nos
enriquece e faz com que ultrapassemos os limites do nosso cotidiano. Dessa forma, nos
tornamos mais tolerantes e mais completos, através da experiência de outras pessoas.

Quando Giulia chegou à praia de Ipanema, de longe avistou um grande grupo


reunido. Gustavo veio buscá-la no carro e encarregou-se de apresentá-la a várias pessoas.
Elas eram das mais diferentes faixas etárias e estavam todas ali, divertindo-se juntas, como
velhos amigos.
Ela sentou-se perto de um grupo que conversava animadamente. Um casal contava
como se conheceu pela internet. Depois, falaram de suas vidas a partir dali e da expectativa
diante da chegada do primeiro filho.
- Quando ele nascer, vou comprar um computador de presente para ele – disse,
brincando, o jovem pai.

21
A banda Detonautas é a primeira banda formada na internet. Apadrinhados por Gabriel, o Pensador, eles
têm um enorme público no Rio de Janeiro e partem, agora, para conquistar o Brasil. Uma de suas músicas,
“Virtual”, fala exatamente dos relacionamentos virtuais.

42
“São os primeiro filhos da internet chegando” – ela pensou, lembrando-se dos
amigos baianos Ana Cláudia e André e do filho deles, Andrezinho.- “Será que eu vou
conhecer o pai do meu filho pela internet também?”

Ela estava pensando nisso quando olhou para o mar e encantou-se completamente.
Uma enorme lua cheia, irradiava o luar sobre a água, que refletia a sua luz. Um grito saiu
espontaneamente de sua boca, chamando a atenção de todos:

- Olhem que coisa maravilhosa!

Por alguns instantes, os internautas ali reunidos silenciaram, esquecendo as


máquinas. A natureza dava um show e ninguém conseguia ficar imune àquela cena. Parecia
que o Universo fazia questão de lembrar que, por mais poderosa que a tecnologia se torne,
nunca será capaz de emocionar tanto o coração humano quanto um cenário natural.

Capítulo XIX

Acostumada ao inverno paulista, Giulia nem sentiu quando o frio chegou ao Rio de
Janeiro, já atrasado, em julho
Do alto da Pedra do Arpoador, ela observava os surfistas desafiando as ondas no fim
de tarde carioca. Distraída, assustou-se quando sentiu um leve toque em seu ombro. Nem
precisou virar-se para ver quem era. Sentiu o perfume de Felipe.
Aquele encontro inesperado foi um presente dos céus. Cada vez que ela o via,
achava-o mais bonito. Ele também admirava Giulia. O tempo parecia não passar para ela.
Ainda parecia a mesma garota que ele conheceu, anos atrás. Apesar disso, percebia nela
uma postura muito diferente. Estava mais calma, mais segura, mais doce. Quando a
conheceu, ela deixava que sua personalidade forte transbordasse, sem preocupar-se com as
conseqüências. Hoje, era uma pessoa completamente diferente, muito mais equilibrada.
Ele estava novamente sozinho. Separara-se há pouco de Bia.
“Não troco a minha liberdade por nada. E ela começou a me cobrar demais”. – ele
falou, com os olhos atentos no surfista de sleeve preto, que executava um cutback perfeito

Quando o ouviu falar isso, Giulia percebeu o quanto ela própria havia mudado.
Tempos atrás, teria ficado com as palavras dele engasgadas na garganta. Teria se
perguntado porque, afinal, era tão mais importante para Felipe sentir-se livre do que levar
adiante um relacionamento onde houvesse um compromisso maior. Ficariam horas
discutindo, ele dando suas razões e ela contra-argumentando, sem que ninguém fizesse um
esforço para compreender o outro. Hoje, ela era capaz de entendê-lo.
Acima de tudo, ele buscava o equilíbrio, a harmonia. Não se apossava da pessoa que
amava, não a considerava propriedade sua. Da mesma forma, também não gostava quando
lhe restringiam a liberdade de viver tudo o que queria, desde que isso não prejudicasse
ninguém. Dentro da sua linha de pensamento, ele havia sido coerente quando contou a
Giulia, tempos atrás, qual era a sua vontade, naquele momento. Prevenida, ela não estava
sendo enganada. Se ela tivesse entendido as suas necessidades, eles poderiam estar juntos e
felizes. Como estavam, novamente, naquele fim de tarde. De repente, tudo era motivo de
diversão e parecia que o tempo havia voltado atrás e eles eram, outra vez, um casal feliz.

43
Conversaram durante muito tempo, enquanto caía a noite. Quando silenciaram,
ambos o fizeram ao mesmo tempo. Foi então que seus olhares se encontraram. E ficaram
presos, um no outro, durante um longo momento. Naquele instante, Felipe mostrou-se
inteiramente e ela pode enxergá-lo. Viu a sua alma e pode compreendê-lo. Viu o amor que
ele sentia ainda por ela, mas viu, sobretudo o seu grande amor à vida. Ele se mostrou tal
qual era. Ela viu humildade nos seus olhos para aprender e ensinar, viu a seriedade de quem
sabe que não está aqui por acaso e que busca fazer de cada um de seus dias uma nova etapa
de aprendizado. Ela viu os sentimentos mais lindos e mais puros refletidos nos olhos dele e
nunca mais se esqueceu daquele momento. Era a alma dele, transbordando por aquele olhar.
Eles saíram dali para a casa de Felipe. Havia, ainda, uma grande atração recíproca,
que não conseguiam disfarçar. Não puderam mais resistir. Trancaram a porta atrás de si e o
mundo deles voltou a existir. Puro, alegre e cheio de energia, como nunca deixara de ser.

Ela olhou para o corpo nú de Felipe e se emocionou. Parecia que a sua nobreza
interior transbordava e o iluminava por fora, gerando uma rara e doce beleza. Ele imanava
uma luz forte e poderosa, que a hipnotizava e a desarmava, fazendo-a entregar-se inteira.
E eles ficaram muitas horas ali, se acariciando, se tocando, se amando, celebrando
aquele reencontro.

- Passou tanto tempo e parece que nós nunca nos separamos... – ele disse,
acariciando os cabelos dela.- Ainda existe a mesma amizade, o mesmo carinho. E a nossa
transa continua maravilhosa.
Como sempre, parecia que ele lera os pensamentos dela. Era exatamente nisso que
ela pensava. Procurava as palavras para lhe explicar que, hoje, ela o compreendia. Queria
dizer-lhe que poderiam, de novo, estar juntos, que ele poderia tê-la sem abrir mão do que
lhe era tão importante. Tinha medo, porém, de estragar aquele momento. E se ele se
sentisse novamente aprisionado, só porque ela pensava numa possibilidade deles voltarem a
estar juntos?

Ele tinha o mesmo pensamento. Imaginava qual seria a reação de Giulia se ela
soubesse o que se passava pela sua cabeça.
“Por que não pode ser sempre assim? Por que nós temos que renunciar a esses
momentos maravilhosos só porque eu não quero sentir-me preso?”
Aquele reencontro trouxera de volta sensações que nunca foram esquecidas. Era um
outro tempo, uma outra situação, mas as emoções que eles viveram eram já conhecidas e
voltaram muito mais fortes. Se Giulia realmente estivesse mudada, poderiam tentar reatar o
relacionamento deles, dentro de um novo modelo. Queria ter de volta todo o carinho e toda
a amizade que ela lhe dava. Ele pensava em como lhe falar sobre isso. Temia que ela
entendesse errado, que imaginasse que ele a queria simplesmente como uma amante.

Quando finalmente abandonaram seus pensamentos e seus receios, eles falaram ao


mesmo tempo. Queriam a mesma coisa, sentiam a mesma vontade. Cada um a seu modo,
pode explicar ao outro o que se passava no seu coração. Despiram suas almas, um diante do
outro, com toda sinceridade e confiança que caracteriza os grandes amores. E, embora
aquele fosse um sentimento que estava renascendo ainda, ele era forte o bastante para fazê-
los novamente felizes.

44
Desta vez, ela não teria medo de perdê-lo, porque agora entendia que ele não era
propriedade sua. Ele, por sua vez, não recearia magoá-la ao desejar outras mulheres, porque
não a estaria enganando. Ela sabia o que ele pretendia. E, no meio disso tudo, eles teriam
um ao outro, para enfrentarem juntos o mundo, como fazem as almas irmãs.

A diferença naquela nova fase na vida deles, é que cada um tinha o seu próprio
apartamento. Ficavam juntos quando tinham vontade. No começo, pareciam os primeiros
tempos de namoro. Giulia ficava alguns dias no apartamento de Felipe e depois voltava
para o seu. Tão logo amenizaram a saudade que sentiam, foram entrando em uma nova
rotina. Embora tenha ficado claro que não havia nenhum compromisso entre eles, deixaram
voltar à tona o amor que sentiam.
Giulia sabia que corria o risco de vê-lo envolvido com outra mulher. Mas, estava
decidida a agir de modo diferente. Ao invés do medo de perdê-lo, cultivava agora a alegria
pelos momentos em que estavam juntos. Entendeu, finalmente, o que Felipe queria lhe
ensinar quando dizia que tudo era questão do ponto de vista. Cada momento que agora era
motivo de felicidade, tempos atrás teria sido motivo de tristeza, pela incerteza de haver uma
próxima vez. Ela fez a sua opção. Voltou-se para o seu trabalho e ficou completamente
indisponível para quem quer que tentasse acessar seu coração, enquanto deixava-o livre,
para viver o que bem entendesse.

Capítulo X

Uma das conseqüências imediatas daquele reencontro, foi a retomada da parceria


profissional. Sempre trabalharam como uma equipe. Ele tinha um perfil mais técnico e ela
mais administrativo, de modo que um complementava o outro. De forma espontânea, ela
começou a colaborar com o trabalho dele, dando sugestões e palpites, até que resolveram
unir seus projetos.
Não havia crise para eles. Enquanto ouviam reclamações de todos os lados sobre a
falta de emprego, eles desdobravam-se para atender prazos e clientes. A Tecnologia da
Informação, cada vez mais passava a ser encarada como um recurso estratégico pelas
empresas.22
O resultado disso é que emendavam um projeto no outro, sem tempo para descansar.
Quando ainda moravam em Parati, eles tinham um ritmo de vida menos agitado.
Selecionavam trabalhos, recusavam projetos quando sentiam que estavam correndo demais.
Mas, ambos pareciam ter esquecido o valor de ter algumas horas no dia para o lazer.
Entraram em um ritmo alucinante de trabalho, tão logo voltaram a morar no Rio, como que
contagiados pela correria da grande cidade.
Somente quando resolveram trabalhar novamente juntos é que eles se deram conta
do quanto estavam se desgastando, assumindo compromissos demais. Ela rapidamente
integrou-se à equipe de Felipe. Eles faziam os primeiros contatos com os clientes,
elaboravam projetos e os passavam para que outros profissionais os executassem, sob sua
supervisão, dividindo o lucro entre todos. A empresa de Felipe prestava serviços para
outras, maiores. Isso vinha de encontro com o que eles esperavam dos empregos no futuro.
Estavam mais do que convencidos de que valia a pena, sim, abrir mão de benefícios e

22
“A Empresa na Velocidade do Pensamento”- Bill Gates – Editora Campus

45
direitos das leis trabalhistas, neste mundo onde o emprego é cada vez mais escasso, onde os
salários são cada vez mais baixos. Preferiram investir no conhecimento e no aprimoramento
constante. Antenados com as mudanças pelas quais o mundo passava, em função da
tecnologia, apostaram na autonomia de trabalho e deram-se bem. Não ficaram criticando as
máquinas, temendo que estas tomassem, pura e simplesmente, o emprego dos homens. Ao
invés disso, voltaram-se para áreas onde é indispensável a interferência do homem. Tinham
consciência de que era preciso, acima de tudo, um programa de conscientização e de
educação das pessoas, para a realidade do novo século.

Cada vez mais envolvida com o trabalho, Giulia deixou um pouco de lado sua
preocupação com Felipe. Estavam sempre juntos, trabalhando, praticando esportes,
passeando ou viajando. Vez por outra, ele envolvia-se com alguma mulher e afastava-se
dela. Mas, não totalmente. Ela logo percebia quando isso acontecia, porque ele esquivava-
se da companhia dela, com as desculpas mais inusitadas. Ela sabia que era momento de
aguardar com calma, para saber se tratava-se de algo mais sério ou se não passava de mais
uma aventura para ele. Invariavelmente, ele contava-lhe pouco tempo depois o que havia
acontecido. Ela conhecia cada passo dele, quando cada história acabava. E sentia-se mais
segura, porque, afinal de contas, ele continuava ao lado dela.
Foi após uma tarde de sábado no chat que a harmonia entre eles começou a ficar
ameaçada. A ameaça veio na forma de uma loira de 25 anos, casada, que instigava Felipe,
dizendo-se linda. A princípio, ele achou graça da situação, imaginando que ela não devia
ser nada daquilo que anunciava. Durante alguns dias, após ver a foto dele, ela mandou-lhe
e-mails, insistindo para que ele lhe desse o número do seu celular. Felipe resistia, mas a
curiosidade dele foi aumentando. Quando ele cedeu e ela começou a telefonar
insistentemente, Giulia percebeu que alí havia uma ameaça concreta, pela própria história
da garota.
Aos 25 anos, Daniela era uma típica garota da zona sul do Rio. Dona de uma loja,
estava casada há cinco anos, embora conhecesse o marido desde os quinze. Casara-se com
ele em um momento de carência e arrependia-se por isso. Achava-se jovem demais para ter
responsabilidades com um filho, principalmente agora, que o marido estava em crise
financeira. Felipe não se preocupava com a história da vida dela. Dizia, até mesmo para ela,
que só estava interessado em saber se ela era bonita ou não. Imaginava ter o controle da
situação nas mãos, mas, àquela altura, estava envolvendo-se, sem nem mesmo conhecê-la.
Giulia, de longe, percebia o que estava ocorrendo, mas não conseguia convencê-lo de que
não era normal o comportamento daquela mulher que, mesmo sem conhecê-lo
pessoalmente, já se dizia apaixonada.
- Ela está apaixonada pela sua conta bancária – ela brincou, certa manhã, ao
esperar por horas que ele terminasse a conversa com Daniela ao telefone.

Naquele dia, Daniela o havia convencido a ir conhecê-la. Alegava que não lhe
mandaria uma foto por e-mail, para não correr riscos, mas afirmava que ele não ia
decepcionar-se.
- Que risco você corre em me mandar uma foto pelo computador? – riu Felipe.
-De você mostrar para o meu marido e dizer que fui em quem lhe deu. – ela
respondeu.
-Dani, isso é paranóia. Como eu vou descobrir quem é seu marido nesta cidade
enorme se você não me disser?

46
Giulia percebeu que ele mentia quando lhe disse, no final da tarde, que estava
muito cansado e que iria para casa. Ele não a convidou para ir jantar com ele, não lhe
prometeu ligar mais tarde, sequer cogitou encontrá-la navegando pela internet, através do
ICQ.
Nos dias que se seguiram, ele manteve o mesmo comportamento misterioso. Não
deixou de estar com Giulia, mas suas ausências eram cada vez mais constantes.

Daniela era realmente muito bonita. Seu rosto era perfeito, emoldurado pelo cabelo
loiro, longo e liso. Com seu sorriso cativante, ela encantou Felipe, desde a primeira vez que
ele a viu. Logo no primeiro encontro, ela também mostrou-se atraída por ele. Conversaram
durante muito tempo, até que ela teve que ir embora. Naquele encontro, combinado às
pressas, tudo foi feito às escondidas. Ela alegava que não podia expor-se, com receio de que
alguém conhecido os visse juntos. Prometera, numa próxima vez, ir encontrá-lo em um
lugar mais agradável.
Depois desse dia, ele passava muito tempo ao telefone com Daniela. Ela se dizia
apaixonada, queria vê-lo a todo instante. Do seu ponto de vista, ela era perfeita para viver
uma aventura. Como era casada, não teria como cobrar-lhe exclusividade, de modo que ele
não teria que ficar preso a ela. A princípio, aquilo lhe pareceu conveniente. Levava na
brincadeira as declarações de amor dela, imaginando que aquilo não passava de uma
fantasia de uma pessoa carente e mal amada. Pensava em enquadrá-la em um esquema onde
pudessem ver-se esporadicamente, de modo que teriam momentos agradáveis sem que um
interferisse na vida do outro. O que o preocupava, naquele momento, era como contaria
isso para Giulia. Embora percebesse o esforço que ela fazia para encarar a situação com
naturalidade, ele sabia que ela desconfiava de alguma coisa. Não queria que o
envolvimento com Daniela destruísse o seu relacionamento com Giulia e esperava que ela
compreendesse as suas necessidades.
Ele a chamou para jantar alguns dias depois. E, da maneira mais natural possível,
falou-lhe de sua nova aventura:
- Não passa de brincadeira, não vou me apaixonar. Não estou disposto a isso.
Queria que você soubesse que não tem com que se preocupar, porque eu não vou deixar
você por causa dela.

Aquelas palavras não caíram como uma bomba sobre Giulia porque ela sabia que
alguém estava monopolizando demais a atenção de Felipe. O que ele contou-lhe, apenas
serviu para materializar a sua suspeita. Mas, desta vez, a sua reação foi serena. Ela não
brigou com ele, não chorou, não reclamou. Apenas o ouviu falar e conheceu cada detalhe
dos encontros de Felipe e Daniela.
- Para falar a verdade, ela nem é tão bonita assim. Tem um rosto lindo, mas você
tem um corpo muito mais bonito que o dela. – ele disse, enumerando cada defeito da garota,
como se aquilo pusesse consolá-la .

Naquela noite, quando voltou para casa, Giulia chorou como poucas vezes fizera em
sua vida. Estava completamente transtornada, revoltada, sentindo-se a pior das pessoas.
Durante muito tempo, não conseguiu controlar as lágrimas. Chorou até sentir-se exausta,
sem forças para mais nada.

47
No dia seguinte, acordou com o toque do telefone. Felipe estava preocupado porque
ela ainda não ligara para ele, como fazia todos os dias pela manhã. Ouvir a voz dele lhe
trouxe à lembrança o que acontecera na noite anterior. À luz do dia, entretanto, tudo estava
muito mais nítido em sua cabeça. Logo, ela descobriu que, embora hoje estivesse muito
mais forte e convicta de que príncipes encantados não existem, ainda lhe doía ver o homem
que amava interessado em outra mulher. E como doía! Quem sabe, com o tempo, ela se
acostumasse àquela situação e a dor desaparecesse. Mas, não naquela manhã.
Durante todo o dia, ela remoeu a história que Felipe lhe contara na noite anterior e
tentou engolir a sua angústia. Quando o dia terminou, ela estava convencida de que era
melhor viver aquela história com ele do que viver sem ele, sem nada saber da sua vida.
Preferia ser sua cúmplice e saber o que se passava em seu coração. Ela não quis arriscar-se
a reclamar da situação. Temia que ele se sentisse preso e fosse,novamente, embora. Além
disso, se infernizasse a vida dele naquele momento, perderia muitos pontos para a loira que
o estava levando ao céu.

Ela ainda ficou no escritório que agora mantinham, quando todos foram embora.
Felipe saíra muito mais cedo, sem dar desculpas. Fora se encontrar com Daniela. As
dúvidas voltaram à mente de Giulia quando ela viu-se sozinha. E se a garota resolvesse
separar-se por causa dele? Será que ele resistiria a assumir um compromisso com ela? Será
que ele realmente não se sentia atraído por ela, como havia dito? Era uma situação nova e
Giulia não sabia o que esperar. Precisava encontrar uma saída, para o caso de Felipe
descobrir-se apaixonado por Daniela.

Alguns dias mais tarde, a saída para Giulia baixou diretamente na caixa postal do
seu computador. Ela recebeu um convite para lançar um site de e-bay no Brasil, seguindo
um modelo americano. O desafio era altamente estimulante. Ela rapidamente encaminhou a
mensagem para a caixa postal de Felipe, na sala ao lado. Mal terminou de fazê-lo e correu
para lá. Eufórica, entrou sem bater e teve tempo de vê-lo desligar o telefone, furioso.
- Que droga, por que as mulheres sempre acham podem mudar a gente ? – ele
gritou.
- Eu já passei dessa fase. Mesmo porque você é muito teimoso – ela brincou.

Mas, logo viu que ele não estava para brincadeiras.


- Essa mulher não pára de ligar para cá. Fica insistindo, dizendo que eu tenho que
ir vê-la porque ela está apaixonada. – ele estava visivelmente alterado – Acabei de bater o
telefone na cara dela.

Giulia achou graça, mas manteve-se séria. Para ele ter chegado a esse ponto,
Daniela devia tê-lo irritado muito.
- Quer saber de uma coisa? Estou cansado dela.

Ao ouvir isso, Giulia soube que Daniela era carta fora do baralho. Felipe sempre
ponderava muito antes de tomar atitudes, mas quando decidia algo, não voltava atrás. Ela
esperou que ele se acalmasse e mostrou-lhe a mensagem que recebera. Ele leu e perguntou-
lhe o que pretendia fazer. Ela viu que ele não se entusiasmara tanto assim e decepcionou-se.
- O que eu vou fazer? Pegar o projeto para nós, é lógico!

48
- E vai ficar três meses sozinha nos Estados Unidos? Eu não posso ir com você, o
projeto do novo shopping está complicado demais para eu me ausentar.

Ela emudeceu. Lera tão rapidamente a mensagem que pulara a parte onde lhe diziam
que havia a necessidade de um estágio na sede americana da empresa. As dúvidas
imediatamente afloraram à mente de ambos e cada um ficou no seu canto, remoendo-as,
tentando avaliar a situação. Três meses era tempo demais. A última coisa que eles queriam,
agora, era separar-se. Mas, também não podiam simplesmente recusar um projeto daquele
porte que, além de projetá-los profissionalmente, traria um excelente retorno financeiro. A
vontade que ela tinha era de nunca ter recebido aquela mensagem. Se resolvesse recusar,
teria que achar uma desculpa convincente, para que Felipe não percebesse que ele era o
motivo da recusa. Ele, por sua vez, não queria que ela fosse, mas vira a sua empolgação
diante do projeto. Já interferira uma vez na vida dela, quando a fez mudar de São Paulo
para o Rio de Janeiro, abandonando tudo. Embora ela tenha se adaptado melhor à nova
cidade, ele sentiu-se culpado quando se separaram e ela ficou sem amigos e sem a família
por perto. Ele não queria assumir a responsabilidade de pedir para ela não viajar. Aceitaria
a decisão dela. .
Três dias depois, um telefonema cobrou uma resposta de Giulia. Havia conversado
longamente com Felipe.
- Sim, podemos acertar os detalhes. Aceitamos a proposta e eu vou pessoalmente
cuidar disso nos EUA – disse ao telefone, com a voz mais formal que consegui, tentando
dissolver o nó que se formava na sua garganta.

Quando desligou o telefone, correu para a sala de Felipe. Na porta, respirou fundo e
entrou.
- Temos muito trabalho pela frente. Acabei de acertar os detalhes da minha viagem.
Vou para Nova York em três semanas. Quero conhecer tudo o que há na rede sobre e-bay.

O mais casualmente que conseguiu, ela sentou-se ao lado de Felipe e começou sua
exploração por uma ferramenta de busca, na máquina dele. O mais naturalmente que pode,
ele a ajudou, dando dicas e opiniões. Trabalharam durante dias, sem tocar novamente no
assunto da viagem. Cada um a seu modo, eles não conseguiam esquecer que estava
chegando o momento de se separarem.

Para Felipe, o principal era ver Giulia seguir aquilo que seu coração lhe ordenava.
Se ela estava decidida a ir mesmo, ele não iria impedi-la. Já mudara uma vez a vida dela em
função de um desejo seu. Não faria isso novamente. Deixaria que ela fosse aonde seu
coração a levasse. “Eu gosto demais dela para interferir em seu desejo”, ele pensava.
Enquanto isso, ele seguiria levando sua vida no Brasil, cuidando dos negócios e se
divertindo com mulheres que, para ele, não tinham grande importância. Felipe sabia que
havia muitos riscos numa viagem como essa. Certamente, ela voltaria mais madura e
poderia, até mesmo, envolver-se com alguém nos EUA e adiar a volta. Nada seria como
antes, a partir do momento em que ela embarcasse no avião.

Ela, por sua vez, não estava tão feliz quanto tentava demonstrar. Não estava
completamente animada para viajar. Mas, optara por sair de perto dele por uns tempos, com
medo de estragar o seu relacionamento. Ele estava em uma fase que não importava se era

49
Maria, Ana ou Fernanda. Alguma outra mulher, além dela, estaria ao lado dele, porque esse
era o seu desejo. Giulia achou que o melhor a fazer era deixá-lo viver essa fase livremente.
E esperar que ele a chamasse de volta, se sentisse a sua falta. “Mesmo porque”, ela
pensava, “se ele me amasse, não me deixaria viajar.”

Eles passaram muito tempo reunindo material sobre Nova York, para que Giulia se
orientasse o melhor possível quando chegasse lá. Em suas mesas, havia pilhas de mapas, de
todos os ângulos possíveis, inclusive com as mãos das ruas, caso ela se aventurasse a dirigir
por lá. Guias de referência, pontos turísticos, material sobre o modo de vida dos
americanos, tudo o que achavam na rede, eles imprimiam.

Algumas semanas depois, ela estava embarcando. Através de uma agência


especializada, ela pode, pela internet, acertar grande parte dos detalhes práticos para viver
alguns meses lá. Quando chegasse, iria diretamente para o apartamento que alugara.
Também pela rede, escolheu uma academia de ginástica a poucas quadras de seu
apartamento.
Ela chegou junto com o outono em Nova York. Tinha , nos EUA, um pequeno
grupo de amigos, com os quais podia contar: Paul e Susan, um casal de meia-idade, Cindy,
uma universitária de 24 anos, Willian, um advogado de 35 anos e Michael, um empresário,
cuja idade ela ignorava.
Ela conheceu todos eles na internet. Nos primeiros dias, eram eles que a socorriam,
quando necessário. Logo, ela sentiu-se à vontade na nova cidade, apesar de tropeçar, de vez
em quando, na língua. Mas, achava graça em tudo e logo isso se tornou cada vez menos
freqüente. Nos primeiros dias, falava com Felipe a toda hora por telefone. Um conhecia
cada passo do outro, embora separados por milhares de quilômetros. Também trocavam
muitos e-mails por dia, de modo que isso atenuava um pouco as saudades que eles sentiam.
Giulia tomava especial cuidado para não perguntar sobre a vida pessoal de Felipe. Na
verdade, tinha medo que ele lhe falasse que, finalmente, estava saindo com alguma mulher
especial. Ele, por sua vez, evitava perguntar sobre a vida de Giulia. Queria que ela se
sentisse livre, para fazer o que quisesse.

Fazia quase um mês que estava nos EUA quando ela começou a perceber algumas
mudanças nos hábitos de Felipe. Quando lhe telefonava à noite, nem sempre o encontrava
em casa. Invariavelmente, fazia mil contas, achando que errara o fuso, apesar da diferença
tão pequena entre Rio e Nova York. E tentava outra vez e outra vez, até que desistia.
Houve um dia em que ela não conseguiu se conter. Estavam conversando sobre
coisas banais e ela, de repente, lhe perguntou:
- Você está saindo com alguém?

Felipe hesitou do outro lado da linha. Mariana não era importante para ele, mas
naquele momento, servia a seus propósitos. Ela era uma boa companhia, divertia-o com seu
jeito de menina e fazia-o sentir-se mais jovem no contato com ela.
- Não é nada além disso. Não sinto nada especial por ela.

Ele imaginava que Giulia reagiria com agressividade. Mas, ao invés de revolta,
havia doçura na sua voz:
- Eu só quero ver você feliz. Se é isso que você quer, espero que vocês fiquem bem.

50
Eles eram de novo, naquele momento, os amigos de coração. Ele contou para ela o
que estava vivendo. Falou da garota, do que estava sentindo, do que o encantava nela e do
que o incomodava. Abriu se coração e fez isso muitas outras vezes, a partir daquele dia.

Giulia aceitou com naturalidade a situação. Estava mais acostumada e, começava a


perceber que o que Felipe sentia por ela e por Mariana era completamente diferente. Não se
sentia ameaçada pela garota. Já não se sentia “proprietária” de Felipe. Não tinha sequer a
certeza de que estariam juntos novamente, quando ela retornasse ao Brasil. Resolveu levar
sua vida adiante, sem preocupar-se com o que aconteceria.

Willian era sua companhia mais constante naquele país, não só pela sua
disponibilidade de tempo, mas também porque ele falava um pouco de Português e queria
aprender mais. Com ele, Giulia falava em seu idioma, ensinando-o. Quando saíam juntos,
era a vez dele corrigi-la, transformando em coloquial o seu “inglês de escola”, como ela
mesma dizia, brincando.
Ele era extremamente atraente. Seus olhos claros davam a ela a impressão de que
ele era uma pessoa sincera. Os cabelos dele combinavam perfeitamente com as feições de
seu rosto, de traços fortes. Acostumado à atividade física desde criança, Willian tinha um
porte físico privilegiado.
Aos poucos, com o convívio, a amizade deles se fortaleceu. Cada vez que a saudade
de Felipe apertava, era para William que Giulia corria, procurando colo. E ele estava
sempre disponível para ela, sempre disposto a ouvi-la. Da amizade, surgiu uma forte
atração que, a princípio, deixou Giulia confusa. Durante algum tempo, não pode entender
como podia amar Felipe e sentir-se atraída por outro homem. Durante algum tempo, sentiu-
se incomodada com essa situação. Até que um dia, percebeu que era exatamente isso o que
Felipe tentava lhe explicar. Que era sim, possível amar uma pessoa e sentir atração por
outra. Além disso, ela estava extremamente carente. A ausência de Felipe, a insegurança
por saber que ele estava com outra mulher, o fato de estar de passagem por aquele país,
tudo contribuía para que Giulia se sentisse sozinha. E havia a saudade do Brasil.
Constantemente, sentia falta das cachoeiras das Paineiras, da paisagem da pista Cláudio
Coutinho, de Grumari e suas ondas.
Finalmente descobriu que não mais acreditava em amores eternos. Achava muito
bonito o sonho de felicidade para sempre. Contudo, concluía que isso era cada vez mais
inviável em um mundo em constante mudança, onde tudo acontece em velocidade
impressionante. O que hoje é imutável e sólido, amanhã não é mais. Nos dias atuais, onde
as pessoas fazem escolhas a todo momento, basta um pequeno desajuste em um dos
parceiros para que um relacionamento desmonte. Ainda mais quando se caminha para uma
sociedade cada vez menos patriarcal, onde a mulher vem sendo chamada a assumir um
papel efetivamente ativo. Giulia vinha percebendo que muitos casais se desajustavam
exatamente nesse momento de adaptação, onde novos papéis se estabeleciam. Mas, ela
apenas observava o que acontecia à sua volta, sem pretender tirar conclusões. Deixava que
os psicólogos e os sociólogos se incumbissem de explicar o que estava realmente mudando
nas relações.
Ela acreditava, hoje, no amor que engrandece, que ensina e faz crescer. Isso era o
que a atraía. Gostava de sentir-se desafiada a conhecer coisas novas e gostava de mostrar o
seu modo de ver o mundo. Buscava as coisas boas do parceiro e dava o que tinha de melhor
dentro de si. E assim, ambos viravam pessoas melhores quando separavam seus caminhos.

51
Então, ela deixou de relutar e entregou-se àquela atração por Willian, que tinha dia e
hora para acabar.Lembrou-se do poeta23 : “Que seja eterno, enquanto dure”.
E antes de sentir-se cínica por pensar em poesia para explicar uma relação tão
moderna, ela lembrou-se que a grandeza dos poetas é exprimir sentimentos. E sentimentos
são atemporais. Podem mudar de sujeito e objeto, mas amor, carinho, solidão, alegria e
tristeza serão sempre as mesmas manifestações humanas, que máquina nenhuma pode
reproduzir.
Os dias foram passando e eles entraram em uma rotina de vida agradável para
ambos.

Capítulo XI

O segundo mês longe de Giulia passou mais lento para Felipe. Eles estavam se
falando menos, porque ela estava trabalhando demais. Ele continuava saindo com Mariana,
embora com menos freqüência.
Naquele dia, ele recebeu uma mensagem dela dizendo que estava gostando da
viagem, mas que queria que dezembro chegasse logo. Afirmou que queria virar o ano 2001
no Rio de Janeiro. Cogitava que poderiam estar juntos na virada do ano, se ele estivesse
disponível.
Cada vez mais, ele percebia nela uma nova mulher. Mais forte, mais madura, mais
segura, ela buscava agora vôos mais altos. Lançara-se nessa viagem sozinha, apenas
contando com os amigos que fizera pela internet.

Aquela noite, convidava a ficar em casa. Ele escolheu um canal de filmes24 na TV.
Tanto fazia se o filme estava começando ou terminando, ele não estava prestando atenção.
O barulho da televisão o distraía enquanto Giulia ainda ocupava seus pensamentos.
Ele estava feliz, naquele momento. Mas, agora que Giulia estava tão longe, sempre
que lembrava dela, uma pontinha de saudade o incomodava. E isso vinha acontecendo cada
vez mais.
Passava de três horas da manhã e ele não conseguia dormir. Virava de um lado para
outro na cama, sem nenhum sono. Resolveu dar uma volta pelas salas de bate-papo. Ainda
haviam muitas pessoas conectadas àquela hora. A maioria, contudo, estava envolvida em
conversas no reservado.
Entreteve-se durante algum tempo em uma sala, abordado pela Tigresa . Ela entrou
atraiu a sua atenção com uma ou duas mensagens e foi direto ao assunto:

(03:18:37) TIGRESA fala reservadamente com Felipe RJ: O que vc está procurando aqui?
(03:19:53) Felipe RJ fala reservadamente com TIGRESA: Depende de vc...O que vc quer?
Amizade, namoro, transa...?
(03:20:35) TIGRESA fala reservadamente com Felipe RJ: Fico com a última opção...Ao
vivo...
(03:21:24) Felipe RJ fala reservadamente com TIGRESA: Vc é profissional?
(03:22:23) TIGRESA fala reservadamente com Felipe RJ: Não, sou uma gata em busca de
homens interessantes. Tem uma foto?

23
Vinícius de Moraes
24
Uma matéria interessante de Yami Trequesser, editora do AQUI! e Eduardo Sphor

52
Àquela hora , nada soava estranho. A madrugada, muitas vezes, nos dá tempo
demais para podemos olhar para dentro de nós e ver nossas reais necessidades. Muitas
vezes, uma pequena carência, ecoando no silêncio, transforma-se em enorme dor, que só
cessa quando chega o novo dia e nós recomeçamos a perseguir nossas soluções, nossos
sonhos.
Ele teria continuado a conversa, se não tivesse soado o alerta do ICQ, avisando que
Giulia estava online. Ela mandou uma mensagem:
- Que felicidade encontrar você aqui! Vc não dorme mais, é ? Que horas são aí,
três e pouco?
Ele respondeu rápido:
- É...Perdi o sono. Você está bem?
- Ótima ! E adorando Nova York. .

Durante muito tempo, conversaram sobre a cidade, trocando impressões sobre lojas,
lugares e pessoas. Ela contou como era sua vida lá, falou dos amigos, falou do trabalho.
Dividia seus dias entre o trabalho, as aulas de inglês, a ginástica, passeios pela
cidade e corridas no Central Park.
- Costumo correr com o Willian.

Somente então, ele soube que havia alguém na vida de Giulia. Ela falou do
namorado americano. Abriu seu coração, como se costuma fazer com velhos e queridos
amigos.
- Não, não levo nada a sério. Essa história tem data e hora para acabar – ela
digitou e enviou a mensagem.
- Você não vai sentir falta dele quando voltar ao Brasil? – ele perguntou,
perturbado com aquela descoberta.
- Saudades, provavelmente. Para sentir falta, tinha que ser mais profundo. Desde o
começo esse relacionamento está fadado a terminar.
- A não ser que o sentimento cresça e um dos dois modifique a sua vida para
permanecer perto do outro...
- Só se eu mudasse para cá. O Willian nunca abandonaria o país dele. E eu não
quero ficar aqui.

Ela lembrou-se que fizera isso uma vez. Mudara toda a sua vida para ficar perto de
Felipe, mas não quis lhe dizer isso. Não se arrependia de nada. Achava mesmo que, se não
fosse por ele, ela não teria deixado de ser aquela garota ingênua e mimada que ela era
quando se conheceram. Mas, o que ela sentia por Willian não tinha a mesma natureza e
nem a mesma intensidade do sentimento que a levara de São Paulo para o Rio de Janeiro,
anos atrás. Quando perceberam, falavam de amor, no sentido mais amplo da palavra, tal
qual Felipe o via.
- Acho que estou aprendendo a gostar como você, sem me apropriar da pessoa, sem
achar que ela é minha, sabendo que, um dia, ela vai embora. – ela escolhia as palavras.
Não queria trair-se, dizer que preferia mil vezes estar ao lado de Felipe e que só não estava
lá porque alguém ocupara o seu lugar junto dele.

Ele demorou um pouco a responder.

53
- Nada nessa vida nos pertence. A beleza da vida reside em saber que as pessoas e
as coisas estão à nossa volta porque Deus as colocou, para nos lembrarmos a cada
momento do quanto Ele nos ama. Amar é da essência de quem nos criou. Mas, amar não é
se apossar.
- Felipe, eu estou me sentindo livre, sabia? Sem medo de perder, sem a insegurança
do amanhã, porque eu vivo cada momento que eu estou com ele de forma intensa.
- Isso, Giulia, nós temos uma capacidade de amar infinita. Sofremos quando nos
deixamos levar por sentimentos terrenos medíocres, como posse, ciúme... A verdadeira
natureza do amor está acima dessas coisas do mundo. Isso aqui é passageiro. A alma
continua quando tudo aqui acaba.

Parecia que ele sempre lhe ensinava algo de novo. Como um mestre atento, ele
despejava o seu conhecimento aos poucos, para que ela absorvesse bem cada uma de suas
palavras.
Ela passava por um processo de profunda transformação. Sofrera tanto quando
separou-se dele que percebeu que as verdades que ela julgava absolutas não seriam capazes
de fazê-la superar aquela dor. Revoltou-se por algum tempo, debateu-se e chorou. Então,
exausta, silenciou e em seu coração brotou espontaneamente um profundo sentimento de
religiosidade.
- Porque só quando você fica neutra, com o coração em silêncio, é que você ouve os
sons do Universo. O sofrimento não nos deixa ouvir o que ele nos diz. Quando você
silencia e a sua luz brilha, o Universo inunda você de amor. E esse amor lhe dá força para
você se renovar.

Ele sempre tinha a palavra certa, a explicação correta. Compreendia o que se


passava no coração de Giulia e sintetizava em palavras os seus sentimentos muito antes que
ela pudesse fazê-lo.
- Você sabe muita coisa. Tem que buscar aprender mais, crescer, desenvolver esse
espírito de religiosidade dentro de você. E, então, dividir com as pessoas o que você vai
descobrindo. Precisa ensinar o que você aprendeu. Essa troca de conhecimentos é que nos
faz crescer – ele lhe disse.

Muito mais tarde, eles ainda estavam teclando. Somente quando o dia clareou no
Rio de Janeiro é que eles se despediram. Despedida alegre e já cheia de saudades, daquelas
que celebram, prematuramente, a alegria do futuro reencontro. Na tela de Giulia, no outro
extremo do mundo, apareceu a última mensagem de Felipe:
- Um grande beijo, um lindo desejo de te reencontrar...uma prece sincera pro
Universo te amparar. Adoro você.

- E eu amo você – ela disse, baixinho. Mas, não digitou.


Ela desconectou e abriu a janela do seu quarto. Embora fosse quase inverno em
Nova York, a noite estava estranhamente estrelada, fresca, perfeita. Deitada, olhando
aquele cenário, teve a profunda certeza de que há alguma coisa muito forte, muito grande
permeando o Universo. Sabia que em algum momento, quando se tornasse uma pessoa
mais completa, poderia ter uma visão mais ampla disso. Sabia, sobretudo, que se fosse a
vontade do Universo, nada e nem ninguém conseguiria separá-la de Felipe.
E como adormeceu com a janela aberta, no dia seguinte ela foi acordada pelo sol.

54
Nem todos os dias, porém, eram alegres para Giulia. Naquela segunda-feira, ela
acordou triste. Tentava lembrar-se do sonho que tivera, mas não havia nenhuma
recordação. Por mais que tentasse pensar em algo que a animasse, não conseguia. Não
havia razão aparente para tamanho desânimo.
Ela conectou-se à internet, para verificar as mensagens em sua caixa postal,
enquanto preparava o café-da-manhã. Cogitava que a sua tristeza, talvez, fosse fruto da sua
saudade do Brasil. Então, baixou um arquivo MP3 e aumentou o volume das caixas
acústicas. Àquela hora da manhã, certamente, seus vizinhos nem estariam em casa. Ela leu
as mensagens, passou pelo canal de jornais e desligou o computador.
Não deixaria aquela tristeza apossar-se dela. Quando sentia-se como naquele dia, ela
simplesmente recolhia-se sozinha, durante algum tempo e refletia. E nessa reflexão, haveria
de achar um sentido para o que lhe acontecia. Não sofria mais por coisas pequenas.
Acreditava que existia uma força muito poderosa lhe mostrando o caminho certo. Era
questão de saber enxergar.

“Ainda que eu falasse a língua dos homens/ e falasse a língua dos anjos/ sem amor
eu nada seria/ É um não querer, mais que bem-querer/ É um solitário andar por entre a
gente/...”25

A voz de Renato Russo preencheu o vazio do apartamento. Acomodou-se em uma


poltrona da sala e ficou pensativa. Às vezes, sentia uma grande saudade dele, um dos seus
compositores prediletos. O jeito como ele sintetizava sentimentos e nos falava deles através
da sua música era mesmo inigualável. “Como podem pessoas como ele, que alegram o
mundo, que ajudam tantas outras a entender as suas dores e as suas alegrias ir embora tão
cedo deste mundo? “
Quando parava para pensar nisso, Giulia não encontrava uma explicação. Poetas
como Renato Russo e Cazuza, que viam de forma tão especial o amor e a vida não podiam
ter nos deixado tão cedo. Um único pensamento a consolava. Imaginava que, talvez, eles
fossem almas tão evoluídas que rapidamente compreenderam o significado das coisas aqui
neste plano e Deus os presenteou, levando-os para onde pudessem ter uma visão mais
ampla e crescer mais ainda.

“Ou, então, Deus os queria perto dele, para animar a festa no céu.” – ela brincava.

Nós ficamos aqui, ainda querendo entender a língua dos anjos. E, nesses tempos de
internet, aprendendo a falar a língua da máquina.

De repente, ela entendeu o motivo da sua tristeza. Era aniversário da morte de seu
pai. Fazia algum tempo que ele morrera, mas ela ainda sentia muita falta dele. A sua
ausência é que a entristecia. Ela não temia a morte. Acreditava tão fortemente que a vida
aqui na Terra era apenas parte de um longo aprendizado que achava mesmo que devia
haver uma festa lá do outro lado, quando alguém morria.

25
Renato Russo em “Monte Castelo”, citando Luís de Camões (“Soneto II”)

55
“Papai, com aquela voz linda que ele tinha, deve estar cantando muito por lá.“- ela
pensava, tentando se alegrar.

Muito mais tarde, ela ainda estava ouvindo a mesma música. Não saíra de casa
aquele dia. Dera uma desculpa qualquer e não fora trabalhar. Ligou o computador, em
busca de seus amigos virtuais. Quem sabe achasse algum, online àquela hora. As amizades
virtuais têm mesmo características interessantes. Não é preciso marcar hora e nem lugar
para os encontros. Eles acontecem, na maior parte das vezes, de forma espontânea. Na rede,
estamos sempre prontos para ouvir nossos amigos, sempre dispostos a compartilhar com
eles o que eles têm a nos oferecer. Falamos a verdade, se quisermos, ou fugimos da
realidade e dos nossos problemas, se acharmos conveniente. Os amigos virtuais não
duvidam, não desconfiam. Tratam a realidade que nós lhes contamos como verdade e
dividem conosco a nossa fantasia. Assim, são úteis tanto nos momentos em que queremos
falar sério quanto nos momentos em que queremos simplesmente esquecer os problemas e
viver, por alguns instantes, em um mundo completamente diferente do real. Naquele
momento, não havia ninguém online na lista do ICQ de Giulia. .
Restavam as salas de bate-papo. Enquanto entrava em uma, ela ainda pensava nas
amizades virtuais.
Concluiu que realmente as pessoas precisam aprender a conviver virtualmente.
Porque se por um lado o anonimato do computador possibilita uma série de vivências
interessantes, por outro lado, se a pessoa não souber separar fantasia e realidade, pode vir a
ter problemas. Ao vestir uma personagem diferente daquilo que é, a pessoa tem que estar
muito ciente de que aquele momento é passageiro. Pessoas que mentem nas salas de bate-
papo, assumindo a personagem que criam como sendo elas próprias, podem acabar
seriamente frustradas quando a realidade se impuser e elas tiverem, de novo, que conviver
com aquilo que as machuca e que elas ocultam no chat. Essas pessoas, que mergulham na
fantasia para substituir o mundo real, serão as que certamente darão trabalho aos psiquiatras
quando tiverem que encarar a realidade nua, crua e solitária. Cara a cara, as máscaras são
mais frágeis e imperfeitas.

Felipe, naqueles dias, não andava muito disposto a conversar com os amigos
virtuais. Mantinha-se, na maior parte do tempo, no status “invisible”26 do ICQ. Pensativo
demais, preferia outras pessoas, outras idéias, outras conversas, diferentes daquelas de
sempre. Não que ele desprezasse esses amigos. Mas, aquele momento era de isolamento
para ele. Queria tranqüilidade para escutar o que o seu coração lhe pedia. Naquele dia, saiu
com os amigos, mas voltou cedo para casa. Viu quando Giulia conectou-se, mas ficou em
dúvida se falava com ela. E, indeciso, não se manifestou pelo ICQ.

A conversa fluiu diante da insistência de Giulia. O Bad Boy, que ela encontrou em
um chat brasileiro, custava a lhe responder e quando o fazia, suas respostas eram curtas.
Ela, teimosa, insistia em manter o contato com ele, quando soube que ele morava no Rio de
Janeiro. Era enorme a saudade que ela sentia das praias cariocas, das paisagens lindas
daquela cidade. Sentia falta do cheiro do mar e da energia das areias. Nenhum lugar era
como o Rio.

26
Recurso que o ICQ possui, que permite que um usuário conecte-se, sem que os demais usuários da sua lista
saibam que ele está online.

56
Finalmente, o Bad Boy resolveu lhe dar atenção.

(18:40:16) Bad Boy fala reservadamente com Giulia: Gata, converso contigo. Mas, sem
aquele papinho tipo “como vc é, o que faz, quanto calça”...risos...ok?
(18:41:31) Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Então tem que ser estilo Meg Ryan e
Tom Hanks27 ? Será que vc é o meu vizinho aí no Rio disfarçado? Risos...
(18:42:01) Bad Boy fala reservadamente para Giulia: Esse teu nick é lindo...Não, não sou
teu vizinho, mas tb estou cansado de dar ficha completa aqui na rede. A gente vai se
conhecendo pelo papo, é mais legal.
(18:43:08)Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Não é nick, é nome mesmo. .
(18:44:16)Bad Boy fala reservadamente com Giulia: Giulia é seu nome?????
(18:44:46)Giulia fala reservadamente com Bad Boy: É! Por que esse espanto? Vc não gosta
do meu nome? Acabou de elogiar...
(18:45:20)Bad Boy fala reservadamente com Giulia: Gosto...é que é difícil conhecer
alguém com esse nome...Gosto muito desse nome.
(18:45:23)Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Me fala do Rio...que saudades...:-(

Conversaram por muito tempo. Ela ainda insistiu em querer saber como era seu
interlocutor. Ele esquivou-se da resposta, mas ela o achou tão divertido que resolveu deixá-
lo à vontade. Afinal, ele estava no Rio e ela nos Estados Unidos. O máximo que haveria
entre eles era uma amizade virtual. Não importava se ele era bonito ou feio, alto ou baixo,
magro ou gordo. Ele a distraíra e a fizera brincar naquele dia em que nada parecia alegre
para ela. Mais tarde, trocaram seus endereços eletrônicos.

- Você não tem ICQ? – ela perguntou.


- Não tenho, gata. Mas, vamos combinar assim...Nos falamos pela sala, sempre com
o mesmo nick, ok?
- Você nunca muda seu nick?
- Acabei de resolver não mudar mais. Beijo, gata!
- Beijo!

Despediram-se naquele momento, mas um ainda ocuparia os pensamentos do outro


durante algum tempo.

Os dias que se seguiram aproximaram Giulia e o Bad Boy. Ela era muito mais
curiosa em relação à vida dele e, invariavelmente, fazia muitas perguntas .Como ele era
evasivo, na maioria das respostas, ela resolveu não perguntar mais nada.
“Por que será que ele fala tão pouco de sua vida?” – ela se questionava.

A conversa deles não seguia o rumo natural para quem acabava de se conhecer pela
internet. Ao invés de falar de peso, altura e cor de olhos, eles falavam de sentimentos
perante a vida e as pessoas.
Ela não pode deixar de pensar em Felipe. Ele era uma pessoa muito à frente deste
tempo. Disso, ela não tinha dúvidas. Enquanto esteve com ele, ela nunca soube

27
Protagonistas do filme “Mensagem para Você”.

57
compreendê-lo. Hoje, percebia que isso acontecera porque ela quis enxergá-lo de seu
próprio ponto de vista. Se tivesse tido humildade para aprender a ver a vida tal qual Felipe,
certamente teria poupado ambos de muitas brigas e muito desgaste.
Via, agora, no seu interlocutor anônimo, uma pessoa também especial. Não haveria
de ser tão evoluído quanto o ex-namorado. Mas, Felipe e ele tinham muitas coisas em
comum, no modo de ver o mundo e de pensar.
Felipe ainda se correspondia assiduamente com Giulia e continuava, sempre que
possível, lhe ensinando muitas coisas. Contudo, como ele pouco falava em Mariana, ela
pensava se a garota não estava se tornando especial para ele. “Ele deve estar hesitando em
me dizer que está apaixonado”, ela concluía. Se isso fosse verdade, certamente o vínculo
entre eles diminuiria. “Seria bom ter alguém como o Bad Boy por perto quando isso
acontecesse”, ela pensava.

(23:41:31) Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Que saudades daí...Estava vendo o
jornal pela internet. Parece que eu viajo até aí, quando vejo os mesmos apresentadores do
jornal das oito...
(23:42:01) Bad Boy fala reservadamente para Giulia: Viaja prá cá, pertinho de mim!
(23:43:08)Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Bem que eu queria voltar logo pro
Brasil. Mas, ainda falta um tempo para terminar meu estágio. :-(
(23:44:16)Bad Boy fala reservadamente com Giulia: Vem embora, que eu te ensino o que
vc quiser. E te encho de beijinho, quando você chegar aqui.
(23:44:46)Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Verdade? Será que o próximo vôo
para o Rio é hoje ainda? Risos...

Naquela noite, a conversa acabou seguindo um rumo que ela conhecia, mas que
quase nunca explorava. Várias vezes fora abordada por homens, nas salas de bate-papo,
querendo fazer sexo virtual. Agora, essa proposta partia do novo amigo. Eles já haviam
conversado sobre tudo. Um sabia dos gostos, das fantasias, das necessidades do outro.
Estavam sozinhos, cada um diante do seu computador, separados por muitos quilômetros
de distância, em hemisférios diferentes.

(00:40:16) Bad Boy fala reservadamente com Giulia: Gata, como vc está vestidinha?
(00:41:31) Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Estou de camiseta e calcinha. Está um
pouco frio lá fora, mas aqui está tão quente... E vc?
(00:42:01) Bad Boy fala reservadamente para Giulia: Estou só de bermuda...com um corpo
sarado aqui te esperando...
(00:43:08)Giulia fala reservadamente com Bad Boy: Se eu estivesse aí, ia fazer muito
carinho no seu corpo todo, te encher de beijinhos...Ia começar bem devagarzinho...
(00:44:16)Bad Boy fala reservadamente com Giulia: Isso, gata, eu ia te colocar no meu
colo e ia arrancar a tua camiseta...

Não importava o que era verdade ou mentira. Naquele momento, importavam as


sensações, o quanto um era capaz de estimular o outro, dar-lhe prazer através das palavras,
das imagens e das fantasias.

58
Sexo virtual nunca a atraiu. Ficar conversando com alguém pelo computador,
estimulando-se eroticamente, para ela era nada mais que uma forma de masturbar-se.
Pensava que nada substitui o contato físico, o envolvimento de duas pessoas que se amam
ou que se sentem atraídas fisicamente. Admitia que pessoas reprimidas sexualmente ou que
possuem uma vida sexual insatisfatória, deviam beneficiar-se do sexo virtual. Em busca do
prazer essas pessoas contam com o meio virtual para satisfazerem as suas necessidades.
Para ela, contudo, o sexo virtual não tinha nada de especial. Mas, o Bad Boy conduzia a
situação de tal forma que, quando se deu conta, ela estava completamente excitada. O calor
tomou conta do seu corpo. Ela levou o notebook para a cama e acomodou-se, deitada de
bruços. Não sentia-se mais à vontade na cadeira. A camiseta já ficara sob a mesa. Seu corpo
acalmou-se um pouco, sentindo o contato do edredom macio. Mas, as palavras na tela do
computador a inquietaram novamente e ela colocou uma das mãos dentro da calcinha.
Continuou teclando com a outra mão. E no meio de teclas, línguas, beijos e carinhos
virtuais, ela gozou, estimulada pelo Bad Boy.

Muito mais tarde, ela ainda se lembrava da experiência. Ficou surpresa com a
intensidade do prazer que sentiu. Pensando bem, achava que ele conseguira captar as suas
fantasias pelo computador, muito melhor que Willian o fazia pessoalmente. Desde que se
separara de Felipe, achava que dificilmente alguém a satisfaria tanto quanto o ex-namorado.
Contudo, depois daquela experiência de sexo virtual, começava a pensar que,
provavelmente, haveria no mundo outros homens capazes de levá-la ao prazer. Felizmente,
parecia ter encontrado um deles. Se fora capaz de quase enlouquecê-la pelo computador,
ela imaginava o que ele faria quando se encontrassem pessoalmente.
Pensava nisso quando o Bad Boy avisou que iria dormir. Despediram-se, com todo o
carinho a que têm direito os amantes – mesmo os amantes virtuais.

Felipe ainda arrumava algumas coisas que estavam fora de lugar em seu
apartamento naquela noite, enquanto pensava em Giulia. Naquele momento, sentia falta do
corpo dela, dos carinhos dela, de sua presença doce e submissa. Queria tê-la em seus braços
e passar horas fazendo amor com ela. A energia que emanava deles quando seus corpos se
encontravam era capaz de iluminar o mundo.
Ele apagou a luz do seu quarto e deitou-se. Esperou que a claridade vinda da lua
iluminasse um pouco o ambiente. Mas, a noite estava muito escura e ele logo adormeceu.

Capítulo XII

Depois daquela experiência de sexo virtual, Giulia começou a pensar mais sobre o
assunto. Na verdade, o que aconteceu naquela noite, a inquietou de tal forma, que ela
procurou Michael para conversar. Ele era um internauta assumidamente viciado. Passava
horas à frente do monitor, navegava pelos sites e trabalhava nos intervalos entre um bate-
papo e outro. Raras eram as vezes em que ela conectava e não o via online no ICQ.
Ele era capaz , sim, de trocar qualquer programa social pela vida virtual. Se
precisasse passar um mês dentro de casa, certamente nada mudaria em sua vida. Em uma
situação assim, ele supriria todas as suas necessidades pela internet, desde as materiais até
as sexuais. Quando queria encontrá-lo, ela procurava-o à frente de algum monitor em sua

59
casa ou em seu escritório. Ele conhecia a rede como ninguém. Ultimamente, estava
desvendando o mistério – ainda – das webcams28 . Adquirira uma há algum tempo, mas
somente agora a vinha utilizando. E era exatamente o que ele estava fazendo quando Giulia
chegou.
- Que milagre é esse, você aparecer por aqui? – ele brincou, falando tão rápido que
ela levou uns instantes para entender. De vez em quando, ainda tinha alguma dificuldade
com o inglês.
- Estive aqui na semana passada! – ela surpreendeu-se.

- Uma semana para quem está acostumado a viver na velocidade da internet é


muito tempo! – ele ria, diante do embaraço dela ao ver na câmera instalada no computador
a imagem de uma jovem muito à vontade, do outro lado da linha.

Ele trocou mais algumas palavras com a jovem e eles combinaram um novo
encontro virtual para dali a algumas horas. Ele, finalmente, deu atenção a Giulia.
Ela logo puxou o assunto sobre o qual ele mais gostava de falar.
- Michael, essa câmera aí apontada para você não acaba um pouco com a magia
dos chats? Você deixa de ser anônimo, passa a ter um rosto, uma forma. Não é mais a
fantasia do seu interlocutor que vai aproximá-lo ou afastá-lo de você. É a sua própria
imagem, tal qual acontece no dia-a-dia.
- Sim, a câmera pode realmente acabar com a fantasia. Mas, você tem que ver isso
por vários aspectos.
- Não entendi... – ela estava realmente interessada.
- Imagine que eu invente um personagem. Que eu me vista com uma roupa diferente
daquela que eu costumo usar. Ou, ainda, que eu use alguma máscara ou algum outro
truque que instigue a imaginação de quem está do outro lado do monitor. Percebeu como a
câmera pode ser usada sem acabar com a fantasia?

Ela não havia pensado nisso. Para Giulia, até então, a webcam vinha para acabar
com o anonimato e com as mentiras na internet. Até então, para ela, esse era o motivo
principal pelo qual as pessoas ainda resistiam em utilizá-las. Nunca pensara nela como uma
forma de instigar ainda mais a fantasia, quando usada de forma lúdica.
- E tem mais – ele continuou, após uma breve pausa – Elas possibilitam uma
integração tão grande com o nosso interlocutor, que ele pode satisfazer nossas fantasias,
quaisquer que sejam elas, se ele assim o desejar. Você já parou para pensar nisso?

Ela finalmente começou a perceber porque as webcans começavam a se difundir


entre os internautas. Cogitava, agora, que no Brasil elas não haviam se popularizado em
função da ainda precária transmissão. Contudo, a melhoria da qualidade da imagem era
questão de tempo. Dependia apenas da implantação de sistemas com maior largura de
banda29 , o que deveria ocorrer em pouco tempo.
Entretanto, ela fora conversar com ele sobre outro assunto. Contou-lhe sobre a sua
experiência com o Bad Boy e falou da sua surpresa ao sentir-se excitada diante da fantasia

28
Webcam é uma câmera de vídeo, acoplada ao computador, que transmite a imagem em tempo real, através
de um programa.
29
Capacidade de transportar informação de um sistema.

60
criada pelas palavras na tela do monitor. Nada era surpresa para Michael. Ele a ouvia
atentamente, sem nada comentar. Quando ela terminou seu relato, ele disse:
- Qual é o problema de ter gostado de uma experiência de sexo virtual?
- O problema é que eu sempre achei que sexo virtual não passava de uma forma de
masturbação. Quase que a mesma coisa que você usar uma linha telefônica, dessas
“disque qualquer coisa...”
- Aí você está enganada. Quando você liga para um número desses, uma
profissional atende você. O que vem do outro lado é falso, não é espontâneo. Na internet,
as duas pessoas estão envolvidas, estão procurando se estimular e existe, na maioria dos
casos, algum envolvimento, mesmo que virtual. A fantasia projetada na tela do computador
é fruto do envolvimento das duas pessoas que estão conversando.
- Eu prefiro ao vivo, mas , estou impressionada com o quanto isso foi capaz de
mexer comigo. Será que eu ando insatisfeita com o meu namorado?
- Não necessariamente, embora seja uma possibilidade. Isso, você é que tem que
saber. Pode estar satisfeita com ele e ter usado essa experiência como uma forma de sair
da rotina. Pode, simplesmente, ter-se deixado levar pela fantasia que o seu interlocutor
ajudava a criar. Ou pode ser que você tenha se apaixonado pelo seu namorado virtual.

Ela ficou pensativa durante algum tempo. Embora achasse a última hipótese a mais
provável, ela relutava em admitir. Nesse caso, faria sentido o prazer que sentiu fazendo
sexo virtual, porque teria sido uma forma de satisfazer seu desejo, já que quem ela queria
não estava ao seu lado naquele momento.
- Quer saber o que eu acho de verdade? Eu estou é com muita, muita saudade
daquelas noites maravilhosas com o Felipe.

Michael sorriu . Ela não pode deixar de pensar no porquê dele envolver-se tanto
com a rede a ponto de ter uma vida virtual mais intensa do que a real. Nada havia de
aparente nele que justificasse sua fuga do mundo real. Era uma pessoa com aparência
normal, era gentil, simpático. Em nada lembrava os estereótipos que costumam ilustrar os
viciados em internet. Quando se fala neles, imaginam-se pessoas com aparência
completamente fora dos padrões estéticos normais, muito tímidas, avessas ao contato
social, principalmente porque costumam ter muitos problemas de relacionamento. Esse,
porém, não era o retrato de Michael.
Mas, ele insistia que a sua cabeça funcionava na velocidade da rede e que, por isso,
sentia-se melhor resolvendo sua vida pela internet, deixando as incursões no mundo para
quando realmente era necessário. Conversavam, agora, sobre isso.
- No futuro, ele preconizava, vamos estar ainda mais integrados à vida virtual. É o
chamado “estilo de vida Web”.
Giulia já ouvira falar nisso, na definição de Bill Gates: “uma nova maneira de viver
e trabalhar, que se tornará comum à medida em que as pessoas aproveitarem os dispositivos
e as conexões digitais para transformar suas vidas” 30 . Ela se considerava modelo desse
estilo de vida e entusiasmava-se a cada dia com as novidades que surgiam. Afinal, como ele
mesmo concluía em sua definição, “uma vez criada a infra-estrutura, surgirão novas e
imprevistas aplicações, assim como telefone, rádio, televisão e computador só surgiram
quando o uso da eletricidade tornou-se comum”.

30
Em “A Empresa na Velocidade do Pensamento”- Cia das Letras - 1999

61
- Você acha que a internet tem limite? – ela perguntou.
- Muito cedo para pensar nisso. Li, em uma entrevista, uma previsão interessante.
Concordo com a visão do entrevistado. Ele acha que, talvez, haja uma desaceleração no
seu crescimento no futuro, mas dizer que haverá limites, é difícil. Temos que cuidar é de
afastar grandes perigos, tais como o estabelecimento de censura ou de impostos
exagerados nas transações online31 .
Censura na rede sempre foi um assunto polêmico. Contudo, as pessoas ultimamente
vinham descobrindo os filtros, que permitem que se restrinja o acesso a determinados
conteúdos. Dessa forma, os pais protegem os filhos daquilo que julgam inadequado a eles,
sem tolher a liberdade na internet. Ou, ainda, cada povo escolhe o que entra em suas casas
pelo computador, de acordo com a sua cultura.
Conversar com Michael sobre a rede era sempre muito agradável. Porque ele não
era somente um internauta entusiasmado. Mais do que isso, era um grande conhecedor dos
seus vários aspectos, que sabia analisá-los de forma precisa.
- Vem muita novidade por aí. Existe uma nova cultura se formando, a cultura Web.-
ele costumava dizer - Somos privilegiados. Vivemos em um momento de mudanças. Não
somos meros espectadores. Somos personagens dessa nova cultura.

Olhando em volta, era fácil perceber o quanto as pessoas começavam a mudar seus
hábitos em função das facilidades trazidas pela internet. Estavam habituando-se a ler
jornais e revistas online. CDs eram coisa do passado. O objeto do desejo dos jovens não era
mais os CD-players, mas sim os players que tocam os arquivos baixados por download de
sites da rede. Faziam compras pela rede, fosse alimentos ou roupas. Desprezavam bancos
ou qualquer outro lugar que pudesse significar fila e tumulto. Não se perdia mais tempo.
Encontravam-se em cibercafés ou em chats da rede e em um ou outro, os valores eram os
mesmos. Acabara a era de culto ao corpo. Cuidar do corpo já não era mais que um hábito
saudável e imprescindível. A inteligência, a nobreza de espírito e a clareza de personalidade
eram valores supremos. A humanidade se aprimorava e chegava a era da solidariedade,
onde as pessoas cultivavam cada vez mais seus valores humanos. Eram pessoas
preocupadas, sim, com o sucesso e o status, mas conseguiam-no através da inteligência e do
conhecimento. Chegara a era dos geeppies , uma tribo que cujas características é a mistura
os geeks com yuppies.

Muito mais tarde, em sua casa, Giulia não pensava em nada disso. Apenas navegava
pela rede, procurando pelo Bad Boy, quando ouviu um som muito familiar. O alarme do
ICQ mostrava Felipe conectado.
- Há quanto tempo que eu não encontrava você aqui! – ela digitou.
- Oi, gata! Eu andava mesmo meio longe, tenho ficado menos tempo na internet.
- Por quê? A namorada não deixa? Risos...
- Eu tenho estudado muito, sobra pouco tempo.
- Ela esta aí?
- Está na cozinha, terminando de fazer o jantar...risos...

Por um instante, veio à sua mente a lembrança de tempos atrás. Lembrou-se dos
momentos mais simples da vida deles e emocionou-se. Eles conseguiam fazer um lanche

31
Vinton Cerf, considerado o “pai”da internet, em entrevista a Peter Moon – Isto É – 14/04/99

62
virar uma festa, um jantar virar um momento especial. Tudo era muito mais alegre quando
estavam juntos.
Ainda conversaram alguns minutos.
- Você tem conhecido muita gente aí?
- Tenho saído com freqüência, sim. A Paulinha, que está aqui comigo, é uma
pessoal especial, mas tem mais gente legal na área.
- E o que você ainda está fazendo aqui, conectado?

Eles conversaram por mais alguns minutos. Felipe, então, despediu-se, avisando que
Paula o chamava. Giulia voltou a procurar o Bad Boy .
Ela não o encontrou. Acionou a procura e passeou por algumas salas que eles
costumavam freqüentar. Ele não estava em lugar nenhum.
Ela ainda esperou por muitas horas. Desde que se conheceram, teclavam todos os
dias e ele nunca a deixava esperando.
Era muito mais tarde quando ela, finalmente, desistiu. Desligou o computador e foi
deitar-se, decepcionada.
Fechou os olhos, buscando dormir, mas estava extremamente inquieta. Pensava no
Bad Boy. Há algum tempo, vinha imaginando como ele seria. Dificilmente seria mais
bonito que Felipe. Quem sabe tivesse outro tipo de beleza? E se ele fosse muito feio?
Ela tentou afastar esses pensamentos de sua mente. Queria dormir, descansar. Mas,
estava cada vez mais agitada. Fazia alguns dias que não via Willian. Ele estava envolvido
em um processo complicado e sobrava-lhe pouco tempo.
Na escuridão, todas as fantasias ganhavam formas. Pensava em Felipe. Ela fechou
os olhos e viu o corpo dele, nu. Ela olhava para ele, admirando-o, completamente entregue
àquele homem. Ele era o mais viril de todos, beijando sua boca, enquanto a despia da fina
camisola que ela usava. Sentia as mãos dele tocando suas coxas e subindo pela virilha e
então, elas desciam novamente e acariciavam suas pernas. Carinhos suaves faziam seu
corpo relaxar. O corpo dele dançava no mesmo ritmo do dela e, então a dança se
transformava em um verdadeiro ritual. Ela o puxava para perto de si, querendo senti-lo
dentro dela.
De repente, uma rajada de vento fez bater a porta do quarto de Giulia. Ela fechou os
olhos novamente e o viu. Mas aquele corpo junto ao de Felipe não era o dela. As mãos que
acariciavam seu corpo eram as suas próprias mãos. Sentiu-se vazia.
Estava sozinha naquela noite de chuva em Nova York.

Amanhecia no Rio de Janeiro e Felipe estava ainda acordado. Ele mal dormiu
aquela noite. Abraçado a Paula, era em Giulia que ele pensava. Ultimamente, vinha sendo
surpreendido por um forte desejo, sempre acompanhado da imagem dela. Pensava com
freqüência nela, lembrando dos seus momentos de amor. A atração física que existia entre
eles parecia ter voltado mais forte do que nunca.
A primeira coisa que fez, ao levantar aquele dia, foi mandar um e-mail para Giulia.
Faltava, ainda, seis semanas para ela retornar ao Brasil. Era tempo demais. Queria ir vê-la.

63
Capítulo XIII

A noite de céu claro, na primavera do Rio de Janeiro, prenunciava que aquela


seria uma viagem tranqüila. Era outono em Nova York. Felipe preferia mesmo que não
fosse inverno ou verão. Gostava de temperaturas mais amenas.
O vôo transcorreu calmo e o avião aterrissou alguns minutos antes do previsto.
Giulia o esperava do lado de fora do aeroporto. Quando viu o aviso de pouso, ela inquietou-
se. Sabia que ainda levaria algum tempo até que Felipe aparecesse. Mas, ele estava alí, em
solo americano, sob o mesmo teto que ela. Era questão de tempo, agora.
Nos últimos dias, ela vinha sonhando com esse momento. Nunca imaginou que o
sonho se tornaria realidade. Mas, conversando com Felipe pelo ICQ, ela descobriu que ele
também sentia saudades dela. E, brincando, ela lhe perguntou quando ele iria visitá-la.
Brincando, também, ele respondeu que iria quando ela quisesse. Então, conversaram
seriamante e alguns dias depois chegou um e-mail dele, avisando que estava indo encontra-
la. Giulia teve dois trabalhos. Para poder sumir alguns dias e ficar à disposição de Felipe,
ela precisou arrumar desculpas convincentes para Willian e para o Bad Boy. O primeiro não
entendeu quando ela comunicou, por e-mail, que iria viajar uns dias sozinha para uma
cidadezinha no interior dos EUA. Embora tenha ficado irritada com as muitas perguntas
desconfiadas que ele lhe fez, ela o tranqüilizou, dizendo que viajaria com Cindy.
- Vou com ela e com as amigas dela. Só vão mulheres.- ela mentiu.

Já o Bad Boy lhe desejou boa viagem e disse que ia viajar também.
“Que cabeça boa, a dele. Nem se preocupa.” – ela se surpreendeu. Era esse modo
de ser que Felipe tentara lhe ensinar durante tanto tempo. Na época, ela não tinha condições
de aprender. Hoje, ela não só admirava quem agia dessa forma, com esse desprendimento,
como ela própria adotara esse comportamento.

Mas, só conseguiu agir dessa forma quando descobriu o valor da liberdade. Porque
só respeitando a vida privada do outro, suas vontades e suas necessidades é que nós
conseguimos deixá-lo livre. Só amando verdadeiramente é que conseguimos ver o outro
como uma pessoa inteira e não como uma extensão de nós. Só amando com o coração é que
descobrimos que o outro está ao nosso lado não para nos fazer feliz e sim para ser feliz
conosco. E que essa felicidade não é completa se houver sacrifício de um dos dois. Giulia
hoje sabia que, jamais em sua vida, seria capaz de amar novamente se apossando do outro.
O que ela queria, agora, era ser livre e deixar quem estivesse com ela livre, também. Para
que quando se encontrassem, pudessem trocar experiências, conhecimentos, dores e
alegrias. Com a certeza de que sempre haveria um olhar amigo, pronto a nos acolher.
Ela estava absorta em seus pensamentos quando percebeu alguém parado à sua
frente. Levantou os olhos e seu olhar encontrou o de Felipe. Lindo, mais lindo e doce do
que nunca.

Os dias que se seguiram foram perfeitos, como só pode ser o que é passageiro. Era
como se o tempo, mais uma vez, tivesse retrocedido. Passearam pela cidade inteira,
vasculharam cada lugar turístico, misturaram-se aos americanos, enfim, viveram cada
minuto como se fosse o último. Cada um a seu modo, queria guardar lembranças daquela
semana. Felipe tirava muitas fotos e Giulia tentava registrar em sua mente cada momento.

64
No fundo de seu coração, ela tinha a sensação de que aqueles dias marcariam a sua história
para sempre, mas não conseguia entender porque..

Capítulo XIV

Era meio de dezembro e Felipe estava novamente sozinho. Terminara com Paula tão
logo voltou dos Estados Unidos e não se envolvera com mais ninguém. Passara os últimos
tempos trocando constantemente de companhia, mas as mulheres, invariavelmente, se
envolviam demais com ele. E como ele não abria mão de sua liberdade, antes que um clima
hostil se instalasse, ele sugeria que cada um seguisse seu caminho.
Na verdade, ele passava por mais um período de reflexão. Não entendia ainda o que
seu coração lhe pedia. Apenas parava e silenciava, esperando que ele se manifestasse.
Giulia estava, mais do que nunca, presente em seus pensamentos. Começava a
desconfiar que ela era mais importante para ele do que imaginara até então. Inquieto,
começou a sair com freqüência, com os amigos. Dessa forma, afastou-se um pouco da rede,
embora nunca deixasse de acessá-la. Na noite carioca, ele facilmente arrumava companhias
interessantes, mas ele não prolongava nenhum encontro além de uma ou poucas noites.
O passar dos dias, contudo, foi criando um vazio cada vez maior, que ninguém
conseguia preencher.
Ele procurou uma foto de Giulia. Ela parecia feliz, agora. Mudara radicalmente seu
modo de ser, de sentir e de ver o mundo
Faltava pouco para que ela retornasse ao Brasil. Contudo, sempre havia a
possibilidade dela mudar de idéia. Há alguns dias, ele lhe perguntara sobre o seu
relacionamento com Willian.
- “Esvaziou a atração que eu tinha por ele. Hoje, somos apenas amigos”, ele lhe
disse.
Felipe colocou a foto na estante do seu quarto. Ligou a moto e foi para a pedra do
Leme. “Se ela estivesse aqui, certamente ia querer passear de bike na Lagoa.”- ele se viu
pensando.

Anoitecia e a lua logo apareceu, refletindo sua luz na água do mar. Aquele lugar era
mesmo maravilhoso. Ao longo da orla, avistavam-se prédios, lembrando que ali atrás havia
uma grande cidade, com todas as coisas boas e as ruins de uma metrópole. Mas, desviando
o olhar para a água, a serenidade ocupava espaço e a sensação que se tinha era de profunda
paz. Ali, ouvindo as ondas do mar, Felipe ouviu também seu coração.
Ele não se arrependia de ter-se separado de Giulia. Na época, seguiu a sua vontade.
Mas, agora que viveu tudo o que queria, sentia falta de alguém especial ao seu lado.
Alguém que vivesse plenamente a vida com ele, sem aprisioná-lo, e que o incentivasse a ir
atrás de seus sonhos e seus ideais, dando-lhe a opção de levá-la ou não consigo. Alguém
que compreendesse o seu desejo de viver do modo mais natural possível. Alguém que o
amasse sem apossar-se de sua vida e de sua vontade.
“O nosso erro é pensar por objetivos.”- ele refletia, inspirado pelo céu claro da
primavera do Rio de Janeiro – “Quando alcançamos um, precisamos de outro e assim
nunca estamos felizes. A felicidade se resume a um breve momento em que nos sentimos
realizados, até começarmos a lutar por outra meta. Ao invés de buscarmos a alegria em
pequenas coisas da vida, ficamos sempre esperando pelo momento perfeito, pela pessoa
perfeita.”

65
E foi assim, percebendo ter realizado cada um dos seus objetivos, que ele descobriu
que amava Giulia, muito mais do que imaginava.
Ela não seria, contudo, o próximo objetivo em sua vida. Reestruturar sua vida ao
lado dela seria sim, um desejo, daqueles pelos quais o coração anseia de forma pura e forte.
Mas, eles precisavam , ainda, conversar, saber o que se passava em seus corações.
Esperaria até que ela retornasse ao Rio de Janeiro e, então, lhe falaria do que estava
sentindo. Já modificara uma vez a vida de Giulia, não o faria novamente. Preferia deixar
que as coisas seguissem um rumo natural. Não lhe diria nada até que ela estivesse de volta.
Hoje, ele sabia que ela era capaz de entender a sua ânsia por liberdade. Na verdade,
ela assimilara muito do jeito de ser e de pensar dele. Ele a fez entender coisas que ela
sozinha não compreendia e isso encaixou-se com tal precisão em sua vida, que agora eles
eram muito parecidos, em muitas coisas. Se ela continuasse disposta a aprender, um dia ela
teria todo o conhecimento que ele possuía. Felipe achava que poderiam ser felizes juntos,
vivendo um relacionamento completamente integrado ao novo século.
Mais tarde, ele voltou para casa, tomou um banho e conectou-se à internet.

Willian estava deitado no sofá da sala, lendo um livro. Ao seu lado, sentada no
chão, Giulia teclava com o Bad Boy. Ela teve apenas o cuidado de manter-se em uma
distância estratégica, de modo que, se ele se aproximasse, ela teria tempo de sair da sala. O
encontro com Felipe mexeu de tal forma com Giulia, que conseguiu acabar com a atração
que ela sentia por Bill e ela quis que ele voltasse a ser apenas um amigo. Mas, de qualquer
modo, sabia que ele ainda nutria um sentimento especial por ela e não queria magoá-lo,
mostrando explicitamente preferir a companhia de um amigo virtual à dele.

Ele era um bom amigo. Permanecia por perto e não negava ter esperanças de
reconquistá-la. Faltava pouco tempo para ela voltar ao Brasil. Giulia entristecia-se quando
lembrava que estava chegando a hora de se separarem, porque nunca gostou de despedidas.
Às vezes, ela ficava imaginando se não seria capaz de se apaixonar por Willian. Ele tinha
tudo o que uma mulher poderia esperar e se dedicava a ela. Com Felipe, nunca seria assim.
Ela sabia que, se o destino finalmente os unisse de vez, pelo resto da vida ela teria que
dividir o amor de Felipe, a sua atenção , o seu carinho, a sua companhia nos finais de
semana. Por isso, chegou a cogitar a possibilidade de ficar mais algum tempo nos Estados
Unidos. Havia dois caminhos possíveis para ela. Ela poderia ficar mais algum tempo
naquele país e tentar esquecer Felipe ou poderia retornar na época prevista, na virada do
ano e esquecer de vez o que viveu nos Estados Unidos, encerrando uma etapa na sua vida.
Nessa última hipótese, não sabia sequer se teria Felipe ao seu lado.

Havia uma outra coisa que a perturbava. Pensava constantemente no Bad Boy.
“Como eu posso pensar em alguém que eu nem sei como é?”.
Dividida entre as possibilidades, ela resolveu concentrar-se na conversa pela
internet. Naquele momento, ela azucrinava a vida do seu interlocutor, pedindo-lhe uma foto
insistentemente. Ele alegava que não havia ainda mandado preparar um arquivo para lhe
enviar.
Como o Bad Boy adiava o envio da foto, ela começou a ficar cada vez mais
desconfiada.

66
- Hoje, existem lojas que preparam esse arquivo para você. Além disso, muitas
pessoas têm scanner. Nenhum amigo seu possui um ?

Nem esperou pela resposta dele. Digitava freneticamente.


- Estou começando a achar que você é muito feio – ela digitou, tão irritada que
trocou as letras.
- Não se preocupe, Giulia. De que adiantaria eu mentir para você? Quando nos
encontrássemos, você ia descobrir a verdade e ia me odiar pela mentira.

Sim, ela sabia disso. Mas, também sabia que estava tão envolvida que sofreria muito
se ele não fosse tal qual ela imaginava.
- Droga, você é mau mesmo. Você nunca vai ser do jeito que eu imagino. Diz que é
bonito e não me manda foto. E se nós tivermos gostos totalmente diferentes e eu achar você
horrível?

Então, ele brincava com ela, dizia que ambos gostavam das mesmas coisas,
lembrava que tinham muitas afinidades .
- E depois, eu acho que, se eu mandar uma foto minha, você vai largar tudo aí e vai
vir correndo pra cá...risos...não quero me sentir culpado pelo resto da vida.

Giulia não se dava por vencida.


- Ou você me manda uma foto ou eu sumo ! – ela ameaçava, pela enésima vez.
- Vai me obrigar a pegar um avião para Nova York, subir na Estátua da Liberdade
e ficar gritando seu nome até você aparecer? – ele brincava.
- Bad, bad, bad..., que droga! – ela resmungava.

A conexão, de repente, ficou lenta. Demorou para que voltasse à velocidade normal.

(00:53:39) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Quer fazer uma coisa? .
(00:54:26) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: O que vc quiser, gatinho ;-)
(00:55:47) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Manda prá mim uma foto da pessoa
que vc mais amou na sua vida. Aí eu comparo comigo e te falo se vc vai gostar ou não de
mim.
(00:56:07) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Risos...vc quer que eu acredite que
vc vai achar outro homem bonito?
(00:57:58) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Falo sério. Comparo o estilo dele,
vou ser sincero.

Mesmo sentindo-se ridícula por concordar com tamanho absurdo, ela procurou em
seu computador uma pasta com o nome “Felipe”. Por alguns momentos, entreteve-se
olhando cada foto. Logo, porém, lembrou-se que o Bad Boy esperava resposta. Escolheu
um dos arquivos e o enviou.

(01:04:00) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Eu devo estar maluca, mesmo!
Acabei de mandar uma foto do meu ex prá vc. Vc vai sair correndo, viu? Vc não chega aos
pés dele, aposto!

67
Não veio resposta do outro lado. Acho que ele viu que eu estou falando sério. Deve
ser tão feio que resolveu sumir de vergonha. – ela pensou.

(01:07:35) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Ei, não precisa sumir, não, só me
fala a verdade. Vc é muito feio, né? Por isso não me manda a foto?

Nenhuma resposta. Ela se impacientou.

(01:09:23) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Vai sumir assim, sem nem se
despedir? Ou está conversando com outra na sala?
(01:09:44) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Calma, gatinha, demorou prá
chegar a foto aqui e descarregar. Minha conexão ficou lenta outra vez e eu não conseguia
mandar mensagem prá vc. Vc havia me falado dele, mas nunca me disse que era o homem
que vc mais amou...

Giulia estava ansiosa. Ignorou o último comentário.

(01:10:05) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Pode ficar tranqüila, viu, gatinha
linda?
(01:10:32) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Estou tranquilíssima. Só quero
saber se vc vai desaparecer depois de ver essa foto.
(01:11:02) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Não vou, princesa. Estou no páreo,
mais do que nunca.
(01:11:35) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Risos...só falta vc me dizer agora
que é mais bonito do que ele.
(01:12:03) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Eu sou um pouquinho mais forte
que esse cara aí da foto. Quem sabe não tão bronzeado, mas, estamos na primavera ainda.
E, talvez, eu seja um pouco mais sábio do que ele.
(01:12:32) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Vc está brincando comigo. Quer
dizer que se acha tão bonito quanto ele? E ainda vem dizer que é mais sábio? Você me faz
rir...
(01:12:55) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Fisicamente, vc não tem com que
se preocupar. E quanto à sabedoria, gatinha, ela vem com o tempo ...

Ela estranhou a observação dele. Mas, isso era apenas um detalhe para quem queria
acreditar desesperadamente naquelas palavras. Ela aceitou aquilo como verdade e esqueceu
suas dúvidas. Decidiu que correria o risco. Afinal, arriscamos sempre que acreditamos em
nossos sonhos.

(01:14:01) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Daqui a duas semanas eu volto pro
Brasil. Vc vai querer me conhecer?
(01:14:32) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Lógico, gata, estou te esperando.
(01:15:07) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: E vai estar me esperando ainda
daqui há duas semanas? E se vc conhecer outra garota aqui na internet?

68
(01:15:33) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Conheço garotas todos os dias. Mas
eu amo vc.
(01:16:32) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: O amor virtual é muito frágil
quando não ainda não se tocou a pessoa, quando a gente ainda não sentiu o outro...
(01:17:25) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Quem precisa se preocupar sou eu,
princesa. E se vc resolve ficar aí, com o seu namorado americano?
(01:17:55) GIULIA fala reservadamente com Bad Boy: Ele não é mais meu namorado!
Vou passar o Natal aqui, com meus amigos, porque eles me ajudaram muito nesses meses.
Quero retribuir o carinho. Mas, quero virar o ano 2001 no Brasil.
(01:18:03) Bad Boy fala reservadamente com GIULIA: Quer passar a noite de Ano Novo
comigo?

Ela lembrou-se de Felipe e do acordo que fizeram de estarem juntos na passagem do


ano. Contudo, ela nem tinha mesmo a certeza de que ele estaria disponível. Ele nunca mais
tocou no assunto. Ela também não lhe cobrou a promessa. Imaginava que, se ele não lhe
falara mais nada, deveria ter outros planos para aquela noite. Finalmente, aprendera a
respeitar a liberdade dele.
Embora sentindo uma ligeira tristeza por não poder estar perto de Felipe na virada
do ano, ela aceitou o convite do Bad Boy. Combinaram de encontrarem-se na noite de
reveillon. Ela pegaria o vôo do dia 30 de dezembro. Chegaria na manhã seguinte ao Rio de
Janeiro.
Ele ainda insistiu que ela, talvez, pudesse mudar de idéia, por causa de Willian.
Giulia, por alguns momentos, ficou pensativa. Olhou para ele, que pegara no sono
há algum tempo. Se ele morasse no Brasil, talvez ela considerasse a idéia de ficar mais
tempo com ele. Mas, viviam em lados opostos do hemisfério. Resolveu que estaria no Rio
na noite de ano novo, ao lado do namorado virtual.

- Está cada vez mais difícil eu ficar aqui. Estou me quase me apaixonando por um
carioca. Se meu coração estivesse vazio, já seria seu.

Imediatamente após enviar a mensagem, ela se arrependeu, mas não tinha mais
jeito. Não queria se expor daquela forma. Além disso, quebrara a regra deles, de não falar
de suas vidas. A sua esperança era que ele ignorasse aquela frase e não se importasse com
aquela revelação. Não foi o que aconteceu.
- E seu coração não está vazio?- a mensagem veio rápida.
- Nós combinamos de nunca falar de nossas vidas, lembra-se? Daqui para frente é
o que importa. Esqueça o passado.

A mensagem seguinte dele demorou alguns minutos, uma eternidade para Giulia.
- Obedeça seu coração.
- Sim, gatinho, obedeço meu coração. Neste momento, ele está completamente
louco, acreditando em tudo o que você diz – ela respondeu, em tom de brincadeira. – Mas,
se eu me decepcionar muito com você, volto correndo para cá e fico mais um ano aqui!

Então, Giulia falou sério:


- Se você estiver mentindo para mim, vai ser o pior reveillon da minha vida.

69
- Os momentos em que realizamos nossos sonhos são os mais felizes de nossas
vidas. Vai ser a sua noite mais feliz, confie em mim.

Willian agora se inquietava e Giulia achou que ele estava acordando. Olhou o
relógio e achou melhor desconectar-se. No dia seguinte, certamente encontraria o Bad Boy
no chat., como vinha acontecendo todos os dias, desde que se conheceram.

No Rio de Janeiro, Felipe desconectou o seu computador também àquela hora.


Ficou algum tempo pensativo, embora agora estivesse muito mais sereno do que nos
últimos dias. Então, abaixou o volume do som e escolheu um outro CD. Apagou a luz e
deitou-se. O sono chegou rápido, com a música tocando ao fundo.

“Why worry/ There should be laughter after pain/ There should be sunshine after
the rain/ There things have always been the same/ So why worry now”32

Capítulo XV

À meia-luz, em seu quarto, Giulia buscou um arquivo MP3 no seu computador.


Procurou uma música brasileira, para matar as saudades, cada vez maiores, do seu país.
Mas, a música que agora tocava a remetia a Felipe. Tentava a todo custo esquecer o seu
amor, porque tinha medo de voltar ao Brasil e encontrá-lo apaixonado por outra mulher. Ela
percebeu que ele, depois que fora visitá-la, não havia mais falado de sua vida, de suas
companhias. Ela sequer sabia onde ele ia passar o Ano Novo.

“Meu amor, juro por Deus/ Que a luz dos olhos meus/ Já não pode esperar/ Quero
a luz dos olhos teus / Na luz dos olhos meus...”33

Ultimamente, Giulia vinha dormindo cada vez mais tarde. Quando não estava
teclando com o Bad Boy, estava refletindo em tudo o que lhe acontecera nos últimos
tempos. Muitas coisas haviam mudado na sua vida em pouco tempo. Há poucos meses, ela
vivia em um verdadeiro paraíso, onde reinava absoluta. Contudo, as contradições do seu
modo de vida acabaram por ruir o seu castelo. Porque, ao mesmo tempo em que ela estava
aberta a todas as inovações tecnológicas, usufruindo delas, ela mantinha-se travada em um
modelo de comportamento ultrapassado. Tempos atrás, as pessoas preparavam-se
arduamente para uma vida futura, se instruindo nos anos de faculdade, buscando alguém
para acompanhá-las pelo resto da vida, uma vez que as separações não eram bem vistas.
Quando se formavam, não eram cobradas para aperfeiçoarem-se e dificilmente retomavam
os estudos. Hoje, elas entendem a necessidade de passar a vida em constante busca e
aperfeiçoamento, porque as coisas mudam com uma velocidade impressionante. Não
podemos mais viver em um modelo velho e ultrapassado de relacionamento, enquanto todo
o resto no mundo muda.
Novos desafios se impõem a cada dia. Com a quantidade de informação que se tem
e a velocidade com que ela circula, o ser humano possui uma grande oportunidade de

32
“Why Worry”, de Mark Knopler (Dire Straits)
33
“ Pela luz dos olhos teus”, de Vinícius de Moraes

70
tornar-se a cada dia melhor e mais evoluído. Não só no aspecto intelectual. Se por um lado
a tecnologia incentiva que se formem indivíduos cada vez mais completos, por outro lado
ela também propicia que nós cresçamos como pessoas. Isso porque, trabalhando a nosso
favor, ela nos liberta de trabalhos repetitivos e pouco produtivos, para que possamos aplicar
nossa inteligência e toque humano onde realmente é necessário. Sistemas inteligentes, hoje,
cuidam de dados rotineiros, enquanto que as pessoas pensam sobre as exceções, as
estratégias, os lançamentos, as análises mais complexas.
Giulia havia, definitivamente, mudado. Ela própria hoje, não mais se adequaria a
um relacionamento onde houvesse cobranças e restrições à sua liberdade. Por mais que
viesse a amar alguém outra vez, sabia que evoluíra a tal ponto que exigiria que o outro
respeitasse integralmente a sua liberdade, mesmo que ela nunca a usasse ao extremo.
Pensou em Felipe. Nunca amaria outra pessoa tanto quanto o amava. Mesmo depois
de tanto tempo separados e dela ter-se envolvido com outra pessoa, o amor que sentia por
ele continuava com a mesma intensidade. Era como se ele estivesse presente em cada
momento de sua vida, porque tudo o que ela fazia, fazia melhor por causa dele, como ele
lhe ensinara.
A vida ao lado de Felipe era muito mais colorida, mais alegre. Quando estavam
juntos, a vida tinha um sabor diferente. Muitas eram as vezes em que Giulia sentia falta da
sua companhia. Não era saudade daquela que entristece, que faz chorar. Não, ela não
poderia entristecer-se, porque agora ele era livre e vivia do jeito que queria. Mas, os
momentos deles voltavam sempre à sua mente e ela sentia vontade de vivê-los outra vez.
E havia, também, a atração física que um sentia pelo outro. Ninguém mais mexia
com ela como Felipe. As noites de amor deles transcendiam o lado físico e beiravam o
misticismo. Entregavam, um ao outro, corpo, alma e coração. Sentiam a mais pura energia
fluir de suas almas cada vez que faziam amor.
Se pudesse voltar no tempo, ela teria dado a ele toda a liberdade que precisava para
viver plenamente. Teria incentivado Felipe a ir buscar tudo o que ele desejasse, mesmo que
ela não estivesse presente em todos os seus desejos. Hoje, ela, acima de tudo, respeitava as
vontades e o coração de Felipe. Crédula que era de que estamos em um longo aprendizado,
onde esta vida é apenas uma etapa, ela via nele um companheiro antigo de jornada.
Precisou que a tecnologia mostrasse a Giulia, através da sua falta de barreiras, que o
respeito ao próximo é a base de qualquer relação. A tecnologia, colocando todas as
possibilidades ao nosso alcance, por incrível que pareça, vai nos fazer mais humanos.
Porque nós vamos ter que ser cada vez melhores para também termos as melhores pessoas
ao nosso lado. Porque não há dúvidas que haverá, no mundo, os que usarão a tecnologia
para o mal.
Ela cogitou conversar com Felipe quando voltasse para casa. Eles poderiam pensar
em estabelecer um relacionamento onde até vivessem novamente juntos, mas baseados na
imensa amizade e confiança que um nutria pelo outro. Poderiam viver na mesma casa,
podiam ser parceiros na vida e no trabalho e até mesmo ter filhos. Mas, nunca um poderia
interferir na vida do outro no sentido de coibir. Dessa forma, fariam juntos tudo o que lhes
desse prazer e preservariam seus momentos de privacidade, sem culpas e sem cobranças.
Não haveria mais a insegurança da perda. Não se reprimiriam quando quisessem ir em
busca de algo que o outro não podia lhe dar no momento. Não que isso significasse a
garantia da felicidade. Lógico que um ou outro poderiam, em algum momento, optar
novamente por caminhar sozinho. Mas, significava que, enquanto estivessem juntos,
estariam integralmente ali, porque era exatamente onde queriam estar.

71
Havia, também, o Bad Boy. Em outra situação, jamais teria deixado as coisas irem
tão longe sem antes conhecê-lo pessoalmente. Mas, ele a envolveu de tal forma com seu ar
misterioso que ela nem percebeu quando ele começou a ocupar seus pensamentos.
Sentindo-se protegida pela distância que os separava e acreditando ser capaz de controlar
completamente seu coração através da razão, ela não se precaveu. E, na ausência de Felipe,
ele se parecia com ele e roubava-lhe os pensamentos. .
Ela nunca imaginou que fosse protagonizar tal situação. Cada vez mais, ouvia
histórias diferentes de pessoas que se apaixonaram pelo namorado virtual sem nunca tê-lo
visto. Os finais dessas histórias podiam ser alegres ou tristes. Contudo a verdade é que uma
nova cultura, nitidamente, se impunha neste final de século. Tempos atrás, ela teria ficado
preocupada ao perceber que não parava de pensar em uma pessoa que nunca viu. Nem
mesmo teria coragem de comentar,com quem quer que fosse, que conheceu o seu amor na
internet. Hoje, felizmente, isso era cada vez mais comum.
Não era a situação mais cômoda do mundo. Em alguns momentos, ela acreditava
nas palavras dele e o imaginava tão bonito quanto Felipe. Em outros, achava que ele podia
estar mentindo. Mas, o envolvimento entre eles chegara a tal ponto, que ela sofreria se ele
não correspondesse às suas expectativas. “A culpa é minha” , ela pensava, “eu não devia
ter-me deixado envolver, sem ao menos ver uma foto.”
Sequer sabia o nome dele. Ele também pouco perguntava sobre ela. Ela estranhava
muito essa situação. Ele parecia gostar dela pelo que ela lhe dava naquelas horas de
conversa na internet. Eram muitas horas de brincadeiras e de conversas sérias. Falavam
sobre tudo, mas nunca se alongavam tempo demais quando o assunto era eles mesmos.
Giulia falava mais de si para o Bad Boy do que ele contava de sua vida. Ele rapidamente
ganhou a confiança dela e ela se abria com ele. Só não gostava muito de falar sobre o ex-
namorado. Temia que ele ficasse enciumado porque, para ela, nunca ninguém seria como
Felipe. Então, evitava falar nele, para não magoar o novo amigo, que se dizia apaixonado
por ela.
- Vou lhe contar um segredo – ela lhe disse certa noite .
- Cuidado, anjinho. Segredos são como jóias que devem ser guardadas, sob pena de
serem roubadas ou usadas para nos chantagear. São valiosos demais para serem dados.
Todo segredo que se conta, é porque o estamos abandonando, partindo para algo novo.
Como uma fruta que, quando está madura, é hora de colher. Ou como a cigarra, que
morre quando canta. – ele respondeu.

“Felipe me falava isso. Quanta saudade dele. “ - ela pensava, enquanto digitava a
resposta. Instintivamente, passou os olhos pela tela do ICQ. Felipe estava offline.

- Você não vai me fazer mal.- ela respondeu. – O que eu quero lhe contar é que eu
descobri porque confio tanto em você. Eu não sei como você é, como se chama, como é a
sua vida...mas, eu não tenho medo de me abrir prá você. Minha sensibilidade é uma coisa
absurda, é muito grande e eu tenho medo de mostrá-la. Mas, você me deixa livre desses
medos e eu posso ser eu mesma, quando compreendo a razão dos meus receios.

Ela enviou a mensagem e, antes que ele pudesse responder, enviou outra:
- Posso lhe dizer uma coisa, você não vai ficar bravo?
- Não fico bravo, pode falar, gatinha.

72
- O Felipe era como você, me explicava o que eu não tinha capacidade para
entender sozinha, me mostrava o mundo quando eu não conseguia enxergar.
Compartilhava comigo tudo o que ele sabia, sempre cuidando de falar a palavra certa na
hora certa. Ele me fez ser o que eu sou hoje, essa pessoa mais feliz e mais segura.
Dificilmente, eu vou gostar de outra pessoa como eu gostei dele.

O Bad Boy não respondeu imediatamente. Pensou numa resposta adequada, mas não
conseguiu encontrá-la naquele momento. Ele despediu-se e desconectou. Preferiu o
silêncio.

Capítulo XVI

A proximidade do Natal diminuiu o ritmo de trabalho na empresa em que Giulia


estagiava. Ela estava pronta para voltar ao Brasil. Apenas, esperaria passar o Natal e
retornaria. Chegaria no dia 31 de dezembro. Fizera sua reserva tarde demais e agradecia aos
céus ter consguido uma vaga no avião.
Passava de meia-noite e ela resolveu entrar no chat. Àquela hora, as salas,
provavelmente, estariam lotadas.
No monitor, agora, surgia o papel de parede34 que Giulia colocara dias antes. Era o
mesmo do computador de Felipe. A imagem prendeu a sua atenção. Por alguns instantes,
ficou olhando fixamente para a tela, observando detalhes, cores, formas. E, de repente,
sentiu-se emocionada. A imagem de uma montanha, no meio do mar, fora feita com um
software, mas ele usara de tal sensibilidade, que mais parecia uma fotografia. Tudo era
autêntico demais: a cor da água, o fundo do mar, que parecia repleto de algas, o azul do céu
em nuances diferentes.
Ela passou algum tempo alí, encantada com a imagem. Tantas vezes a vira antes,
mas nunca ela lhe tocara tão profundamente. Nunca a vira dessa forma. Felipe conseguia
dar vida às imagens construídas com os softwares gráficos que usava.
Não resistiu a mandar-lhe uma mensagem. Mesmo que ele estivesse viajando, a
receberia na volta. Ela não podia deixar passar aquele momento de encantamento.

* Assunto : Arte...
Data: Sábado, 16 de dezembro de 2000 01:00:06
De: Giulia
Para: Felipe
Eu não canso de olhar prá montanha que vc fez ...sabe o que eu vi? Vi vida nela. De
repente, eu descobri que não é só nela que vc consegue transmitir emoção. Vários outros
trabalhos que vc fez, passam a mesma emoção...É isso, vc coloca vida em tudo o que faz.
Sabe de uma coisa? Vc é um artista...Usa a criatividade com o coração, une a técnica e a
emoção. Enche nossos olhos de beleza e nosso coração de alegria. Usar o software,
qualquer um usa...Quero ver fazer uma coisa linda dessas, que a gente olha, olha, olha e
parece que é pura natureza !
Beijo!
Giulia

34
Papel de parede, no computador, é a figura de fundo da tela de abertura, sobre o qual são exibidos os ícones
dos programas.

73
Sim, era exatamente isso. Ele tinha alma de artista. Nunca antes o vira sob essa
ótica, embora, agora ela percebesse que as coisas que ele mais gostava, todas elas
requisitavam sensibilidade e bom gosto estético. Exemplo disso eram as fotos lindas que
ele fazia, qualquer que fosse o tema.
Ela vagava agora, pelas salas, buscando alguém com uma conversa interessante.
Entrou e saiu de várias delas, sem muita vontade de ficar alí. De repente, soou o alarme da
caixa postal, indicando que havia mensagem para ela. Era de Felipe. Estranhou que o ICQ
não acusasse que ele estava online. Ao ler a mensagem dele, contudo, descobriu porquê.
Ele o devia ter desligado, pois estava em mais um daqueles momentos de pura reflexão,
quando ela adorava ouví-lo.

* Assunto : Resposta : Arte...


Data: Sábado, 16 de dezembro de 2000 01:24:00 hs
Para: Felipe
De: Giulia

Sabe Giulia.. hoje eu descobri o que é a beleza... vc sabe o que é? Sabe definir?
Então veja isso... A beleza não é só uma qualidade ou uma sensação... é uma percepção da
harmonia que existe por trás daquilo que se olha.. Ela transcende a forma, porque é sua
essência mesmo... Quando você percebe além da forma percebe a beleza que é harmonia.. E
vê a essência da perfeição, que está na harmonia. E a harmonia, por sua vez, vem do
conjunto... as coisas se combinam ...

Ela refletiu um longo tempo sobre o que ele lhe escrevera. Afinal, concluiu que ele
apenas racionalizara um sentimento. Se ele, muito antes daquele dia, não tivesse uma
definição de beleza, nunca poderia ter feito um trabalho tão belo.
Quis continuar conversando com ele., por e-mail, respeitando a opção dele de
manter-se invisível no ICQ.

* Assunto : Resposta : Arte...


Data: Sábado, 16 de dezembro de 2000 01:51:00
De: Giulia
Para: Felipe

O que faz vc pensar que descobriu a beleza hoje? Vc várias vezes a definiu dessa
forma prá mim...pode ser que vc a tenha racionalizado ou a tenha sentido profundamente
dessa forma que vc fala...Mas, muito antes de racionalizar, vc sente a beleza de forma
profunda...por isso consegue colocar vida no que vc faz, por isso vc tem essa luz tão
especial...porque vc busca a harmonia e isso faz vc tão lindo...

Enquanto aguardava a resposta dele, que ela nem tinha certeza de que viria,
começou a rever outros trabalhos dele, que estavam gravados no seu computador.
Procurou vê-los tal qual ele lhe falara. Observava cada detalhe e depois buscava ver
a harmonia por trás da forma. Cada trabalho pareceu-lhe novo. Cada detalhe pareceu-lhe
novidade. Cada cor pareceu-lhe mais viva. Ele tinha razão. Bastava olhar buscando a

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harmonia, transparecendo através da combinação dos detalhes para que a beleza se
revelasse inigualável.
O alarme da caixa postal a levou rapidamente até lá. Eles continuaram conversando,
através do e-mail. .

* Assunto : Resposta : Arte...


Data: Sábado, 16 de dezembro de 2000 02:30:00
De: Felipe
Para: Giulia

Hoje eu me olhei no espelho e vi outra pessoa... era como se estivesse me olhando pela
primeira vez... Então pude ver como sou... e vi como sou . E então agradeci ao Universo
por ter me feito como sou Saudável , harmônico... Enquanto olhava me distanciava cada
vez mais da imagem . E a via cada vez mais perto . E ficava olhando . E pensando nas
outras pessoas Nas que foram abençoadas pelo Universo e não... E agradecia a cada
pensamento a Ele . Vi o que as pessoas vêm . E fiquei emocionado porque via a minha
alma..

Ela digitou rapidamente a resposta. Compreendia o que ele lhe dissera e


emocionava-se diante da reverência de Felipe ao Universo.

* Assunto : Resposta : Arte...


Data: Sábado, 16 de dezembro de 2000 02:42:00
De: Giulia
Para: Felipe

Eu várias vezes falei que vi sua alma e que ela é linda... Eu tb tenho me descoberto, mas
por outro lado...tenho me visto mais madura, mais mulher...Em vc, quando a gente olha, o
que mais chama a atenção, é a sua luz ...
Olha que coisa...eu estava agora há pouco pensando em muitas coisas... Pensei em vc e me
perguntava o que vc tem de tão especial. Sabe, o Universo te privilegiou, mas vc tb é
responsável pela harmonia. E pela beleza. Eu te falei isso esses dias...disse que vc não pára,
que faz fluir essa energia e que o resultado disso é a sua luz...Harmonia...Beleza...

Mais alguns minutos e chegou a última resposta dele naquela noite. Ela percebera
um ar de tristeza em suas mensagens. Não gostou da idéia de não encontrá-lo alegre,
brincalhão como sempre.
Ela desconectou-se da rede, sem entrar em sala alguma. Ele ocupava, agora, todos
os seus pensamentos, todas as suas emoções, todas as suas lembranças.
Giulia guardava todos os e-mails trocados por eles, desde o primeiro, há quase três
anos. Gravara, também, muitas telas onde eles conversavam, sempre em clima de alegria,
nos tempos em que ela ainda morava em São Paulo. Naquela época, passava grande parte
do mês na casa dele. Quando voltava para sua cidade, eles matavam as saudades nas salas
da rede. Era muito divertido, embora nada substituísse o beijo, o toque, o carinho

75
inesperado. Nem dava tempo para a saudade ficar grande demais. Ela logo voltava para
perto dele, até o dia em que decidiu ficar de vez.
Contudo, hoje podia compreender o coração dele e, dessa forma, compreendia as
suas necessidades. Liberdade, para ele, era fundamental. Precisava sentir-se livre para
sentir-se vivo.

Antes de desligar o computador, ela leu a mensagem.

* Assunto : Resposta : Arte...


Data: Sábado, 16 de dezembro de 2000 03:11:00
De: Felipe
Para: Giulia

Tenta fazer isso ...Fica diante do espelho e não pensa em nada . Só olha pra vc fixamente
Vai ver que tua imagem começa a adquirir vida própria , vai ver que é outra pessoa .Então,
vc vai começar a ver o que os outros enxergam e vai se surpreender com a sua imagem...
Beijo, gata...

Adormeceu pensando nele. Teimava em não fazer planos para estar com Felipe
novamente, mas ainda nutria um grande amor por ele, cuja natureza ela não sabia
determinar. Havia carinho, havia amizade, havia uma grande atração física. Não havia mais
sentimento de posse e nem ciúme. Podia compreender sua necessidade de liberdade.
Também preocupava-se com ele, queria vê-lo sempre feliz e saudável. Não havia no mundo
companhia melhor que a dele. Era um sentimento completamente novo e, por isso, ninguém
poderia ocupar o seu lugar no coração dela.

Capítulo XVII

Os últimos dias nos Estados Unidos passaram muito rapidamente. Quando Giulia
percebeu, era quase final de dezembro.
Estava chegando a hora de voltar para o Rio de Janeiro e retomar sua vida naquela
cidade que ela amava tanto. Conheceria, finalmente, o Bad Boy. Além disso, estaria perto
de Felipe. Nos últimos tempos, vinha sentindo muita falta dele. Achava que era por causa
do jeito do Bad Boy, tão parecido com ele. A partir daí, só Deus sabia como seria a sua
vida. Mas, ela fez a sua parte e ouviu seu coração.
Ela guardaria boas lembranças daqueles meses e de Willian. Ele fora um
companheiro maravilhoso durante aquele tempo em que estiveram juntos. Sabia que ele
sentiria sua falta e que queria que ela ficasse. Mas, ela via, agora, um novo horizonte à sua
frente e queria desvendá-lo. Precisava ir sozinha, naquele momento. Algo a impulsionava
para o Brasil. Alguma coisa lhe dizia que era hora de voltar. Naquele momento, ela podia
compreender o que Felipe sentira quando quis ser livre para viver o que bem entendesse.
Havia diferenças entre uma situação e outra, mas a necessidade era a mesma.

76
- A vida é muito mais que nós dois...nada pode ser mais do que ela...Você tem um
mundo de possibilidades à sua frente. – ela disse para Willian, lembrando-se de palavras
que ouvira de Felipe.
- Mas, eu não vou encontrar alguém que eu ame tanto quanto a você – ele falava
tão baixo que ela precisou chegar perto dele para ouvi-lo.

Pensou em Felipe. Ela entendia o que Willian quis dizer.


- Ninguém é insubstituível. Você conheceu uma pessoa que pensa um pouco
diferente em algumas coisas, porque eu também aprendi a ser assim com outra pessoa.
Aprendi a ser mais livre, mais segura, aprendi a ver o mundo com amor, sem querer
agarrar tudo o que ele me dá. Hoje, eu usufruo as coisas boas que estão ao meu alcance,
mas eu tenho plena consciência de que aquilo não é meu, que eu posso perder a qualquer
momento.

Eles ainda conversaram por muito tempo naquela noite. Giulia percebeu que ele não
conseguia entendê-la porque, simplesmente, via o mundo de outra forma, muito mais
materialista, muito mais imediatista. Ela não conseguira ensiná-lo nada do que aprendera
com Felipe, é verdade. Mas, Willian também não se mostrava muito disposto a ouvir suas
idéias. Tinha uma opinião formada sobre o mundo que nada podia modificar. Para ele, a
felicidade resumia-se a amor, trabalho, saúde, bens materiais. Ela também acharia isso
perfeito se ele buscasse crescer espiritualmente. Willian, como tantas outras pessoas que ela
conhecia, não tinha tal preocupação. Ela estava cansada de ver pessoas desgastando tempo,
saúde e energia em disputas no trabalho, rixas familiares, discussões bobas no trânsito.
Outras vezes, via essas mesmas pessoas reclamando que a vida não corria como queriam ou
que coisas ruins ou fora de controle lhes acontecia. Raramente as via agradecendo ao
Universo as coisas boas que tinham.
Naquela época de Natal, ela pensava especialmente nisso. O clima de solidariedade
que tomava conta das pessoas deixava-as com aspecto mais feliz. Contudo, tão logo
começasse o novo ano, todos recobravam sua ansiedade em relação aos seus objetivos e
fechavam-se, novamente, em seus mundos particulares.
Giulia tinha consciência de que Felipe era uma pessoa iluminada porque se
esforçava para evoluir espiritualmente. Seus sentimentos eram nobres e seu amor pela vida,
era imenso. Era a prova viva de que a tecnologia não deixa o homem frio e nem tira dele as
suas características. Ao mesmo tempo em que era um especialista em alta tecnologia,
Felipe era também aprendiz dos mais aplicados, sempre disposto a ouvir o que o Universo
lhe inspirava. Preocupava-se, sim, com o mau uso da tecnologia. Não queria ver uma elite
dominando a informação e não gostaria de presenciar um mundo onde as máquinas
substituíssem, simplesmente, os homens. Mas, sua fé o fazia crer que, quanto mais evoluído
o homem se tornasse, mais solidário ele seria e usaria os recursos tecnológicos para fazer
do mundo um lugar muito melhor.
Essa era a luz de Felipe, que o tornava tão especial. Ela sabia que, hoje, ela estava
um pouco impregnada por essa luz, porque compartilhava os ideais do ex-namorado.
Entendia porque, provavelmente, Willian não a esqueceria.
Mas, não conseguiu lhe explicar nada disso. Ele se deixou abater de tal forma pela
angústia, que até mesmo a noite de Natal deles foi triste. Embora Giulia quisesse aproveitar
cada momento, Willian não parava de tentar convencê-la a ficar. A insistência dele estragou
aquela noite, que poderia ter sido mágica para ambos. Ela sequer quis sair de casa, para ver

77
o Natal nova-iorquino. Pensou que, em outro ano, voltaria para aproveitar a festa dos
americanos que, naquela noite, ela viu pela televisão. Nem mesmo prestava atenção ao que
ele ainda lhe dizia. Os argumentos dele não faziam sentido para ela. Eles cearam em
silêncio. No dia seguinte, ele voltou para despedir-se dela. Giulia ainda ficou na cidade ,
naqueles dias, despedindo-se dos outros amigos. Contudo, disse a Willian que partiria no
dia seguinte.
Ela nem mesmo guardou recordação alguma do momento em que separaram-se.
Tinha momentos muito melhores para lembrar. Queria lembrar-se dele tal qual o conhecera,
tal qual o via nas fotos digitais que gravara em seu computador. Riscou de sua memória
aqueles últimos dias com ele.

Antes de desconectar seu notebook pela última vez em Nova York, recebeu uma
mensagem do Bad Boy.

* Assunto :
Data: Sábado, 23 dezembro de 2000 14:02 hs
De: Bad Boy
Para: Giulia

Gata,
Os momentos mais lindos são aqueles em que nossos sonhos se tornam realidade.
Estou te esperando aqui. Boa viagem.
Beijos, beijos, beijos...
Bad Boy

“Mas, que droga, nem nesta última mensagem ele me falou o nome dele! Como eu
vou chamá-lo?”., pensou, enquanto desligava a máquina.
Foi tomar banho, mas ainda pensava em como seria o primeiro encontro deles. “E
se ele tiver uma voz horrível?”. Esse pensamento a fez dar um salto. Nunca ouvira a voz
dele. Nunca acessaram chats com voz ou usaram voice messager35 . Telefone, estava fora de
cogitação. Nesse aparelhinho, acabariam, certamente, se expondo muito mais do que
haviam combinado. Mas, agora, ela estava pensando em cada detalhe e ficou preocupada.
“E quando eu o vir, se eu não gostar dele? Será que é melhor eu ir com outra
roupa, ao invés de usar a combinada?”

A água morna acalmava Giulia, a cada sobressalto. “Não, melhor eu ir com a roupa
combinada, porque se ele resolver trocar nós não nos encontraremos nunca”.
“E se ele for feio? Acho que dá pra eu fugir no meio da multidão que vai estar na
praia.”
“E se ele me agarrar no meio de todo mundo? Fomos tão longe pelo
computador...Não, não tem perigo, tem polícia por lá.”

35
Mensagem de voz

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“Mas, eu vou olhar para a cara dele e vou falar o quê? ‘Oi, Bad Boy’. Que
ridículo, eu não sei nem o nome de um homem que conhece cada desejo meu!”

Ela se olhava no espelho, agora, enquanto secava o cabelo.


“E se eu gostar dele e ele não gostar de mim?”

Ela sentiu um leve mal-estar. Um calafrio percorreu seu corpo e, por uns instantes,
ela imaginou que fosse perder os sentidos. Apoiou-se na pia e quase derrubou o secador.
Quando se recuperou, concluiu que estava exausta. Já cogitara o possível e o impossível.
Era hora de ir para o aeroporto.
Finalmente, reuniu as malas e o resto da bagagem. A sorte estava lançada. Havia
pouca coisa que ela podia modificar àquela altura. E o que dependesse dela, não seria
modificado.
No caminho para o aeroporto, algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto. Embora
tentasse pensar no Bad Boy, ela estava triste porque não recebera nenhuma mensagem de
Felipe.

Capítulo XVIII

O avião aterrissou em São Paulo, na última escala do vôo. Eram quase seis horas da
manhã e chovia muito. Após o desembarque dos paulistas, restaram poucos passageiros no
vôo que saíra lotado de Nova York. Agora, faltava a última etapa da viagem. Quando
chegasse ao Rio, Giulia teria tempo de sobra para descansar. À noite, finalmente,
conheceria o Bad Boy.
Contudo, a chuva aumentou e a tripulação avisou que não haveria condições de
decolagem nas próximas horas. Os passageiros, entre cansados e revoltados, foram
acomodando-se nas salas de espera do aeroporto. O dia feio e a lembrança de que estava em
solo paulista deixaram-na um pouco deprimida. Passara tantos momentos alegres com
Felipe na capital de São Paulo e agora eles iriam virar o ano 2001 separados. Arrependia-se
por não ter perguntado a ele onde estaria, o que faria naquela noite.
Giulia estava ansiosa demais para ficar parada. Dormira mal durante o vôo e a
diferença de fuso horário, mesmo não sendo tão grande, aumentava o seu cansaço. Tudo o
que ela queria era estar em casa, na sua cama, descansando. E que, quando a noite
chegasse, ela pudesse tomar um longo banho e, revigorada, ir ao encontro de Felipe.

Mas, era o Bad Boy quem a estaria esperando. Ela nem sabia de onde vinha tanta
credulidade em relação ao que ele lhe dizia. Ela, que era sempre tão cuidadosa, tão
desconfiada, estava, agora, indo conhecer um homem que lhe dizia ser exatamente do jeito
que ela gostava.
E se ele fosse muito feio? E se ele tivesse alguma mania que espantasse Giulia? E se
a química não funcionasse? Isso já lhe acontecera antes. De novo, os tais pensamentos
voltaram a ocupar-lhe a mente.
Era tarde demais para concluir que errara ao se deixar envolver por uma pessoa sem
rosto ou forma. Naquele momento, percebeu que envolvera-se, sim, pelas semelhanças que
haviam entre seu verdadeiro amor e aquele estranho.
Por um instante, ela não pensou em nada. Aquela sensação de vazio, que vinha
acometendo-a freqüentemente nas últimas semanas, voltou forte e quase a fez desmaiar. Foi

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prontamente socorrida pelos outros passageiros que, insatisfeitos como ela, aguardavam o
novo embarque. Somente foi deixada sozinha quando eles certificaram-se de que ela estava
novamente bem.
- Não, se preocupem, eu estou fazendo exames para ver o que eu tenho – disse
Giulia, com um largo sorriso, ao casal que insistia em permanecer ao seu lado.

Na verdade, ela estava profundamente preocupada com seu estado de saúde. Nunca
tivera nenhuma doença grave e, agora, defrontava-se com esses súbitos mal-estares, sem
imaginar o que pudesse ser. Começou a ter os mais estranhos pensamentos. Pensou na
morte, pensou no quanto era frágil. Durante um tempo, tentou acostumar-se com a idéia de
que poderia estar gravemente doente. E se lhe restasse pouco tempo de vida?
Ela jamais havia pensado no tempo como um fator limitante. Na sua cabeça, era
como se fosse um bem inesgotável. Sempre haveria tempo para tudo. Se não fosse agora,
seria depois. Aqueles pequenos desmaios estavam dando a Giulia outra dimensão dos dias,
das horas, dos minutos.E se aquele fosse seu último Ano Novo?
“Se for, eu quero passar com Felipe!”

Num impulso, ela correu até a cabine telefônica mais próxima. Uma ligeira tontura a
fez desacelerar. Discou o número da casa dele. Quem sabe, poderia, ainda, encontrá-lo
naquela noite. Com um pouco de sorte, talvez ele pretendesse passar o Ano Novo com a
família e ela poderia estar junto dele. O telefone tocou até a secretária atender. A voz dele,
inconfundível, não deixava dúvidas de que ela não discara o número errado. Desanimada,
ainda tentou ligar para o seu celular. Mas, ele não mudara o hábito de deixá-lo desligado.
O que quer que o destino lhe preparasse para aquela noite, agora, ela teria que
aceitar, sem sequer reclamar.
- Quanta imprudência, Giulia – ela brigava consigo mesmo. Mas em seguida,
lembrava-se da pessoa que estava escondida atrás da tela do computador- Impossível não
gostar dele.- dizia para si mesma, contrariando toda a sua lógica.

Embora relutasse em aceitar a verdade, tinha consciência do que lhe acontecera.


Como ficou tempo demais longe do país, acabou ficando extremamente sensível a qualquer
vínculo com o Brasil. Mesmo trocando e-mails com Felipe e com alguns outros amigos
virtuais, o Bad Boy falava das coisas da sua cidade, matando a sua saudade. E, em muitos
momentos, ele falava com Giulia de um jeito que lembrava Felipe. Isso foi o que mais a
encantou. Ele falava do Universo e da vida.

O resto do dia foi repleto de expectativas e falsos avisos de que, em breve, a


situação se normalizaria e o avião partiria rumo ao Rio de Janeiro.
Quando eles realmente decolaram, eram dez da noite. O piloto anunciou a duração
do vôo: meia hora. Muito abaixo do tempo normal. Todos corriam para recuperar o dia
perdido.

No saguão do aeroporto, Giulia olhou para o relógio. Eram onze e quinze. Com
muita sorte, conseguiria chegar pontualmente à meia-noite na praia de Copacabana. Havia
poucos táxis à disposição dos passageiros naquela noite. Ela olhou em volta e se
desesperou. Todos os carros disponíveis estavam ocupados.

80
- Não é possível, eu vou entrar no ano 2001 carregando um monte de malas em
pleno aeroporto. – ela resmungou.

O Universo parece tê-la ouvido. Naquele instante, surgido do nada, Giulia avistou
um táxi vazio. E antes que alguém passasse na sua frente, ela correu para o meio da pista e
fez sinal para o carro. E como o motorista não parecia disposto a virar o ano trabalhando,
logo eles estavam em Copacabana. Eram onze e trinta e cinco.
Não foi fácil transpor a enorme quantidade de pessoas que se dirigiam para a praia.
Ela ainda teria que deixar a bagagem em seu apartamento. Quando finalmente chegou em
casa, parou por alguns instantes diante da foto de Felipe, que permanecia no mesmo porta-
retrato, na sala. Logo percebeu que, se demorasse muito tempo alí, passaria o Ano Novo
sozinha. Engoliu a tristeza, arrancou da mala uma roupa branca. Uma vertigem percorreu
seu corpo e ela teve que sentar-se para não cair. Lembrou-se, naquele momento, dos
exames que fizera em Nova York. Os resultados estavam na sua caixa postal, desde o dia
anterior. Apesar da pressa, a curiosidade era maior. “Será que eu estou com alguma
infecção? “, ela pensou. Rapidamente conectou-se à internet, enquanto se trocava. Baixou
suas mensagens e, no meio delas, havia a do laboratório.
- Grávida?

Sua voz soou alta na sala. Sequer cogitara essa possibilidade. Estavam explicados
todos os mal-estares, todo cansaço que ela vinha sentido, o apetite insaciável. “Como eu
não percebi antes? Cinco semanas e eu não me toquei?” , ela se perguntava.
Rapidamente, fez as contas, tentando lembrar-se da época em que engravidou. Não
foi difícil descobrir que o filho só poderia ser de Felipe. Vieram à sua memória detalhes
isolados daqueles dias que Felipe passara com ela em Nova York, detalhes esquecidos
diante da felicidade daqueles momentos.
As lágrimas escorriam por seu rosto, aos montes. Chorava de felicidade por aquela
notícia e de tristeza, por não ter Felipe ao seu lado naquele momento.
- Meu amor, Deus deu um jeito de eu virar o século com um pedacinho de você! –
ela pensava.

Ia desligar o computador e outra mensagem chamou a sua atenção. Era de Felipe.


Ao abrir, ela viu uma foto deles, juntos, tirada há muito tempo. Embaixo, a mensagem:
“Eu lhe disse que os momentos mais lindos são aqueles em que nossos sonhos se
tornam realidade. Hoje, nossa noite vai ser linda”

Ela custou a entender. “ Quem me disse isso foi o ...”

Olhou o relógio. Onze e cinquenta e cinco. Ela nem esperou o elevador. Desceu os
primeiros lances de escada correndo, mas logo lembrou-se do bebê e desacelerou. Chegou
ao lugar combinado, com o coração disparado. Procurou por Felipe no meio das pessoas,
que formavam um imenso paredão.
Então, ela sentiu um perfume no ar. Percebeu uma energia muito familiar,
enchendo-a de felicidade. Alguém a abraçou por trás, envolvendo o seu corpo, como ela
gostava. Sentiu que aquilo já havia se repetido muitas outras vezes. Nem deu tempo para
pensar. Quando se virou, seu olhar encontrou o olhar querido de Felipe.

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Ele lhe deu um beijo e a puxou para a areia. Eles correram para perto do mar,
enquanto já ouviam a contagem regressiva para o ano novo. Cinco, quatro, três, dois, um...

Último Capítulo

Quando os fogos explodiram no céu de Copacabana, já era o ano 2001 e a alegria se


espalhou por toda a orla. Giulia olhou para cima, maravilhada com aquele show de luzes
cintilantes, que desenhavam figuras na clara noite de reveillon. No mar, de um navio
estrategicamente colocado, partiam mais fogos coloridos, saudando o novo ano. O primeiro
ano de um novo século.
Os fogos se intensificaram e desenhavam, agora, cascatas no céu. Por um instante,
surpreendida pela beleza dos fogos de cor azul, ela sentiu-se bem no meio de uma
constelação, pairando no Universo. Uma súbita paz tomou conta dela. Aqueles fogos,
naquela cor, mais parecia uma chuva de estrelas caindo sobre a multidão reunida alí.
A festa de Ano Novo em Copacabana era realmente maravilhosa. Dias antes de 31
de dezembro, o mar entrava em festa, recebendo oferendas e orações. As mais diferentes
crenças, uma enorme variedade de culturas e religiões conviviam pacificamente na areia da
praia. A Bíblia da senhora católica , a oferenda da velha mãe-de-santo, as velas acesas pelas
crianças em buracos cavados na areia. Havia um ar de misticismo naqueles dias, tomando
conta das pessoas. E elas pareciam mais solidárias, mais felizes.
Os turistas traziam um ar de novidade para os velhos prédios do bairro. Aquelas
ruas conhecidas e queridas estavam agora tomadas por diferentes idiomas, tipos físicos
variados, modas mais ainda. Que ninguém critique a alegria da camisa florida do turista,
muito menos a excentricidade do turbante do velho senhor. Misturar a sua cultura à nossa é,
antes de tudo, sinal de respeito.
E nesse clima de expectativa e esperança, as pessoas reuniam-se numa enorme
confraternização na praia à noite. Era o quarto ano que Giulia passava o reveillon alí. Em
outros anos, vira a festa carioca pela televisão. Mas, nada comparava-se à emoção de estar
naquela praia, naquele momento.
A variedade de formas desenhadas no céu parecia não ter fim. Por todos os lados
ouviam-se estouros de garrafas de champagne. Pessoas de diferentes idiomas saudavam-se,
entendendo-se completamente pelo olhar, pelo abraço, pela alegria. No meio da festa,
Maurício Kubrusly transmitia aquela emoção, pela TV, para todo o país.
Por fim, restava a tradicional cascata do hotel do Leme. Ela olhou fixamente para
aquelas luzinhas douradas caindo do topo do edifício. Era como se fossem gotas de ouro
abençoando a cidade e todo aquele povo em festa.
Sentiu o corpo de Felipe junto ao seu. Ele estava em pé, atrás dela e a envolvia em
um abraço forte, apertado, carinhoso.
Chorou de emoção. Estava feliz. Nem sempre foi assim.

- Eu não podia, de novo, fazer você mudar toda a sua vida por minha causa. Você
estava empolgada com o que estava fazendo. Não achei justo pedir para você voltar. Mas,
também tive medo que você se envolvesse com alguém lá e quisesse ficar. Então, quando
nos encontramos por acaso no chat, eu resolvi ficar perto de você, como o Bad Boy – ele
lhe explicou.

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- E como eu não percebi que era você? Impossível você nunca ter deixado escapar
nenhum detalhe familiar!
- Você estava preocupada demais com a realidade que imaginava existir para
acreditar em um sonho. Pensava que eu estava apaixonado por alguém aqui e acabava
nem cogitando que pudesse ser eu, do outro lado da tela, mesmo que reconhecesse algum
indício meu.

Eles ficaram quietos por algum tempo, até que ele sussurou em seu ouvido:
- É preciso ter cuidado com a fantasia. Ela pode nos levar a atitudes erradas. Por
causa de fantasia, nós nos separamos, por causa da fantasia, você quase não volta para
mim. A fantasia nunca pode substituir a realidade.

Mais uma vez, ele tinha razão. Ela passara muito tempo triste, imaginando quem era
a dona do coração de Felipe.
- Eu nunca deixei de amar você. As outras, não passam de fantasia. Virtual ou real,
são apenas fantasia.

O século XXI chega em um momento de profunda e rápida transformação. A


tecnologia, aliada à ciência, modifica nossas vidas e nossas perspectivas a todo instante.
Mais do que nunca, é preciso estar atento e mudar com o mundo. É hora de adequar nossas
idéias, nossos conceitos e nosso comportamento à nova realidade que se apresenta.

- Estamos vendo o nascimento de um novo século. Já pensou o que isso quer dizer?
– ele olhava para o mar. As ondas, calmas, traziam uma deliciosa sensação de vida, de
transformação.
- Nós vivemos um momento histórico. Mais tarde, vão chamar esse movimento da
tecnologia de “Revolução Tecnológica”. E nós estamos vendo isso de perto, vamos ter
muita história para contar aos nossos filhos.
- Você quer ter filhos? – ela perguntou, aproveitando a deixa.
- Acho que chegou a hora...- ele respondeu. Um sorriso lindo iluminou seu rosto.

Giulia não resistiu. Pegou a mão dele e levou-a até o seu ventre.
- Eu estou grávida. Acabei de receber a notícia por e-mail, antes de vir para cá.
O bebê tem cinco semanas. Exatamente quando você foi me ver nos Estados Unidos.
Depois, eu não fiquei mais com o Bill.

Ao redor deles, a festa continuava.


Olhando para o céu, ela teve a certeza de que nós não estamos soltos no nosso
caminho. Via claramente que havia uma força muito maior , que talvez nem consigamos
mensurar, norteando nossos espíritos, nossos corações, nossa vida, nos levando para
alguma situação onde possamos estar felizes, em harmonia, equilibrados. Percebia que, por
mais difícil que pudessem ser nossos caminhos, existiam sempre atalhos onde era possível
a mudança de rumo.

Eles não estavam alí, juntos, naquele momento, por acaso.


Com Felipe, Giulia aprendeu a amar o Universo. Ela entendeu que amar os
momentos bons e ruins é amar a vida. Descobriu que a felicidade não existe apenas

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naqueles momentos iluminados, mas também nas pequenas coisas que nos acontecem a
toda hora. Porque há Alguém nos conduzindo, fazendo com que nos tornemos cada vez
melhores, nos dando uma lição a cada dia. Ela aprendeu, com ele, a confiar que, mesmo
quando tudo parece errado em nosso destino, se nós realmente quisermos acertar o rumo, é
momento de silenciar e ouvir com atenção. O Universo, de alguma forma, nos soprará qual
é o caminho.
Felipe descobriu com Giulia que amar alguém é um longo aprendizado. Ele
aprendeu que nós não confiamos em qualquer um. Confiamos em nossa alma gêmea.
Quando nós a encontramos, ela nos encanta, porque vemos nela o nosso reflexo,
entendemos as suas dores e as suas alegrias. Daí, surge uma grande vontade de
compartilhar com ela o que aprendemos ao longo da nossa existência, com as nossas
experiências. Somente ao percebermos a puxamos para o mesmo patamar de conhecimento
que nós é que, então, ficamos em paz. E felizes.

Eles aprenderam juntos que saber amar não se resume a dedicar-se de corpo e alma
a uma pessoa. É saber respeitar as suas necessidades, entender as suas dores, abrir mão de
si mesmo para ajudar o outro. É saber abrir mão do nosso orgulho, da nossa possessividade,
e dar ao outro liberdade para viver, sentir e pensar, como ele quiser. Mas, só conseguimos
fazer isso por nossa alma gêmea.
E, a partir dalí, dia após dia, eles iam caminhar juntos. Todas as vezes em que as
coisas não saíam como eles queriam, eles paravam e observavam. O Universo mostrava o
caminho.

Finalmente, viver começou a fazer sentido, a partir da busca de aprender a cada dia
um pouco mais.
Que viesse o novo século e todo o seu avanço tecnológico. No coração deles, o
Universo era maior do que nunca.

Bibliografia ( notas) :

“A Empresa na Velocidade do Pensamento “- Bill Gates – Companhia das Letras – 1999

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COMPLEMENTO

Se você está dando seus primeiros passos nas salas de bate-papo, dê uma olhadinha
no complemento abaixo. Você encontrará informações que o farão sentir-se mais à vontade
no ambiente virtual.

. dic

Chat – Do verbo to chat, em inglês, que significa conversar, a palavra chat virou sinônimo
das salas de bate-papo.
Nickname – palavra também oriunda do idioma inglês, que significa apelido. Mais utilizada
pela abreviação "nick", é o apelido pelo qual se é inscrito e conhecido na sala de bate-papo.
Reservado – recurso que , quando acionado, permite que somente um interlocutor escolhido
na lista de nicks leia a mensagem enviada. É uma forma de se ter privacidade nas salas de
bate-papo.
Aberto – diz-se do espaço comum a todos, em que todos podem ler as mensagens que são
enviadas.
Provedor de acesso* - varejistas de conectividade à internet. Ligados a um provedor de
backbone ( trecho de maior capacidade da rede e que tem o objetivo de conectar várias
redes locais), revendem conexão à internet aos usuários finais.
Plugar – para os internautas, estar plugado quer dizer estar conectado à rede ou fazer uso
habitual dela.
Servidor * - no modelo cliente-servidor, é o programa responsável pelo atendimento a
determinado serviço solicitado por um cliente. Refere-se, também, a um sistema que
oferece recursos tais como armazenamento de dados, impressão e acesso para usuários de
uma rede.
On-line * - Termo usado para designar todo o tipo de transação entre computadores.
"Migo/a" – outra gíria comum entre os frequentadores das salas de bate-papo, é um jeito
carinhoso de chamar-se alguém de amigo/a
Browser – Veja "Navegador"
Navegador * – programa que permite a navegação pela internet, permitindo utilizar todos
os seus recursos.
Net – mais um diminutivo muito usado, referindo-se à internet. Derivado da palavra em
inglês que significa rede.

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* Fonte : Internet User's Glossary, disponível no Universo OnLine
Obs : O nome dado ao dicionário (".dic") é uma alusão às extensões de três letras
usadas quando se grava um arquivo no computador, que designa seu conteúdo (ex: extensão
".doc" para os arquivos do Word)

"Caracteretas" ou "Carinhas" ou "Smileys" *

Convenção utilizada para transmitir o estado de espírito dos interlocutores com


caracteres disponíveis no teclado.

* Fonte : Internet User's Glossary, disponível no Universo OnLine

:-) ou :) sorriso
:-( ou :( triste
;-) piscadela
:-x ou :-* beijo
:'-( ou :'( chorando
:-0 espantado
:-p mostrando a língua
:-D gargalhando
:-} sorriso sarcástico

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