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Publicação do

Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC)

Versão eletrônica da revista está disponível em


www.iedc.org.br/reid

4
Quadrimestral
v.2 - Junho 2009
REID é uma publicação quadrimestral (junho, outubro, fevereiro) do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania (IEDC).
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COORDENAÇÃO
Inês Virgínia Prado Soares
Sandra Akemi Shimada Kishi

CONSELHO EDITORIAL
Adilson Paulo Prudente do Amaral Filho Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro
Adriana Zawada Mello Marcelo Buzaglo Dantas
Blanca Lozano Cutanda Marcus Orione Gonçalves Correia
Bruno Campos Silva Nelson Nery Junior
Carlos Alberto de Salles Oscar Vilhena
Christian Courtis Paulo Affonso Leme Machado
Daniel Sarmento Rebecca Purdom
Evanson Chege Kamau Renata Porto Adri
Everson Paulo Fogolari Sérgio Salomão Shecaira
Fabiana Saenz Solange Teles da Silva
Flávia Piovesan Tullio Scovazzi
Geisa de Assis Rodrigues Uendel Ugatti
Gerd Winter Virgílio Afonso da Silva
João Bosco Araújo Fontes Jr. Walter Claudius Rothenburg
Joaquim Herrera Flores
José Roberto Pimenta Oliveira EDITORAÇÃO
John Bernhard Kleba Darcy Rudimar Varella
Juliana Santilli Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro

Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e


Cidadania – v.2, n. 4, Junho 2009. – Erechim, RS : Habilis, 2009.
v. ; 18 x 26cm

Quadrimestral
ISSN 1983-1811

1. Direito 2. IEDC
C.D.U.: 340
Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath CRB 10/1278

www.iedc.org.br www.habiliseditora.com.br

2 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Sumário

SUMÁRIO 5
COLABORADORES

7
MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS
DIGRESSÕES E REFLEXÕES
Bruno Campos Silva

17
DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD:
FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE
LAS DIVERSAS IDENTIDADES
CULTURALES
David José Geraldes Falcão

31
NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL
À IMPUNIDADE – ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES
DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS
Douglas Fischer

39
EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
Ewerton Teixeira Bueno

45
UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA
DITADURA BRASILEIRA
Gabriela Freire Kühl de Godoy

55
ACESSO A DOCUMENTAÇÃO
GOVERNAMENTAL E DIREITO À
MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO
PROJETO DE LEI
Inês Virgínia Prado Soares

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 3


Sumário

63 171
A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE
ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE
Ivan Carneiro Castanheiro CONTRA OS ANIMAIS
Paulo Affonso Leme Machado
79
CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO
Ivam Gerage Amorim
Discussão
97 175
SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA
FLORESTAS E JARDINS
BIOTECNOLÓGICA
João Carlos de Carvalho Rocha Fernanda Alves Vieira

109 177
CRIMINALIDADE DO PODER, POLÍCIA E
TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES
IMPUNIDADE
NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO
SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO Paulo Queiroz
BRASILEIRO
José Renato Martins
179
135 COLÓQUIO “LA EVOLUCIÓN DE
DIREITO AO AMBIENTE SADIO: LA ORGANIZACIÓN POLÍTICO-
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E CONSTITUCIONAL DE AMÉRICA DEL SUR”
INTERNACIONAL Marcelo Figueiredo
Juliana Santilli

151
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
Resenha
PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO 203
PÚBLICA:O DEVER DE INFORMAR E O
LES THINK TANKS: CERVEAUX DE
DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E
LA GUERRE DES IDÉES, DE STEPHEN
À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS
BOUCHER E MARTINE ROYO
PAPÉIS SOCIAIS
Pedro Guimarães Pires
Luis Manuel Fonseca Pires

165
205
A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A
INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Maria Garcia

4 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Colaboradores

FERNANDA ALVES VIEIRA


Advogada especialista em Direito Ambiental
COLABORADORES pela UNIMEP – Universidade Metodista de
Piracicaba; Ex-consultora jurídica da SUPRAM
- Superintendência Regional de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável TM/AP, ligada
ao COPAM – Conselho de Política Ambiental
do Estado de Minas Gerais.

GABRIELA FREIRE KÜHL DE GODOY


Estudante de Direito da PUC-SP.

BRUNO CAMPOS SILVA INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES


Advogado em Belo Horizonte-MG e Brasília-DF. Procuradora da República em São Paulo, Mestre
Associado a Zambiazi Advogados e Consultores, e Doutora em Direito pela Pontifícia Universida-
em Belo Horizonte-BH. Professor convidado do de Católica de São Paulo, Especialista em Direito
curso de pós-graduação lato sensu em Direito Sanitário pela UNB e Presidente do Instituto de
Ambiental, da Universidade de Piracicaba-SP, Estudos Direito e Cidadania – IEDC. Pesquisa-
UNIMEP. Especialista em Direito Processual dora em nível de pós-doutorado no Núcleo de
Civil pelo CEU de São Paulo. Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo.
DAVID JOSÉ GERALDES FALCÃO
Licenciado em Direito; Mestre em Direitos IVAN CARNEIRO CASTANHEIRO
Humanos pela Universidade de Salamanca; 2º Promotor de Justiça de Americana, Mestre em
Doutor em Direitos Humanos pela Universidade Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP e Coor-
de Salamanca; professor de Direito da Escola denador da Área de Habitação e Urbanismo, do
Superior de Gestão do Instituto Politécnico de C.A.O. Cível e de Tutela Coletiva, do Ministério
Castelo Branco (Portugal); Coordenador da li- Público do Estado de São Paulo.
cenciatura em Solicitadoria e da pós-graduação
em Solicitadoria de Execução da Escola Superior IVAM GERAGE AMORIM
de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Advogado. Mestrando em Direito Político e
Branco (Portugal). Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Especialista em Direito Ambiental
DOUGLAS FISCHER pela UNIMEP/ Piracicaba. Estagiário no An-
derson, Coe & King, LLP Attorneys at Law em
Procurador Regional da República na 4ª Região, Baltimore (Maryland), Estados Unidos.
professor de Processo Penal.

JOÃO CARLOS DE CARVALHO ROCHA


EWERTON TEIXEIRA BUENO
Procurador Regional da República na 4a. Região,
Técnico Administrativo e estagiário do Ministé- Mestre em Direito pela PUC/RS, autor do livro
rio Público Federal, além de acadêmico de direito Direito ambiental e transgênicos: princípios
da Universidade São Francisco. fundamentais da biossegurança (2008).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 5


Colaboradores

JOSÉ RENATO MARTINS MARIA GARCIA


Doutor em Direito Penal pela Universidade de Livre-Docente pela PUC-SP. Professora de
São Paulo – USP. Mestre em Direito Consti- Direito Constitucional, Direito Educacional e
tucional pela Universidade Metodista de Pira- Biodireito Constitucional na PUC-SP. Vice-
cicaba – UNIMEP. Professor de Direito Penal Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da em Direito da PUC-SP. Procuradora aposentada
Faculdade de Direito da Universidade Metodista do Estado de São Paulo. Ex-Assistente Jurídica
de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Direito da Reitoria da USP. Membro-fundador e atual
Penal na Faculdade de Direito das Faculdades de Diretora Geral do IBDC. Membro da CoBi do
Campinas – FACAMP. Coordenador do Curso HCFMUSP e do IASP. Membro da Academia
de Direito Campus Taquaral da Universidade Paulista de Letras Jurídicas. (Cadeira Enrico T.
Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Advogado Liebman).
e Ex-Delegado de Política de Carreira do Estado
de São Paulo. PAULO AFFONSO LEME MACHADO
Professor na Universidade Metodista de Piraci-
JULIANA SANTILLI caba. Autor do livro Direito Ambiental Brasileiro
Promotora de Justiça, do Ministério Público do (16. ed.). Professor Convidado na Universidade
Distrito Federal, sócia-fundadora do Instituto Ecológica de Bucareste (Romênia) – 2008. Prê-
Socioambiental (ISA), mestre em Direito pela mio Internacional de Direito Ambiental “Eliza-
Universidade de Brasília e doutoranda pela beth Haub” (1985).
PUC-PR. Autora do livro “Socioambientalismo
e novos direitos” (Editora Peirópolis/ISA/IEB, PAULO QUEIROZ
2005). Professor (UniCEUB) e Procurador Regional
da República.
LUIS MANUEL FONSECA PIRES
Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela PEDRO GUIMARÃES PIRES
PUC-SP. Juiz de Direito em São Paulo. Estudante de Direito da Universidade Federal
de Sergipe.
MARCELO FIGUEIREDO
Livre-docente pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo(PUC/SP) e Diretor da
Faculdade de Direito da PUC/SP.

6 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Artigo

MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS
DIGRESSÕES E REFLEXÕES

Bruno Campos Silva* RESUMO: O presente trabalho foi concebido


no sentido de traçar importantes considerações
acerca do meio ambiente e da cultura em nosso
país. Para tanto, esboçamos algumas digressões
e reflexões que, sem dúvida alguma, levam
ao preciso (rectius: escorreito) raciocínio das
estruturas de um verdadeiro Estado Constitu-
cional brasileiro. Não deixamos de adentrar aos
aspectos inerentes ao procedimento que levou
à concepção da legislação federal concernente
às mudanças impostas à nossa língua oficial,
além do mais, afirmamos ser a língua importante
elemento fundamental da cultura. Em arremate,
lançamos algumas considerações para se atingir
o real desiderato do Estado Democrático de
Direito, sem cogitar na implementação de um
reprochável Estado de Exceção.
Palavras-chave: Meio ambiente. Cultura. Lín-
gua portuguesa. Estado Democrático de Direito.
Constituição. Informação.

ABSTRACT: This study was designed to outline


important considerations about the environment
and culture of our country. For this, we outli-
ned some digressions and reflections which,
undoubtedly, led to the precise reasoning of the
structures of a genuine Brazilian constitutional
state. We didn’t forget to enter the aspects of
the proceeding that led to the design of federal
legislation concerning the changes imposed
on our language; moreover, we affirm that the
* Advogado em Belo Horizonte-MG e Brasília-DF. Associado a Zambiazi Advogados e Consultores, em Belo Horizonte-BH. Professor convidado
do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Ambiental, da Universidade de Piracicaba-SP, UNIMEP. Especialista em Direito Processual
Civil pelo CEU de São Paulo.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009 7


SILVA, B. C.

language is an important fundamental element substancial. É que os subdesenvolvidos têm


of culture. Lastly, we launched some considera- sido e são, naturalmente, meros piões no tabu-
tions to achieve the real goal of the democratic leiro de xadrez da economia e, pois, da política
state under the rule of law, not even pondering internacional; logo, por definição, sacrificáveis
the implementation of a reprehensible State of para o cumprimento dos objetivos maiores que
Exception. movem as peças. (...) Talvez se possa concluir,
Keywords: Environment. Culture. Portuguese apenas, que as condições evolutivas para aceder
Language. Democratic State under the rule of aos valores substancialmente democráticos,
Law. Constitution. Information como igualdade formal, segurança social,
respeito à dignidade humana, valorização do
trabalho (todos consagrados na bem concebida
1. Meio Ambiente e Constituição e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988),
ficarão cada vez mais distantes à medida em
Consabido por todos que o meio ambiente que os Governos dos países subdesenvolvidos
adquiriu sua efetiva proteção, a partir do tecido e dos eufemicamente denominados em vias de
constitucional de 1988 (ex vi do art. 225), Ca- desenvolvimento – em troca do prato de lentilhas
pítulo VI. constituído pelos aplausos dos países cêntricos
Falo aqui em “tecido” constitucional, pelo – se entreguem incondicionalmente à sedução
simples fato de que a Constituição deverá ser do canto da sereia proclamador das excelências
interpretada e concretizada com a conjugação de um desenfreado néo-liberalismo e pretensas
sistêmica de variados preceitos, regras, regra- imposições de uma idolatrada economia global.
mentos (como queiram alguns), princípios (con- Embevecidos narcisisticamente com a própria
jugar, de forma efetiva, aquele previsto no art. ‘modernidade’, surdos ao clamor de uma popu-
170, VI), postulados normativos como defende lação de miseráveis e desempregados, caso do
o ilustre Prof. Humberto Ávila.1 O tema é vasto, Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este
rendendo até mesmo livros a respeito do assunto, cântico monocórdio, monolítica e incontrasta-
o que, também não se afigura o escopo central velmente entoado pelos interessados”.2
do presente trabalho. Com as brilhantes observações do mestre
A nossa Constituição é muito maltratada, administrativista, pode-se chegar à conclusão
nem mesmo os fundamentos (ex vi do art. 1º) e que sempre defendemos, ou seja, sem a íntegra
objetivos (ex vi do art. 3º) da República Fede- valorização do trabalho humano, sem salário dig-
rativa são respeitados em sua plenitude, apenas no, sem saúde digna, sem moradia digna e segu-
e tão-somente de maneira paliativa, bem como ra, resumindo sem a concreta operacionalização
suas garantias (ex vi do art. 5º) e o piso vital do texto constitucional; o meio ambiente irá, com
mínimo (ex vi do art. 6º), todos inerentes a salva- toda certeza, sucumbir debaixo de nossos olhos,
guardar o meio ambiente; doa a quem doer. ou como dizia o poeta e cantor Caetano Veloso
(“Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, e,
Eis as perfeitas colocações do mestre Prof.
acrescento, debaixo dos nossos também!).
Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) À vista
deste panorama, ainda incipiente, mas desde Em outra oportunidade, demonstramos tal
logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes indignação fazendo, inclusive, alusão ao poeta
umbrais do próximo milênio, o que seus albores e cantor Renato Russo, em sua música “Que
reservam para a sobrevivência da democracia País É Este?”.
e, muito mais, portanto, para as possibilida- Importante digressão é que, nos idos da
des dos países subdesenvolvidos acederem às ditadura militar, fervilhavam intensos movimen-
condições propiciatórias de uma democracia tos culturais.
1
Teoria dos princípios– da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7ª Ed., SP: Malheiros, 2007.
2
“A democracia e suas dificuldades contemporâneas”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coordenadoras). Revista
Internacional de Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e Cidadania – v. 1, n. 4, Outubro 2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008, p. 62.

8 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009


MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

Chega de mentiras ou adoção de medidas A informação transparente, idônea e des-


paliativas, o mundo precisa de uma mudança garrada de interesses escusos consubstancia-se
com atitude radical (com utilização do bom senso num dos principais alicerces de nossa Cultura.
e transparência), logicamente, sem engessar o E mais, as peculiaridades de nossa Cultura
desenvolvimento, como pretendem alguns ou exigem respeito e proteção.
vários. Afirma o mestre alemão Prof. Peter Häber-
le: “No âmbito constitucional, os feriados per-
tencem a uma tríade de ‘elementos de identidade
2. Cultura e Constituição cultural do Estado constitucional’. Ela consiste
em feriados, hinos nacionais (sobre isso a recente
A Cultura em nosso país é tratada em tópico
monografia do autor de 2007) e bandeiras nacio-
especial, ou melhor, na Seção II, do Capítulo III,
nais (a respeito também o livro: Nationalflaggen
de nossa Constituição (ex vi dos arts. 215 e 216).
als bügerdemokratische Identitätselemente und
Entretanto, não vislumbramos, ainda, internationale Erkennungsymbole, 2008).
qualquer interesse real e concreto em prol de sua
Em alguns países, as bandeiras, os hinos,
efetiva proteção.
e os feriados nacionais são vivenciados ‘con-
Um país aculturado, com certeza, dominá- juntamente’ de forma intensiva num único dia.
vel ou já dominado! E naquela época, do regime O Estado constitucional aberto necessita de
militar, as informações eram decotadas, para elementos culturais de base. Cultura é o ‘húmus’
atenderem apenas aos interesses dos dominantes, de toda sociedade aberta. Ela é que lhe confere
com o devido respeito. ‘fundamento e motivos!’. Sem cultura, o homos
Percucientes as observações do mestre politicus ficaria sem chão. O economicismo de
Prof. Paulo Affonso Leme Machado: “A demo- nossos dias não fornece sustentação interna,
cracia nasce e vive na possibilidade de informar- mesmo que uma economia eficaz continue a ser
se. O desinformado é um mutilado cívico. Haverá tão importante. Por isso, é importante que uma
uma falha no sistema se uns cidadãos puderem teoria constitucional, entendida como ciência
dispor de mais informações que outros sobre da cultura, se ocupe monograficamente desses
um assunto que todos têm o mesmo interesse de temas citados e literalmente os ‘vincule’. (...)
conhecer, debater e deliberar.”3 Tais dias da Constituição não podem ser, de
A Cultura implica em variadas perspec- forma alguma, teoricamente sobre-estimados:
tivas, as quais deverão ser de igual forma e eles servem à possível identificação do cida-
qualidade preservadas pela Sociedade e Poder dão com seu Estado constitucional nacional, à
Público, s.m.j.. conscientização de seus valores e à sustentação
interna da sociedade aberta. A ciência também
É claro que nosso país possui uma enorme deveria contribuir para o êxito de tais aconteci-
diversidade cultural, o que, a toda evidência, mentos, como através de grandes preleções de
deverá ser respeitada. estudiosos do Estado ou seminários conjuntos
A própria Constituição traz em tópico apro- com estudantes”.4
priado, como dito anteriormente, a afirmação de A partir do momento em que a Constitui-
sua proteção, bem como indica implicações para ção afirma a valorização do trabalho humano e
possíveis e concretas transgressões. um de seus fundamentos, qual seja, a dignidade
O meio ambiente (e nele, com toda lógi- humana, todo cidadão tem direito a esse bem
ca, a Cultura), segundo nosso entendimento, dotado, como dito alhures, de peculiaridades
afigura-se direito fundamental à sobrevivência próprias, que, afinal de contas, convergem às
e convivência. diretrizes do Estado Democrático de Direito.
3
Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p.50.
4
Constituição e cultura – o direito ao feriado como elemento de identidade cultural do estado constitucional. Tradução de Marcos Augusto Maliska
e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, xii do prefácio à edição brasileira.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009 9


SILVA, B. C.

Em relação à efetiva proteção da Cultura tratarmos a língua portuguesa como elemento


e da língua portuguesa em suas diversidades, fundamental da diversidade cultural, então, já
imperioso destacar primoroso trabalho elaborado adiantamos que esse mesmo elemento integra
pela insigne Profa. Inês Virgínia Prado Soares: fundamentos e objetivos de nossa República,
“A cultura é o conjunto dos traços distintivos portanto, sua alteração como, aliás, aconteceu,
espirituais e materiais, intelectuais e afetivos via acordo para integração entre países, não seria
que caracterizam uma sociedade ou um grupo viável nem por emenda constitucional, uma vez
social e que abrange também as artes e as letras, que agride, com o devido respeito às opiniões
os modos de vida, as maneiras de viver juntos, contrárias, a própria forma federativa do país,
os sistemas de valores, as tradições e as crenças. constante do rol das cláusulas pétreas de nossa
Dentre os traços integrante da cultura, a lingua- Constituição (ex vi do art. 60, § 4º, I).
gem é um dos mais significativos, não somente Essa é a nossa singela, porém necessária
para a presente e as futuras gerações como para opinião.
a compreensão da humanidade em sua trajetória
Não somos avessos à diversidade cultural
na terra.
existente em nosso país, somente não concor-
A linguagem, forma de expressão estrei- damos, com o procedimento (rectius: trâmite),
tamente ligada à liberdade e à essência da vida com que foram conduzidas e empreendidas as
humana, pode ser tratada no plano jurídico como alterações ortográficas de nossa gramática.
bem cultural viabilizador de direitos humanos
Outro ponto merecedor de destaque é
e como vetor do patrimônio cultural imaterial.
que a informação em nosso país, infelizmente,
Nesse sentido, a utilização da língua é exercício
ainda, está longe de sua transparência, tanto é
dos direitos culturais lingüísticos, contrapartida
verdade, que, inúmeras pessoas com altos níveis
dos direitos de liberdade de expressão e comuni-
de formação, ainda, vacilam em seus escritos,
cação e materialização do bem cultural intangível
divulgando, o que, diríamos, “a má digestão de
(forma de expressão).
uma verdadeira manipulação”.
Em razão disso, a língua é elemento funda-
Incertezas, ainda, permanecerão, o que, traz
mental da diversidade cultural e, portanto, não
insegurança jurídica a todo país, levando-se em
se pode falar em direitos culturais lingüísticos e
consideração a má técnica legislativa conduzida
em direito fundamental ao patrimônio cultural
pelo legislador, em sua desregrada legiferância!
lingüístico sem considerar o acolhimento, pelo
ordenamento jurídico, do respeito à língua ma- As regras ortográficas empreendidas esca-
terna e do reconhecimento direito da comunidade pam ao conteúdo deste singelo estudo.
de se expressar de acordo com os valores que Parece, ao que tudo indica, confundirem
afirmam sua identidade cultural”.5 o desenvolvimento da língua portuguesa com a
integração do país.
Isso implica diversidade cultural, social,
3. Cultura e a língua portuguesa econômica, histórica, meio ambiente, e, diga-se
– breves, porém relevantes de passagem, todos os países que entabularam
comentários o acordo, transformando-o em texto legal, en-
frentam sérias dificuldades em toda diversidade
A Cultura e a língua oficial de nosso país, mencionada, s.m.j..
ou seja, a portuguesa (ex vi do art. 13, caput, da E as audiências públicas (verdadeiro
CF/88), são bens tutelados pela Constituição. momento de exercício da cidadania) abertas
Aproveitando o percuciente raciocínio da à comunidade científica jurídica e aos demais
insigne Profa. Inês Virgínia Prado Soares, se se cientistas da área específica?
5
“Cidadania cultural e direito à diversidade lingüística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural”. In: SOARES,
Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coordenadoras). Revista Internacional de Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e
Cidadania – v. 1, n. 1, Junho 2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008, p. 84.

10 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009


MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

E isso, com certeza, atinge diretamente apenas um texto autoritário, como tantos outros
nossa Federação, nossa Soberania! que marcaram a nossa experiência constitucio-
Não estamos aqui, querendo colidir opinião nal. Foi, também, uma grande frustração insti-
com exímios conhecedores de nossa língua ofi- tucional, como assinalou Waldemar Ferreira em
cial (v.g., o ilustre Prof. Dr. Evanildo Bechara), palavras que, possivelmente, terão sido as mais
mas apenas fomentar salutar debate jurídico a adequadas para traduzir o que aconteceu com
respeito de temática importantíssima ao fortale- o estado de poder da ditadura Vargas, palavras
cimento do Estado Democrático de Direito. que, por isso mesmo, merecem transcrição, ainda
que extensa: ‘Desenhou-se complexamente o
mecanismo do que se batizou – de Estado Novo.
4. Algumas digressões e reflexões Não puderam os seus artífices, por isso mesmo,
em relação à transição de nossa pô-lo em funcionamento. Não passou a carta de
1937 de engodo, destinado, pura e simplesmente,
justiça no Estado Democrático de
a disfarçar regime ditatorial em toda a amplitude
Direito do conceito. Destituída de sinceridade, aquela
carta teve existência apenas no papel. Eis por-
Cumpre colacionarmos bela passagem eri-
que o seu organismo político nunca se armou.
gida pelo ilustre Prof. Celso Lafer, em dezembro
Tudo quanto nela se planejou foi mera fantasia.
de 1981, quando da elaboração do posfácio da
Não passou de cometimento demasiadamente
grandiosa obra “A condição humana”, de Hannah
longo para que se pudesse haver como simples
Arendt: “Em The Human Condition Hannah
tentativa; mas caracterizou-se como documento
Arendt apresenta uma das mais brilhantes e
inapto, tardiamente desfeito, posto que inicial-
originais análises da natureza, do mecanismo,
mente malogrado, para que se pudesse haver
da complexidade, do «pathos» e do significado
como Constituição, que assim indevidamente
da ação. Esta análise está a serviço da esperança
se qualificou. (...).
de democracia, que é a sua mensagem maior,
pois, neste livro, Hannah Arendt mostra como Não chegou a carta de 1937, em verdade, a
ação, palavra e liberdade não são coisas dadas, adquirir foros constitucionais. Não os alcançou
mas requerem, para surgirem, a construção e a por faltar-lhe o alento que somente lhe poderia ter
manutenção do espaço público. A liberdade é vindo de ter sido elaborada pelo povo brasileiro.
um «a fortiori» da auto-revelação humana no Não resultou da observância e aprimoramento
seio de uma comunidade política no qual existe dos princípios constitucionais pelos quais ele
espaço público. A vocação da liberdade, que as- sempre se orientou e se regeu. Não surgiu dele,
segura o espaço público, exige, por isso mesmo, exprimindo-lhe as aspirações e sentimentos ní-
coragem para expôr o ser em público – coragem tida e tradicionalmente democráticos.
que nunca faltou a Hannah Arendt e sem a qual Pelo contrário, ela se desfechou sobre ou
também não se constrói democracia. Esta é a contra ele.
sua lição: uma lição de criatividade intelectual e Não ganhou corpo porque, já se disse,
coragem política, das mais oportunas na presente e em reiterar nada se perde, ele não chegou a
conjuntura brasileira.”6 homologá-la com o seu voto, expresso em ple-
Para algumas importantes digressões (nos biscito procrastinado e nunca realizado: ela lhe
idos das imposições autoritárias), lançamos foi imposta pelas forças armadas, ou com o seu
mão da preciosa obra dos ilustres Profs. Gilmar assentimento silencioso de cúmplices’”.7
Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Em continuação às nossas digressões (em
Paulo Gustavo Gonet Branco: “Vista na perspec- relação à Constituição de 1946 – pós-Estado
tiva do tempo, a Constituição de 1937 não foi Novo), para após delinearmos algumas reflexões,
6
Hannah Arendt, A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer, 10ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007,
p. 352.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009 11


SILVA, B. C.

importante, ainda, utilizarmos o escorreito po- qualquer expediente autoritário, razão por que a
sicionamento dos precitados constitucionalistas: aprovação do estado de sítio fora reservada, com
“(...) Debruçando-se, igualmente, sobre o seu exclusividade, ao Congresso Nacional, compos-
texto, outra não é a conclusão a que chegou Mi- to, novamente, pela Câmara dos Deputados e
guel Reale, para quem a Constituição de 1946, pelo Senado Federal. No que toca ao Legisla-
conquanto mereça louvores pelos seus acertos tivo e ao Judiciário, espezinhados sob a Carta
– e. g., a melhor distribuição das competências de 1937, o texto democrático de 1946 buscou
entre a União, os Estados e os Municípios, a devolver-lhes a dignidade, pelo respeito às suas
fixação de diretrizes gerais de ordem econômi- tradicionais prerrogativas e uma equilibrada
ca ou educacional, e o significativo avanço em partilha do poder político, apesar da opinião em
delinear, além dos direitos políticos, também os contrário dos que entendem que esse modelo
direitos sociais -, nem por isso há de ser poupada acabou desequilibrando a balança em favor do
de críticas quanto ao que ele chamou de quatro Legislativo e gerando, mais tarde, fricções que
graves equívocos daquele documento político, a colaboraram para a erosão daquela lei fundamen-
saber: a) o enfraquecimento do Executivo, dei- tal. A criação de partidos políticos, em princípio,
xado à mercê do Legislativo; b) o fortalecimento foi declarada livre, vedando-se, no entanto, a
do Legislativo, mas num quadro normativo organização, o registro e o funcionamento de
anacronicamente reduzido às figuras da lei cons- partidos ou associações cujo programa ou ação
titucional e da lei ordinária; c) a criação de óbices contrariasse o regime democrático, baseado na
à intervenção do Estado no domínio econômico, pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos
o que era incompatível co a sociedade industrial fundamentais do homem”.9
emergente; e, por fim, d) a adoção do pluralismo Nestes breves rascunhos de nossa história,
partidário, sem limitações nem cautelas, o que não titubeamos em fazer referência ao impor-
levou ao surgimento da ‘política estadual’ e à tante estudo do insigne Prof. Marcelo Neves:
criação de ‘partidos nacionais’ de fachada, cujas “(...) Estabelecido que a constitucionalização
siglas escondiam meras federações de clientelas simbólica como alopoiese do sistema jurídico é
ou de facções legais”.8 um problema típico do Estado periférico, cabe,
E, ainda, citando pensamentos dos mes- por fim, uma breve referência exemplificativa ao
tres Paulo Bonavides e Paes de Andrade: “(...) caso brasileiro. Em trabalho anterior já propus
Julgando-a, favoravelmente, no entanto, Paulo uma interpretação da experiência constitucional
Bonavides e Paes de Andrade destacam, desde brasileira como círculo vicioso entre instrumen-
logo, que a Constituição de 1946 recuperou com talismo e nominalismo constitucional. Não é este
decisão o princípio federativo, que praticamente o local para uma nova abordagem interpretativa
desaparecera sob a Carta de 1937, com a entrega do desenvolvimento constitucional brasileiro.
do governo dos Estados a prepostos do poder Aqui interessa considerar, em traços gerais,
central. No plano das liberdades, em geral, ob- como apoio empírico da argumentação prece-
servam que aquela Carta declarou, solenemente, dente, a função hipertroficamente simbólica das
inviolável a liberdade de consciência e de crença, ‘Constituições nominalistas’ brasileiras de 1824,
assim como livre o exercício de cultos religiosos, 1934, 1946 e 1988. Conforme já afirmei no item
ressalvados os que fossem contrários à ordem anterior de maneira genérica, não se nega, com
pública e aos bons costumes. Mais, ainda, deixou isso, que as ‘Constituições instrumentalistas’
assente que as liberdades e garantias indivi- de 1937, e 1967/1969 tenham exercido funções
duais, de resto declaradas mais amplas do que simbólicas: a primeira, p. ex., através da declara-
as constantes, exemplificativamente, no corpo ção dos direitos sociais, que atingia apenas uma
da Constituição, não poderiam ser cerceadas por pequena parcela da população; os documentos
7
Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 172.
8
Idem, p. 173.
9
Idem, p. 174.

12 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009


MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

constitucionais de 1967/1969, mediante as de- ção. À crença pré-constituinte na restauração ou


clarações de direitos individuais e sociais não recuperação da legitimidade estava subjacente
respaldadas na realidade constitucional. Mas, um certo grau de ‘idealismo constitucional’. O
em ambos os casos, desvinculava-se, a partir contexto social da Constituição a ser promul-
de dispositivos da própria ‘carta política’ ou de gada já apontava para limites intransponíveis à
leis constitucionais de exceção, o chefe supremo sua concretização generalizada. Nada impedia,
do executivo de qualquer controle ou limitação porém, uma retórica constitucionalista por parte
jurídico-positiva. A legislação constitucional, de todas as tendências políticas; ao contrário,
casuisticamente modificada de acordo com a parece que, quanto mais as relações reais de
conjuntura de interesses dos ‘donos do poder’, poder afastavam-se do modelo constitucional
tornava-se basicamente, então, simples instru- social-democrático, tanto mais radical era o
mento jurídico dos grupos políticos dominantes, discurso constitucionalista.
atuava como uma ‘arma’ na luta pelo poder. O Suposto que, diante da exigência de dife-
que distinguia fundamentalmente o sistema de renciação funcional e de inclusão na sociedade
relação entre política e direito era, portanto, o moderna, é função jurídica da Constituição
‘instrumentalismo constitucional’, de maneira institucionalizar os direitos fundamentais e o
alguma a constitucionalização simbólica”.10 Estado de bem-estar (Cap. II.1.3.D.a), não cabe-
Antes de prosseguirmos, imperioso tra- riam restrições ao texto constitucional, no qual
çarmos algumas considerações de cunho expli- as declarações de direitos individuais, sociais
cativo.11 e coletivos são das mais abrangentes. Também
Com relação ao texto constitucional, quanto à prestação, seja no que se refere ao es-
“Constituição nominalista” (adotando constru- tabelecimento de procedimentos constitucionais
ção do Prof. Marcelo Neves, com forte emba- para a solução jurídica de conflitos (due process
samento nas idéias de Loewenstein), seria uma of law) ou à previsão de mecanismos específicos
carta com dispositivos contrários ao autoritaris- de regulação jurídica da atividade política (Cap.
mo, entretanto, ainda, com tendências a fortes II.1.3.D.b e c), o texto constitucional é suficien-
influências de determinados grupos resistentes temente abrangente”.13
a concretas mudanças.12 E, ainda: “(...) O problema surge no plano
Mais uma vez, utilizamos o lúcido enten- da concretização constitucional. A prática política
dimento do ilustre Prof. Marcelo Neves: “(...) e o contexto social favorecem uma concretização
A constitucionalização simbólica de orientação restrita e excludente dos dispositivos constitucio-
social-democrática e restabelecida e fortificada nais. A questão não diz respeito apenas à ação da
com o texto constitucional de 1988. Com o população e dos agentes estatais (eficácia), mas
esgotamento do longo período de ‘constitucio- também à vivência dos institutos constitucionais
nalismo instrumental’ autoritário iniciado em básicos. Pode-se afirmar que para a massa dos
1964, a identificação simbólica com os valores ‘subintegrados’ trata-se principalmente da falta
do constitucionalismo democrático deixou de ser de identificação de sentido das determinações
relevante politicamente apenas para os críticos constitucionais. Entre os agentes estatais e os
do antigo regime, passando a ser significativa setores ‘sobreintegrados’, o problema é ba-
também para os grupos que lhe deram sustenta- sicamente de institucionalização (‘consenso
10
A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 177-178.
11
Cumpre-nos, esclarecer o fenômeno da alopoise adotado por Marcelo Neves, baseado no modelo de Teubner, “a alopoise implica, em primeiro
lugar, a não-constituição ou o bloqueio generalizado do entrelaçamento hipercíclico dos componentes sistêmicos (ato, norma, procedimento e
dogmática jurídicos). Mas pode significar algo mais: a não-constituição auto-referencial de cada espécie de componentes sistêmicos. Nesse caso,
as fronteiras entre sistema jurídico e ambiente social não só se enfraquecem, elas desaparecem”. (Op. cit., 147-148)
12
Verificar os comentários tecidos por Jürgen Habermas a respeito da obra do Prof. Marcelo Neves: “O problema de Hegel [as diferenças percebidas
entre o ‘conceito’ e a ‘realidade existente’ do Estado] retorna de outra maneira, quando consideramos aquelas sociedades em que a letra imaculada
do texto constitucional não é mais do que a fachada simbólica de uma ordem jurídica imposta de forma altamente seletiva”. (Em referência ao
presente livro.)
13
A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 183-184.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009 13


SILVA, B. C.

suposto’) dos respectivos valores normativos tarde – da norma como um modelo ordenador
constitucionais. Nessas condições não se constrói materialmente caracterizado e estruturado. Nor-
nem se amplia a cidadania (art. 1º, inciso II) nos matividade designa a qualidade dinâmica de uma
termos do princípio constitucional da igualdade norma assim compreendida, tanto de ordenar à
(art. 5º, caput), antes se desenvolvem relações realidade que lhe subjaz – normatividade concre-
concretas de ‘subcidadania’ e ‘sobrecidadania’ ta – quanto de ser condicionada e estruturada por
em face do texto constitucional”.14 essa realidade – normatividade materialmente
E arremata com a acuidade que lhe é pe- determinada. Com isso a pergunta pela relação
culiar: “Os problemas de heterorreferência são entre direito e realidade já está dinamizada no
inseparáveis das questões concernentes à auto- enfoque teórico e a concretização prática é con-
referência do sistema jurídico ao nível constitu- cebida como processo real de decisão”.16
cional (cf. item 3 deste capítulo). O bloqueio per- As precitadas digressões e reflexões re-
manente e generalizado do código ‘lícito/ilícito’ tratam a inconteste justiça transitória em nosso
pelos códigos ‘ter/não-ter (economia) e ‘poder/ Estado Democrático de Direito.
não-poder’ (política) implica uma prática jurídi- Importante destacar que a verdade e me-
co-política estatal caracterizada pela ilegalidade. mória afiguram-se imprescindíveis ao resgate,
Quanto à constitucionalidade, as dificuldades não e, ao mesmo tempo, à afirmação de direitos
se referem apenas à incompatibilidade de certos constitucionais que, em certo momento, foram
atos normativos dos órgãos superiores do Estado indevidamente coarctados, na época do AI-5 (AI
com dispositivos constitucionais, como, p. ex., – Ato Institucional), tanto assim, que o próprio
no caso do uso abusivo das medidas provisórias Supremo Tribunal Federal (STF) teceu relevan-
pelo Chefe do Executivo; o problema não se tes comentários incisivos em relação à época do
restringe à ‘constitucionalidade do direito’, mas regime ditatorial.17
reside antes na ‘juridicidade da Constituição’,
ou seja, na (escassa) normatividade jurídica do A memória e a verdade são necessárias à
texto constitucional”.15 manutenção de toda uma reação efetiva para mu-
danças estruturais em nosso Estado de Direito.
Em introdução à relevante obra do mestre
Prof. Friedrich Müller, destaca o ilustre Prof. Tais digressões importam em revolver fatos
Peter Naumann: “(...) Deve-se chamar a atenção históricos embutidos na memória de todo cida-
ao fato de que estrutura da norma designa como dão brasileiro, que, presenciou, diante do AI-5, a
conceito operacional o nexo entre as partes con- suspensão de direitos constitucionalizados (v.g.,
ceituais integrantes de uma norma (programa da habeas corpus) e prisões indevidas.
norma – âmbito da norma) e não, e.g., as relações Agora, para tecermos importantes digres-
entre os pontos de referência da teoria tradicional sões e reflexões, convém trazer à baila repor-
do direito (como ser e dever ser, suporte fático e tagem de Tamis Parron: “A ditadura terminou
conseqüência jurídica norma e conjunto de fatos). há 20 anos e parece ser uma página virada da
Os elementos estruturais mencionados atuam história brasileira. Parece, mas não é. O regime
conjuntamente no trabalho efetivo dos juristas militar botou o país de pernas para o alto, tanto
de um modo ao qual se atribuía normatividade. no bom quanto no mau sentido, e provocou
Normatividade não significa aqui nenhuma força mudanças de fôlego que ainda hoje fazem toda
normativa do fático, tampouco a vigência de um diferença no nosso dia-a-dia. Parou no conges-
texto jurídico ou de uma norma jurídica. Ela tionamento? Lembre que foram os militares que
pressupõe a concepção – a ser explicitada mais consolidaram o modelo de transporte baseado
14
A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 184.
15
Idem, p. 184-185.
16
Teoria estruturante do direito; tradução Peter Naumann, Eurides Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 15.
17
Notícias STF, Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009. “O impacto do AI-5 no Brasil no Supremo“, www.stf.jus.br. Verificar importante obra da ilustre
Profa. Maria Fernanda Salcedo Repolês Quem deve ser o guardião da constituição? Do poder moderador ao Supremo Tribunal Federal. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2008.

14 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009


MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

no carro, iniciado por Juscelino Kubitschek. mentira em relação a sua atuação nas fileiras das
Ligou a televisão e ficou orgulhoso da qualidade tropas SS da Alemanha nazista por um lado (uma
de técnica da produção brasileira? Atente para vez que ele foi visto durante vários anos como
o impulso que os governos autoritários deram a ‘consciência da Nação alemã, tão maior foi a
para o setor. Fica indignado cada vez que o decepção de seus leitores e admiradores há dois
presidente Lula assina uma Medida Provisória? anos – dentre os quais figura também o autor) e o
Não esqueça que as MPs são o velho decreto-lei trato dos Estados Unidos da América para com a
militar repaginado. cultura indígena outrora destruída por outro lado,
É difícil apontar uma área da vida brasileira teremos então o seguinte resultado: a verdade é
que não tenha sofrido influência dos governos um tema da humanidade e ao mesmo tempo um
militares. Afinal, foram 21 anos de poder exer- tema de toda e qualquer pessoa na totalidade de
cido com mão pesada. Em alguns setores, no sua precária existência individual. Assim, a ver-
entanto, as pegadas do período estão mais claras. dade permanece um tema para todas as ciências
Dívida externa, política de terras, distribuição de – sobretudo para uma ciência da cultura com-
renda, indústria automobilística e produção de preendida como uma teoria constitucional com
energia são bons exemplos disso. ‘weltbürgerlicher Absicht’ (intuito cosmopolita),
Todo balanço da ditadura acaba sendo pela qual o autor luta desde 1982”.20
negativo – afinal, foram anos de repressão e vio- Assim, em reflexão às bem laçadas pala-
lência, em que a vontade dos governados contou vras do mestre alemão, tanto a memória como a
menos que a dos governantes. Mas o tempo já verdade permanecem latentes no âmago de cada
permite separar o joio do trigo, admitindo ações cidadão brasileiro.
positivas em algumas frentes.
É tarefa delicada. No campo minado das
paixões que o período desperta, defensores e 5. Conclusão
críticos até hoje trocam farpas. Mas se os gover-
Em arremate ao exposto, sem memória e
nos militares lançaram os fundamentos da pós-
verdade, todo cidadão brasileiro por mais ignaro
graduação brasileira, de outro lado estimularam
que seja, carregará dentro de si um verdadeiro
a criação indiscriminada de cursos privados. Se
e, ao mesmo tempo, inconcebível “Estado de
geraram condições para o crescimento, deixaram
Exceção”.21
de distribuir rendas”.18
Tal constatação poderá trazer abalos irre-
Isso implica afirmar que tanto o meio
mediáveis ao meio ambiente e à cultura de nosso
ambiente como a cultura foram diretamente
país, enfim, ao próprio Estado Democrático de
conspurcados pelo regime militar.
Direito.
Na realidade, precisamos refletir em como
Memória e Verdade, título da presente co-
operacionalizar (rectius: concretizar) os diversos
letânea traduz importante temática, ainda, pouco
princípios e preceitos erigidos em nossa Consti-
explorada pelos juristas da atualidade.
tuição, sob pena de relegarmos a oblívio o Estado
Democrático de Direito.19 Portanto, é uma honra compartilhar de mais
um momento histórico em nosso país. Muito
Em sua primorosa obra, destaca o mestre
obrigado a todos!
Prof. Peter Häberle: “(...) Ao rememorarmos o
recente reconhecimento feito pelo consagrado
poeta alemão Günter Grass de uma vida em
18
“A cara e a coroa”. Ditadura no Brasil – tudo sobre o regime militar de 1964 a 1985– especial 40 anos do AI-5. Aventuras na História – tiragem
reeditada, 2008, p. 77.
19
Ver importante digressão e reflexão do mestre Prof. Peter Häberle, em sua primorosa obra “Os problemas da verdade no estado constitucional –
Wahrheitsprobleme im Verfassungsstaat”. Tradução de Urbano Carvelli. Porto Alegre: Safe, 2008, p. 99-103.
20
Idem, p. 12-13.
21
Ver relevante obra de Giorgio Agaben, in Estado de exceção; tradução de Iraci D. Poleti. 2ª Ed., São Paulo: Boitempo, 2007 (Estado de sítio).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009 15


SILVA, B. C.

MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do


direito. Tradução de Peter Naumann e Eurides
6. Referência bibliográfica Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 2008.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.
Tradução de Iraci de Poleti. 2ª Ed., São Paulo: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbó-
Boitempo, 2007 (Estado de sítio). lica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradu- PARRON, Tamis. “A cara e a coroa”. Ditadura
ção de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. no Brasil – tudo sobre o regime militar de 1964
10ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, a 1985 – especial 40 anos do AI-5. Aventuras na
2007. História – tiragem reeditada, 2008.
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios – da REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Quem
definição à aplicação dos princípios jurídicos. deve ser o guardião da constituição? Do poder
7ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2007. moderador ao Supremo Tribunal Federal. Belo
BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. “A Horizonte: Mandamentos, 2008.
democracia e suas dificuldades contemporâne- SOARES, Inês Virgínia Prado. “Cidadania
as”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, cultural e direito à diversidade lingüística: a
Sandra Akemi Shimada (Coordenadoras). Revis- concepção constitucional das línguas e falares
ta Internacional de Direito e Cidadania/Instituo do Brasil como bem cultural”. In: SOARES,
Estudos Direito e Cidadania – v. 1, n. 4, Outubro Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shi-
2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008. mada (Coordenadoras). Revista Internacional de
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e
Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferrei- Cidadania – v. 1, n. 1, Junho 2008. – São Paulo,
ra. Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São SP: Habilis, 2008.
Paulo: Saraiva, 2008. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias
COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo STF, Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009. “O
Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. impacto do AI-5 no Brasil no Supremo”, www.
Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São stf.jus.br.
Paulo: Saraiva, 2008.
HÄBERLE, Peter. Constituição e cultura – o
direito ao feriado como elemento de identidade
cultural do estado constitucional. Tradução do
original em alemão por Marcos Augusto Maliska
e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008.
________Os problemas da verdade no estado
constitucional – Wahrheitsprobleme im Verfas-
sungsstaat. Tradução de Urbano Carvelli. Porto
Alegre: Safe, 2008.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à
informação e meio ambiente. São Paulo: Ma-
lheiros, 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocên-
cio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São
Paulo: Saraiva, 2008.

16 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009


Artigo

DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD:


FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS
DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

David José Geraldes Falcão* RESUMO: O artigo aborda a estreita ligação


entre a tutela da diversidade cultural e a digni-
dade da pessoa humana. O autor defende que a
dignidade é o fundamento dos direitos humanos.
Com base numa argumentação filosófica o texto
demonstra que a proteção das identidades cultu-
rais é consequencia da dignidade.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Dignidade.
Diversidade cultural. Identidade cultural.

ABSTRACT: The article approaches the narrow


linking between the guardianship of the cultural
diversity and the dignity of the human being. The
author defends that dignity is the foundation of
the human rights. Based on a philosophical ar-
gument the text shows that the protection of the
cultural identities is a consequence of dignity.
Keywords: Human rights. Dignity. Cultural
diversity. Cultural identity.

1. Introdución

Para comprender si existe un motivo para la


protección de las diversas identidades culturales
es necesario partir de un análisis de la condición
del hombre como ser social. “El punto de par-
tida adecuado para examinar si la demanda de
protección de las diferencias culturales resulta

*Licenciado em Direito; Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca; Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca;
professor de Direito da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal); Coordenador da licenciatura em So-
licitadoria e da pós-graduação em Solicitadoria de Execução da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009 17


FALCÃO, D. J. G.

justificada ha de situarse en la constitución social La sociedad es producto del carácter rela-


del ser humano”1. cional del hombre y de su apertura a los demás,
una vez que su capacidad dialógica implica un
vasto número de interlocutores. A su vez, es a
1.1. El hombre como ser social y dialógico
través de la sociedad como el hombre puede
Para Aristóteles un ser humano que fuese obtener la realización de sus necesidades y,
capaz de vivir fuera de la sociedad sería una además, la realización de sus fines pasa por una
bestia o un dios2. conexión con otros hombres en el seno de un
El ser humano es un organismo complejo determinado grupo social.
que vive en contacto con otros seres también La formación de la identidad individual
complejos. Tenemos una vida social en la cual se alcanza, no sólo con relación a los otros (una
mantenemos relaciones significativas con otras vez que no tendría sentido hablar de identidad
personas. El hecho de que el hombre esté cons- si no existiesen otros hombres), sino también a
tituido por una dimensión relacional es más través de la ayuda de los otros (que transmiten
que una evidencia que, sin embargo, ha sido los “ítems” que constituyen la identidad). El ser
subrayada a lo largo de los años. humano se desarrolla, por tanto, en el seno de un
Con todo, no es una llamada de atención determinado grupo social concreto, con el cual
sobre esta evidencia lo que pretendemos. Lo que, comparte determinados patrones culturales. Asi-
en realidad, es importante en este punto es poner mismo, la “definición de la identidad individual
de relieve que solamente podemos comprender al envuelve siempre la referencia a una comunidad
hombre a partir de su dimensión social, y que es que la define”5.
a partir de la inclusión de la dimensión relacional Llegamos a una primera conclusión: el
del hombre en su estructura ontológica cuando hombre alcanza su realización en el seno de
podemos lograr alcanzar tal comprensión. un grupo social caracterizado por determinadas
Para Charles Taylor, “un rasgo crucial de pautas culturales comunes.
la vida humana es su carácter fundamentalmente La argumentación, hasta ahora presentada
dialógico. Nos convertimos en agentes plena- no nos permite, todavía, obtener una respuesta
mente humanos, capaces de comprendernos a a la pregunta: ¿Existe motivo para la protección
nosotros mismos, y por tanto de definir nuestra de las identidades culturales?
identidad, a través de la adquisición de ricos Si añadimos a la afirmación de que el hom-
lenguajes humanos(...) Definimos nuestra iden- bre solamente alcanza su realización en el seno
tidad siempre en diálogo”3. Es en esta capacidad de un determinado grupo social caracterizado por
de dialogar, característica de los seres humanos, patrones culturales comunes, la máxima de que
donde reside la clave de su dimensión social. La el hombre debe ser respetado de forma incon-
palabra sirve para manifestar lo conveniente y lo dicional (como fin y nunca como medio, como
dañoso, lo justo y lo injusto, y es una caracterís- aportó Kant6), podemos razonar lo siguiente: si
tica exclusiva del hombre4. el ser humano debe ser respetado de forma in-

1
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”,
en Persona y Derecho, nº 38, 1998, p. 120.
2
Esta formulación se encuentra en su obra Política:Cfr.Aristóteles, Política, I, 2, edición bilingüe y traducción de J. Marías y M. Araujo, Madrid,
Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 4.
3
Cfr. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, en A. Gutmann, Multiculturalism. Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton
University Press, 1994, pp. 32-33.
4
Para Aristóteles “la razón por la cual el hombre, es, más que una abeja o cualquier animal gregario, un animal social es evidente: la naturaleza,
(...), no hace nada en vano, y el hombre es el único animal que tiene palabra” y añade que “(...) la palabra es para manifestar lo conveniente y lo
dañoso, lo justo y lo injusto (...)”- Cfr. Aristóteles, Política, edición bilingüe y traducción de J. Marías y M. Araujo, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 4.
5
Cfr. Charles Taylor, Sourses of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p. 36.
6
Cfr. Immanuel Kant, Fundamentación de la Metafísica de las Costumbres, edición de Luis Martínez de Velasco, 11ª ed., Madrid, Espasa-Calpe,
1995, p. 104.

18 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009


DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

condicional, hay que, a su vez, respetar el grupo medidas en el sentido de protegerlos y, al mismo
social en el cual se integra, una vez que, es en tiempo se instituyen organismos internacionales
el seno de ese grupo social donde el hombre se con el intento de reaccionar a los atentados contra
realiza. “En el momento en que el hombre es esos mismos derechos.
concebido como ‘ser de cultura’, (...), animal Este movimiento de toma de conciencia
social por naturaleza, el respeto del individuo de la importancia que representa el respeto por
no puede dejar de abarcar el respeto de la cultura la dignidad humana, ha adquirido su momento
que le constituye”7. principal al final de la segunda Guerra Mundial.
El hombre, como hemos visto, debe ser La humanidad trataba de iniciar una nueva era, en
respetado de forma incondicional. Pero, otra que la convivencia entre pueblos se basase en el
cuestión surge: ¿Cuál es el fundamento de ese respeto de la dignidad. Por lo tanto procedían los
deber de respeto incondicional? Estados en la Conferencia de San Francisco de
Antes de aportar nuestra posición en cuanto 1945, al aprobar la resolución de “preservar a las
al asunto clave de este ensayo, es ineludible generaciones venideras del flagelo de la guerra
contestar a esta pregunta, una vez que, en su con- (...), a refirmar la fe en los derechos fundamen-
testación reside la base de la argumentación, que tales del hombre, en la dignidad y el valor de la
a su vez, nos permitirá obtener una repuesta a la persona humana, en la igualdad de derechos de
pregunta principal, la de sí deben las identidades hombres y mujeres (...)”.
culturales ser protegidas. Sin embargo, en los tiempos que corren
El fundamento de ese deber incondicional es evidente la paradoja alrededor de la idea de
de respeto del hombre es su dignidad. O en otras dignidad humana. Mucho se recurre a ella y,
palabras la dignidad se traduce en la legitimidad al mismo tiempo, se atenta mucho contra esa
del hombre para exigir un respeto incondicional dignidad. Por ello creemos que el gran reto
de su persona. para este inicio de siglo es el de instrumentar
Resulta pertinente dedicar una atención procedimientos eficaces para una protección
especial a la problemática de la dignidad huma- de los derechos humanos. Por lo tanto, como
na. Problemática en el sentido de que se discute subraya Norberto Bobbio “no se trata tanto de
mucho, por un lado, si se puede hablar de una saber cuáles y cuántos son estos derechos, cuál
dignidad humana universal o, si se trata de una es su naturaleza y su fundamento, si son derechos
expresión conceptualmente interpretable y, por naturales o históricos, absolutos o relativos, sino
lo tanto, relativa. Y, por otro lado, si constituye, cuál es el modo más seguro para garantizarlos,
de hecho, el fundamento de los derechos hu- para impedir que, a pesar de las declaraciones
manos. solemnes, sean continuamente violados”8.
No obstante, sin las referidas declaraciones
o pactos solemnes, sería muy difícil desarrollar
1.2. Sobre la dignidad humana
una conciencia de respeto hacia la dignidad hu-
En los últimos años el sentido de concien- mana. La Declaración Universal de los Derechos
cia de respeto hacia la dignidad de la persona del Hombre, constituye un marco imprescindible
humana ha adquirido un relieve importante. en la historia contemporánea en este sentido. Su
Prueba de tal relieve, es la multiplicación de de- texto alude a una dignidad humana de carácter
claraciones, conferencias, pactos que reconocen universal9. Ha sido el culminar de un largo pro-
los derechos básicos de la persona y que crean ceso de luchas, no siempre pacíficas, reivindica-
7
Cfr. Emilio Lamo de Espinosa, “Fronteras Culturales”, en Culturas, Estados, Ciudadanos. Una aproximación al multiculturalismo en Europa,
Madrid, Alianza, 1995, p. 42.
8
Cfr. Norberto Bobbio, “Presente y Porvenir de los Derechos Humanos”, en Anuario de Derechos Humanos, nº1, Madrid, 1981, p. 9.
9
“Considerando que el reconocimiento de la dignidad inherente a todos los miembros de la familia humana y de sus derechos iguales e inalienables
constituye el fundamento de la libertad, de la justicia y de la paz en el mundo”; “Todos los seres humanos nacen libres y iguales en dignidad y en
derechos”, en la Declaración Universal de los Derechos del Hombre, adoptada y proclamada por la Asamblea General de la ONU en la resolución
217-A (III) de 10 de Diciembre de 1948, respectivamente del preámbulo y del artículo 1.

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FALCÃO, D. J. G.

ciones, sufrimientos y que, a su vez, ha robado situaciones concretas, y aún más indiscutibles,
la vida a muchos seres humanos. podemos enumerar un sinfín de escenarios que
Actualmente, y como antes nunca, se complementan nuestra idea. Por ejemplo, en el
reclaman y exigen valores como la libertad y mundo musulmán las mujeres siguen siendo
la igualdad, el derecho a la vida, entre muchos víctimas de legislaciones de otras épocas. Son, a
otros10. Todas estas exigencias tienen un funda- su vez, consideradas ciudadanas de segunda clase
mento casi exclusivo en la dignidad de la perso- donde, aparte de otros, les privan del derecho de
na. Vivimos en una época en la que la apoteosis voto (aunque, por ejemplo, en Kuwait voten).
verbal y documental de la dignidad humana es Otros ejemplos como el de los Laogai11 en China
una realidad, ya que no su praxis. o el de los genocidios sufridos por los bosnios de
Los ataques teóricos a los derechos huma- exYugoslavia y por los tutsis de Rwanda que, a
nos han sido perpetrados, fundamentalmente, su vez, han conducido a la creación del Tribunal
por diversas doctrinas filosóficas, de las cuales Penal Internacional y del Tribunal Penal para
destacan, por su mayor vehemencia, el exis- Rwanda12, ilustran bien algunas de las innume-
tencialismo, el estructuralismo, o las doctrinas rables faltas de respeto por la dignidad humana.
relativistas. El existencialismo sostiene que el En opinión de Robert Spaemann, los
hombre es un ser para la muerte, un condenado ataques a la dignidad humana en el mundo con-
a la libertad, y por lo tanto un absurdo; a su vez, temporáneo, resultan de la configuración de la
los estructuralistas declaran que la muerte del propia civilización, que a pesar de sus progresos
hombre es ineludible y se acerca ; los relativistas presenta “una poderosa tendencia a la completa
sostienen que a diferentes culturas conciernen di- eliminación de la idea misma de dignidad”13. La
versas formas de concebir la naturaleza humana búsqueda de la verdad exige siempre esfuerzo
y de proporcionarle una tutela adecuada. Por lo y compromiso. Y, resulta más fácil y cómodo
tanto, no existirían principios valorativos o una el abandono de cualquier responsabilidad que
moral crítica universales y válidos para todas implique esa búsqueda. La manera de pensar
las culturas pues a distintas culturas conciernen actual está corrompida por la idea de lo prác-
distintas formas de concebir valores morales. tico. Mientras siga este panorama “el abolengo
En lo que concierne a los ataques, en térmi- radical de todos y cada uno de los componentes
nos prácticos llevados a cabo contra la dignidad de nuestra estirpe seguirá viéndose sometido a
humana, podemos decir que se registran muchos las ambigüedades de un comportamiento que, a
y muy evidentes. Echando una simple mirada a la par, ensalza y envilece”14.
las normas de países considerados desarrollados, Acabamos de referir, obviamente, los as-
constatamos que existen normas que legitiman, pectos más perversos y negativos de la realidad
por ejemplo, la pena de muerte. En cuanto a contemporánea. Realidad donde, a pesar de todo,
10
“La efemérides de 1948 se encuentra cortejada y sostenida por todo un cúmulo de manifestaciones y acontecimientos: movimientos en defensa de
la igualdad mujer-varón y de todo el tipo de minorías; promoción pública de los disminuidos físicos y mentales; declaración de los derechos de la
mujer, del niño, de la familia y del joven, con sus respectivos años internacionales..., y un nutridísimo etecétera, que resultaría casi interminable”.
Cfr. Tomás Melendo & Lourdes Millán-Puelles, Dignidad: Una Palabra Vacía?, Navarra, EUNSA, 1996, p. 16.
11
Laogai significa reforma a través del trabajo. En China la idea de rehabilitación esta siempre presente. La rehabilitación mental del individuo recluso
constituye uno de los fundamentos de su política de encarcelamiento. Las prisiones son muchas veces campos de trabajo forzado, los Laogai. Desde
su creación en la China maoísta de los años 50, se estima que por lo menos 50 millones de chinos hayan sido condenados a vivir en esos campos.
Actualmente, se calcula que 6 a 8 millones de personas, incluso mujeres y niños, aún sufren en los Laogai. Las informaciones sobre este sistema
de prisión son muy escasas, las autoridades niegan su existencia, los únicos datos disponibles son los testimonios de exreclusos.
12
En 1993 y 1994 la ONU ha creado, respectivamente el Tribunal Penal Internacional y el Tribunal Penal para el Rwanda. El primero con sede en
Haya, y el segundo en Arusha, Tanzania, Kigali, la capital del Rwanda y Nairobi. El reto del TPI seria el de juzgar los crímenes cometidos en
exYugoslavia desde 1991. A su vez, el TPR tenía el reto de juzgar los crímenes perpetrados en el Rwanda durante el año de 1994. Con todo, la
eficacia de estos tribunales, ha sido contestada desde su creación. En primer lugar, porque los Estados son desresponsablizados de la obligación
de buscar, prender y juzgar en sus tribunales internos a los autores de los crímenes. El segundo motivo deriva del hecho de que los Estados no
presten a los tribunales internacionales auxilio material y financiero suficiente. En el TPR los procesos apenas han sido iniciados en Diciembre de
1996. En Julio de 1997, el TPI había realizado 76 acusaciones, al paso que el TPR había hecho lo mismo.
13
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en Persona y Derecho, nº19, 1988, p. 30.
14
Cfr. Tomás Melendo & Lourdes Millán-Puelles, Dignidad: ¿Una Palabra Vacía?, Navarra, EUNSA, 1996, p.26.

20 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009


DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

existen paralelamente referencias positivas del tatorios contra ese algo especialmente valioso
respeto y enaltecimiento de la dignidad humana, característico de la humanidad”16.
como también hemos planteado. Aunque se puedan encontrar alusiones a la
A lo largo de estas últimas líneas, nos idea de dignidad humana en los pensamientos
hemos referido reiteradamente al término dig- antiguo y medieval17, es Kant el que ha conceptu-
nidad. Resulta, a su vez, imprescindible, en este ado, por primera vez de forma rigurosa, la idea de
contexto, aclarar su concepto y fundamento. dignidad. Sin embargo, antes de avanzar con los
análisis de las aportaciones Kantianas y de otros
1.2.1 Sobre el concepto y el fundamento de autores con bastante relevancia, procedemos a
la dignidad una explicación de los distintos significados que
la idea de dignidad puede asumir y que pueden
No resulta fácil conceptuar y fundamentar,
plantear algunos problemas.
exhaustivamente, la idea de dignidad a través de
una simple definición, pues, “ante los intentos de Dignidad representa un término vago, una
definición, la doctrina no tiene el menor recelo vez que resulta difícil determinar su alcance, o
en confesar que el término se le escapa, que las sea, determinar cuales son los límites de la pro-
formulaciones generales son insatisfactorias, tección, como es por ejemplo el caso de no poder
que la dignidad es una noción con un cuerpo establecerse con rigor a partir de qué duración
semántico relativamente poco preciso”15. una pena de privación de la libertad constituye un
Lo que pretendemos en este subapartado atentado contra la dignidad. Este hecho, al cual
es intentar analizar el significado de la idea de se añade una pluralidad de interpretaciones que
dignidad y demostrar la conexión que existe entre se han dado a la idea de dignidad, contribuye al
la misma y los derechos humanos, o sea, que es un escepticismo de muchos autores sobre una
a través del respeto de los derechos básicos del posibilidad de encontrar un denominador común,
individuo que se traduce la mejor manera de un consenso que pueda tener un papel importante
respetar las exigencias de la dignidad. en Derecho e incluso de convertirle en una ex-
Realizaremos un balance de aportaciones presión destituida de contenido18. Por ejemplo,
de algunos destacados autores sobre lo que es la muchas veces se utiliza la palabra dignidad no
dignidad y cuál es su razón de ser, terminando solo para seres humanos; cuando se afirma que
con nuestra propia postura sobre lo que puede determinada postura política ha atentado contra
significar dignidad. la dignidad de determinado Estado; o, cuando
se habla de la dignidad de la profesión de juez.
En una primera acepción, la idea de
dignidad, nos remite casi inmediatamente a la En determinados casos, “se recurre a la idea
existencia de algo valioso intrínseco a todos los de dignidad para destacar la existencia en esas
seres humanos que no entra en el campo de lo distintas realidades de una propiedad valiosa que
disponible por parte de otras personas o por los merece algún tipo de protección pues contribuye
poderes públicos y, como explica Amuchastegui, a dotarles de sentido”19.
“permite calificar como inhumanos- y lógica- En realidad, nuestra opinión es que la idea
mente inmorales- los comportamientos aten- de dignidad desempeña un papel fundamental
15
Cfr. Jesús González Pérez, La Dignidad de la Persona, Madrid, Civitas, 1986, p.111.
16
Cfr. Jesús González Amuchastegui, Autonomía, Dignidad y Ciudadanía: Una Teoría de los Derechos Humanos, Valencia, Tirant lo Blanch, 2004,
p. 417.
17
En el pensamiento estoico, estaba presente la idea de dignidad. Se caracterizaba como un ideal al cual los seres humanos se podían acercar siem-
pre que usasen sus capacidades racionales en su vida. En el pensamiento cristiano medieval, en Tomás de Aquino, se destaca la idea de dignidad
en especial como la capacidad de los seres humanos de conocer y seguir las leyes divinas naturales y universales. Para profundizar este asunto
Cfr. Gregorio Peces-Barba, La Dignidad de la Persona desde la Filosofía del Derecho, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas,
Madrid, Dykinson, 2002.
18
Semejante razonamiento presenta Eusebio Fernández García cuando afirma que “(...) la frecuencia en el uso del concepto dignidad humana o dig-
nidad de la persona y la contundencia de los argumentos que la utilizan va acompañada de una patente imprecisión, hasta el punto de que se corre
el riesgo de convertirla en una expresión casi vacía de contenido”. Cfr. Eusebio Fernández García, Dignidad Humana y Ciudadanía Cosmopolita,
en Instituto de Derechos Humanos “Bartolomé de las Casas”, nº 21, Madrid, Dykinson, 2001, pp. 18 y 19.
19
Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 420.

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FALCÃO, D. J. G.

en el campo de la moral y del derecho o, por lo fines todo tiene o bien un precio o bien una
menos lo debería desempeñar en el caso de este dignidad. Aquello que tiene un precio puede
último. Con el objetivo de aligerar la tendencia ser sustituido por algo equivalente; en cambio,
escéptica actual en cuanto al significado del tér- lo que se encuentra por encima de todo precio
mino “dignidad” y, además de intentar demostrar y, por tanto, no admite nada equivalente, eso
que puede existir un denominador común en lo tiene una dignidad. Aquello que se refiere a las
que concierne a esta idea, hemos recurrido a inclinaciones y necesidades del hombre tiene un
los planteamientos de Gewirth20 que, a su vez, precio de mercado; aquello que, sin suponer una
procede a la quiebra del concepto de dignidad en necesidad, se conforma a cierto gusto, es decir, a
dos. El primero empírico y el segundo intrínseco una satisfacción producida por el simple juego,
y absoluto. En cuanto al primero, se refiere a cua- sin fin alguno, de nuestras facultades, tiene un
lidades tales como la compostura, el respeto o la precio de afecto; pero aquello que constituye la
confianza, características en las que se manifiesta condición para que algo sea fin en sí mismo, eso
la personalidad de determinado individuo. En no tiene meramente un valor relativo o preciso,
esta acepción dignidad no es más que un rasgo sino un valor interno, esto es, dignidad”22. De
relativo y circunstancial y puede o no estar pre- la definición Kantiana, deducimos que toda la
sente en la persona. En suma, no constituye una persona humana es merecedora de respeto in-
característica universal del individuo. Por otro condicional y consideración, una vez que ostenta
lado, en cuanto al segundo concepto, dignidad un valor interno, la dignidad, que la torna única
será aquella característica intrínseca al individuo e insustituible, constituyendo la condición para
y, a su vez, absoluta, y refleja una igualdad entre que el hombre sea fin en sí mismo. O, con otras
todas las personas. Gewirth define la segunda palabras, el hombre es un fin en sí mismo porque
acepción de dignidad como un determinado posee una dignidad. Añadiendo a esta afirmación
valor perteneciente a todos los humanos como la segunda fórmula del imperativo categórico
tales de una forma igual, estando constituido por Kantiano, que dice, “Obra de tal modo que uses
determinados aspectos intrínsecamente valiosos a la humanidad tanto en tu persona como en la
de los seres humanos, y se presenta como “un persona de cualquier otro siempre a la vez como
fin, nunca meramente como medio”23, obtene-
rasgo necesario –no contingente- de todos los
mos un refuerzo de la idea de que toda persona
seres humanos, permanente e inalterable, no
es merecedora de respeto. O sea, siendo el ser
transitorio ni intercambiable”21.
humano el fin, ningún otro fin puede legitimar un
Hecha esta breve distinción, pasamos a tratamiento a un ser humano incompatible con
continuación al análisis de un conjunto de de- esa misma naturaleza de fin que todos poseemos.
finiciones del termino dignidad proporcionado El ser humano es siempre sujeto y nunca objeto.
por distintos autores. Empezamos por Kant, que Así, Kant afirma que “(...) en el orden de los fi-
como hemos señalado anteriormente, ha sido el nes, el hombre (y con él todo ser racional) es fin
primer autor en conceptuar de forma rigurosa en sí mismo, es decir no puede nunca ser utilizado
dignidad. sólo como medio por alguien (ni aun por Dios),
sin al mismo tiempo ser fin; que, por tanto, la
humanidad, en nuestra persona, tiene que sernos
1.2.1.1. La dignidad según Kant sagrada, es cosa que sigue ahora de suyo, porque
Kant en su obra Fundamentación de la el hombre es el sujeto de la ley moral, por con-
Metafísica de las Costumbres, define digni- siguiente, también de lo que es en sí santo, de lo
dad de la siguiente forma: “En el reino de los que permite llamar santo a todo lo que esté de
20
Cfr. Alan Gewirth, “Human Dignity as the Basis of Rights”, en Michael J. Meyer y William A. Parent (eds.), The Constitution of Rights. Human
Dignity and American Values, Ithaca and London, Cornell University Press, 1992, pp. 11 y 12.
21
Ibidem, p. 12.
22
Cfr. Immanuel Kant, op. cit., p. 112.
23
Ibidem, p. 104.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

acuerdo con ello. Pues esta ley moral se funda lítica de la dignidad igualitaria se basa en la idea
en la autonomía de su voluntad libre (...)”24. En de que todos los seres humanos son igualmente
esta citación se plasman las aportaciones básicas dignos de respeto (...) lo que se destaca como
del significado kantiano de dignidad. En primer valioso es un potencial humano universal, una
lugar, la vinculación del carácter del ser humano capacidad que todos los seres humanos compar-
como fin en sí mismo con su racionalidad. En ten. (...) Este potencial (...) es lo que asegura que
segundo lugar, la conexión entre la sacralidad de toda persona merece respeto. Más aún, nuestro
los seres humanos con su condición de sujetos sentido de la importancia de tal potencialidad
morales con autonomía y capaces de imponerse tiene un alcance tan vasto que llegamos a exten-
restricciones morales. der esta protección incluso a personas que por
Por otro lado, los seres humanos, sean cua- alguna circunstancia son incapaces de realizar su
les sean sus actos, nunca pierden su capacidad de potencial de modo normal-por ejemplo, personas
actuación moral, siendo que no se puede juzgar discapacitadas o en coma-”27. En la aportación
a las personas solamente por sus actos. Como kantiana y en la de Taylor, constatamos que el
explica Kant25 existe el sujeto moral y el sujeto denominador común reside en el hecho de que
empírico que no coinciden exhaustivamente el el ser humano posee una cualidad que le hace
uno con el otro, no que sean dos sujetos distin- merecedor de respeto. Kant la define como “un
tos, pero que el sujeto moral es el sujeto en su valor interno”, mientras que Taylor hace alusión
rectitud. O sea, el sujeto moral no debe quedar a un “potencial humano universal”.
reducido a sus expresiones empíricas; como ex- Para Martínez-Pujalte, “la dignidad huma-
plica con claridad Javier Muguerza, ni siquiera al na radica en la capacidad de entender y de querer,
peor criminal se le podría reducir a sus conductas y, en consecuencia, de conocer la moralidad de
evidentes, una vez que éstas no posibilitan una los actos y de actuar moralmente”28.
percepción de las motivaciones y intenciones La cualidad de seres inteligentes y dotados
más ocultas, hecho que constituye una fuerte de voluntad es, ineludiblemente, aquella que nos
razón para seguir considerándole sujeto moral, distingue de los demás seres no humanos. Esa
fin en sí mismo26. cualidad se traduce en la capacidad de juzgar y
Concluyendo, Kant reconoce en todos los proceder moralmente y, a su vez, “siendo ésta la
seres humanos la presencia de algo intrínseco diferencia esencial entre el hombre y los seres
y valioso, que no tiene precio, en definitiva de no humanos, debe ser también el motivo de la
una dignidad, hecho que constituye la condición peculiar dignidad humana”29. Sin embargo, el
para que todo ser humano sea un fin y nunca un profesor Pujalte, siguiendo las enseñanzas de
medio. Jesús Ballesteros30, sostiene que al fundamentar
la dignidad humana apenas en el carácter de
autoconsciencia y libertad del hombre, se puede
1.2.1.2 La dignidad humana (aportaciones correr el riesgo de exclusión de miembros de la
relevantes) familia humana que no tengan tales característi-
En una línea de razonamiento semejante a cas31. Para salvaguardar este problema, Martínez-
la kantiana, Charles Taylor sostiene que “La po- Pujalte32, recurre al concepto de “potencialidad”
24
Cfr. Immanuel Kant, Crítica de la Razón Práctica, Trad. de Emilio Miñana y Villagrasa y Manuel García Morente, Madrid, Espasa-Calpe, 1975,
p. 184.
25
Ibidem, pp. 126 y 127.
26
Cfr. Javier Muguerza, “La alternativa del Disenso. En torno a la Fundamentación Ética de los Derechos Humanos” en Javier Muguerza y otros, El
Fundamento de los Derechos Humanos, Madrid, Debate, 1989, p. 49.
27
Cfr. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, en A. Gutmann, Multiculturalism. Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton
University Press, 1994, pp. 41 y 42.
28
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,
Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 92.
29
Ibidem.
30
Cfr.Jesús Ballesteros, “Derechos Humanos: ontología versus reduccionismos”, en Persona y Derecho, nº 9, 1982.

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empleado por Conklin 33. Para Conklin “la de cobre en el sistema nervioso; y así sucesiva-
humanidad común a todas las personas es su mente. Algunas de estas condiciones pueden ser
potencialidad”, una vez que, “cada persona es tratadas y el daño de las capacidades racionales
una potencialidad abierta en el proceso de llegar ser evitado; otras, hasta este momento, escapan
a ser”34. Concluye Martínez-Pujalte que la digni- a nuestro desarrollo médico, como el síndrome
dad humana tiene su fundamento en la “potencia- de Down (mongolismo). Acerca de éste último
lidad de ser autoconsciente y libre”, siendo que hay una gran cantidad de falsa información;
“el atributo que basta para identificar al hombre muchas de las víctimas de este síndrome pueden
concreto como portador de tal dignidad no es desarrollar sus capacidades racionales más allá
la presencia real y efectiva de las capacidades de lo que en otros tiempos pudiera hacerlo un
o habilidades correspondientes a un desarrollo enfermo no tratado. Pero en cualquier caso no
psicológico normal, sino la potencialidad, en descubriremos ningún tratamiento si adoptamos
definitiva a todo hombre, incluso si todavía no ha la política de abortar niños diagnosticados antes
nacido o si por razones fisiológicas se halla pri- de nacer con síndrome de Down, o envenenán-
vado fácticamente de tales habilidades”35. Para dolos o dejándolos morir de hambre después de
comprender perfectamente lo que significa “po- nacer, política adoptada por muchos doctores
tencialidad” y, a su vez, constatar que pertenece ingleses. La imposibilidad de alterar la cons-
a todos los hombres, no debemos “confundir titución genética responsable del defecto no es
las habilidades características con la racionali- relevante; otros defectos genéticos igualmente
dad radical de la que aquellas surgen, lo cual el inalterables son bastante compatibles con un
doctor Anthony Kenny ha caracterizado como el completo desarrollo intelectual si se adopta el
poder de adquirir poderes. Es esta racionalidad régimen adecuado”36.
radical lo esencial en el hombre y no creo que Para Robert Spaemann, la dignidad huma-
haya ningún motivo para negar su presencia en na es siempre “la expresión de un descansar-en-
ningún tipo de animal humano. Este poder de sí-mismo, de una independencia interior, y no
adquirir poderes racionales, por supuesto, puede como una compensación de debilidad, (...), como
ser impedido por factores fisiológicos; pero aun una expresión de fuerza, (...). Sólo el animal
cuando estas circunstancias que impiden sean fuerte nos parece poseedor de dignidad, pero sólo
innatas no tenemos ningún derecho a concluir cuando no se ha apoderado de él la voracidad.
la ausencia de racionalidad esencial. El creti- Y también sólo aquel animal que no se caracte-
nismo debido al funcionamiento defectuoso de riza fisonómicamente por una orientación hacia
la glándula tiroides por mucho tiempo supuso la mera supervivencia”37. Según Spaemann la
imbecilidad irremediable. Existen otras condi- dignidad constituye un bastarse a sí mismo. Sin
ciones semejantes, una incapacidad congénita embargo, una dignidad que sea fundamentada en
para metabolizar fenilananina que diagnosticada una supremacía de los miembros de nuestra espe-
fácilmente puede ser tratada adoptando una dieta cie, no nos distinguirá de los demás seres vivos,
libre de esta sustancia; un error congénito en el una vez que estos también se consideran fines en
metabolismo del cobre que no se haya descubier- sí mismos. “No necesita ninguna demostración
to puede conducir a una concentración venosa el hecho de que algo es para sí mismo su propio
31
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,
Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 92.
32
Cfr. Ibidem.
33
Cfr. William E. Conklin, In Defense of Fundamental Rights, Alphen, Sijthoff & Noordhoff, 1979.
34
Cfr. William E. Conklin, op. cit., p. 199, en Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en op. cit.,
p. 91.
35
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,
Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 93.
36
Cfr. Peter Geach, “El hombre es “animal racional”: acerca de una definición”, Ponencia presentada a las XXV Reuniones Filosóficas organizadas por
la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Navarra, Pamplona, 1988, p. 6, en Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos
como Derechos Inalienables”, en op. cit., pp. 92 y 93.
37
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en Persona y Derecho, nº19, 1988, p. 18.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

y último fin y que no puede ser convertido por y personales. Las primeras son expresión de una
otro en un mero medio para un fin totalmente responsabilidad que determinados individuos
extraño. El ratón es también un fin último para tienen ante los demás, constituyen una dignidad
sí mismo, pero esto no es así para el gato. Y que específica. “Hay una dignidad del funcionario,
un hombre pagaría cualquier precio para vivir no del juez, del profesor, del maestro”41. En este
es para el león ningún motivo para dejarle con caso concreto la dignidad se puede perder. Por
vida. Todos los intentos de entender únicamente otro lado, las disconformidades personales
de este modo el carácter de fin en sí mismo del tienen como fundamento el diferente grado de
hombre-que el hombre es la realidad terrena moralidad de los seres humanos. El hombre “(...)
más alta para el hombre, el fin más alto para sí cuanto más entregado a su deseo o fijado en sus
mismo- no aciertan con el concepto específico intereses, cuanto menos distanciado esté de sí
de dignidad humana”38. El hombre es un fin en mismo, tanto menos dignidad posee”42.
sí mismo y no apenas un valor para sí mismo. Y,
Después de esta reunión de significativas
solamente desde este punto se puede conferir al
aportaciones acerca del concepto de dignidad,
concepto de dignidad una dimensión ontológica.
parece claro que la más importante ha sido la
La cuestión que surge es la siguiente: ¿”dónde
kantiana. Todas las otras han seguido su línea de
reside entonces la distinción de principio entre el
razonamiento añadiendo, a su vez, un apéndice
carácter de fin en sí mismo de todo lo que es y el
u otro.
carácter específico de fin en sí mismo que señala-
mos como dignidad humana inviolable?”39. Para concluir, es imprescindible hacer un
resumen de las partes más significativas de lo
La distinción, como explica Spaemann,
reside en el hecho de que únicamente los seres que se ha dicho, a través del cual intentaremos
humanos poseen la capacidad de comprender que el concepto de dignidad quede, a pesar de
las relaciones teleológicas en las cuales están su complejidad, aclarado.
externamente implicados. O con otras palabras, Kant en Fundamentación de la Metafísica
el hombre tiene la capacidad de no encerrarse de las Costumbres escribió que la dignidad
solamente en su propio ser. “El hombre no remite humana es un valor interno. Una cualidad que
necesariamente todo el entorno a sí mismo, al torna a la persona única e insustituible siendo, a
propio deseo; puede también caer en la cuenta su vez, lo que constituye la condición para que la
de que él mismo es también entorno para otros. persona sea fin en sí misma y, por lo tanto mere-
Precisamente en esta relativización del propio yo cedora de un respeto incondicional. Para Charles
finito, de los propios deseos, intereses y objeti- Taylor la dignidad es producto de un potencial
vos, se dilata la persona y se hace algo absoluto. humano universal compartido por toda la familia
Se hace inconmensurable. Puede ponerse a sí humana. Y es con base en este potencial que todo
mismo en servicio de algo distinto de sí, hasta el el hombre merece ser respetado. En semejante
sacrificio del mismo”40. El ser humano es un fin línea de razonamiento, Martínez-Pujalte sostiene
en sí mismo absoluto, pues está dotado de una que la clave para comprender el concepto de
moralidad potencial y, como tal, le corresponde dignidad reside precisamente en su fundamento.
la dignidad humana. Martínez-Pujalte, para fundamentar la dignidad
Sin embargo, la afirmación de que todos los añadió a las características (racionalidad y vo-
hombres comparten una dignidad, no significa luntad), que distinguen a los humanos de los no
que todos compartan el mismo grado de digni- humanos y que les permite juzgar moralmente, el
dad. O sea, hay disconformidades. Spaemann término potencialidad (la posibilidad de venir a
clasifica estas disconformidades en constitutivas ser autoconsciente y autónomo), salvaguardando
38
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 20.
39
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 22.
40
Ibidem.
41
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 23.
42
Ibidem.

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de este modo a las personas que por determinada derecho humano. Sin embargo, es la razón de ser
razón no poseen tales características, confiriendo de lo que puede llamarse derechos humanos, que
al concepto de dignidad un carácter universal. deben ser vistos como un medio de actualización
Finalmente, Spaemann sostiene que la diferencia de la dignidad.
entre el carácter de fin en sí mismo de todo ser La dignidad, no es más que el criterio a
vivo y, el carácter específico de fin en sí mismo través del cual se atribuyen “(...) unos derechos
que se señala como dignidad humana reside en que, a título de derechos humanos, se asignan al
el hecho de que el ser humano posee una mora- hecho mismo de ser hombre, independientemen-
lidad potencial. te de cualidades tales como el rango social, la
Todas estas aportaciones nos permiten fuerza física, intelectual o moral, las virtudes y
avanzar con una definición de dignidad humana. talentos por los que los hombres difieren unos de
Dignidad humana será aquella cualidad que nos los otros, y la elevación de esos derechos al rango
hace merecedores de un respeto incondicional de principios fundamentales de la legislación y
y nos confiere el estatuto de fin en nosotros del orden social”45.
mismos en razón de nuestra racionalidad y El principio de la dignidad humana juega
voluntad potencial, que a su vez, nos permiten un papel determinante a la hora de fundamentar
actuar moralmente. todos los derechos humanos.
La deducción lógica que puede llevarse
a cabo del principio de la dignidad es simple
1.2.2 Dignidad: el fundamento de los derechos y, como afirma Amuchastegui, “es que todos y
humanos cada uno de los seres humanos son valiosos en
“Considerando que el reconocimiento de sí mismos, gozan de un carácter único, insusti-
la dignidad inherente a todos los miembros de tuible e incomparable, disfrutan de una dignidad
la familia humana y de sus derechos iguales que, como Kant decía, no tiene precio, pues no
tiene equivalente y no es susceptible de racional
e inalienables constituye el fundamento de la
intercambio. En esta idea han insistido todas las
libertad, de la justicia y de la paz en el mundo”
teorías de los derechos humanos, y todas aquellas
(…) y “Todos los seres humanos nacen libres y
concepciones morales de signo individualista
iguales en dignidad y en derechos”43: En estos
que hacen de la separabilidad e independencia
dos trechos de la Declaración Universal de los moral de las personas un elemento nuclear de
Derechos del Hombre se hace alusión a una las mismas”.46
dignidad humana universal. Los derechos del
La única forma de impedir que los indivi-
hombre son compartidos igualmente por toda la
duos sean tratados como medio es a través de la
familia humana, una vez que todos comparten
garantía de un conjunto de derechos, los derechos
una cualidad común, la dignidad. “Una funda-
humanos. La dignidad, implica un conjunto de
mentación típica, y bastante acertada, para los
atributos que confieren a todos los miembros
derechos humanos (...) es que tenemos derechos de la familia humana un estatuto especial que
porque como seres humanos tenemos lo que debe de ser garantizado, o sea, todos los seres
a veces se ha denominado como ‘la dignidad humanos tienen derecho a ser titulares de dere-
humana’ “44. chos humanos porque solamente así se pueden
El concepto de dignidad potencial, no indi- satisfacer las exigencias de la dignidad. O, como
ca inmediatamente un determinado y específico afirma Muguerza, el primer derecho humano al

43
Cfr. Declaración Universal de los Derechos del Hombre, adoptada y proclamada por la Asamblea General de la ONU en la resolución 217-A (III)
de 10 de Diciembre de 1948, respectivamente del preámbulo y del articulo 1.
44
Cfr. Juha-Pekka Rentto, “Crepúsculo en el Horizonte de Occidente ¿El ocaso de los Derechos Humanos Universales?”, en Persona y Derecho,
nº38, 1998, p. 173.
45
Cfr. E. Levinas, Entre Nous. Essais sur le penser-a-l´autre, Paris, Bernard Grasset, 1991. (Trad. de J., L., Pardo: Entre Nosotros. Ensayos para
pensar en el otro, Valencia, Pre-Textos, 2001, p. 243).
46
Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 432.

26 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009


DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

cual aspiramos es el de ser sujetos de derechos exclusión de la arbitrariedad. El hecho de sean


humanos47. requisitos formales, no implica que estén priva-
Otra cuestión, que resulta importante su- dos de relevante carácter moral. Como ejemplos
brayar es la de los límites que implican el prin- de algunos requisitos formales que deben tener
cipio de la dignidad humana a las actuaciones de las normas que regulan las conductas humanas:
terceros y de los propios Estados. la estabilidad, claridad, universalidad o la irre-
troactividad de algunas de ellas.
Por otro lado, la seguridad jurídica exige un
1.2.3 Límites impuestos por la dignidad con reconocimiento a todas las personas de la posi-
relación a terceros bilidad de acudir a una instancia para defenderse
El objetivo de los derechos humanos, es de las violaciones de determinados derechos e
el de funcionar como instrumento “para im- intereses. O en otras palabras el reconocimiento
pedir que se prive a los individuos de ciertos del derecho a la tutela judicial efectiva.
bienes con el argumento de que ello beneficia Lo que hemos pretendido demostrar a lo
(...) a otros individuos, a la sociedad en con- largo de estos últimos apartados es el papel pre-
junto o a una entidad supraindividual”48. O ponderante que asume el principio de la dignidad
sea, si se reconocen determinados derechos a no solo en la estructuración de determinado
los seres humanos siguiendo el principio de modelo institucional, sino igualmente como
la dignidad inviolable de la persona, hay que fundamento de los derechos humanos.
obligatoriamente reconocer que existe una En definitiva, el principio de la dignidad
determinada esfera del individuo que nunca humana pretende, “(...) una vez establecidos
puede ser afectada, incluso en aras del bien cuáles son los bienes básicos de los que todos los
común. individuos deben poder gozar, proteger dichos
El Estado y los demás entes públicos, de- bienes frente a las políticas agregativas y ma-
berán abstenerse de cualquier medida contraria a ximizadoras del bienestar que justifican infligir
la dignidad. No podrá promulgar normas, dictar sacrificios a algunos individuos en beneficio de
actos, emitir juicios, condicionar la actividad la maximización de ese bienestar general”49.
humana que no se coadunen con la dignidad de No obstante dado que el concepto de dig-
la persona. nidad no indica inmediatamente un determinado
Por otro lado, el Estado no solo tiene el y específico derecho humano, una cuestión
deber de respetar la dignidad sino el de protegerla pertinente puede surgir en este ámbito es la
activamente, impidiendo los atentados de los siguiente: ¿Cómo se conocen los derechos hu-
particulares, adoptando las medidas apropiadas manos que corresponden al hombre en función
para evitarlos o, castigándolos con los medios de su dignidad?
proporcionales y suficientes.
Por lo tanto, el Estado no puede legislar
contra las facultades o derechos que se asignan 1.2.4 Como conocer los derechos humanos
al individuo en virtud de su dignidad. Además que corresponden al hombre en función de
de que el Estado al legislar esté limitado por su dignidad.
determinados bienes de los individuos, los cuales Hemos sostenido que el punto de partida
no pueden ser violados, tendrá que, igualmente de todo es el reconocimiento del hombre como
respetar determinadas formalidades, que repre- ser digno, en la acepción Kantiana, siempre
sentan exigencias de la seguridad jurídica y de como un fin en sí mismo. La forma a través de
47
Cfr. Javier Muguerza, “La alternativa del Disenso. En torno a la Fundamentación Ética de los Derechos Humanos”, en Javier Muguerza y otros,
El Fundamento de los Derechos Humanos, Madrid, Debate, 1989, p. 50.
48
Cfr. C. S. Nino, Ética y Derechos Humanos. Un Ensayo Sobre Fundamentación, Barcelona, Ariel, 1989, p. 262.
49
Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 433.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009 27


FALCÃO, D. J. G.

la cual se conocen unos derechos que resultan de humanos conduce a que su concepto se vacía
exigencias para una vida digna es, como explica de un contenido racional. Como explica Roberto
John Finnis50, la razón práctica. Es con base en Andorno, para algunos autores, la clave para
el conocimiento de los bienes esenciales, que impedir esta inflación, reside en la exigencia del
se manifiestan determinantes en el desarrollo cumplimiento de requisitos formales. O sea, para
del ser humano como ser digno, que podemos que se establezca el tránsito de la pretensión al
comprender cuales son los derechos humanos derecho, es necesario que esa pretensión tenga
básicos. un determinado titular, un objeto preciso y po-
“La experiencia ética del bien supone algún sible, y sea imputable a una o más personas con
grado mínimo de conocimiento de la esencia obligación de respetarla54.
de las cosas con las que nos manejamos, y en A lo largo de las últimas páginas nos hemos
particular, de la esencia humana. De otro modo, apartado un poco del tema principal, el de si de-
ella estaría funcionando sobre la nada. Pero de ben las identidades culturales ser protegidas. Nos
cualquier manera, nos parece que la facultad hu- encontramos ahora en condiciones de regresar
mana que cumple el rol activo en el conocimiento a él con la pretensión de presentar una posición
de “lo justo” es el razonamiento práctico (que final. Pero no sin antes recapitular en qué punto
parte de un deber ser) y no el especulativo (que de la situación nos encontrábamos.
parte del ser)”51. Para conocer si algo es justo Hemos visto que la sociedad no es más que
hay que constatar si realiza un bien esencial de el resultado del carácter relacional del hombre y
la persona52. Los derechos humanos no son más de su capacidad dialógica y que esa capacidad
que la concreción de estos bienes. implicaba un vasto número de interlocutores.
En los tiempos que corren, tropezamos con A su vez, a través de esa sociedad el hombre
un problema real que consiste en la no-fijación podría obtener la realización de sus necesidades
de límites en el catálogo de los derechos huma- y, además, la realización de sus fines pasará por
nos, en su “inflación” que podría conducir a la una conexión con otros hombres en el seno de
destrucción del concepto mismo de derechos un determinado grupo social.
humanos. Confundiendo realidad con deseo, se Igualmente, subrayamos que la formación
crean derechos a partir de las pretensiones más de la identidad individual se alcanzaba, con
arbitrarias. “Detrás de esta inflación de preten- relación a los otros y a través de la ayuda de los
siones subjetivas se encuentra una confusión otros. El ser humano se desarrolla, por tanto, en
entre las nociones de deseo y de derecho. Se el seno de un determinado grupo social concreto,
pasa inadvertidamente del primero al segundo en el cual comparte determinados patrones cultu-
sin preguntarse antes si estamos frente a un rales, en él alcanzaba su realización. Pero, seguía
bien realmente debido en justicia a la persona. la pregunta: ¿Deben las identidades culturales
Pensemos, por ejemplo, en el “derecho al hijo”, ser protegidas?
a menudo invocado para reclamar un acceso
ilimitado a las técnicas de procreación artificial,
aún cuando éstas impliquen un alto sacrificio de 1.3. Posición adoptada
vidas embrionarias, o lleven a generar niños sin No ha sido en vano que nos hemos dedi-
padres biológicos conocidos”53. cado durante algunas líneas a conceptuar y a
Asimismo, la inclusión de las pretensiones fundamentar la dignidad humana. La contesta-
más arbitrarias en el catálogo de los derechos ción a la pregunta que titula este capítulo pasa
50
Cfr. John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 59 y ss.
51
Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en “Persona y Derecho”, nº 38, 1998, p. 43.
52
Cfr. John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 36.
53
Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en op. cit., p.45.
54
Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en op. cit., p. 46. A este mismo respecto, Andorno sugiere,
para un estudio más profundo de la cuestión, los autores: Jean Rivero, Les Libertés Publiques, Tome 1, Les Droits de l´Homme, Paris, PUF, 1995;
Guy Haarscher, Philosophie des Droits de l´Homme, Editions de l´Université de Bruxelles, 1993.

28 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009


DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

precisamente por la idea de dignidad tal como La protección de las identidades culturales
la hemos definido. surge como consecuencia de la exigencia de la
Asimismo, cabe decir lo siguiente: el dignidad de los hombres que las componen. Esto
hombre alcanza su realización en el seno de un es, no estamos en la presencia de un derecho de
determinado grupo cultural. Añadiendo a esta las propias culturas. Las culturas segregadas
aserción la idea primordial de dignidad humana, de los seres humanos no son nada más que
aquella según la cual el hombre es merecedor de abstracciones. “No existiría, por tanto, (...), un
un respeto incondicional, concluimos que ese deber ético o jurídico alguno de protección de
respeto incondicional del hombre se extiende a las tradiciones culturales, más que en la medida
la cultura donde este logra su realización55. La en que esas tradiciones son compartidas por los
afirmación de que el hombre es un ser digno y de miembros del grupo social (...). El deber ético
naturaleza social nos conduce a una conclusión: y jurídico surge tan sólo, en esta esfera, de la
las identidades culturales deben ser, en realidad, existencia de un derecho de los individuos que
protegidas, porque, si no fuera así, la propia dig- forman el grupo social a la protección de su iden-
nidad (esa cualidad que permite exigir un respeto tidad cultural; pero no es posible reivindicación
incondicional) del hombre quedaría dañada. alguna de esa tutela al margen del derecho que a
Después de constatar que la protección de ella ostentan los miembros del grupo”57.
las identidades culturales resulta una exigencia Para algunos autores el derecho a la protec-
de tutela de la dignidad humana, puede surgir ción de la identidad cultural es, en realidad, un
la cuestión de sí existe en la argumentación derecho individual y no colectivo. Los derechos
presentada una falacia naturalista. humanos -argumentan- únicamente pueden ser
La contestación es negativa. No se alega atribuidos a sujetos dotados de una potencialidad
que se deduzca un deber de respeto de las demás moral. Solamente el hombre dispone de esta
culturas, solo porque existen patrones culturales cualidad. Solamente éste es persona moral y
compartidos por diversos seres humanos56. En jurídica58. No parece tampoco correcto a muchos
realidad, lo que se pretende aclarar es que el ser hablar de derechos humanos colectivos cuyos
humano se realiza en el seno de su cultura, y que titulares sean grupos culturales. Si así fuera, sería
añadiendo a esta afirmación aquella exigencia como conferir una independencia a los propios
de respeto incondicional, en que precisamente grupos culturales, con relación a los individuos
consiste la dignidad, se deduce un derecho de que los constituyen59. La solución para una idó-
todo hombre a la protección de su cultura. nea protección de los grupos culturales no pasa
55
Cfr. nota 33.
56
En una línea semejante de razonamiento, el profesor Martínez-Pujalte sostiene, que a propósito de la afirmación de la protección de las identidades
culturales “No hay (...) falacia naturalista de índole alguna. La tesis formulada no consiste en afirmar que de la existencia de diferentes grupos
culturales, y de la pertenencia del ser humano a esos grupos, se infiera un deber de respeto a esas diversas culturas”. Cfr. Antonio-Luis Martínez-
Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en “Persona y Derecho”,
nº 38, 1998, p. 125. A este propósito Juan José Sebreli, en una crítica al relativismo cultural, sostiene que “El relativismo cultural incurre en esta
falacia de deducir el juicio normativo del juicio fáctico, el deber ser del ser, al justificar toda norma ética, cualquiera que fuera, por el mero hecho
de ser aceptada por la mayoría de una comunidad. Si toda ética está justificada por formar parte de una identidad cultural, el error y la maldad no
tienen lugar, y parecería que los hombres hicieran siempre lo que debieran hacer”. Cfr. Juan José Sebreli, El Asedio a la Modernidad: Crítica del
Relativismo Cultural, Barcelona, Ariel, 1992, p. 71.
57
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”,
en op. cit., pp. 126 y 127.
58
“Una crítica conceptual de los derechos colectivos tendría que demostrar que nadie que no sea un actor moral puede ostentar en realidad un
derecho”-Cfr. R. Baubok, “Justificaciones liberales para los derechos de los grupos étnicos”, en Fundamentos 1, volumen dedicado a “Soberanía
y Constitución”, Instituto de Estudios Parlamentarios Europeos, Oviedo, 1998, p. 173.
59
Sin embargo, como explica Martínez-Pujalte “Desde un punto de vista técnico-jurídico, resulta evidente que el ordenamiento necesita siempre de
un sujeto a quién asignar la titularidad e imputar el ejercicio de los derechos. Por ello cuando, para una mayor facilidad del tráfico, el ordenamiento
jurídico desea adscribir la titularidad a un ente colectivo (una asociación, vg.), lo personifica: es decir, trata a ese ente colectivo como si fuese una
persona, atribuyéndole subjetividad jurídica; y haciendo recaer sobre el ente colectivo como tal los efectos de las personas que integran los órganos
sociales, y que son quienes realmente ejercitan los derechos y obligaciones de la sociedad”. Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos
e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., p. 129. La atribución de derechos a entidades
colectivas no pasa de una mera cuestión de funcionalidad de ordenamiento jurídico mismo. Sin embargo, y como queda claro en la enseñanza de
Pujalte, los reales titulares de los derechos son las personas que componen esas entidades colectivas. En última instancia, la atribución de derechos
a entes colectivos no es más que un “artificio” con el fin de facilitar el ejercicio de los derechos de sus miembros.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009 29


FALCÃO, D. J. G.

por la atribución de derechos colectivos. culturalista (que sostienen un predominio de las


Para realizar una adecuada protección de tradiciones culturales sobre la libertad indivi-
las identidades culturales existen dos vías, como dual). De hecho, el hombre no es un ser acul-
explica Martínez-Pujalte: “Asegurar la igualdad tural ni asocial. Se desarrolla en el seno de un
de derechos de los individuos pertenecientes a determinado grupo social concreto compartiendo
la minoría con los del grupo mayoritario y, por determinadas pautas culturales. Sin embargo, no
otro lado, proteger la diferencia, es decir, tutelar se puede olvidar que son los seres humanos los
adecuadamente las peculiaridades culturales que crean las culturas y que sin ellos, no pasarían
específicas del grupo minoritario”60. de meras abstracciones. Nos parece, por lo tanto,
En las dos situaciones, nos enfrentamos el culturalismo, un ejercicio poco coherente pues
con una situación de protección de derechos antepone la cultura al hombre62.
individuales. Si se imputan derechos colectivos Finalizando, lo que importa retener es lo
a los grupos culturales quedando la persona in- siguiente:
dividual en segundo plano, se arriesga a que las En primer lugar, que es en la capacidad
culturas se sobreponga a la condición humana dialógica del hombre donde radica la clave de su
individual”61. dimensión social y es por la implicación de esta
Dado que la protección de las identidades capacidad de diversos locutores por lo que nace
culturales, tiene su razón de ser, como hemos un determinado grupo social. En segundo lugar,
expuesto, en la dignidad humana, las pautas cul- que es en el seno de un determinado grupo social
turales contrarias a la dignidad humana quedan, concreto, caracterizado por pautas culturales
asimismo, excluidas de esa protección, una vez específicas, donde el hombre logra su desarrollo
que, en nuestra acepción la dignidad representa y realización. En tercer lugar, que agregando la
un bien universal en sus aspectos primordiales. máxima de que el hombre debe ser respetado
Parece necesario seguir insistiendo en una de forma incondicional (en lo que se traduce la
unidad del género humano. Y, que esta unidad dignidad humana) a la realidad de que éste logra
se traduce por esa peculiar característica del su realización en el seno del grupo cultural al que
hombre, la dignidad. En realidad, la concreción pertenece, podemos concluir que el respeto de su
de la exigencia de respeto incondicional univer- grupo cultural deriva de la exigencia del respeto
sal pasa por la tutela de los derechos humanos por el propio hombre. Por último, si la protección
elementales. Las culturas que rechacen esta idea, de las identidades culturales se fundamenta en
ellas mismas no merecen respeto alguno. la dignidad humana, las pautas culturales adver-
Para concluir, podemos añadir que hemos sas a la dignidad humana quedan excluidas de
intentado desarrollar una argumentación que se esa protección. Pues, la dignidad representa un
sitúe entre la perspectiva liberal-individualista bien universal en sus aspectos primordiales, y
(que parte del individuo abstracto y aislado su concreción pasa por la tutela de los derechos
de las dimensiones culturales y sociales) y la humanos básicos.

60
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”,
en op.cit., p. 130.
61
Para los defensores del relativismo existen tradiciones culturales que son incompatibles con los derechos del hombre, siendo, a su vez, más
importantes y superiores que cualquier condición humana. “Si se me ocurre reprocharle a un nacionalista serbio el genocidio cometido sobre los
bosnio-musulmanes, me contestará que, como occidental, no puedo comprender las insondables particularidades de la cosmovisión serbio-ortodoxa
(la cual, al parecer, legitima el exterminio de civiles indefensos, siempre que se trate de “perros turcos”), y que, al intentar imponerle mi concepción
de los derechos humanos, incurro en pecado de imperialismo cultural”-Cfr. Francisco J. Contreras Peláez, “Tres Versiones del Relativismo Ético-
Cultural”, en Persona y Derecho, nº38, 1998, p. 71.
62
A propósito del culturalismo, Martínez-Pujalte, advierte que “puede convertirse fácilmente en un caldo de cultivo de la intolerancia, y conducir a un
particularismo que excluya toda comunicación recíproca entre las diversas culturas, imposibilitando así una sociedad auténticamente intercultural,
es decir, una sociedad caracterizada por la convivencia e integración armónica entre las diferentes culturas”-Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte,
“Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., p. 133.

30 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 17-30, junho/2009


Artigo

NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À


IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE A POSSIBILIDADE DAS
PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES
TELEFÔNICAS

Douglas Fischer1 RESUMO: O presente trabalho pretende ana-


lisar o tratamento que vem sendo conferido à
Lei 9.296/96, considerando o quanto aduzido
pela Teoria Garantista. Defende-se a tese de
que, não servindo esta apenas à proteção de in-
teresses pessoais, deve o processo hermenêutico
buscar o conteúdo da norma, sopesando os fins
constitucionais de proteção à determinados bens
jurídicos e de proteção ativa a interesses da so-
ciedade e dos investigados, sob pena de incorrer
no assim denominado garantismo hiperbólico
monocular.
Palavras-chave: Teoria Garantista. Interesses
pessoais. Direitos fundamentais. Direito à impu-
nidade. Interceptação telefônica

ABSTRACT: The present work intends to


analyze the handling that has been given to the
law n. 9,296/96, considering the much brought
forward by the Guarantee Theory. It defends
the thesis that, as it serves not only to protect
personal interests, the hermeneutic process must
also search the content of the rule, taking into
account the constitutional goals of protection
of certain legal goods and of active protection
of interests of the society and of the ones being

1
Procurador Regional da República na 4ª Região, professor de Processo Penal.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009 31


FISCHER, D.

investigated, under penalty of incurring into the tico, tentar demonstrar o equívoco do raciocínio
so called hyperbolic monocular guarantism. do nobre jurista, tanto pelo prisma da (segundo
Keywords: Guarantee theory. Personal interests cremos) melhor interpretação da Constituição,
Fundamental rights. Right to impunity. Telepho- bem como dos reais precedentes anteriores do
ne interception. Supremo Tribunal Federal.
Já de algum tempo tem-se difundido no
âmbito jurídico que, na aplicação do Direito
Expressando sua opinião a respeito da
Penal e do Direito Processual Penal, devam ser
interpretação que os tribunais vêm dando à Lei
9.296/96 sobre a possibilidade ou não de reitera- observados ao máximo os direitos e garantias
das prorrogações de interceptações telefônicas, fundamentais do cidadão. Estamos de acordo
nobre advogado publicou recentemente artigo integralmente com tais premissas. Mas insisti-
(Boletim IBCCrim n. 194, janeiro de 2009) mos que há alguns equívocos nas premissas e
intitulado “½ calabresa, ½ garantia fundamen- conclusões que se têm tomado com fundamento
tal”. Em síntese, defendeu os seguintes pontos em ideais garantistas, incorrendo-se – não raras
de vista: a) a Lei 9.296 possui nítido caráter vezes – no que temos denominado de garantis-
garantista; b) por conta de decisão superveniente mo hiperbólico monocular, hipótese diversa do
do STF (nos autos de denúncia oferecida com sentido proposto por Luigi Ferrajoli.
base no Inquérito de competência originária Se é possível definir de forma bastante sin-
nº 2.424), perdeu o sentido elogio que tecera tética e inicial, a tese central do garantismo está
anteriormente noutro escrito à decisão profe- em que sejam observados rigidamente os direitos
rida no famoso e histórico (sic) julgamento do fundamentais (também os deveres fundamentais,
STJ (6ª Turma, por maioria) no HC nº 76.686 dizemos) estampados na Constituição 2. Normas
(09.09.2008), precedente no qual restou consig- de hierarquia inferior (e até em alterações cons-
nado de forma expressa que as interceptações titucionais) ou então interpretações judiciais não
telefônicas só podem ser efetuadas no prazo de podem solapar o que já está (e bem) delineado
15 dias prorrogável uma única vez por mais 15 constitucionalmente na seara dos direitos (e de-
dias; c) segundo compreendera, pela decisão do veres) fundamentais. Embora eles não estejam
STJ, pareciam sido colocados os “pingos nos única e topicamente ali, convém acentuar que o
i´s” (sic), afastando-se abusos frequentemente art. 5º da Constituição está inserto em capítulo
cometidos pelas autoridades perscecutórias; d) que trata “dos direitos e deveres individuais e
que incorreu em equívoco a Corte Suprema ao coletivos”. Assim, como forma de maximizar os
entender – contra legem – desnecessária a trans- fundamentos garantistas, a função do hermeneuta
crição de todas as escutas telefônicas, bastando está em buscar quais os valores e critérios que
se conceda à defesa cópia dos áudios; e) que possam limitar ou conformar constitucionalmen-
a lei foi feita para trinta dias, e não meses ou te o Direito Penal e o Direito Processual Penal.
anos ininterruptos de interceptações; f) por fim, Não temos dúvidas: a Constituição Federal
que o evidente desconforto desmonstrado pelos brasileira é garantista e assenta seus pilares nos
ministros mais antigos e experientes (sic) da princípios ordenadores de um Estado Social e
Corte seja suavizado e as garantias fundamentais Democrático de Direito. Mas a teoria garantista
voltem a ter o tratamento que vinha lhe sendo não existe apenas para proteção de interesses
dispensado pelo Supremo Tribunal Federal em individuais. Como bem salienta José Luis Martí
seus últimos julgados. Mármol, “el paradigma constitucional incluye
Não há pretensão alguma de “colocar pin- asimismo, según Ferrajoli, los siguientes grupos
gos nos i´s”, mas, dentro de um panorama dialé- de derechos fundamentales: derechos políticos
2
Aliás, compreendido na íntegra há se ver que “derecho garantista establece instrumentos para la defensa de los derechos de los indivíduos frente
a su eventual agresión por parte de otros indivíduos y (sobre todo) por parte del poder estatal”. Gascón Abellán, Marina. La Teoria General del
Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli.
Madrid: Editorial Trota, 2005, p.21.

32 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009


NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS
PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

(o de autonomia pública), derechos civiles (o Diante de uma Constituição que preveja,


de autonomía privada), derechos liberales (o explícita ou implicitamente, a necessidade de
de libertad) y derechos sociales”3 (grifos e proteção de determinados bens jurídicos e de
destaques nossos). proteção ativa dos interesses da sociedade e dos
Se a Constituição é o ponto de partida investigados e/ou processados, incumbe o dever
para (também) a análise (vertical4) do influxo de se visualizar os contornos (integrais, e não
dos princípios fundamentais de natureza penal monoculares, muito menos de forma hiperbólica)
e processual penal, decorre daí que o processo do sistema garantista.
hermenêutico não poderá se assentar sobre fór- Têm-se encontrado muitas e reiteradas ma-
mulas rígidas e pela simples análise pura (muito nifestações doutrinárias e jurisprudenciais com
menos literal) dos textos dos dispositivos legais simples referência aos ditames do “garantismo
(inclusive da própria Constituição). Há se buscar penal”, sem que se compreenda, na essência,
o conteúdo da norma, sua essência. qual a extensão e os critérios de sua aplicação.
Em muitas situações, ainda, há distorção dos
Na linha dos próprios fundamentos basi-
reais pilares fundantes da doutrina de Luigi
lares do garantismo, não se afigura difícil com-
Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral
preender que vemos a Constituição ocupando
dos seus postulados). Daí que falamos que se
uma função central no sistema vigente (sem
tem difundido um garantismo penal unicamente
gerar um panconstitucionalismo), podendo-se
monocular e hiperbólico, evidenciando-se de
dizer que seus comandos se traduzem como
forma isolada a necessidade de proteção apenas
ordenadores e dirigentes aos criadores e aos
dos direitos dos cidadãos que se vêem proces-
aplicadores (intérpretes) das leis (aí incluída a
sados ou condenados 7. Da leitura que fizemos,
própria Constituição, por evidente). Como sa-
a grande razão histórica para o surgimento
lienta Maria Fernanda Palma, “a Constituição
do pensamento garantista (que aplaudimos e
que define as obrigações essenciais do legislador
concordamos, insista-se) decorreu de se estar
5
perante a sociedade. Ora, esta função de pro-
diante de um Estado em que os direitos funda-
tecção activa da Sociedade configura um Estado mentais (notadamente os individuais) não eram
não meramente liberal, no sentido clássico, mas minimamente respeitados, especialmente diante
promotor de bens, direitos e valores”6. Nessa do fato do sistema totalitário vigente na época.
linha, compreendemos também deva ser a inter- Como sintetizado por Paulo Rangel8, a teoria do
pretação do próprio conteúdo dos dispositivos garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli
constitucionais. é originária de um movimento do uso alternati-
Para nós, significa que a compreensão e de- vo do direito nascido na Itália nos anos setenta
fesa dos ordenamentos penal e processual penal por intermédio de juízes do grupo Magistratura
também reclamam uma interpretação sistemática Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma
dos princípios, regras e valores constitucionais conseqüência da evolução histórica dos direitos
para tentar justificar que, a partir da Constituição da humanidade que, hodiernamente, considera o
Federal de 1988, há realmente novos paradigmas acusado não como objeto de investigação estatal,
influentes em matéria penal e processual penal. mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo
3
El fundamentalismo de Luigi Ferrajoli: um análisis crítico de su teoria de los derechos fundamentales, In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro,
Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005 p. 384
4
Como diz Maria Fernanda Palma, “a Constituição pode conformar o Direito Penal porque funciona como uma espécie de norma fundamental
autorizadora do Direito ordinário, assumindo um papel hierarquicamente superior“. PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal.
Coimbra: Almedina, 2006, p. 16.
5
Dizemos nós: também todos os demais Poderes e órgãos do Estado.
6
PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina,2006,p.106-7.
7
Noutras palavras, Perfecto Andrés Ibáñez destaca que se deve analisar a existência atualmente de um “garantismo dinámico, que es el que tras-
ciende el marco deo proceso penal y también el de la mera garantía individual de carácter reactivo para ampliarse al asegurarmiento de otros
derechos e de los correspondientes espacios hábiles para su ejercicio”. Garantismo: Uma teoria Crítica de La jurisdicción. In: Carbonell, Miguel
y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.60.
8
“O clone da inquisição terrorista“, in http://jusvi.com/artigos/1319 , acesso em 21.nov.2008.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009 33


FISCHER, D.

Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê- pessoa do imputado e também a proteção dos
lo, em qualquer fase do processo (investigatório interesses coletivos 12.
ou propriamente punitivo). Segundo a fórmula Assim, se todos os Poderes estão vincula-
garantista, na produção das leis (e também nas dos a esses paradigmas – como de fato estão -,
suas interpretações – e aqui há a contestação especialmente é o Poder Judiciário quem têm o
objetiva do nobre advogado) seus conteúdos dever de dar garantia também aos cidadãos (sem
materiais devem ser vinculados a princípios e va- descurar da necessária proteção social) diante
lores estampados nas Constituições dos Estados das eventuais violações que eles virem a sofrer.
Democráticos em que vigorem. É dizer: todos Exatamente por isso que Miguel Carbonell refere
os direitos fundamentais equivalem a vínculos que “en el modelo del Estado social los poderes
de substância, que, por sua vez, condicionam a públicos dejan de ser percibidos como enemigos
validez da essência das normas produzidas (e de los derechos fundamentales y comienzan a
também nas suas aplicações), expressando, ao tomar, por el contrario, el papel de promotores
mesmo tempo, os fins aos quais está orientado o de esos derechos, sobre todo de los de caracter
denominado Estado Constitucional de Direito 9. social”13.
Em sua construção, as garantias são verdadeiras
Deste modo, a sujeição do juiz à lei não
técnicas insertas no ordenamento que têm por
finalidade reduzir a distância estrutural entre a mais é - como sempre foi pelo prisma positi-
normatividade e a efetividade, possibilitando-se, vista tradicional - à letra da lei (ou mediante
assim, uma máxima eficácia dos direitos funda- sua interpretação meramente literal) de modo
mentais (todos os grupos de direitos fundamen- acrítico e incondicionado, senão uma sujeição à
tais) segundo determinado pela Constituição10. lei, desde que coerente com a Constituição vista
Para Ferrajoli, o sistema garantista tem pilares como um todo.
firmados sobre dez princípios fundamentais Em nossa compreensão (integral) dos pos-
que, ordenados, conectados e harmonizados tulados garantistas, o Estado deve levar em conta
sistemicamente, determinam as “regras do jogo que, na aplicação dos direitos fundamentais (in-
fundamental” de que se incumbe o Direito Penal dividuais e sociais), há a necessidade de garantir
e também o Direito Processual Penal11. também ao cidadão a eficiência e segurança,
Parece bastante simples constatar que a evitando-se a impunidade. O dever de garantir
Teoria do Garantismo se traduz em verdadeira a segurança não está em apenas evitar condutas
tutela daqueles valores ou direitos fundamentais criminosas que atinjam direitos fundamentais
cuja satisfação, mesmo contra os interesses da de terceiros, mas também na devida apuração
maioria, constitui o objetivo justificante do (com respeito aos direitos dos investigados ou
Direito Penal. Vale dizer: quer-se estabelecer processados) do ato ilícito, e, em sendo o caso,
uma imunidade – e não im(p)unidade - dos da punição do responsável.
cidadãos contra a arbitrariedade das proibições Vencidas as considerações prefaciais (mas
e das punições, a defesa dos fracos mediante essenciais, pensamos), adentremos no mérito da
regras do jogo iguais para todos, a dignidade da crítica traçada pelo trabalho ora contestado.
9
FERRAJOLI, Luigi.Derechos y Garantias,La ley Del más débil. 4ed.Madrid:Trotta, 2004, p. 152.
10
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias,La ley Del más débil.4 ed.Madrid: Trotta, 2004, p. 25.
11
FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 93. Nas palavras de Ferrajoli, “el modelo garantista
[…] presenta las diez condiciones, límites o prohibiciones que hemos identificado como garantías del ciudadano contra el arbitrio o el error penal:
según este modelo, no se admite ninguna imposición de pena sin que se produzcan la comisión de un delito, su previsión por la ley como delito, la
necesidad de su prohibición y punición, sus efectos lesivos para terceros, el carácter exterior o material de la acción criminosa, la imputabilidad y
la culpabilidad de su autor y, además, su prueba empírica llevada por una acusación ante un juez imparcial en un proceso público y contradictorio
con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos “ FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed.
Madrid: Trotta, 2000, p. 103-4.
12
FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p.271.
13
CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos prin-
cipales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota,
2005, p.179.

34 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009


NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS
PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

De fato, feita a interpretação literal do (parcialmente recebidos) a ministro do STJ (art.


disposto no art. 5º da Lei 9.296, procederia a 102, I, ´c ´, CF) não é novo, nem alterou qual-
crítica de que seria impossível a interceptação quer compreensão anterior. Há muito o Supremo
telefônica durar mais de 30 dias (uma prorro- Tribunal Federal vem entendendo ser possível a
gação apenas). Mas – e isso é cediço desde os renovação das escutas telefônicas.
bancos da universidade – a interpretação menos Como bem referiu o Ministro Gilmar
recomendável é a literal. Mendes no julgamento do RHC nº 88.731-SP
Há se convir que, se mantido o entendi- (unânime, publicado no DJ em 02.02.2007), “a
mento de que seria apenas possível uma prorro- jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
gação das interceptações telefônicas, somente se consolidou o entendimento segundo o qual as
garantirá a possibilidade de investigação por 30 interceptações telefônicas podem ser prorroga-
dias mediante a interceptação telefônica. Passa- das desde que devidamente fundamentadas pelo
do o lapso temporal matemático, se conferiria juízo competente quanto à necessidade para o
verdadeira imunidade aos delinquentes para prosseguimento das investigações. Precedentes:
continuarem na senda dos crimes. Estamos de HC nº 83.515/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, Ple-
acordo que a interceptação telefônica deva ser no, maioria, DJ de 04.03.2005; e HC nº 84.301/
decretada de modo excepcional, com parcimônia SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, una-
e – mais importante – mediante a fundamentação nimidade, DJ de 24.03.2006”.
necessária diante do caso concreto. Há excessos
eventuais, não se nega. O que não se pode aceitar Ainda: enquanto o precedente histórico
é querer fazer prevalecer uma inversão lógica invocado foi tomado por maioria pela Egrégia
de premissas para inviabilizar a investigação 6ª Turma do STJ, é importante informar que o
criminal. entendimento (unânime) da 5ª Turma do STJ
continua sendo no sentido de que a “intercep-
Com máximo respeito ao entendimento
tação telefônica não pode exceder 15 dias. To-
dos eminentes Ministros do STJ que decidiram
davia, pode ser renovada por igual período, não
o caso invocado, não fizeram a melhor inter-
havendo restrição legal ao número de vezes para
pretação segundo cremos. Para quem analisar
tal renovação, se comprovada a sua necessidade”
o caso concreto (não apenas a ementa !), fácil
(HC n. 116.482/SP, Relator Ministro Arnaldo Es-
verificar que tratava de graves crimes contra o
sistema financeiro e lavagem de dinheiro (dentre teves Lima, 5ª Turma, unanimidade, julgado em
outros) praticados anos a fio por delinquentes da 04.12.2008, publicado no D.J. em 02.02.2009).
upper class, com estrondosos e deletérios efeitos Sobre a desnecessidade de transcrição de
em detrimento da sociedade. Não há se olvidar todos os conteúdos das interceptações telefôni-
que as renovações de interceptações telefônicas cas, nenhuma novidade também. Em incidente
– todas deferidas judicialmente – encontravam anterior nos mesmos autos do Inquérito nº 2.424
suporte fático devidamente relatado (ao menos (Medida Cautelar no HC nº 91.207, em que a
assim pensamos): os crimes continuavam sendo autoridade coatora era o Ministro do STF Cezar
perpetrados e era necessária a permanência das Peluso, julgado em 06.06.2007 e publicado no
investigações. Mais: face à natureza dos crimes DJ em 21.09.2007), assentou a Corte Suprema
apurados (e como praticados), a escuta telefô- por seu plenário (o competente para apreciar o
nica era imprescindível para a investigação. A habeas corpus) ser “desnecessária a juntada do
excepcionalidade da medida era evidente. Todas conteúdo integral das degravações das escutas
as prorrogações foram fundamentadas, mesmo telefônicas realizadas nos autos do inquérito
que de modo conciso algumas delas. no qual são investigados os ora Pacientes, pois
Prosseguindo, impende ressaltar que o bastam que se tenham degravados os excertos
entendimento consignado pelo STF no Inquérito necessários ao embasamento da denúncia ofere-
2.424 (“Operação Huricane”), cuja competência cida, não configurando, essa restrição, ofensa ao
decorria do fato da imputação de fatos delitivos princípio do devido processo legal (art. 5º, inc.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009 35


FISCHER, D.

LV, da Constituição da República”. O acerto da sentido estrito), se bem compreendida. Há se ter


decisão decorre da circunstância (elementar) de em mente que, se o Estado não pode agir com
que, no processo penal constitucional vigente, excessos injustificados (não pode mesmo !) em
o que se deve garantir ao investigado ou réu é detrimento do cidadão (übermassverbot, segundo
saber (sem fórmulas kafkanianas) quais as provas expressão de Canaris – ou também hodiernamen-
produzidas contra ele. A prova encontra-se na te denominado de garantismo negativo), também
gravação feita e autorizada judicialmente. Para não pode deixar de considerar que há imperativos
fazer a imputação, o titular da ação penal deverá constitucionais que obrigam o Estado proteger a
utilizar unicamente as mesmas provas disponi- sociedade das práticas delitivas.
bilizadas para a defesa. Se eventualmente na Valendo-se dos ensinamentos do Ministro
pretensão acusatória houver a omissão de dados Gilmar Mendes, não há se olvidar que, tratando
relevantes, estar-se-á permitindo à defesa – de o tema dos direitos fundamentais e dos deveres
posse dos conteúdos integrais das intercepta- de proteção14, já restou por ele assentado que
ções - contradite o pleito. Isto é contraditório, “os direitos fundamentais não contêm apenas
ampla defesa e devido processo legal Querer uma proibição de intervenção [...], expres-
que se degrave todo o conteúdo (muitas partes sando também um postulado de proteção [...].
até irrelevantes) é quiçá – com a maxima venia Haveria, assim, para utilizar uma expressão de
- pretender unicamente fazer volume antecipado Canaris, não apenas uma proibição do excesso
de folhas de processo e ensejar a demora na apu- (Übermassverbot), mas também uma proibição
ração dos fatos (quiçá para atingir ulteriormente de omissão (Untermassverbot). Nos termos da
a prescrição retroativa, instituto ímpar brasileiro, doutrina e com base na jurisprudência da Corte
sem precedentes nos ordenamentos jurídicos Constitucional alemã, pode-se estabelecer a
comparados e democráticos). seguinte classificação do dever de proteção: [...]
Compreendemos que a interpretação (sis- (b) Dever de segurança [...], que impõe ao Estado
têmica e não meramente literal) ratificada pelo o dever de proteger o indivíduo contra ataques de
STF acerca da possibilidade de ultrapassagem terceiros mediante adoção de medidas diversas;
dos prazos de 30 dias nas interceptações telefô- [...] Discutiu-se intensamente se haveria um
nicas, desde que imprescindíveis e devidamente direito subjetivo à observância do dever de pro-
fundamentadas, e da desnecessidade de degrava- teção ou, em outros termos, se haveria um direito
ção de todas as interceptações se coadunam com fundamental à proteção. A Corte Constitucional
os princípios basilares da Carta da República e acabou por reconhecer esse direito, enfatizando
não arrostam, por si só, abstratamente, direitos que a não observância de um dever proteção
fundamentais individuais. corresponde a uma lesão do direito fundamental
Como extraído do próprio pensamento previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”.
garantista, não se pode olvidar que também há É o que se tem denominado – esse dever de
direitos coletivos e deveres individuais. Nesta proteção – de garantismo positivo.
linha, se os direitos fundamentais dos investiga- Quando falamos em garantismo penal in-
dos devem ser preservados, insistimos que eles tegral é a isso que estamos nos referindo: a con-
não são absolutos. Podem ser relativizados se jugação do garantismo positivo e do garantismo
presente(s) no caso concreto outro(s) valor(es) negativo 15. E não só este último, que, aplicado
constitucional(ais) relevante(s) em sopesamen- isolada e muitas vezes ampliadamente, se traduz
to. É a decantada questão da proporcionalidade no que denominamos de garantismo hiperbólico
(adequação, necessidade e proporcionalidade em monocular.
14
MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília: Revista Jurídica Virtual,
vol. 2, n. 13, junho/1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, Núm. 8, 2004, p. 131-142.
15
Como destaca Carbonell, há muito é este o entendimento expresso (mas não difundido na íntegra) de Ferrajoli. A propósito, vide La garantia de
los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar,
Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.179.

36 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009


NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS
PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

Também imperativo constitucional (art. com el control de los recursos necesarios para la
144, caput, CF), o dever de garantir segurança realización de um derecho” 16.
não está em apenas evitar condutas criminosas Diante do exposto, não concordamos com
que atinjam direitos fundamentais de terceiros, a idéia da prevalência indiscriminada – pri-
mas também na devida apuração (com respeito
ma facie – somente de direitos fundamentais
aos direitos dos investigados ou processados)
individuais sobre os demais direitos, valores,
do ato ilícito, e, em sendo o caso, da punição
princípios e regras constitucionais, sem qualquer
do responsável. Neste diapasão, perfeitas nova-
mente as considerações de Miguel Carbonell ao sopesação e, sobretudo, diante de interpretação
assentar que “la obligación de proteger significa literal e gramatical. Se assim for, valorizando-se
que el Estado debe adoptar medidas destinadas e difundindo-se apenas e parcialmente a teoria
a evitar que otros agentes o sujetos violen los garantista – o que denominamos de garantismo
derechos sociales, lo que incluye mecanismos no hiperbólico monocular -, melhor deixar de lado a
solamente reactivos frente a las violaciones [...], proposta de ½ calabresa, ½ garantia fundamental
sino también esquemas de carácter preventivo e pedir desde já uma inteira com sabor único de
que eviten que agentes privados pudean hacerse impunidade.

16
Id. Ibidem., p. 194.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009 37


38 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

Ewerton Teixeira Bueno* RESUMO: O presente artigo investiga a efeti-


vidade das normas constitucionais que dispõem
sobre direitos sociais. Cumpre, desde já, a adver-
tência de que não analisamos exaustivamente o
rol dos direito sociais inseridos na Constituição.
Desse modo, limitamos-nos a abranger os direi-
tos sociais de maneira bastante genérica, apenas
para proporcionar ao leitor uma melhor compre-
ensão do tema que ora nos entretém.
Palavras-chave: Direitos Sociais. Constituição
Federal de 1988. Efetividade das normas. Juris-
pruência e doutrina.

ABSTRACT: The present article investigates


the effectiveness of the constitutional rules that
deal on social rights. It should be warned now
that we have not thoroughly analyzed the list of
social rights inserted in the Constitution. Thus,
we limited ourselves to comprehend the social
rights rather generically, only to provide to the
reader a better understanding of the subject that
now holds our attention.
Keywords: Social rights. Federal Constitution
of 1988. Effectiveness of rules. Jurisprudence
and doctrine.

O vocábulo efetividade, segundo Antônio


Houaiss, corresponde, entre outros significa-
dos, ao “caráter, virtude ou qualidade do que
é efetivo, faculdade de produzir um efeito real,
capacidade de produzir o seu efeito habitual,
de funcionar normalmente”1. Guardando se-
melhança com esses significados, a efetividade

*
Técnico Administrativo e estagiário do Ministério Público Federal, além de acadêmico de direito da Universidade São Francisco.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 39-43, junho/2009 39


BUENO, E. T.

da norma jurídica é a sintonia adequada entre as frente tal descompasso seria a discussão judicial
suas previsões genéricas, abstratas e impessoais desses direitos.
e o fato social que ela se propõe a normatizar, Com efeito, diversas ações judiciais foram
em outras palavras, há efetividade quando o juízo propostas com o fito atribuir os direitos sociais
hipotético dever ser se identifica com o ser da aos seus titulares - sobretudo o direito à saúde
realidade fática. Destarte, uma norma pode ser e à educação – mesmo assim, ainda prepondera
mais ou menos eficaz perante dada sociedade, no judiciário a carga acentuadamente política
mas não pode ser mais ou menos jurídica perante atribuída às normas de direitos sociais, enqua-
o direito. Ou determinada regra é norma jurídica, dradas entre as normas programáticas.
consequentemente, exigível; ou não, e, por isso,
Outro fator que, sem dúvida, contribui para
alheia ao ordenamento jurídico.
a ineficácia das normas de direitos sociais é, por
As normas que veiculam direito social não vezes, a ausência de leis infraconstitucionais que
fogem a essa regra e, apesar de topograficamente concretizem os preceitos constitucionais.
se localizarem no ápice do sistema jurídico – na
Em contrapartida, a vanguarda progres-
Constituição Federal - por uma série de fatores,
siva da doutrina considera que, nesses casos,
essas normas nem sempre conseguem atingir a
incumbe ao judiciário dar concretização a esses
sua plena efetividade. Não por acaso Pablo Verdú
“normas constitucionais incompletas”, porque o
afirmou “tanto é assim que se pode perceber nos
princípio inserido no artigo 5º, parágrafo 1º da
textos fundamentais sintomas de incongruência
Constituição Federal, considera que as normas
com a realidade social”2. Desse modo, grande
definidoras dos direitos e garantias sociais têm
é a importância de se aferir se os comandos
aplicação imediata. Neste passo, Fábio Kon-
emergentes das normas direitos sociais atingem
der Comparato preleciona que “apesar de seu
ou não os limites razoáveis de eficácia.
elevado grau de abstração, os princípios são
Observando efetividade dessas normas à normas jurídicas e não simples recomendações
luz da sociedade brasileira, concluímos que se programáticas, ou exortações políticas. Mais
por um lado a Constituição Federal prevê inúme- ainda trata-se de normas jurídicas de eficácia
ros direitos prestacionais, por outro lado, ainda plena e imediata, a dispensar a intermediação de
existe um grande hiato entre essas previsões le- regras concretizadoras. Provocado ou não pelas
gais e a realidade social dos seus destinatários. partes, o juiz está sempre autorizado a aplicar
Nesta quadra, é possível elencar certos diretamente um principio ao caso trazido ao seu
fatores preponderantes para a ineficácia dos julgamento, por forçado disposto no parágrafo
direitos sociais no Brasil. 1º do art. 5 da Constituição.”4.
Segundo José Reinaldo de Lima Lopes3 a Numa interpretação literal do alutido
sociedade brasileira, em seu desenvolvimento dispositivo constitucional é possível inferir que
normal, não foi capaz ainda de ver a con- as normas de direitos fundamentais devem ser
cretização dos direito sociais porque a nossa aplicadas imediatamente, irradiando os seus
tendência sempre fora a de compreender, en- efeitos nas situações subjetivas que normatizam,
quanto cidadãos, que os direitos sociais não são obrigando o Legislativo, Executivo e o Judici-
propriamente direitos e que, por isso, carecem ário, a desenvolverem meios, dentro de suas
de força social bastante para serem respeitados funções Constitucionais, para tornarem eficazes
naturalmente como as demais leis. Diante desse os direitos individuais e sociais fundamentais.
5
problema, propõe que a única possibilidade Pondera Juraci Mourão que apenas a forma de
1
Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, ed. Objetiva, 2001, p.1102.
2
Verdú, Pablo Lucas, A luta Pelo Estado de Direito. 2007. Rio de Janeiro., ed. Forense. p., 53.
3
José Reinaldo de Lima Lopes, A Efetividade dos Direitos Econômicos, Culturais e Sociais, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São
Paulo, ed. Método., p. 103-104
4
Fábio Konder Comparato, O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São Paulo, ed.
Método., p. 22.

40 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 39-43, junho/2009


EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

realizar isso é que varia, inferindo, em síntese, vínculos de direitos subjetivos. Nessa esteira,
que pelo Legislativo a efetivação se dá pela boa parte da jurisprudência ainda considera que,
criação de leis que pormenorizem os preceitos diante da omissão do Legislativo, não é dado ao
constitucionais, pelo judiciário, a efetivação se o juiz, arvorando-se em legislador, criar o direito
dá caso a caso diante dos fatos levados ao co- novo para caso concreto, sob pena de violar o
nhecimento do juiz. princípio da independência dos poderes. O mes-
Recorrendo ao direito comparado, resgata- mo autor conclui que “a magistratura brasileira
mos julgado do em que o Tribunal Constitucional tem desprezado o desafio de preencher o fosso
Alemão consignou o entendimento de que: “O entre o sistema jurídico vigente e as condições
princípio do Estado social contém uma ordem reais da sociedade, em nome da “segurança
de conformação endereçada ao legislador (cf. jurídica” e de uma visão por vezes ingênua do
BverfGE 50, 57 [108]). Este o obriga a pro- equilíbrio entre os poderes autônomos.8”.
videnciar uma harmonização das contradições Neste sentido, já decidiu o Superior Tri-
sociais (cf. BverfGE 22, 108 [204]). Além disso, bunal de Justiça:
ele determina que o Estado ofereça assistência
“(..) inexiste direito certo se não ema-
social a indivíduos ou grupos que, em razão de
nado da lei ou da constituição. normas
suas circunstâncias pessoais de vida ou des-
meramente programaticas protegem um
vantagens sociais, se encontram impedidos de
alcançar o seu desenvolvimento pessoal ou social interesse geral, mas não conferem aos
(cf. BverfGE 45, 376 [387]). Como o legislador respectivos beneficiarios o poder de exi-
vai realizar essa tarefa é, na ausência de uma gir a sua satisfação antes que o legislador
concretização mais precisa do Estado social, cumpra o dever de complementa-las
[exclusivamente] de sua alçada (cf. BverfGE 1, com a legislação integrativa. no siste-
97 [105]; jurisprudência consolidada). ”
6 ma juridico-constitucional vigente, a
nenhum orgão publico ou autoridade e
Em verdade, ainda que não exista lei que
conferido o poder de realizar despesas
viabilize o gozo imediato desses direitos, é dever
sem a devida previsão orçamentaria.
do Estado através do Executivo ou Judiciário
recurso conhecido e provido e cassada a
procurar, dentro dos seus limites, sanar as omis-
segurança. decisão por maioria.”9
sões do Legislativo, tendo como premissa base o
princípio constitucional da máxima efetividade, Dessa postura jurisprudencial resulta
principio este, que orienta os aplicadores da Lei um grande entrave para a eficácia dos direitos
Maior para que interpretem as suas normas em sociais que, se aplicados com os mesmos mé-
ordem a otimizar-lhes a eficácia, sem alterar o todos utilizados para a interpretação dos direitos
seu conteúdo. individuais, - de origem manifestamente liberal -
Contudo, vale lembrar a advertência feita terão a sua aplicabilidade seriamente restringida.
por José Eduardo Faria de que o entendimento Com efeito, a estrutura liberal do Estado não é
que ainda hoje prevalece é que “sem a devida o ambiente mais adequado para que floresçam
regulamentação” por meio de uma lei comple- os direitos sociais10. Porquanto é fundamental
mentar, esses direitos e essas prerrogativas têm para a efetividade dos direitos sociais que o ju-
vigência formal, mas são materialmente inefi- diciário se desprenda das amarras do liberalismo
cazes7”, uma vez que não são capazes de gerar clássico, onde o juiz fora completamente alheio
5
Constituição e Democracia, Estudos em Homenagem ao Professor J.J. Gomes Canotilho, editora Malheiros, A Administração da justiça e o Estado
Social, São Paulo, 1ºedição, 2006, p. 390.
6
Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, Coletânea original: Jügen Schwabe, Organização e introdução:
Leonardo Martins, publicação: Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., 2005, Montevideo, Uruguay, p. 835.
7
Faria, José Eduardo Faria, Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, editora Malheiros, 1ºedição, São Paulo, 2005., p 99.
8
Nas palavras de José Reinaldo de Lima Lopes “basta dizer que os novos direitos sociais só podem ser adequadamente compreendidos a partir de
uma perspectiva social e pública, não individual e nem mesmo corporativista” José Eduardo Faria, ob., p. 111.
9
Pesp 57614 / RS
10
Pablo Verdú. Ob. Cit., p.59.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 39-43, junho/2009 41


BUENO, E. T.

às questões sociais. Urge, neste momento, uma Ressalte-se, ainda, que no Estado De-
mudança radical na postura adotada pelo Poder mocrático de Direito o dever de proteção do
Judiciário em prol da prevalência do Estado ordenamento jurídico cabe a todos indistinta-
Social Democrático de Direito instituído com o mente, sobretudo num país onde vige, ao lado
advento da Constituição Federal de 1988. Não do concentrado, o controle difuso de constitucio-
sem razão, o professor Juraci Mourão Lopes nalidade das leis, cabe precipuamente ao Poder
Filho afirma11 que a inadequação da postura Judiciário a proteção diuturna da Constituição
processual do juiz à Constituição é a mais danosa Federal. Canotilho aduz que: “o juiz participa
ofensa e a mais degradante incongruência que na política porque desempenha um papel consi-
pode se dar dentro de um sistema jurídico, pois derado adequado para assumir a cumplicidade
representa um velado e constante flagelo à norma de partilhar os valores e interesses dos grupos e
constitucional. É preciso haver uma consciência indivíduos que, perante ele, revindicam direitos
institucional e de cada membro isoladamente e posições prestacionais negados ou bloqueados
quanto ao seu papel na sociedade e no Estado. pelos decisores políticos-representativos13”
Muitas vezes, ideologias reinantes por força do Destarte, no Estado Democrático de Di-
labor de forças sociais que não comungam das reito, cumpre ao Estado-Juiz impor obrigações
mesmas aspirações da Constituição obnubilam a de fazer ao Estado-Administração quando este
visão do órgão de justiça sobre sua própria figura, omitir-se em cumprir os seus deveres constitu-
frutificando um desalinhamento entre Judiciário, cionais. Em casos análogos, o juiz não estará
Constituição e sociedade. indo além de suas funções jurisdicionais, mas
No entanto, essa mudança de visão não tão somente levando a efeito o seu mister cons-
ocorre sem obstáculos, sobretudo porque a titucional, aplicando o direito ao caso concre-
Constituição de 1988 é uma Constituição plural to14. Fábio Konder Comparato aduz, de forma
que defende valores às vezes antagônicos. A brilhante, que: “é incabível alegar que, em tais
professora Fayga Silveira Bedê, pondera que situações, Judiciário nada tem a fazer, pois os
“esse antagonismo estrutural que se verifica no direitos sociais só se concretizam mediante a
bojo da Constituição é também fruto da própria implementação de políticas públicas, que entram
evolução que vem sendo perpetrada a partir da na competência exclusiva do Poder Executivo.
superação do velho paradigma liberal em prol A alegação é descabida, porque o que o titular
de um projeto superior, de caráter humanizante, do direito social violado pede ao juiz, não é
emancipatório e dignificante da pessoa humana, obviamente a implementação de um programa
que é o Estado Social do bem-estar preconização de ação governamental, mas sim a satisfação
pela Constituição Federal de 1988. É bom que se de um interesse próprio da parte, fundado em
diga que neste mote não há qualquer contradição. direito fundamental. E isto o Judiciário não pode
Com efeito, o simples reconhecimento de que o se recusar a dar ao jurisdicionado, sob pena de
modelo econômico adotado traduz certo grau denegação de justiça15.
de hibridismo, resultado direto de sua natureza Felizmente já temos sinais, embora tími-
compromissária, não desautoriza a inferência de dos, de uma mudança na postura jurisprudencial.
que a Constituição Federal de 1988 assumiu, em O Ministro Celso Melo reconheceu que, se por
suas linhas gerais, uma postura ideológica defina, um lado não é atribuição do Poder Judiciário
que guarda consonância com o Estado Social – a formulação e a implementação de políticas
ao qual deve subsumir o Estado de Direito12”. públicas, “tal incumbência, no entanto, embora
11
Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, editora Malheiros, 1º edição, São Paulo, 2005., p.367.
12
Limite do Imponderável ou Direitos Sociais como Limites ao Poder Reformador, Ob. cit., p. 111.
13
Canotilho, José Joaquim Gomes, Estudos Sobre os Direitos Fundamentais, ed. Revista dos Tribunais, 1º edição brasileira, 2º edição portuguesa,
São Paulo, 2008, Ob., cit.,p. 268.
14
Já asseverou José Afonso da Silva: (..) “as normas programáticas condicionam a atividade discricionária da Administração, bem como a atividade
jurisdicional“. Eficácia das Normas Constitucionais. P. 175.
15
Fábio Konder Comparato, O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São Paulo,
ed. Método., , cit., p. 25.

42 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 39-43, junho/2009


EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao ainda que derivados de cláusulas revestidas de


Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais conteúdo programático.16”
competentes, por descumprirem os encargos Vale, por fim, relembrar a máxima exarada
político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem por Luiz Roberto Barroso: o Direito existe para
a comprometer, com tal comportamento, a efi- realizar-se. O Direito Constitucional - leia-se
cácia e a integridade de direitos individuais e/ou social - não foge a este designo17.
coletivos impregnados de estatura constitucional,

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°45.


16

Luiz Roberto Barroso, O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, 8ºedição, ed. Renovar., p. 84.
17

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 39-43, junho/2009 43


44 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA


DITADURA BRASILEIRA

Gabriela Freire Kühl de Godoy* RESUMO: O objetivo do presente artigo é trazer


uma reflexão jurídica a respeito da Ditadura no
Brasil, tendo como base o caso Herzog, em que
o juiz Márcio Moraes demonstrou de maneira
exemplar como os magistrados podem aplicar
efetivamente o Direito mesmo em uma conjun-
tura política em que este permanece ignorado. A
sentença trouxe à tona institutos jurídicos como
o da responsabilidade objetiva do Estado, que
continuava vigente à época, sendo sua utilização
plenamente cabível. A partir disso, uma breve
análise baseada no Direito Constitucional e no
Direito Penal leva à conclusão de que à época os
crimes de tortura, assassinato e crimes sexuais
cometidos eram completamente reprováveis e
puníveis do ponto de vista jurídico, mesmo na
vigência dos Atos Institucionais, e de que a in-
terpretação dada à Lei de Anistia é extremamente
questionável. Por fim, ressalta-se a importância
da sociedade e dos juristas no processo no con-
cernente à justiça de transição, permitindo o
conhecimento da verdade e o reconhecimento
dos erros para evitar que marcas tão vergonhosas
e perenes como as da Ditadura voltem a macular
a história do Brasil.
Palavras-chave: Ditadura; Herzog; Brasil; Di-
reito; juristas; Lei de Anistia; verdade.

ABSTRACT: The aim of the present article is


to bring a legal reflection regarding the Dictator-
ship in Brazil, having as base the Herzog case,
where the judge Márcio Moraes demonstrated
laudably how the magistrates can effectively

*Estudante de Direito da PUCSP

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 45-53, junho/2009 45


GODOY, G. F. K.

apply the Law in a politics outlook where it foram nomeados diretamente pelo Presidente da
remains ignored. The verdict brought to light República, depois de escolhidos pelo Ministro
legal means as the state’s strict liability, which da Justiça do governo militar, o que demonstra
were still effective at that time, being its use a preocupação do governo da época em que as
completely possible. decisões lhes fossem favoráveis. Apenas por
From that point, one brief analysis based volta de 1973 passaram a ocorrer novamente
on the Constitutional law and the Criminal law concursos para juízes federais.
leads to the conclusion that, back to that days, Nesse contexto, em 25 de outubro de 1978,
crimes such as torture, murder and sexual crimes quando se completavam exatos três anos da mor-
were completely reprehensible and punishable te do jornalista Vladimir Herzog, o juiz Márcio
from the legal point of view, even under the José de Moraes assinou uma sentença única na
effectiveness of the Institutional Acts, and that vida política do país, evidenciando a possibili-
the interpretation given to the Amnesty Law is dade de independência do Poder Judiciário e o
extremely doubtful. Finally, it is highlighted dever que este tem de aplicar o Direito, inclusive
the importance of the society and the jurists in para fazer com que a Administração Pública res-
the process concerning the transition justice, ponda pelos seus atos. Aliás, é essa justamente a
allowing the knowledge of the truth and the função de tripartição dos poderes proposta por
recognition of the mistakes in order to prevent Montesquieu, qual seja, a de que, por meio de
that such shameful and everlasting marks as of um sistema de freios e contrapesos, haja harmo-
the Dictatorship would come back to stain the nia entre Executivo, Legislativo e Judiciário de
history of Brazil. maneira que nenhum dos Poderes ultrapasse a
Keywords: Dictatorship; Herzog; Brazil; Law; sua representatividade pública e usurpe o Poder
jurists; Amnesty Law; truth. na defesa de interesses particulares.
Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi
preso e veio a falecer no mesmo dia nas depen-
1) A função Poder Judiciário, como dências do DOI CODI (Destacamento de Opera-
Poder Independente, no processo ções de Informações do Centro de Operações de
de abertura política Defesa Interna- órgão encarregado de investigar
e obter confissões dos pretensos envolvidos no
O presente artigo objetiva ressaltar a im-
processo de dissidência política).
portância dos juristas, e, sobretudo do Direito,
no contexto político do período de transição O jornalista em tela foi procurado pelo DOI
marcado pelo fim da ditadura e a volta do re- CODI e comprometeu-se, para não ser preso
gime democrático. Dessa forma, se buscará instantaneamente, a comparecer no dia seguinte
demonstrar que exercer uma carreira jurídica não às dependências do referido órgão. Em razão
significa uma aplicação meramente mecanicista disso, na época, o governo insistiu na tese de
de normas jurídicas. Um verdadeiro jurista deve que Herzog teria se apresentado voluntariamente
estar apto a fazer interpretações sistemáticas e ao DOI CODI e ali teria se suicidado. A versão
principiológicas das normas, sob pena de tra- apresentada era totalmente absurda e não con-
zer conseqüências extremamente deletérias à seguiu ludibriar os mais próximos do falecido,
sociedade. ou mesmo a população.
O caso do jornalista Vladimir Herzog foi Ficou de tal maneira evidente que o jor-
emblemático no que se refere à missão do Poder nalista fora exterminado pelo dentro de um
Judiciário no contexto político, merecendo, por órgão governamental que o caso gerou grande
isso, abordagem mais detalhada. Primeiramente, divulgação e comoção popular. Uma semana
oportuno lembrar que em 1965, um ano após o após a morte de Herzog oito mil pessoas se
golpe militar de 1964, por meio do Ato Institu- concentraram na catedral da Sé em São Paulo
cional nº 2 os Juízes Federais de Primeiro Grau para um ato ecumênico, manifestação essa fun-

46 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.45-53, junho/2009


UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

damental à época, caracterizando a iminência da na hipótese de ser acatada a tese (inverídica)


ruptura de anos de silêncio da população, numa da União de que o jornalista teria se suicidado.
demonstração pública de desaprovação popular Os agentes do DOI CODI deixaram no local
aos desmandos do governo militar. ferramentas (o cinto que estaria no macacão de
Feitas essas breves considerações fáticas, Herzog era totalmente desnecessário para aquele
interessante analisar os argumentos utilizados tipo de vestimenta e não constava no s uniformes
pelo juiz Márcio Moraes que, brilhantemente, dos outros detentos) para que isso ocorresse e,
em sentença em que figuravam como autores a ademais, não teriam evitado a tragédia, que não
esposa e os filhos de Herzog, não somente de- pode ser considerada caso fortuito nem força
clarou a responsabilidade da União pela morte maior.
do jornalista, como também mandou instaurar Apesar desses fatos por si só já serem aptos
inquérito policial para que se apurasse a res- a responsabilizar a União, a ampla instrução
ponsabilidade dos torturadores, o que não foi probatória também demonstrava que não havia
feito até hoje. ocorrido suicídio. Primeiramente, o exame de
Para caracterizar a responsabilidade da corpo de delito que alegava o suicídio havia ocor-
União o juiz em tela ressaltou que os princípios rido, trazia erros grosseiros (como por exemplo,
da Constituição Federal de 1967 ainda estavam alegava, com a intenção de defender a tese do
vigentes, apesar dos atos institucionais que res- suicídio, que no pescoço de Herzog havia dois
tringiam sobremaneira a liberdade das pessoas. sulcos, quando na verdade havia apenas um), foi
Dessa maneira, permanecia em vigor o feito por apenas um perito (apesar de assinado
disposto no artigo 37, inciso XXII, parágrafo por dois), o que na época não era permitido, o
sexto da Constituição Federal de 1967, o qual que ensejou que o Juiz da causa, Dr. Márcio
dispunha expressamente que: Moraes anulasse o laudo produzido. Desta feita,
foi possível que o caso fosse decidido com base
“as pessoas jurídicas de Direito Público em prova testemunhal, que era ampla no sentido
e as de Direito Privado prestadoras de de que o jornalista não poderia ter se suicidado,
serviços públicos responderão pelos uma vez que a maioria das testemunhas em favor
danos que seus agentes, nessa qualida- da União não depuseram na fase judicial.
de, causarem a terceiros, assegurado o
Dessa forma, com base na legislação vi-
direito de regresso nos casos de dolo
gente na época, o juiz Márcio Moraes declarou
ou culpa”.
que Vladimir Herzog estava preso ilegalmente
Assim, o fato de se estar sob o manto de um no DOI CODI e que a União era responsável
governo ditatorial à época da morte do jornalista pela morte do jornalista, criando sem dúvida
não afastava a responsabilidade objetiva do Esta- uma esperança na população de que sua sen-
do. Ou seja: para a caracterização da União como tença refletisse de maneira positiva em outros
responsável juridicamente pela morte de alguém casos análogos e na investigação de pessoas
no interior de um órgão governamental bastava desaparecidas.
que houvesse um nexo de causalidade entre o
dano, qual seja, a morte e a presença do jornalista
no local, sendo prescindível a prova de culpa,
2) Reflexões a partir do caso
negligência ou imprudência dos agentes estatais. Herzog: por que, apesar da
Contudo, pela teoria do risco administrativo, se sentença do juiz Marcio Moraes ter
ficasse comprovado a ocorrência do suicídio e determinado que os autos fossem
que este não tinha relação alguma com o Estado encaminhados para o juízo criminal
a responsabilidade deste estaria elidida. a fim de que fossem tomadas
Portanto, existente o nexo de causalidade, as providências cabíveis não foi
há que se reconhecer a responsabilidade mesmo realizada nenhuma investigação ?

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 45-53, junho/2009 47


GODOY, G. F. K.

Neste artigo, essa pergunta busca apenas ideologias contrárias às tradições de


um processo reflexivo, não se tem a pretensão nosso povo, na luta contra a corrup-
de esclarecer os motivos pelos quais não foram ção, buscando, deste modo,” os meios
adiante as investigações não somente do caso indispensáveis à obra de reconstrução
Herzog como dos demais outros casos, trazendo econômica, financeira, política e moral
como consequência a ausência de punição dos do Brasil, de maneira a poder enfrentar,
torturadores e criminosos à época. Busca-se tão de modo direito e imediato, os graves
somente demonstrar que não havia impedimento e urgentes problemas de que depende
jurídico para tal, pelo contrário. a restauração da ordem interna e do
Inicialmente, oportuna a transcrição de prestígio internacional da nossa pátria
parte do preâmbulo do AI5, ato Institucional que “(Preâmbulo do Ato Institucional nº 1,
entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, de 9 de abril de 1964);(grifo nosso)”.
reforçando os poderes discricionários do regime Logo no início do AI5 são utilizados termos
militar e restringindo sobremaneira a liberdade como “autêntica ordem democrática”, “liberda-
dos cidadãos: de” e respeito à “dignidade da pessoa humana”,
“CONSIDERANDO que a Revolução demonstrando a preocupação do governo em
brasileira de 31 de março de 1964 mascarar que se tratava de um regime autoritário,
teve, conforme decorre dos Atos com de instituir atos totalmente ditatoriais mantendo
os quais se institucionalizou, funda- a aparência democrática.
mentos e propósitos que visavam a dar De qualquer forma, fato é que nos dispo-
ao País um regime que, atendendo às sitivos seguintes1 foram estabelecidas diversas
exigências de um sistema jurídico e supressões aos direitos dos cidadãos, totalmente
político, assegurasse autêntica ordem contrárias à ordem democrática, tais como a
democrática, baseada na liberdade, conferência ao Poder Executivo de competência
no respeito à dignidade da pessoa legislativa, a proibição de atividades ou mani-
humana, no combate à subversão e às festações de natureza política e a suspensão de
1
ATO INSTITUCIONAL número 5:
Art 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institcional.(g.n).
Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores,
por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições
previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.
§ 2º - Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais e os Vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios.
§ 3º - Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuam Tribunal de Contas,
será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais
responsáveis por bens e valores públicos.
Art 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na
Constituição.
Parágrafo único - Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atri-
buições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.
Art 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas
na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais
e municipais.
Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos,
determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.
Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado,
§ 1º - o ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros
direitos públicos ou privados.
§ 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu
ato pelo Poder Judiciário.

48 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.45-53, junho/2009


UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

“habeas corpus” nos casos de crimes políticos, do Poder Estatal, uma vez que este, diferente-
contra a ordem nacional, a ordem econômica e mente dos particulares, só pode fazer o que a
social e a economia popular. lei permite).
Desta feita, resta claro que os atos insti- Logo, há uma necessidade de desfazer
tucionais, cujo mais autoritário foi o AI5, insti- a ideia de que as atrocidades cometidas pelos
tuíram uma série de limitações aos direitos e à agentes do governo durante o regime militar,
liberdade que os cidadãos tem em uma ordem de- pelo simples fato de estarem supostamente sob
mocrática. Contudo, a Constituição de 1967 não a anuência estatal, seriam atos legais.
foi totalmente revogada pelos atos institucionais, Nesse sentido, não há dúvidas de que todos
de maneira que plenamente possível a invocação os interrogatórios realizados por meio de tortura
de dispositivos da referida Carta Magna que não e crimes sexuais, assim como os homicídios
contrastassem com os posteriores, tais como o § oriundos desses meios inquisitivos, foram ile-
11 do artigo 150 : gais, mesmo na hipótese de se considerar que
tais condutas tenham sido eventualmente reali-
“ § 11 - Não haverá pena de morte, de
zadas a mando estatal, haja vista que não havia
prisão perpétua, de banimento, ou con-
previsão constitucional autorizando as condutas
fisco, salvo nos casos de guerra externa
supramencionadas.
psicológica adversa, ou revolucionária
ou subversiva nos termos que a lei de- Mesmo que assim não fosse, ou seja, su-
terminar. Esta disporá também, sobre o pondo para efeitos meramente argumentativos
perdimento de bens por danos causados que algum Ato Institucional tivesse previsto
ao Erário, ou no caso de enriquecimento expressamente a permissão de todo e qualquer
ilícito no exercício de cargo, função ou tipo de tortura, de tratamento cruel ou degradan-
emprego na Administração Pública, te, ainda assim, poder-se-ia sustentar, embora
nesse caso mais arduamente que no anterior, a
Direta ou Indireta.”
ilegalidade de tais condutas.
Portanto, como não havia nenhum dis- Isso porque precede à análise da legalidade
positivo expresso autorizando o assassinato, a a questão da legitimidade. O fato de os militares
tortura ou a práticas de crimes sexuais contra terem utilizado seu material bélico e poder de
os prisioneiros, mesmo que acusados de crimes influência, sobretudo pela manipulação da mídia,
políticos, claramente prevaleciam as disposi- para realizar o que foi por eles denominado de
ções do ordenamento jurídico anterior aos Atos revolução e por muitos chamado de golpe teria
Institucionais (sobretudo em relação aos limites o condão de lhe conferir a imputação de Poder

Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em
funções por prazo certo.
§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias
referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva
ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de
serviço.
§ 2º - O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
Art 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o
respectivo prazo.
Art 8º - O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no
exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais
cabíveis.
Parágrafo único - Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição.
Art 9º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário
à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e do § 2º do art. 152 da Constituição.
Art 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus , nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a
economia popular.
Art 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares,
bem como os respectivos efeitos.
Art 12 - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 45-53, junho/2009 49


GODOY, G. F. K.

Constituinte Originário? Para aqueles que enten- aos torturados, posição em sentindo diverso é
derem ser a resposta negativa, nenhuma previ- plenamente defensável, inclusive por uma in-
são dos Atos Institucionais pode ser tida como terpretação simplesmente gramatical da lei de
legítima, haja vista que não foram seguidos os anistia, in verbis :
requisitos formais e materiais para o exercício Art. 1º É concedida anistia a todos
do Poder Constituinte Reformador. quantos, no período compreendido
Isto posto, elidem-se os argumentos de que entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
haveria impossibilidade de responsabilização dos agosto de 1979, cometeram crimes
agentes que cometeram torturas e homicídios políticos ou conexo com estes, crimes
durante a ditadura com a justificativa de que eleitorais, aos que tiveram seus direitos
tais atos estariam sob o manto da legalidade na políticos suspensos e aos servidores da
época, poderiam até estar sob o manto da gover- Administração Direta e Indireta, de
nabilidade, mas não da legalidade. fundações vinculadas ao poder público,
A hipótese de o próprio Estado ter acober- aos Servidores dos Poderes Legislativo e
tado, aprovado e até ordenado o cometimento Judiciário, aos Militares e aos dirigen-
de atos totalmente desumanos para defender tes e representantes sindicais, punidos
interesses políticos de maneira alguma poderia com fundamento em Atos Institucionais
sanar o vício da ilegalidade. O que poderia o e Complementares (vetado).
ocorrer, no máximo, é que o inferior alegasse
obediência hierárquica para não ser punido, na § 1º Consideram-se conexos, para
remota possibilidade de se considerar crível que efeito deste artigo, os crimes de qual-
os crimes cometidos na ditadura não fossem tidos quer natureza relacionados com crimes
como manifestamente ilegais. políticos ou praticados por motivação
política.
Contudo, os dirigentes do sistema de
justiça (Ministério Público e Poder Judiciário), Assim, a lei de Anistia estabelece anistia
mesmo entendendo serem ilegais todos os atos para os crimes políticos e para os crimes cone-
criminosos cometidos sob a égide da ditadura, xos2 aos políticos, ou seja, aqueles que tenham
não deram seguimento os processos com fulcro sido cometidos, basicamente, para facilitar ou
na Lei de Anistia, que, segundo a interpretação ocultar crimes políticos. Nesse sentido, plena-
da grande maioria dos doutrinadores e políticos mente defensável que os crimes de tortura e
seria recíproca, ou seja, tanto para aqueles que homicídio cometidos pelos agentes estatais não
torturaram e mataram quanto para os que foram seriam crimes conexos, haja vista não se subsu-
torturados e mortos em razão de uma ideologia mirem ao conceito de conexão nem poderem ser
política. considerados crimes praticados por motivação
política pelo simples fato de as vítimas serem
os dissidentes políticos à época, pois deve ser
3) Anistia no Estado Democrático analisada a conduta em si e não o sujeito passivo.
brasileiro O fato de as vítimas serem pessoas acusadas de
supostos crimes considerados políticos na época
Há que se considerar que, apesar de o da ditadura militar não pode conferir à tortura, ao
conceito de anistia ter se propagado como recí- homicídio e aos crimes sexuais a característica
proco e abrangente tanto aos torturadores quanto de crime político ou conexo a este.

2
Art.99 do Código Penal:
a) se, ocorridas duas ou mais infrações, tiverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ou por várias pessoas em concurso,
embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
b) se, no mesmo caso, umas infrações tiverem sido praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em
relação a qualquer delas;
c) quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

50 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.45-53, junho/2009


UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

Ademais, a concessão de Anistia pelo Es- 4) Atuação dos agentes sociais


tado aos agentes estatais que cometeram crime e dos profissionais de direito na
na época do regime militar pode ser considerada implementação dos mecanismos de
“auto-anistia” ou seja, o ato de alguém conceder justiça de transição
anistia a si mesmo, o que seria uma incongruên-
cia não apenas do ponto de vista jurídico, mas Em breve síntese, justiça de transição são
também do ponto de vista lógico. as medidas adotadas pelo país no período em que
Embora na época fosse plenamente possí- este passa de um regime jurídico para ditatorial
para um Estado Democrático, são os mecanismos
vel, juridicamente falando, a punição dos agen-
utilizados para lidar com a violência e restrições
tes estatais que cometeram tortura, atualmente
de um regime autoritário passado, em suma e
muitos dos crimes já estão prescritos. Dessa simplificadamente é maneira de enfrentar, em
maneira, sucumbiu a pretensão punitiva estatal, um regime democrático, as consequências de um
uma vez que não se pode excepcionar o instituto regime jurídico autoritário anterior. Como carac-
da prescrição, em prejuízo do réu, mesmo que a terísticas básicas da justiça de transição estão o
inércia estatal em apurar e punir os crimes tenha direito à punição dos responsáveis, à verdade, à
sido generalizada. justiça e à reparação e à reforma institucional.
Posição contrária a respeito da prescrição Dessa forma, a justiça de transição no Brasil
é defendida com base na universalização dos é classificada como parcial, já que não houve,
Direitos Humanos. Principalmente após o Na- como abordado no item anterior, a punição dos
zismo, período em que os Direitos Humanos responsáveis, e, cosequentemente, não houve
também reforma institucional.
foram ostensivamente violados, ganhou força a
ideia de que a afronta de tais Direitos deve ser No Brasil, no concernente ao direito à me-
vista como um problema universal e não como mória e à verdade, a Comissão Especial sobre
mortos e desaparecidos políticos (CEMDP),
algo que atinge apenas a esfera do país em que
resultante da união de forças entre os familiares
os direitos são violados.
e os militantes de direitos humanos e instituída
Em breve síntese, partindo desses princí- pela Lei nº 9140/95 vem cumprindo papel impor-
pios, alguns doutrinadores defendem a impres- tantíssimo na busca de solução para os casos de
critibilidade dos crimes ocorridos na ditadura desaparecidos durante o período de 1961-1988,
com base no Direito Internacional , que carac- contribuindo de maneira exemplar para a conso-
teriza tais crimes como de lesa humanidade e, lidação da vida democrática brasileira.
considerando-os, portanto, imprescritíveis e No final de 2006 a Comissão encerrou uma
insuscetíveis de anistia. importante etapa de suas atividades, concluindo
Esse posicionamento baseia-se, sobretudo a fase de análise, investigação e julgamento dos
na Convenção Interamericana de Direitos Huma- processos relativos aos 339 casos de mortos e
nos. Embora tal instrumento tenha sido assinado desaparecidos apresentados para sua soberana
decisão, que se somam a outros 136 nomes já
pelo Brasil com a ressalva de que se aplica aos
reconhecidos no próprio Anexo da Lei 9.140,
fatos posteriores a 1988, já se manifestou na
e atualmente vem se concentrando atualmente
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
basicamente : 1) constituição de dados de perfis
no sentido de que a não apuração dos crimes genéticos- Banco de DNA (a partir da coleta de
cometidos durante a ditadura e a consequente sangue dos parentes dos desaparecidos), visando
impunidade de seus agentes ativos têm início a comparação com os restos mortais que ainda
anterior a 1988, mas perdura até os dias atuais, venham a ser localizados, bem como ossadas já
de maneira a constituir por si só uma violação separadas para o exame, graças ao incrível traba-
dos Direitos Humanos que poderá ser analisada lho dos arqueólogos, 2) Sistematizar informações
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. sobre a possível localização de covas clandesti-

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 45-53, junho/2009 51


GODOY, G. F. K.

nas nas grandes cidades e em áreas prováveis de em razão do dano, tanto patrimonial quanto mo-
sepultamento dos militantes, em cumprimento ao ral e as mazelas causadas nas vítimas da ditadura,
Inciso II do artigo 4º da Lei nº 9.140/95, que a tanto profissionalmente quanto psiquicamente
criou : “envidar esforços para a localização dos são realmente vultosas, devendo o magistrado
corpos e de pessoas desaparecidas no caso de fixá-las de acordo com esses danos, sem se inti-
existência de indícios quanto ao local em que midar pelas críticas midiáticas descabidas.
possam estar depositados”.””.
O resgate da memória e da verdade (sendo
que esta pode ser, muitas vezes, reconhecida 5) Conclusão
pelos magistrados em suas sentenças) tem uma
função fundamental na justiça de transição por- A anistia pode até ter tido o efeito, naquele
que de importância inestimável para os familia- determinado momento político, de apagar do
res das vítimas, por uma questão incitamente de mundo jurídico as torturas, os assassinatos e os
dignidade humana, haja vista que o direito de se crimes sexuais cometidos durante o período da
conhecer e, principalmente, reconhecer o que de ditadura, mas não foi capaz de apagar da mente
fato ocorreu com seus familiares desaparecidos das vítimas, de seus familiares e da sociedade
no regime militar e de realizar para as vítimas um esse período da história. Talvez seja essa a maior
sepultamento digno está englobado no conceito falha daqueles que procuraram na anistia um
de “mínimo ético irredutível”, que não se pode sinônimo de esquecimento, esqueceram eles
negar aos cidadãos. próprios que esta é apenas um instituto jurídico
Contudo, não se pode restringir a importân- e não uma substância química.
cia do conhecimento da verdade aos familiares da Como consequencia, as marcas desse
vítima, a sociedade como um todo tem também período não serão e nem devem ser apagadas,
interesse em que os fatos sejam revelados, não até mesmo para que não se repitam as mesmas
somente porque maculam a história da nação atrocidades na história do nosso país. O que a
brasileira, como também porque com a verdade sociedade e os profissionais do Direito podem
há a garantia de não repetição. Nesse sentido, fazer, com máxima eficiência possível, é aplicar
plenamente defensável os recursos da tutela co- anestésicos que amenizem a ferida já formada,
letiva em busca de tais direitos, ampliando o rol que se expressam na justiça de transição-no
dos legitimado para a propositura das ações. conhecimento da verdade e na possibilidade
Quanto ao direito à reparação este deve de reparação, entendida esta no seu sentido
englobar tanto as vítimas que sobreviveram ao estrito (pecuniário), haja vista que a reparação
regime militar quanto os familiares de vítimas lato sensu, efetiva, de todo o mal causado, é
desaparecidas ou reconhecidamente assassina- impossível.
das. No primeiro caso a indenização é calculada Por fim, algo de muito positivo resta da
geralmente levando em conta o piso salarial da memória desses fatos que maculam a história do
categoria do anistiado e fazem uma projeção da Brasil, a aprendizagem. Magistrados, promoto-
evolução profissional que poderia ter alcançado res, juizes, advogados e população não podem
se não tivesse sido prejudicado durante o período aceitar que qualquer forma de desmando se
da ditadura. repita, de maneira que a reconstrução do Estado
O valor da indenização tem sido criticado Democrático de Direito deve ser guiada pela
com frequência na mídia, que vem inclusive apli- não aceitação de qualquer Poder Ilegítimo, não
cando a denominação “bolsa indenização”, mas sendo nunca enfadonho recordar a famosa frase
trata-se da aplicação da justiça comutativa, já de Winston Churchill: “Quem ignora a história
prevista por Aristóteles. A indenização deve ser está fadado a repeti-la”.

52 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.45-53, junho/2009


UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

Curso ministrado na Oboré, Projeto Direito e


Justiça – Módulo História do Direito Contempo-
Bibliografia râneo , que contou com a presença dos seguin-
tes palestrantes: Dr. Walter Uzzo, Dr. Márcio
Ação Declaratória, Processo nº 136/76 Pugliesi, Dr. Márcio Moraes, Dr. Luis Eduardo
Brasil Nunca mais, Prefácio de D. Paulo Eva- Greenhalg, Dr.Cláudio de Cicco.
risto Cardeal Arns, um relato para a história, Direito à Memória e à Verdade, Comissão Es-
37 ª edição, editora vozes, Petrópolis, Rio de pecial sobre Mortos e Desaparecidos, Material
Janeiro, 2009. de Apoio ao Projeto Direito e Justiça, Módulo
FAUSTO, Boris, História do Brasil, 11º edição, “História do Direito Contemporâneo”, 12 de
editora Universidade de São Paulo, 2003. setembro de 2007.

FICO, Carlos, Que história é esta? O Regime Sarmento, Daniel, Direitos Fundamentais e rela-
Militar no Brasil (1964-1985), O golpe militar de ções privadas, 2 ª edição, Editora Lumen Juris,
1964; repressão; o milagre econômico; a Aber- Rio de Janeiro, 2006
tura e o fim do regime, Editora Saraiva, 1999.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 45-53, junho/2009 53


54 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

ACESSO A DOCUMENTAÇÃO
GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E
VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI

Inês Virgínia Prado Soares* RESUMO: O presente texto analisa os artigos


do projeto de lei que regulamenta o acesso às
informações, ainda sem número na Câmara. O
texto analisa os dispositivos que versam acerca
do acesso à documentação governamental, sob
o enfoque da tutela do patrimônio cultural bra-
sileiro, conforme estabelecido no art. 216 § 2°
da Constituição.
Palavras-chave: Ditadura. Acesso à Documen-
tação Governamental. Direito à informação.
Patrimônio cultural

ABSTRACT: The present text analyzes the


articles of the project of law that regulates the
access to the information, still numberless in the
Parliament. The text analyzes the devices that
deal on the access to the governmental documen-
tation, under the approach of the guardianship of
the Brazilian cultural heritage, as established in
article 216 § 2° of the Constitution.
Keywords: Dictatorship. Access to the Gover-
nmental Documentation. Dight to Iformation.
Cultural heritage

1. Do objeto deste texto

O presente texto analisa os artigos que ver-


sam acerca do direito ao acesso à documentação
governamental (art. 216 § 2° da Constituição)

*Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Presidente do Instituto de
Estudos Direito e Cidadania – IEDC e coordenadora da Revista Internacional de Direito e Cidadania-REID (www.iedc.org.br/reid). Pesquisadora
em nível de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 55-61, junho/2009 55


SOARES, I. V. P.

dispostos no projeto de lei encaminhado pelo ação dos grupos formadores da sociedade brasi-
presidente da República em maio de 2009, que leira. No inciso em comento, não há menção a se
visa regulamentar o acesso às informações, ainda a documentação deve estar sistematizada ou de
sem número na Câmara. que modo deve ser feita tal organização, já que
tal detalhamento é matéria infraconstitucional.
Por isso, a proteção dos documentos, sob
2. Noções gerais sobre o art. 216 o enfoque patrimonial, pode se dar de modo in-
§ 2° da Constituição e a Lei de dividual ou em conjunto. Agrupados (de forma
Arquivos organizada), os documentos compõem o patri-
mônio documental brasileiro. Para Marcos Paulo
Um dos objetivos do projeto de lei em de Souza Miranda, o”patrimônio documental é
análise é regulamentar o acesso a informações formado por documentos que constituem acervo
contidas na documentação governamental, a e fonte de comprovação de fatos históricos e
qual, segundo a Constituição, deve ser gerida memoráveis. Materializado sob diversas for-
pelo Poder Público (art. 216 § 2°) nos termos mas e sobre diferentes bases, constitui muitas
da lei. Assim, sobre a gestão e acesso aos docu- vezes o principal acervo dos arquivos públicos e
mentos governamentais de valor cultural, além privados.”1 No mesmo sentido, demonstrando a
das normas, instrumentos e princípios aplicáveis importância do tratamento dos documentos como
aos bens culturais em geral, cabe atentar que a bens ou suportes de bens culturais, na visão de
documentação pública é sempre gerida pelos historiadora, Maria Thétis Nunes diz que :
órgãos do Estado.
“Como o historiador chega aos fatos his-
Na ótica de patrimônio cultural, a primeira tóricos? Por meio de livros, exemplifica-
consequência da inserção da documentação go- dos nas crônicas publicadas, geralmente
vernamental no artigo 216 da Constituição é sua retratos da época em que foram escritas
vinculação aos princípios e instrumentos prote- (para a História do Brasil tiveram gran-
tivos dos bens culturais. Portanto, embora nem de importância não só as legadas por
toda a documentação governamental se enquadre cronistas portugueses, como de outras
na concepção constitucional de bem cultural inte- nacionalidades – franceses, holandeses,
grante do patrimônio cultural brasileiro (indicado alemães, entre outros). Segue-se os
nos incisos do art. 216), sua importância para a jornais e os documentos escritos. Para
efetividade do direito fundamental ao patrimônio a História do Brasil colonial, os docu-
cultural está fixada pela sua previsão do § 2° do mentos escritos têm importância básica,
art. 216. Assim, como suporte de outros bens considerando-se que, aqui, a imprensa
que integram o patrimônio cultural ou mesmo só surgiria em 1808, com a chegada da
como ingrediente que possibilita a formação dos Corte portuguesa fugindo das tropas
valores de referência cultural, a documentação francesas. Daí a grande importância,
governamental se equipara aos bens culturais para nós, dos arquivos.
para aplicação de instrumentos e mecanismos
protetivos, especialmente o inventário. Reúnem-se os fatos para isso. Vai-se
O inciso IV do art. 216 arrola os docu- aos Arquivos, estes sótãos dos fatos.
mentos como categoria dos bens culturais que Aí, basta baixar-nos para os recolher.
pode integrar o patrimônio cultural brasileiro. Cestadas cheias. Pousam-se em cima
A indicação constitucional é de preservação dos da mesa. Faz-se o que fazem as crianças
documentos, públicos ou privados, destinados às quando brincam com ‘cubos’ e trabalha-
manifestações artístico-culturais, quando estes mos para eles... O jogo está acabado, a
forem relevantes para a memória, identidade e história está feita. Assim via os docu-
1
Marcos Paulo S. Miranda, Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro, Del Rey, 2006, p. 67.

56 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.55-61, junho/2009


ACESSO A DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI

mentos, há alguns anos passados, Lucien Os arquivos, públicos ou privados, são


Frebvre, o criador da chamada Escola tratados pela Lei 8.159/91 como instrumentos de
Nova na interpretação da História. Atu- apoio à administração, à cultura, ao desenvolvi-
almente, iria ele encontrar as facilidades mento científico ou, ainda, como elementos de
trazidas pela informática, indispensável prova e informação (para a sociedade ou para o
aos arquivos modernos. próprio Poder Público)4. A lei privilegia a dimen-
são pública dos arquivos e sua potencialidade
O estudioso da História seleciona os como instrumento de formação e informação.
documentos que lhe falam de alguma Assim, nos termos do art. 12 os arquivos priva-
coisa, trabalho hoje facilitado pelos dos podem ser identificados pelo Poder Público
avanços tecnológicos, substituindo a có- como de interesse público e social, desde que
pia manual que tanto o absorvia. (...)”2 sejam fontes relevantes para a história e desen-
A documentação que integra o patrimônio volvimento científico nacional. A natureza de
documental brasileiro serve de elo de ligação bem de interesse público dos arquivos privados
intra e intergeracional, com a função fornecer traz algumas restrições no exercício do direito
elementos para compreensão e interpretação, de propriedade desses bens, como se denota da
pelos historiadores e outros experts, dos fatos leitura dos artigos seguintes:
ocorridos, com objetivo de resguardar a memória “Art. 13. Os arquivos privados identifi-
do povo brasileiro bem como de compreender cados como de interesse público e social
os movimentos culturais, sociais e econômicos não poderão ser alienados com dispersão
que afetaram e afetam os brasileiros. Por isso, ou perda da unidade documental, nem
os documentos reunidos em arquivo não podem transferidos para o exterior.
ser alienados com dispersão ou perda da unidade
Parágrafo único. Na alienação desses
documental, nem transferidos para o exterior,
arquivos o Poder Público exercerá pre-
independente de serem documentos públicos
ferência na aquisição.
ou particulares.
No plano infraconstitucional, coube à Lei Art. 14. O acesso aos documentos de
8.159/91 abordar os aspectos jurídicos mais arquivos privados identificados como
relevantes para a gestão documental no Brasil, de interesse público e social poderá ser
ao instituir a política nacional de arquivos públi- franqueado mediante autorização de seu
cos e privados. Essa Lei fixa o dever do Poder proprietário ou possuidor.
Público de proteger os documentos integrantes Art. 15. Os arquivos privados iden-
dos arquivos, conceitua de modo amplo o que tificados como de interesse público e
são os arquivos públicos (cap. II) e os diferencia social poderão ser depositados a título
dos arquivos privados (cap. III), além de esta- revogável, ou doados a instituições ar-
belecer, como ressalta Celso Lafer, o princípio quivísticas públicas.”
do acesso pleno aos documentos (art. 22)3. Para
a Lei 8.159/91, arquivos são os conjuntos de Por fim, o art. 16 da lei ainda identifica
documentos produzidos e recebidos por órgãos expressamente como de interesse público e so-
públicos, instituições de caráter público e enti- cial os registros civis de arquivos de entidades
dades privadas, em decorrência do exercício de religiosas produzidos anteriormente à vigência
atividades específicas, bem como por pessoa do Código Civil (de 1916). No esteio da lei em
física, qualquer que seja o suporte da informação comento, foi editada a Lei 8.394/91, regula-
ou a natureza dos documentos (art. 2°). mentada pelo Decreto 4.344/2002, que dispõe
2
Maria Thétis Nunes. A importância dos arquivos judiciais para a preservação da memória nacional. Disponível em <www.cjf.gov.br>. Acesso
em 26.08.2008.
3
Celso Lafer, ob. cit., p. 42.
4
Conforme art. 1°da Lei 8.159/91.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 55-61, junho/2009 57


SOARES, I. V. P.

sobre os acervos documentais privados dos queamento da consulta, a todos os interessados,


presidentes da República. No mesmo sentido, de aos arquivos públicos ou privados. Assim, o
conferir natureza de bem de interesse público a conhecimento dos documentos governamentais
bens privados, o art. 1228, § 1°, do atual Código que tenham repercussão direta ou indireta na
Civil prevê que o direito de propriedade deve ser fruição dos bens da vida é direito fundamental
exercido em consonância com suas finalidades vinculado à liberdade de manifestação e fruição
econômicas e sociais, de modo que seja preser- culturais e se vincula ao direito de participação
vado o patrimônio histórico, em conformidade dos cidadãos na vida pública. Como bem atenta
com o estabelecido em lei especial. Celso Lafer, o objetivo da preservação desses
Além de todo o mencionado acerca da Lei documentos é sua transformação em fontes de
8.159/91, cabe repetir que sua edição estabele- informação para o uso da cidadania:
ce para o Poder Público, adstrito ao princípio “A política nacional de arquivos públi-
da legalidade, caminhos a serem seguidos no cos e privados contemplada pela Lei nº
trato dos documentos governamentais, os quais 8.159, de 8/1/91, cuida assim, da preser-
devem, como já dito, não somente ser geridos vação dos documentos com o objetivo
mas também ter sua consulta franqueada ao pú- de transformá-lo em fontes de informa-
blico. O art. 3º da Lei 8.159/91 define a gestão ção para o uso da cidadania, posto que
de documentos o conjunto de procedimentos e relevantes para a qualidade da convi-
operações técnicas à sua produção, tramitação, vência coletiva, para o entendimento
uso, avaliação e arquivamento em fase corrente da sociedade e para o conhecimento da
e intermediária, visando à sua eliminação ou memória nacional. O tema técnico da
recolhimento para guarda permanente. gestão dos arquivos, associado ao tema
A gestão dos bens e documentos integrantes político da informação ex parte populi, é
de um arquivo deve proporcionar o amplo acesso conseqüentemente o que faz da consulta
à comunidade especializada e leiga, cabendo e do acesso a documentos públicos e pri-
ao Poder Público observar a sistematização de vados de interesse geral uma dimensão
forma compreensível e de fácil manuseio, bem importante da prática democrática na
como o acondicionamento adequado dos docu- concepção da Lei nº 8.159.”5
mentos, com a atenção para os critérios que lhes
garantam segurança e evitem qualquer sua dete- No entanto, apesar do lastro normativo
rioração ou perecimento. Nesse sentido, o art. 25 mencionado acima, a efetividade do direito fun-
da Lei 8.159/91 estabelece que a desfiguração ou damental ao acesso à informação pública ainda
destruição de documentos de valor permanente não está totalmente consolidada no país, já que
ou considerados como de interesse público e as práticas regulamentares que não guardam
social são ações sujeitas à responsabilização consonância com a previsão constitucional e
penal, civil e administrativa. infraconstitucional.
A fragilidade do direito ao acesso e à con-
sulta aos documentos governamentais fica evi-
3. Direito ao acesso à informação dente com a manutenção do Decreto 4.553/2002,
de dimensão pública que revogou os Decretos 2.134/97 e 2.910/98,
que regulamentavam a Lei 8.159/91, e, no intuito
No ordenamento jurídico brasileiro há um de regulamentar de modo mais adequado essa
lastro normativo que permite afirmar a existência Lei, estabeleceu prazos extremamente longos
do direito ao acesso à informação de dimensão para acesso a documentos públicos que conte-
pública e que tal direito se concretiza pelo fran- nham informações cujo sigilo seja considerado
5
Celso Lafer. O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público:
o acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 41.

58 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.55-61, junho/2009


ACESSO A DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI

imprescindível. O Decreto n° 4.553/2002 prevê, Esta lei declarou que o “acesso aos do-
inclusive, que os documentos considerados ultra- cumentos públicos classificados no mais alto
secretos podem ficar inacessíveis inicialmente grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo
por 30 anos, sendo este período prorrogável por e prorrogação previstos no § 2° do art. 23 da Lei
uma vez6. Além do mencionado Decreto, foi edi- 8.159/91” (art. 2°, caput). No § 2° do art. 6° da
tada a Lei 11.111/05, que será tratada a seguir. aludida lei fica revelada a afronta ao processo
democrático brasileiro e às bases de transparên-
cia do poder e de visibilidade da gestão pública.
4. A Lei 11.111/05 e o acesso aos Este artigo dispõe verbis: “Antes de expirada
documentos governamentais a prorrogação do prazo de que trata o caput
produzidos na ditadura deste artigo, a autoridade competente para a
Embora os documentos governamentais classificação do documento no mais alto grau
de valor histórico (ou cultural) já estivessem de sigilo poderá provocar, de modo justificado,
abrangidos no inciso IV do art. 216, que os a manifestação da Comissão de Averiguação e
arrola como bens culturais brasileiros, a Cons- Análise de Informações Sigilosas para que avalie
tituição destacou a necessidade de que ampliar se o acesso ao documento ameaçará a soberania,
a tutela para toda documentação governamental, a integridade territorial nacional ou as relações
num entendimento implícito de que o acesso e internacionais do País, caso em que a Comissão
a produção de conhecimento dos documentos poderá manter a permanência da ressalva ao
utilizados ou produzidos pelo Poder Público são acesso do documento pelo tempo que estipular.”
essenciais para a formação e consolidação da Certamente esses dispositivos não guardam
cidadania cultural. Assim, a tutela sob o enfoque sintonia com a Constituição e com os valores do
patrimonial dos documentos governamentais foi regime democrático. Sem prejuízo da ADI 4077,
afirmada pelo § 2° do art. 216, que dispõe que que questiona a constitucionalidade de artigos
“cabem à administração pública, na forma da tanto dessa lei como da Lei 8.159/91, cabe à
lei, a gestão da documentação governamental
sociedade questionar judicialmente e de forma
e as providências para franquear sua consulta a
difusa a impossibilidade de acesso à documen-
quem dela necessitar”.
tação de interesse público, quando legislação for
Além dos dispositivos que versam acer- colocada como obstáculo.
ca dos documentos como bens culturais e da
competência comum dos entes federativos em
protegê-lo, o texto constitucional seguiu o con- 5. As restrições de acesso à
ceito de transparência já positivado como um dos informação do Projeto de Lei
princípios que regem a administração pública7 e
realçou o direito fundamental previsto no art. 5°, 5.1. Alguns aspectos do Projeto de lei
inc. XXXIII, que estabelece: “todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações do seu Em maio de 2009, foi encaminhado projeto
interesse particular, ou do interesse coletivo ou de lei que visa regulamentar o acesso às infor-
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob mações, ainda sem número na Câmara. Porém,
pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas antes de abordar a gestão dos documentos go-
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da vernamentais sob a perspectiva do patrimônio
sociedade e do Estado.” Com a finalidade de cultural, é necessário atentar que a publicidade
regulamentar a parte final do disposto desse é um dos princípios regentes da conduta dos
dispositivo constitucional, foi editada a Lei agentes públicos no exercício de sua função e
11.111/05. traço característico da democracia.
6
Art. 7°, incs. I a IV e § único
7
Art. 37 caput,da Constituição.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 55-61, junho/2009 59


SOARES, I. V. P.

Nesse enfoque, a documentação produzida tem a sua base na consolidação da


no exercício de função pública, com objetivo perspectiva ex parte populi nas”regras
de dar andamento nas tarefas rotineiras ou com do jogo” da governança democrática.”9
a finalidade de atender a interesses públicos,
é uma das importantes bases materiais para a Os dispositivos acerca do acesso à docu-
compreensão da história de um povo, sendo o mentação governamental da forma estabelecida
acesso à informação de dimensão pública um no projeto de lei, deixam clara a dificuldade que
instrumento indispensável para caracterizar um o Estado Democrático de direito brasileiro em
regime republicano de Governo. Para que essa romper com as práticas de segredo e opacidade
base documental seja útil à cidadania é essencial em relação ao trato da coisa pública. Os artigos
que exista transparência e acessibilidade em re- analisados a seguir texto são um retrato com
lação aos documentos governamentais – mesmo cores bem definidas e vivas do nosso legado au-
os mais sensíveis, em lapso temporal que não toritário, tão bem absorvido nas esferas públicas.
comprometa a qualidade da informação a ser
extraída8. 5.2. A Reserva legal e a classificação de
Assim, cabe desde logo fixar o entendi- documentos por uma Comissão
mento de que a publicidade dos documentos
O Capítulo IV do projeto de lei trata “Das
governamentais é regra e o sigilo é exceção,
restrições de acesso à informação”. Dessa ma-
que somente se justifica se for absolutamente
neira, analisaremos os seguintes dispositivos,
imprescindível à segurança da sociedade e do
que transcrevemos verbis:
Estado. Nas palavras de Celso Lafer:
“art. 16. Não poderá ser negado acesso
“A idéia de que público é não só aquilo
à informação necessária à tutela judicial
que é comum a todos – por afetar a todos
ou administrativa de direitos funda-
–, mas igualmente o que é acessível ao
mentais.
conhecimento de todos, em contraposi-
ção ao privado, encarado como aquilo Parágrafo único. As informações ou
que é reservado e pessoal, é, no plano documentos que versem sobre condutas
político, uma idéia ligada à democracia. que impliquem violação dos direitos
Como também aponta Bobbio, uma das humanos, praticada por agentes públicos
importantes acepções da democracia é ou a mando de autoridades públicas,
a do exercício em público do poder co- não poderão ser objeto de restrição de
mum, como tal concebida a obrigação acesso.
dos governantes de tomarem decisões
às claras, permitindo, assim, aos go- art. 18. A informação em poder dos
vernados verem como, onde e por que órgãos e entidades públicas, observado
tais e quais decisões foram tomadas o seu teor e em razão de sua imprescri-
em função do interesse de todos. Neste tibilidade à segurança da sociedade ou
sentido, a dicotomia relevante passa a do Estado, poderá ser classificada como
ser a oposição secreto/público. ultra-secreta, secreta ou reservada.

A razão de ser do público como sendo §1º Os prazos máximos de restrição de


simultaneamente o comum e o visível acesso à informação, conforme a clas-

8 Como destaca Boris Fausto: A distinção entre arquivos públicos e privados, entre o que deve ser guardado ou não, o que deve ser coberto pelo
sigilo, a questão do prazo de abertura da documentação etc., coloca-se de maneira muito peculiar, com relação ao historiador. Não se trata de negar
a necessidade de se estabelecerem prazos, de se conferir um caráter confidencial a certos documentos. Mas os historiador, como é compreensível,
gostaria de que valesse o acesso imediato, sem restrições, pois os limites são inimigos do métier do historiador (Comentário ao texto de Celso
Lafer - O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público: o
acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 51/52).
9 Celso Lafer. O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público:
o acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 34/35.

60 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p.55-61, junho/2009


ACESSO A DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI

sificação prevista no caput vigoram a De acordo com a Constituição, a docu-


partir da data de sua produção e são os mentação governamental deve ser gerida pelo
seguintes: Poder Público, sob a perspectiva da efetividade
dos direitos fundamentais e dos valores estabe-
I – ultra-secreta: vinte e cinco anos;
lecidos como essenciais no Estado Democrático
II – secreta: quinze anos; e de Direito brasileiro. Dessa maneira, os disposi-
tivos do projeto de lei em análise não poderiam
III – reservada: cinco anos. transferir a uma Comissão (indicada pelo Poder
§ 5º Na classificação da informação Executivo) o poder de regulamentar e restringir
em determinado grau de sigilo, deverá o acesso a informações, pois tal proceder atinge
ser utilizado o critério menos restritivo diretamente o conteúdo de diversos direitos
possível, considerados: fundamentais e de princípios constitucionais.
A partir do art. 16 do projeto de lei em
I – a gravidade do risco ou dano à segu-
comento, são colocadas restrições de forma e
rança da sociedade e do Estado; e
conteúdo para acesso às informações. Ao mesmo
II – o prazo máximo de restrição de tempo que o art. 18 estabelece um prazo de 25
acesso ou o evento que defina seu termo anos para documentação ultra-secreta, o art. 30
final. remete a uma Comissão de Reavaliação de Infor-
mações, o poder de decidir sobre o tratamento e
Art. 30. Fica instituída, no âmbito da
a classificação de informações sigilosas. Dentre
Casa Civil da Presidência de República,
as competências dessa Comissão, está a de pror-
a Comissão de Reavaliação de Infor-
rogar o prazo de sigilo de informação, renovadas
mações, composta por Ministros de
vezes (!!!!), nos termos do art. 30, § 1º, inc. III.
Estado ou autoridades com as mesmas
prerrogativas. Os dispositivos desse projeto de lei tam-
bém são inconstitucionais. Por isso, os mesmos
§ 1º A Comissão de Reavaliação de argumentos já utilizados na ADI 4077 (ação
Informações decidirá, no âmbito da proposta pelo Procurador-Geral da República),
administração pública federal, sobre o bem como os expostos nesse texto se enquadram
tratamento e a classificação de informa- na justificação para não admitir que integrem a
ções sigilosas e terá competência para:
nova lei, por afronta à Constituição, ao princí-
III – prorrogar o prazo de sigilo de infor- pio republicano e a diversos outros princípios e
mação classificada como ultra-secreta, valores democráticos.
sempre por prazo determinado, enquan- Vale ainda insistir na impossibilidade
to o seu acesso ou divulgação puder jurídica de que uma Comissão classifique a do-
ocasionar ameaça externa à soberania cumentação governamental, que se caracteriza
nacional ou à integridade do território como essencial para a efetividade do direito à
nacional ou grave risco às relações verdade, de maneira totalmente discricionária.
internacionais do País, observado o Com a indicação de poderes indevidos a uma
prazo previsto no art. 18, §1º, em cada Comissão, há grande chance de que a formação
renovação.
da memória democrática seja prejudicada e que
§ 2º Regulamento disporá sobre a com- a discussão e o conhecimento de fatos históricos
posição, organização e funcionamento relevantes na esfera pública não se apresentem
da Comissão de Reavaliação de In- no tempo devido (especialmente quando esta
formações, observadas as disposições seja composta por documentos produzidos pelos
desta Lei.” órgãos repressores no regime autoritário).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 55-61, junho/2009 61


62 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

A POLUIÇÃO VISUAL:
FORMAS DE ENFRENTAMENTO
PELAS CIDADES

Ivan Carneiro Castanheiro1 RESUMO: A poluição visual gera desarmonia


ou desequilíbrio no meio ambiente artificial
(cidade e paisagem urbana), prejudicando o bem-
estar da população, comprometendo a saúde das
pessoas, através de efeitos psicológicos difíceis
de serem diagnosticados, enquadrando-se no
conceito jurídico de poluição (art. 3º, III, da Lei
n. 6.938/81). São fontes de poluição visual: tor-
res de Estação Rádio-Bases (ERBs) e anúncios
publicitários luminosos, veiculados por meio
de outdoor, totem, backlight, frontlight, painel
digital ou eletrônico, triedro etc....
Palavras-chave: Poluição visual. Estética ur-
bana. Paisagem. Bem-estar. ERBs. Anúncios
publicitários.

ABSTRACT: the visual pollution generates


disharmony or disequilibrium in the artificial
environment (city and urban landscape), harming
well-being of the population, compromising
the health of the people, through psychological
effects difficult to be diagnosed, fitting in the
legal concept of pollution (article 3º, III, of
law n. 6,938/81). Sources of visual pollution
are: towers of Radio-Base Stations (RBSs) and
luminous advertising propagated by billboard,
totem, backlight, frontlight, digital or electronic
panel, trihedron etc….
Keywords: Visual pollution. Urban aesthetic.
Landscape. Well-being. RBS. Advertising.

1
O Autor é 2º Promotor de Justiça de Americana, Mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP e Coordenador da Área de Habitação e Ur-
banismo, do C.A.O. Cível e de Tutela Coletiva, do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 63


CASTANHEIRO, I. C.

lizatória suficiente. Nesse contexto, não há um


controle efetivo sobre publicidades irregulares.
Introdução A Poluição visual é um problema sério.
Entretanto, ela acaba sendo muitas vezes rele-
O culto ao belo é automático na natureza
gada a segundo plano, pois seus efeitos são mais
humana, a qual valoriza a harmonia das formas
psicológicos do que materiais, razão de haver
e da cor dos objetos, bem como suas qualidades
dificuldades em seu diagnóstico e comprovação
plásticas e decorativas. A função estética das
de causalidade na deterioração da qualidade de
paisagens urbanas tem por finalidade criar a
vida das pessoas.
sensação visualmente agradável às pessoas2.
Qualquer intervenção urbana na paisagem das Nosso objetivo é o de demonstrar que a po-
cidades há de ser autorizada pela Administração luição visual enquadra-se no conceito jurídico de
e estar prevista em lei. poluição previsto na Lei 6.938/81 (Lei da Política
Nacional do Meio Ambiente), não se tratando de
A paisagem desempenha importante papel mera degradação de ordem estética, mas também
de interesse público nas áreas social, cultural estendendo seus deletérios efeitos na saúde e
e ambiental (interesse econômico em trabalho na qualidade de vida dos moradores da zona
criativo). Contribui para formação cultural local, urbana, merecendo ser seriamente combatida, a
bem como para o bem-estar da população.3 O exemplo das demais formas de poluição. É nesse
bem-estar das pessoas guarda relação direta com contexto, que o presente trabalho busca, despre-
sua saúde, modo de vida e as circunstâncias do tensiosamente, fazer uma análise conjuntural da
meio em que vive. poluição visual e oferecer sugestões objetivas de
Quando se fala em poluição pensa-se em enfrentamento.
fábricas que jogam resíduos tóxicos nos rios, pul-
verização de agrotóxicos nas plantações, fumaça
produzida por veículos e indústrias, degradando Conceito legal e doutrinário de
a qualidade de vida das pessoas e de animais, poluição visual
quando não as extirpando. Entretanto, essas não
são as únicas formas de poluição e consequências O meio ambiente equilibrado é um direito
danosas à vida. Há problemas de saúde físicos assegurado a todos pela Constituição Federal
e psicológicos provocados por poluição sonora (artigo 225) e um bem fundamental das gera-
e poluição visual. ções atuais e futuras. Os habitantes e visitantes
Poluição visual é a desarmonia ou degra- das cidades são os titulares do direito difuso a
dação visual geradora de desequilíbrio do meio um meio ambiente ecologicamente equilibrado
ambiente artificial (cidade e paisagem urbana).4 (harmonia da paisagem urbana).
Este tipo de poluição é causada pelo próprio ho- Estão entre os principais objetivos do direi-
mem, o qual insere no meio ambiente elementos to ambiental a proteção da saúde e da qualidade
de forma desordenada. de vida. Segundo a Organização Mundial de
As leis federais, estaduais e municipais Saúde, esta é um “completo bem estar físico,
que se dispõem a controlar os meios de poluição mental e social e não apenas a ausência de
não acompanham o crescimento desordenado doenças ou agravos”
das cidades. As legislações, ainda que com seus A Lei Federal 8.080/90 (“Lei Orgânica da
conhecidos defeitos, acabam sendo, em geral, Saúde”), em seu artigo 2º, estabelece que a saúde
descumpridas por falta de infraestrutura fisca- é um direito fundamental do ser humano. O Art.
2
MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <
http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai 2003.
3
Convenção Européia de Paisagem. Elaborada pelo Conselho Europeu, em 13/03/2000. In: MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A
importância da Paisagem. Disponível em < http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003
4
ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini. Aspectos jurídicos da poluição visual. Dissertação (Mestrado em Direito Difusos e Coletivos). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2.004, fl. 7.

64 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

3º prevê que a saúde tem como fatores determi- b) afetem as condições estéticas ou sanitá-
nantes, dentre outros, a alimentação, a moradia, o rias do meio ambiente;
saneamento básico, o trabalho, o meio ambiente,
c) lancem matérias ou energia em desacor-
dizendo respeito à saúde as ações que visem
do com os padrões ambientais estabele-
“garantir às pessoas e à coletividade condições
cidos;” (grifos nossos)
de bem-estar físico, mental e social”.
A paisagem pode ser tida, em determinados A paisagem urbana é conceituada por José
casos, como integrante do patrimônio cultural Afonso da Silva como sendo “a roupagem com
brasileiro, conforme previsto no artigo 216, que as cidades se apresentam a seus habitantes
inciso V, da Carta Magna. Para Álvaro Luiz e visitantes”. Dentre as suas funções, está a de
Valery Mirra “O que se procura preservar em equilibrar a carga neurótica que a vida urbana
uma paisagem, normalmente, é acima de tudo despeja sobre as pessoas que nela vivem, con-
a harmonia entre os diversos elementos que a vivem e sobrevivem.7
compõem e não propriamente cada um desses Para Issao Minami e João Lopes Guimarães
elementos individualmente considerados” 5. Júnior, a poluição visual é resultado de descon-
Quando se fala em paisagem urbana refere- formidades e efeito da deterioração dos espaços
se não somente a conjuntos urbanos e sítios de da cidade pelo acúmulo exagerado de anúncios
valor histórico, paisagístico, arqueológico, já publicitários em determinados locais ou quando
protegidos pelo art. 216 da CF, como patrimônio o campo visual do cidadão se encontra de tal
cultural brasileiro, mas se quer abranger qualquer maneira que a sua percepção dos espaços da
porção da cidade por mais comum e simples que cidade é impedida ou dificultada.8
seja, a qual também compõe o meio ambiente Ocorre a poluição visual a partir do mo-
artificial6 ou construído, como normalmente é mento em que o meio não consegue mais digerir
referido o meio ambiente urbano. os elementos causadores das transformações em
O artigo 3º da Lei nº. 6.938/81 preceitua curso, dissipando as características naturais ori-
que para os fins previstos naquela legislação ginais. “No caso, o meio é a visão, os elementos
deve-se entender por: causadores são as imagens, e as características
iniciais, seriam a capacidade do meio de trans-
“I - meio ambiente, o conjunto de condições,
mitir mensagens”.9
leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, A degradação ambiental ocorrida com a po-
abriga e rege a vida em todas as suas luição visual “é fruto da violação estética de um
formas; padrão paisagístico médio a ser aferido em cada
caso, seja afetando uma paisagem naturalmente
II - degradação da qualidade ambiental, a
bela, ou portadora de outro predicado relevante,
alteração adversa das características do
ou alterando uma paisagem urbana de maneira
meio ambiente;
desarmônica e agressiva”10
III - poluição, a degradação da qualidade Ainda vale menção a Convenção Européia
ambiental resultante de atividades que da Paisagem (European Landscape Convention),
direta ou indiretamente: a qual entrou em vigor no dia 1º de março de
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o 2.004. Foi o primeiro tratado internacional dire-
bem-estar da população; cionado, unicamente, para a proteção, conserva-
5
A Ação Civil Pública e a reparação do dano ao meio ambiente, São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, p. 31-32, 2002.
6
ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 49.
7
Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p. 273-274.
8
A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003
9
VARGAS, Heliana Comim; MENDES, Camila Faccioni. Poluição visual e paisagem urbana: quem lucra com o caos? Disponível em: <http://www.
estadao.com.br/ext/eleicoes/artigos/comin3.htm> Caderno eleições 2000.Acesso 19 out. 2002.
10
MONTEIRO, Manoel Sérgio da Rocha. Paisagem e Poluição Visual. Disponível em http://www.mp.sp.gov.br/caouma/caouma.htm. Acesso em:
08 abr. 2003

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 65


CASTANHEIRO, I. C.

ção, gerenciamento e valorização das paisagens. backligh, frontlight, painel digital ou eletrônico,
O âmbito de sua aplicação é todo o território dos o triedro, fachadas muros e cartazes.
Estados membros, abrangendo espaços naturais, Como explica Bianca M. Bilton Signorini
urbanos, terrestres, aquáticos e marítimos. Tal Antacli14:
Convenção demonstra a preocupação das nações
européias não só com as paisagens excepcio- “No Brasil a palavra outdoor é mais
nais mas com as paisagens da vida cotidiana e comumente conhecida pelo anúncio de
também paisagens degradadas. É um exemplo grandes dimensões, constituído de pai-
por reconhecer a importância da paisagem na nel de 9 (nove) metros de comprimento
qualidade de vida dos homens.11 por 3 (três) de altura no qual são afixa-
dos, através de material especial, 16, 32
Na convenção estão previstas as seguintes
ou 64 folhas (4,40 x 2,90 m; 8,80 x 2,90
bases ou conceituações12:
m; 8,80 x 5,80m) que juntas formam a
a) Reconhecimento jurídico da paisagem mensagem.
como um componente essencial do am-
biente humano, expressão de diversidade ...
do seu patrimônio comum, cultural e O totem é uma estrutura que sustenta o
natural e base sua identidade; logotipo do estabelecimento industrial
b) Estabelecimento de políticas de proteção, e geralmente possui iluminação interna
gestão e ordenamento da paisagem atra- ou externa.
vés da adoção de medidas específicas;
O backlight é um tipo de painel lumino-
c) definição de poluição como sendo: “[...]
so constituído por uma caixa de chapa
degradação ofensiva à visualidade re-
galvanizada, com lona translúcida na
sultante ou de acúmulo de instalações ou
parte frontal, pintada do lado avesso.
equipamento técnico (torres, cartazes de
Confunde-se durante o dia com os ou-
propaganda, anúncios ou qualquer outro
tdoors de papel, mas à noite, ligado auto-
material publicitário) ou da presença de
maticamente por uma célula fotelétrica
plantação de árvores, zona florestal ou
que se acende ao escurecer e iluminado
projetos construtivos inadequados ou mal
por lâmpadas que produzem a sensação
localizados.”
de relevo, parece um gigantesco slide
A expressão sadia qualidade de vida, projetado no espaço.
segundo Liliana Allodi Rossit, engloba duplo
aspecto da tutela ambiental: a qualidade do O frontlight é painel de dimensão variá-
meio ambiente (aspecto imediato) e outro que é vel que conta com lâmpadas que ilumi-
a saúde, o bem-estar e a segurança da população nam a mensagem frontalmente.
(aspecto mediato), que se vêm sintetizando na
expressão qualidade de vida.13 O painel digital ou eletrônico é pratica-
mente um televisor gigante que transmi-
te seqüência de animações e comerciais
Principais fontes de poluição visual controlada por computador.

Podem ser citadas como fontes de poluição O triedro tem dimensão variável e como
visual as mídias conhecidas como outdoor, totem, o próprio nome diz, dispõe de diversos
11
ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 64.
12
ibidem, fls. 71-72.
13
ROSSIT, Liliana Allodi. O Meio Ambiente de Trabalho no Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo: Ed. Ltr, 2001, p. 36, “apud” ANTACLI, Bianca
M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 35.
14
Aspectos jurídicos da poluição visual. Dissertação (Mestrado em Direito Difusos e Coletivos). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2.004, fl. 201-202.

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

triedros em linha. Eles giram ao mesmo no centro e nos bairros mais antigos da
tempo, permitindo a visualização de três cidade.”
mensagens em seqüência.
Ainda merece menção, como fonte de
Além dessas fontes mencionadas, Ignez poluição visual, as denominadas Estações
Conceição Ninni Ramos15 descreve outras fon- Rádio-Base (ERB´s), que devido à proliferação
tes de poluição, tais como: folhetos, folhetins desordenada, fruto do aumento no número de
e folders distribuídos por empresas nos faróis; linhas em decorrência da expansão do sistema
muros eternizados com anúncios de shows e de telefonia móvel, acabam sendo destaques
eventos sobrepostos (apostos em viadutos, pi- negativos na paisagem urbana. A solução seria
lastras e postes); bancas de jornal abarrotadas de o compartilhamento de suas estruturas de uma
publicidade; barracas dos camelôs (exibição de torre, que abrigaria antenas de diversas operado-
faixas e cartazes dos produtos à venda); os “pu- ras de telefonia celular, bem como a denominada
xadinhos”, que já se incorporaram à paisagem mimetização (camuflagem) das estruturas e
das quadras comerciais (bares, restaurantes e antenas das ERB´s.
boates), tomando calçadas e áreas verdes. Tam-
bém se refere aos veículos e engarrafamentos nas
ruas e avenidas da cidade como manifestação de Poluição visual: abrangência,
poluição visual. Sobre o assunto, com maestria, gradatividade, características,
leciona a ilustre autora: causas e consequências
“Há cerca de 10 milhões de anúncios
espalhados pelas ruas de São Paulo, A poluição visual atinge espaços habitados
dos quais, estima-se, somente 100.000 pelo homem, sendo por este produzida. Atinge
sejam cadastrados e 55.000 licenciados. tanto a zona rural como a urbana. Nas áreas
A pé ou de carro, é impossível fugir do urbanas, em geral, esse tipo de poluição acaba
desconforto visual que toma de assalto por comprometer a função social das cidades,
os que transitam na maior cidade da prevista no artigo 182 da Constituição Federal,
América do Sul. O suceder de placas, bem como o bem-estar da população.
painéis, cartazes, cavaletes, faixas, ban- Nas grandes cidades, onde o mercado
ners, infláveis, balões, totens, outdoors, consumidor é maior, mais competitivo e dinâ-
backlights, frontlights, painéis eletrôni- mico, existe uma concentração de anúncios em
cos e painéis televisivos de alta defini- algumas áreas da cidade, com loteamento do
ção, além de causar agressões visuais espaço público pelo próprio Poder Público para
e físicas aos “espectadores”, retiram a
fins publicitários. Em geral essa publicidade é de
possibilidade dos referenciais arquitetô-
baixo preço ou há ausência de cobrança pelo uso
nicos da paisagem urbana, transgridem
da paisagem, sem adequada diferenciação quanto
regras básicas de segurança, aniquilam
à maior ou menor visibilidade do local onde
as feições dos prédios, obstruindo aber-
anúncio publicitário está sendo veiculado.
turas de insolação e ventilação, deixam
a população sem referencial de espaço, Apesar da característica da gradatividade
de estética, de paisagem e de harmonia, no comprometimento da paisagem urbana, de-
dificultando a absorção das informações vido ao paulatino crescimento das cidades e da
úteis e necessárias para o deslocamento. atividade econômica, ela acaba por comprometer
... Mas talvez a consequência mais fu- as presentes e futuras gerações, devendo ser
nesta da poluição visual em São Paulo sempre controlada e, se necessário combatida, a
seja a descaracterização do conjunto fim de se evitar as consequências maléficas, ao
arquitetônico, especialmente observada longo deste trabalho várias vezes mencionadas.
15
Poluição Visual. Disponível em: http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65 . Acesso 8 mai. 2002

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 67


CASTANHEIRO, I. C.

A paisagem urbana harmonizada é um insolação e ventilação; dificuldade de absorção


direito difuso, pois a manutenção de padrões das informações úteis e necessárias para o des-
estéticos no cenário urbano encerra inegável locamento. A publicidade caótica na paisagem
interesse difuso por se relacionar diretamente torna-a indiferenciada e monótona.21
com a qualidade de vida e com o bem-estar da Podem ser definidos como “Fatores de
população16, tratando-se de um valor ambiental,
Estresse de Poluição Visual” a concentração
como ressalta Paulo Affonso Leme Machado.17
excessiva de: mídia exterior (placas, outdoors,
Nesse sentido, a lição de Rodolfo de Ca- letreiros, faixas, backlights, frontlights, painéis
margo Mancuso, afirmando textualmente: “não eletrônicos ou pintados); grafitagens e pichações;
temos dúvida de que há um interesse difuso (=
aglomerações permanentes de pessoas em áreas
esparso pela sociedade como um todo) a que
restritas da cidade (p.ex: zonas de pedestres,
seja preservada a estética urbana”18.
calçadões, aeroportos, estações de metro); re-
Dentre as causas da poluição visual podem cipientes de lixo expostos em lugares públicos;
ser relacionadas19: engarrafamentos de trânsito e vias expressas
a) O Poder Público e sua eterna conivência com deslocamento de automóveis e caminhões
com os interesses das grandes corpora- em alta velocidade; favelas com deficiente or-
ções; ganização urbana e arquitetônica; moradores
b) A ausência de uma legislação adequada; de rua alojados em viadutos e praças públicas;
c) A ausência de fiscalização adequada, alia- postes de fiação aérea (telefonia, iluminação,
do ao “desinteresse” pelo assunto. TV a cabo).22
Quanto às consequências da poluição Dentre as consequências de ordem ad-
visual, ela causa agressões visuais e físicas aos ministrativas ao poluidor da paisagem urbana,
“espectadores”, decorrentes da sobreposição podemos mencionar as seguintes: multa, notifica-
caótica de chamarizes visuais, variando apenas ção para regularização, apreensão ou destruição
as tecnologias empregadas. Existem sobrepostos do material publicitário irregular, suspensão da
à fachada dos edifícios ou dos revestimentos de atividade e cassação do alvará de funcionamento
alumínio letreiros luminosos que se penduram, da empresa
“modernos” painéis luminosos, imensas telas
que despejam imagens em movimento sobre atô-
nitos motoristas à procura do próximo semáforo
Uso normal, tolerabilidade /
fundido entre as luzes do painel”20.
intolerabilidade na poluição visual:
Essas formas de poluição visual retiram
a possibilidade de percepção dos referenciais uso nocivo da propriedade e direito
arquitetônicos da paisagem urbana, com a des- de vizinhança em face da função
caracterização do conjunto arquitetônico, espe- social e limitação da propriedade
cialmente observada no centro e nos bairros mais privada
antigos da cidade. Com isso há transgressão de
regras básicas de segurança; aniquilamento das É certo que a atividade econômica sempre
feições dos prédios; obstrução de aberturas de produz algum nível de poluição. Assim, pode ha-
16
MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/
bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003
17
Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo:Malheiros, 8ª ed. 2.000, p. 110
18
Aspectos Jurídicos da Chamada “Pichação e Sobre a Utilização da Ação Civil Pública para Tutela do Interesse Difuso à Proteção da Estética
Urbana”, RT 679/62.
19
RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai.
2003
20
BAFFI, Mirthes I. S.. Paisagem e Caos. Disponível em <http://www.socioambiental.org/website/parabolicas/edicoes/edicao35/reportag/pg3.html>.
Acesso em: 09 mai. 2003
21
RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai.
2003.
22
ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 121.

68 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

ver aceitabilidade de certo grau poluição visual,


mas ela deve ser controlada e compatibilizada
com o bem-estar das pessoas, de maneira a Legislação aplicável: locais de
ocorrer uma convivência harmônica entre os ha- vedação de anúncios publicitários
bitantes das cidades e os interesses comerciais da que causem poluição visual e suas
classe empresarial de uma maneira geral. Nesse limitações
contexto, somente deve ser repelida a influência
nociva e inconveniente, sob pena de inviabilizar A poluição visual pode ser tutelada tanto
certas atividades econômicas. nas leis sobre proteção ao meio ambiente, pois
A saúde psíquica das pessoas em geral ela é uma forma de degradação e desequilíbrio
guarda alguma relação com a ordenação da paisa- do mesmo, quanto nas leis de ordenação da
gem urbana, reflexo da harmonia ou desarmonia paisagem urbana, uma vez que ela é uma forma
visual. Deve-se buscar amenizar a carga neuróti- de degradação visual da cidade e da paisagem
ca da vida cotidiana23, pois a poluição visual não urbana (meio ambiente artificial). Como ainda se
é somente estética, havendo reflexos, como já se verá mais adiante, essa regulação nada tem a ver
disse, na segurança no trânsito, no bem-estar da com relação de consumo, sendo perfeitamente
população. Portanto, faz-se necessário que se fixe possível que o município legisle a respeito.
padrões técnicos e legais de aceitabilidade. Em- Na Constituição Federal encontramos total
bora seja parte importante das cidades, esta não arrimo para a proteção do meio ambiente urbano,
pode ter como função preponderante o comér- dentre os quais está a paisagem. Há “garantia
cio, devendo-se priorizar o bem-estar dos seus do bem-estar” dos habitantes das cidades como
habitantes e visitantes, mantendo-se a cidade objetivo da política de desenvolvimento urbano
econômica e ambientalmente sustentável. (art. 182, “caput”). O texto constitucional ainda
Conforme anota o Prof. Celso Antônio determina a “preservação, proteção e recu-
Pacheco Fiorillo, o legislador tratou de efetivar a peração do meio ambiente urbano” (art. 180,
vontade do constituinte em relação ao bem-estar inciso III).
dos habitantes, regulando a forma e o conteúdo A competência para fiscalizar o cumpri-
de determinados meios de expressão, como a mento das disposições legais relativas à ordem
publicidade e a pichação, também limitando a paisagística é cumulativa entre os entes federa-
propriedade privada, estabelecendo, no Código dos, nos termos do artigo 23, incisos III e VI, da
Civil de 2.002 (artigo 1.277 a 1.279) certas re- Constituição Federal.
gras de direito de vizinhança, visando evitar que Com Fabiano Pereira dos Santos, ressalta-
algumas práticas constituam óbices à obtenção e se que a poluição visual no Brasil é combatida
desfrute de uma sadia qualidade de vida.24 de forma indireta, isto é, por meio de limitações
Com o objetivo de ordenar a função social e administrativas à publicidade comercial (Código
limitação da propriedade privada, existem regras de Posturas Municipais, regulamentos espe-
quanto a levantamento de fachada, tratamento cíficos sobre publicidade, etc.) e política (Lei
arquitetônico das fachadas dos edifícios, acaba- eleitoral). Essa dispersão de normas dificulta
mento adequado, preservação da harmonia dos determinar se a atividade importa, ou não, em
conjuntos das edificações, dos bens imóveis tom- poluição visual. 26
bados e dos edifícios próximos, estabelecendo-se O referido autor ressalta, com propriedade,
distâncias das construções, possibilidade ou não ser complexa a apuração da responsabilização
de colocação de cartazes ou anúncios, dentre dos agentes produtores de poluição visual, tanto
outros aspectos.25 no âmbito civil, penal ou administrativo, pois

23
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional, 2º ed., São Paulo: Malheiros, p. 12.
24
Op. cit., p. 127.
25
ibidem, p. 127.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 69


CASTANHEIRO, I. C.

“a configuração da poluição visual envolve - artigo 36 – Determina que lei municipal


em grande parte dos casos a avaliação de ele- deverá prever os tipos de empreendimen-
mentos caracterizados por expressivo grau de tos públicos e privados que dependerá
subjetividade, os quais, variam de acordo com de realização de Estudo de Impacto de
as concepções estéticas e costumes locais”.27 Vizinha (EIV);
Nesse contexto, podem ser citadas as se- - artigo 37, inciso VII – Estabelece pa-
guintes normas, relacionadas com atividades de- râmetros para o Estudo de Impacto de
gradadoras da harmonia na paisagem urbana: Vizinha, o qual deverá considerar, dentre
a) Lei 4.717/65 – No artigo 1º, § 1º, há previ- outros aspectos, a paisagem urbana e o
são de defesa do patrimônio artístico, es- patrimônio natural e cultural;
tético, turístico, por meio da ação popular; - artigo 54 – Possibilidade de ajuizamento
b) Lei nº. 7.347/85 – Conhecida como Lei da de ação cautelar, com vista a evitar o
Ação Civil Pública (LACP), ela acresceu dano ao meio ambiente, ao consumidor,
o valor paisagístico como passível de à ordem urbanística ou aos bens e direi-
defesa nesta modalidade de ação coletiva tos de valor artístico, estético, histórico,
(art. 1º, V), também prevendo a defesa da turístico e paisagístico.
ordem urbanística (artigo 1º, inciso III);
No tocante ao aspecto criminal da polui-
c) A Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) traz ção visual, é de se ressaltar entendimento de
diversos dispositivos protetores da paisa- se tratar de delito menor potencial ofensivo.
gem urbana, com vistas a ordenar o pleno
Assim, quando adequadamente demonstrado
desenvolvimento das funções sociais
os fatos criminosos, “o causador desta forma
da cidade. Nesse diapasão, conveniente
de poluição deve receber uma pena mais leve,
descrever algumas diretrizes gerais do
ligada sempre à obrigação de custeio de medida
mencionado estatuto, o que faremos nas
educativa ambiental”.28 Ressalva-se o crime do
linhas seguintes:
artigo 63, da Lei nº 9.605/98, com pena de até 3
- Artigo 2º, inciso VI, “f” – Objetiva evitar anos, superando o conceito de delito de menor
a degradação das áreas urbanizadas; potencial ofensivo.
- Artigo 2º, inciso VI, “g” – Prevê a orde- Algumas condutas envolvendo poluição
nação e controle do uso do solo, visando visual encontram-se tipificadas na Lei dos Cri-
evitar a poluição e degradação ambiental; mes Ambientais. O artigo 65 da Lei nº. 9.605/98
- Artigo 2º, XI – Preceitua a proteção, pre- estipula pena de até 3 (três) meses a 1 (um) ano,
servação e recuperação do meio ambiente e multa para quem pichar, grafitar ou por outro
natural e construído, do patrimônio cul- meio conspurcar edificação ou monumento ur-
tural, histórico, artístico, paisagístico e bano. Seguindo na esteira de proteção da estética
arqueológico; urbana e da sadia qualidade de vida, o artigo 64
- 2º, inciso XIII – Prevê a necessidade de da Lei 9.605/98 criminalizou a conduta de “Pro-
audiência do Poder Público municipal e mover construção em solo não edificável, ou no
da população interessada nos processos seu entorno, assim considerado em razão de seu
de implantação de empreendimentos ou valor paisagístico, ecológico, artístico, turísti-
atividades com efeitos potencialmente co, histórico, cultural, religioso, arqueológico,
negativos sobre o meio ambiente natural etnográfico ou monumental, sem autorização da
ou construído, o conforto ou a segurança autoridade competente ou em desacordo com a
da população; concedida”.

26
Meio Ambiente e poluição. Disponível em < http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em 20 de abr. 2009.
27
Santos, Fabiano Pereira dos. Meio Ambiente e poluição. Disponível em <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 20 abr. 2009
28
Santos, Fabiano Pereira dos. Meio Ambiente e poluição. Disponível em <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 20 abr. 2009

70 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

Também restou penalmente tipificada a al- em que regula as formas de publicidade. Nesse
teração de aspecto ou estrutura de edificação (ar- sentido cabe observar que a publicidade agressiva
tigo 63 da Lei 9.605/98), a pichação/grafitagem não respeita autonomia dos contratantes fracos,
ou conspurcação de edificação ou monumento sendo necessária a valorização da informação e
urbano (artigo 65), exigindo-se, sempre, o dolo. da confiança despertada do consumidor.
Vale anotar que embora se tratem de delitos O Código de Defesa do Consumidor ainda
de menor potencial ofensivo, para a transação e/ traz dispositivos vedando publicidade enganosa
ou suspensão do processo há necessidade de re- e/ou abusiva (artigo 37), determinando que ela
paração do dano (art. 27 e 28 da Lei nº. 9.099/95). deva ser de fácil identificação (artigo 36) e não
Portanto, mesmo a lei de crimes ambientais pode induzir o consumidor a comportar-se de
tem função não apenas preventiva da paisagem maneira prejudicial ou perigosa à sua saúde
urbana, mas também reparadora. ou segurança (artigo 68). Nesse diapasão, vale
O Decreto-Lei 25/37, o qual organiza a lembrar, com Jose Afonso da Silva, que a pu-
proteção do patrimônio estético e artístico na- blicidade, dependendo de suas características
cional, em seu artigo 1º, § 2º, equipara a bens visuais, pode provocar distração nos motoristas
do patrimônio histórico e artístico nacional a (outdoors, faixas, cartazes, fachadas de néon,
serem tombados os monumentos naturais, sítios painéis eletrônicos), com comprometimento da
e paisagens aqueles dotados de feição notável, visualização ou distração em relação ao traçado
pela natureza ou pela indústria humana, os da via ou da sinalização de trânsito. Portanto, há
quais devem ser conservados e protegidos. No possibilidade de proibição de publicidade em de-
artigo 18 é exigida autorização do Serviço do terminados locais, ante suas peculiaridades.29
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para
Nesse mesmo sentido, o Código de Trânsito
colocação de anúncios ou cartazes na vizinhança
Brasileiro (Lei nº. 9.503/98), em seu artigo 81,
da coisa tombada.
proíbe a colocação, em vias públicas ou em imó-
A Lei nº. 9.504/97, a qual dispõe sobre veis, de luzes, publicidade, inscrições, vegetação
as eleições, em seu artigo 37, com o objetivo e mobiliário que possa gerar confusão, interferir
de tutelar a estética urbana durante as eleições, na visibilidade da sinalização, ocasionado com-
preceitua que “Nos bens cujo uso dependa de
prometimento da segurança do trânsito. Tal di-
cessão ou permissão do Poder Público, ou que
ploma legal ainda proíbe fixar sobre sinalização
a ele pertençam, e nos de uso comum, inclusive
de trânsito e respectivos suportes (ou em ambos),
postes de iluminação pública e sinalização de
qualquer tipo de publicidade (artigo 82 do CTB),
tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas
como inscrições, legendas e símbolos que não se
de ônibus e outros equipamentos urbanos, é
relacionem com a mensagem de sinalização.
vedada a veiculação de propaganda de qualquer
natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, O objetivo do código, como bem anota
fixação de placas, estandartes, faixas e asseme- Celso Antônio Pacheco Fiorillo, é limitar a
lhados”. Entretanto, foi permitida a propaganda liberdade em prol da estética visual, visando à
política em bens particulares (artigo 37, § 2º). sadia qualidade de vida.30
O Código Eleitoral, no artigo 243, inciso VIII, A Constituição do Estado de São Paulo
veda a propaganda que prejudique a higiene ou prevê como área de proteção permanente as pai-
estética urbana ou que esteja em desacordo com sagens notáveis (artigo 197, V) e classifica como
posturas municipais ou qualquer outra restrição patrimônio cultural, portadores de referências à
de direitos. identidade, “os conjuntos urbanos e sítios de
A Lei nº. 8.078/90 (Código de Defesa do valor histórico, paisagístico, artístico, arqueo-
Consumidor - CDC) também contém dispositi- lógico, paleontológico, ecológico e científico”
vos relacionados à paisagem urbana, na medida (artigo 260, IV).
29
Direito Urbanístico Brasileiro, p. 182.
30
Op. cit, p. 136.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 71


CASTANHEIRO, I. C.

O artigo 8º, parágrafo único, do Decre- Código de Posturas Municipais e regulamentos


to 13.626/43, do Estado de São Paulo, exige sobre publicidade etc.. No Município de São Pau-
autorização do Departamento de Estradas de lo vigorava a Lei Municipal nº. 12.115/96, pela
Rodagem para colocação de anúncios, esta- qual eram estabelecidas regras para a veiculação
tuindo que: “somente será permitida mediante de anúncios publicitários. Tal norma foi revo-
prévia licença do Departamento de Estradas de gada pela Lei Municipal nº. 14.223, publicada
Rodagem e deverá satisfazer às condições que em 27 de setembro de 2006, a qual disciplina a
forem estabelecidas em regulamento, relativas paisagem urbana na capital e ficou popularmente
à distância, à localização, ao efeito estético, à conhecida como “Lei Cidade Limpa”, a qual é
visibilidade, à perspectiva panorâmica, à segu- mais rigorosa, vendando muitas das formas de
rança da circulação”. publicidade, como adiante se verá.
A Lei Municipal nº. 14.226/06, em seu
artigo 3º, preceitua:
A lei paulistana denominada
“Constituem objetivos da ordenação da
“cidade limpa” e a jurisprudência
paisagem do Município de São Paulo
Na capital paulista, a Lei Orgânica do Mu- o atendimento ao interesse público em
nicípio determina a “preservação, conservação, consonância com os direitos fundamentais
da pessoa humana e as necessidades de
defesa, recuperação e melhoria do meio ambien-
conforto ambiental, com a melhoria da
te”, em conjunto com o Estado e com a União
qualidade de vida urbana, assegurando,
(artigos 148, inciso IV e 180). Também prevê
dentre outros, os seguintes:
que “a política urbana do Município terá por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das I - o bem-estar estético, cultural e ambien-
funções sociais da cidade, propiciar a realização tal da população;
da função social da propriedade e garantir o
II - a segurança das edificações e da
bem-estar de seus habitantes, procurando asse-
população;
gurar a segurança e a proteção do patrimônio
paisagístico arquitetônico e a qualidade estética III - a valorização do ambiente natural e
e referencial da paisagem natural e agregada construído;
pela ação humana” (art. 148, incisos III e V, IV - a segurança, a fluidez e o conforto nos
grifamos). deslocamentos de veículos e pedestres;
A Lei Municipal 13.430/02, que institui o
V - a percepção e a compreensão dos
plano Diretor Estratégico do Município de São
elementos referenciais da paisagem;
Paulo, em seu artigo 8º, inciso V, afirma serem
objetivos gerais, decorrentes dos princípios ado- VI - a preservação da memória cultural;
tados: “garantir a todos os habitantes da Cidade VII - a preservação e a visualização das
acesso a condições seguras de qualidade do ar, características peculiares dos logradou-
da água e de alimentos, química e bacteriolo- ros e das fachadas;
gicamente seguros, de circulação e habitação
em áreas livres de resíduos, de poluição visual VIII - a preservação e a visualização dos
e sonora, de uso dos espaços abertos e verdes”. elementos naturais tomados em seu
No artigo 9º, inciso VI, inclui como objetivo conjunto e em suas peculiaridades
da política urbana “a preservação, proteção e ambientais nativas;
recuperação do meio ambiente e da paisagem ...
urbana”. XI - o equilíbrio de interesses dos diver-
Como já se assinalou neste trabalho, o com- sos agentes atuantes na cidade para a
bate à poluição visual decorrente da publicidade promoção da melhoria da paisagem do
comercial é feita pela via administrativa, como Município.”

72 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

Mais adiante, no artigo 4º, são traçadas as bas, densímetros e similares;


diretrizes dessa novel e destacada legislação,
III - as denominações de prédios e con-
lavradas nos seguintes termos:
domínios;
“Art. 4º. Constituem diretrizes a serem
IV - os que contenham referências que
observadas na colocação dos elementos
indiquem lotação, capacidade e os
que compõem a paisagem urbana:
que recomendem cautela ou indiquem
I - o livre acesso de pessoas e bens à infra- perigo, desde que sem qualquer le-
estrutura urbana; genda, dístico ou desenho de valor
publicitário;
II - a priorização da sinalização de interes-
se público com vistas a não confundir V - os que contenham mensagens obriga-
motoristas na condução de veículos e tórias por legislação federal, estadual
garantir a livre e segura locomoção de ou municipal;
pedestres; VI - os que contenham mensagens indica-
III - o combate à poluição visual, bem tivas de cooperação com o Poder Pú-
como à degradação ambiental; blico Municipal, Estadual ou Federal;
IV - a proteção, preservação e recupera- VII - os que contenham mensagens in-
ção do patrimônio cultural, histórico, dicativas de órgãos da Administração
artístico, paisagístico, de consagração Direta;
popular, bem como do meio ambiente VIII - os que contenham indicação de mo-
natural ou construído da cidade; nitoramento de empresas de segurança
V - a compatibilização das modalidades com área máxima de 0,04m² (quatro
de anúncios com os locais onde possam decímetros quadrados);
ser veiculados, nos termos desta lei; IX - aqueles instalados em áreas de pro-
VI - a implantação de sistema de fiscali- teção ambiental que contenham men-
zação efetivo, ágil, moderno, planejado sagens institucionais com patrocínio
e permanente” ....

No artigo 7º, há uma ampla definição de XI - os “banners” ou pôsteres indicativos


anúncio, que pela sua exemplar importância dos eventos culturais que serão exibi-
para os nossos estudos e papel do município dos na própria edificação, para museu
no combate à poluição visual, permitimo-nos ou teatro, desde que não ultrapassem
transcrevê-la. Ei-la: 10% (dez por cento) da área total de
todas as fachadas;
“Art. 7º. Para os fins desta lei, não são
considerados anúncios: XII - a denominação de hotéis ou a sua
logomarca, quando inseridas ao longo
I - os nomes, símbolos, entalhes, relevos da fachada das edificações onde é exer-
ou logotipos, incorporados à fachada cida a atividade, devendo o projeto ser
por meio de aberturas ou gravados nas aprovado pela Comissão de Proteção à
paredes, sem aplicação ou afixação, Paisagem Urbana - CPPU;
integrantes de projeto aprovado das
edificações; XIII - a identificação das empresas nos
veículos automotores utilizados para
II - os logotipos ou logomarcas de postos a realização de seus serviços.”
de abastecimento e serviços, quando
veiculados nos equipamentos próprios No artigo 8º estão as regras para que um
do mobiliário obrigatório, como bom- anúncio possa ser considerado lícito (as hipó-

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 73


CASTANHEIRO, I. C.

teses autorizadas estão no artigo 13), que pelas IX - não prejudicar a visualização de bens
mesmas razões do parágrafo anterior a seguir de valor cultural.”
são descritas:
Quanto às vedações de anúncios, as regras
“Art. 8º. Todo anúncio deverá observar, são as seguintes:
dentre outras, as seguintes normas:
“Art. 9º. É proibida a instalação de anún-
I - oferecer condições de segurança ao cios em:
público;
I - leitos dos rios e cursos d’água, reser-
II - ser mantido em bom estado de con- vatórios, lagos e represas, conforme
servação, no que tange a estabilidade, legislação específica;
resistência dos materiais e aspecto
II - vias, parques, praças e outros logra-
visual;
douros públicos, salvo os anúncios de
III - receber tratamento final adequado em cooperação entre o Poder Público e a
todas as suas superfícies, inclusive na iniciativa privada, a serem definidos
sua estrutura; por legislação específica, bem como
IV - atender as normas técnicas pertinen- as placas e unidades identificadoras
tes à segurança e estabilidade de seus definidas no § 6º do art. 22 desta lei;
elementos; III - imóveis situados nas zonas de uso
V - atender as normas técnicas emitidas estritamente residenciais, salvo os
pela Associação Brasileira de Normas anúncios indicativos nos imóveis regu-
Técnicas - ABNT, pertinentes às dis- lares e que já possuíam a devida licença
tâncias das redes de distribuição de de funcionamento anteriormente à Lei
energia elétrica, ou a parecer técnico nº. 13.430, de 13 de setembro de 2002;
emitido pelo órgão público estadual ou IV - postes de iluminação pública ou de
empresa responsável pela distribuição rede de telefonia, inclusive cabines e
de energia elétrica; telefones públicos, conforme autori-
VI - respeitar a vegetação arbórea sig- zação específica, exceção feita ao mo-
nificativa definida por normas espe- biliário urbano nos pontos permitidos
cíficas constantes do Plano Diretor pela Prefeitura;
Estratégico; V - torres ou postes de transmissão de
VII - não prejudicar a visibilidade de si- energia elétrica;
nalização de trânsito ou outro sinal de VI - nos dutos de gás e de abastecimento
comunicação institucional, destinado de água, hidrantes, torres d’água e
à orientação do público, bem como a outros similares;
numeração imobiliária e a denomina-
VII - faixas ou placas acopladas à sinali-
ção dos logradouros;
zação de trânsito;
VIII - não provocar reflexo, brilho ou
VIII - obras públicas de arte, tais como
intensidade de luz que possa ocasionar
pontes, passarelas, viadutos e túneis,
ofuscamento, prejudicar a visão dos
ainda que de domínio estadual e fe-
motoristas, interferir na operação ou
deral;
sinalização de trânsito ou, ainda, causar
insegurança ao trânsito de veículos IX - bens de uso comum do povo a uma
e pedestres, quando com dispositivo distância inferior a 30,00m (trinta
elétrico ou com película de alta refle- metros) de obras públicas de arte, tais
xividade; como túneis, passarelas, pontes e via-

74 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

dutos, bem como de seus respectivos bem como fez prevalecer a função social da
acessos; propriedade e da cidade (artigo 170, III, e 182,
“caput”, respectivamente, da Carta Magna), não
X - nos muros, paredes e empenas cegas
invadindo competência legislativa do Estado e da
de lotes públicos ou privados, edifica-
União para legislar sobre publicidade no âmbito
dos ou não;
da relação de consumo (artigo 22, inciso XIX e
XI - nas árvores de qualquer porte; artigo incisos 24, V, VII e VIII, da CF). No sen-
tido da constitucionalidade da Lei nº 14.223/06
XII - nos veículos automotores, moto-
podem ser mencionados os seguintes acórdãos:
cicletas, bicicletas e similares e nos
“trailers” ou carretas engatados ou JULGAMENTO “EXTRA PETITA” - A
desengatados de veículos automotores, SENTENÇA JULGOU A AÇÃO DENTRO
excetuados aqueles utilizados para DO PEDIDO – NÃO HÁ QUE SE FALAR
transporte de carga.” EM NULIDADE. LEI DOS ANÚNCIOS - LEI
MUNICIPAL NQ 14.223, DE 26/9/2006, QUE
O artigo 23 prevê a responsabilização DISPÕE SOBRE A ORDENAÇÃO DOS ELE-
solidária do anúncio pelo possuidor e proprie- MENTOS QUE COMPÕEM A PAISAGEM
tário do imóvel onde aquele estiver instalado, o URBANA NO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO
mesmo ocorrendo com a empresa instaladora. DE SÃO PAULO É MATÉRIA DE NATUREZA
A Comissão de Proteção da Paisagem Urba- AMBIENTAL E TEM COMO FINALIDADE
na (CPPU) será a principal responsável pelo ADEQUAR A FUNÇÃO DA PROPRIEDADE
acompanhamento da legislação paulistana sobre EM FUNÇÃO DA PAISAGEM URBANA,
anúncios (artigo 35), bem como quanto às novas RELACIONADA COM O USO COMUM DO
tecnologias e meios de veiculação de anúncios POVO.
(artigo 47), sendo o licenciamento de respon- INCONSTITUCIONALIDADE - A LEI
sabilidade das subprefeituras (artigo 36). No NÃO É INCONSTITUCIONAL, POIS O MU-
artigo 39 e seguintes estão previstas as infrações NICÍPIO NÃO USURPOU A COMPETÊN-
e penalidades. CIA CONSTITUCIONAL CONFERIDA À
Os mobiliários urbanos estão conceituados UNIÃO, UMA VEZ QUE A CITADA NORMA
no artigo 22 da Lei 14.223/06, com diretrizes de LEGAL NÃO DIZ RESPEITO AO ÂMBITO
instalação no artigo 23, sendo que a publicida- ECONÔMICO DA PUBLICIDADE OU PRO-
de nos mesmos será regulada em lei específica PAGANDA, MAS SIM AO QUE SE REFERE
(artigo 21). Como regra geral, o artigo 18 prevê AO MEIO AMBIENTE, ARQUITETURA E
que “Fica proibida, no âmbito do Município de URBANISMO, POSSUINDO O MUNICÍPIO
São Paulo, a colocação de anúncio publicitário COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA
nos imóveis públicos e privados, edificados ou LEGISLAR SOBRE TAIS MATÉRIAS.
não”. São permitidos aqueles elencados no artigo LIVRE INICIATIVA - A LEI NÃO VEDA
19, com finalidade cultural, educativa, eleitoral O EXERCÍCIO DE PROFISSÃO E/OU ATIVI-
e imobiliária. DADE, DESDE QUE OBEDEÇA A LEI.
Como se percebe dos dispositivos trans- DIREITO DE PROPRIEDADE - DEVE
critos e mencionados nos parágrafos anteriores, OBEDECER AO PRINCÍPIO CONSTITUCIO-
a Lei Municipal nº. 14.223/06, que vedou o NAL DA FUNÇÃO SOCIAL.
anúncio publicitário em locais públicos e pri- PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDA-
vados, visando proteção da paisagem urbana DE E RAZOABILIDADE - A LEI TEM POR
(meio ambiente artificial ou estético) e do meio FINALIDADE ORDENAR O ESPAÇO PÚBLI-
ambiente cultural (patrimônio histórico) tratou CO E REGULÁ-LO NO QUE DIZ RESPEITO
de regulamentar, dentro do interesse local (artigo - PAISAGEM URBANA - CONTROLE DE
30, incisos I, II, VIII e IX, da CF), questão am- POLUIÇÃO VISUAL - NÃO SE VISLUMBRA
biental e urbanística (artigo 225 e 182 da CF), QUALQUER EXCESSO.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 75


CASTANHEIRO, I. C.

(TJSP, 10ª Câmara de Direito Público - PUBLICIDADE URBANA - LEI MU-


Apelação Cível nº. 766.659-5/1-00-V. 15.660, NICIPAL N° 14.223/06 - COMPETÊNCIA
v.u., j. em 11/08/08) DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE
ATO ADMINISTRATIVO – PUBLICIDA- ASSUNTOS DE INTERESSE LOCAL - CONS-
DE URBANA - PRETENSÃO DA EMPRESA TIITUCIONALIDADE DA LEI. O município
AO RECONHECIMENTO DO DIREITO DE não legislou sobre propaganda comercial, mas
TER SUAS ATIVIDADES REGIDAS PELAS sim regulamentou a publicidade urbana, que é
NORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS assunto de interesse local e, portanto, de com-
APLICÁVEIS E DO DIREITO DE MANU- petência do município, nos termos do art. 30,
TENÇÃO DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS I, da CF. - PUBLICIDADE URBANA - LEI
REGULARES E RESPECTIVAS ESTRUTU- MUNICIPAL N° 14.223/06 - INOCORRÊN-
RAS EXISTENTES, BEM COMO À DECLA- CIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
RAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE LIVRE CONCORRÊNCIA, OU DO LIVRE
DA LEI MUNICIPAL N° 14.223/06 (CIDADE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA
LIMPA)- INOCORRÊNCIA. - INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DI-
O Plenário desta Corte reconheceu a cons- REITO ADQUIRIDO - POSSIBILIDADE DE
titucionalidade da Lei Municipal n° 14.223/06, APLICAÇÃO DA NOVA LEI A RELAÇÕES
tendo sido apreciado pelo C. Órgão Especial no FIRMADAS ANTES DE SUA ENTRADA
Incidente de Inconstitucionalidade n° 163.152- EM VIGOR.
0/3-00, sendo a ação que se funda na inconsti- RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVI-
tucionalidade da lei improcedente. MENTO (TJSP, 1ª Câmara de Direito Público,
Decisão mantida. Apelação com Revisão n° 714.853.5/1-00, v.u,
Recurso negado j. em 12/08/08)
(TJSP, 1ª Câmara de Direito Público, Ape-
lação n° 806 542 5/8-00, v.u., j. em 02/12/08).
Diagnóstico do papel do poder
MANDADO DE SEGURANÇA - Preven-
público na poluição visual:
tivo - Liminar - Lei Municipal de São Paulo n.°
14.223/06 (Projeto “Cidade Limpa”), a vedar a sugestões de enfrentamento da
colocação de anúncios em imóveis públicos e poluição visual pelas cidades
privados – Pretensão de inconstitucionalidade -
Ausência de ilegalidade, vício ou arbitrariedade No enfrentamento da poluição visual não
- Falta de prova da regularidade do anúncio - In- há dúvidas, a nosso ver, que o mais importante
teresse público que deve se sobrepor ao interesse papel é o do município, pois é ali que o indivíduo
particular - Revogada liminar concedida em residente e trabalha, entrando em contato com
primeiro grau - Tratando-se de lei em vigor (Lei todas as circunstâncias positivas e negativas
Municipal de São Paulo n° 14 223/06), a vedar do meio que o circunda. Portanto, as condi-
colocação de anúncios, de forma indiscriminada, ções estéticas do meio ambiente são interesses
em imóveis públicos e privados, não há como se eminentemente locais. Nesse contexto, nada
manter liminar concedida em mandado de segu- obstante vinculado a diretrizes da legislação
rança contra órgão público, sob o fundamento federal (artigo 21, XX e artigo 24, § 1º), da CF)
de impedimento ao livre exercício de profissão e, eventualmente, estadual (artigo 24, § 2º) sobre
(“propaganda e marketing”) e outras pondera- proteção estética e paisagística, às quais não
ções, ante o poder de policia tocante à Munici- poderá contrariar, com base no artigo 30, incisos
palidade (artigos 23, I, 30, I e 182, caput e § 2°, I, II, VIII e IX, da Carta Magna, o município
da Constituição Federal) e o interesse público poderá elaborar uma legislação mais restritiva
a sobrepor-se ao interesse particular (TJSP, 10ª quanto à exploração de sua paisagem urbana,
Câmara de Direito Privado, A.I. 623.643-5/5-00, para fins publicitários, eleitorais, informativos,
j. em 05/03/07) culturais etc.

76 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

Considerando que o artigo 23, inciso VI, participação de profissionais de diversos ramos
da Constituição Federal atribui à União, Estados, (comissão multidisciplinar), da população e dos
Distrito Federal e Municípios competência co- comerciantes locais, para somente depois disso
mum para “proteger o meio ambiente e combater se elaborar projetos de leis seguindo, em linhas
a poluição em qualquer de suas formas”, bem gerais, as conclusões dessas audiências (visa-se
como deve proteger as paisagens naturais notá- eliminar, ao máximo, o grau de subjetividade e
veis (artigo 23, III), o município poderá combater o autoritarismo dos agentes públicos).
e punir a poluição visual utilizando-se, na medida Sendo função do Poder Público zelar pelos
de suas competências, todo o arcabouço legis- interesses da maioria com relação aos da mino-
lativo que mencionamos em capítulo próprio. ria em questões privadas, às quais geralmente
Quando não for de sua atribuição a aplicação cede em razão da pressão de grupos influentes
de determinado diploma legal deverá instar o e atuantes no espaço da cidade, a conclusão
ente federativo competente a agir, enviando-lhe é a de que o Poder Público tem sido omisso.
representação devidamente instruída com as Importante ferramenta para o combate às omis-
provas dos fatos ilícitos denunciados. sões dolosas e culposas quanto à fiscalização e
É papel da municipalidade disciplinar e combate aos danos ambientais à paisagem urbana
fiscalizar adequadamente, diga-se com o rigor é a utilização das punições previstas na Lei de
que a situação específica mereça, a afixação de Improbidade Administrativa, que poderá ser
anúncios publicitários em locais como: vias de utilizada nas ações civis públicas movidas pelo
tráfego de elevado fluxo; monumentos públi- Ministério Público na defesa do meio ambiente
cos, bens e locais tombados e suas adjacências; artificial e natural.
pontes, viadutos e passarelas; árvores das vias Pensando ter demonstrado, com as limi-
públicas; postes, torres ou qualquer estrutura tações da singeleza inicialmente proposta, as
destinada a suportar redes aéreas dos meios de principais causas da poluição visual, seus efei-
comunicação e de energia elétrica; cemitérios; tos e formas de enfrentamento, especialmente
proximidades de semáforos, sempre que possam pelos municípios, que detém poder fiscalizador
confundir visão ou interpretação, tudo em con- concorrente com os demais entes federativos e
formidade com o Plano Diretor das cidades e o competência legislativa concorrente em virtude
Código de Obras. do interesse eminentemente local, resta aos
Também não pode ser olvidada, pelo Poder membros e servidores do Poder Público Mu-
Público, a preparação das gerações futuras para nicipal lançarem mão do instrumental jurídico
lidar com o problema da paisagem visual (com aqui mencionado e, se necessário, criar outros
atitudes preventivas como educação e repressi- para implementarem a efetiva defesa do meio
vas), com a colaboração, ainda que compulsória, ambiental cultural e artificial.
dos meios de comunicação de massas, dos edu- Nesse diapasão, vale transcrever as
cadores, dos intelectuais, das universidades etc. valiosas observações de Ignez Conceição Ninni
Também deverá o Poder Público municipal Ramos e de José Afonso da Silva, na ordem a
buscar algum grau de consenso em relação à seguir transcritas:
beleza de elementos naturais31 em geral (vegeta- Não há legislação no mundo que possa
ção, céu, lagos, rios e praias) e até de elementos compensar a falta de vontade política.
artificiais (monumentos, prédios históricos com Enquanto a poluição visual for tratada
características marcantes de determinado estilo e como a paciente que ainda não inspira
fachadas visualmente desobstruídas), através de cuidados, a paisagem urbana continua-
audiências públicas por bairros ou regiões, com rá sofrendo de doença terminal. Retar-

31
MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/
bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009 77


CASTANHEIRO, I. C.

dar o tratamento poderá inviabilizar a na ambiental, que lancem mão do seu poder de
cura32 petição e/ou dos instrumentos jurídicos dispo-
níveis, promovendo as ações administrativas
“Uma cidade não é um ambiente de cabíveis, representações e/ou recomendações
negócios, um simples mercado onde até à(s) autoridade(s) competente(s), para que sejam
a paisagem é objeto de interesses eco- tomadas as medidas apropriadas em prol da
nômicos lucrativos, mas é, sobretudo, paisagem urbana, propiciando melhores con-
um ambiente de vida humana, no qual dições de saúde e de bem-estar aos habitantes
se projetam valores espirituais perenes,
das cidades, que segundo o IBGE são cerca de
que revelam às gerações porvindouras
82% da população brasileira. Diante dessa pro-
a sua memória”.33
vocação, a continuidade da omissão por parte
Assim, espera-se de todos os operadores da(s) Autoridade(s) poderá caracterizar ato de
do Direito e dos agentes públicos, especial- improbidade administrativa (artigo 11, incisos I
mente aqueles atuantes na área urbanística e e II, da Lei nº 8.429/92).

32
RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai.
2003
33
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p 274

78 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009


Artigo

CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO


Ivam Gerage Amorim RESUMO: Numa perspectiva do debate teórico
apresentado por Marshall acerca da cidadania,
os direitos sociais se manifestam como uma
possibilidade de participação na riqueza coletiva
e como ‘etapa’ no processo de desenvolvimento
histórico da cidadania. No Brasil, o direito ao
trabalho é um direito social constitucionalmente
previsto, motivo pelo qual se faz importante sua
compreensão e análise. Sendo assim, o artigo
busca tratar do direito ao trabalho como parte
integrante dos direitos fundamentais (eis que
positivado no ordenamento jurídico brasileiro e
previsto na Declaração dos Direitos Humanos),
embora temas como a eficácia dos direitos so-
ciais representem uma nova fonte dos debates
atuais.
Palavras-chave: Cidadania. Direitos Sociais.
Direito ao Trabalho.

ABSTRACT: In a perspective of the theore-


tical debate presented by Marshall concerning
citizenship, the social rights reveal themselves
as a possibility of participation in the collective
wealth and as ‘stage’ in the process of historical
development of the citizenship. In Brazil, the
right to work is a social right constitutionally
foreseen, wherefore it is important its understan-
ding and analysis. Thus, the article aims to deal
with the right to work as part of the fundamental
rights (being present in the Brazilian legal system
and foreseen in the Declaration of the Human
Rights), even so subjects as the effectiveness of
the social rights represent a new source of the
current debates.
Keywords: Citizenship. Social rights. Right to
the Work.

* Advogado. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Ambiental pela
UNIMEP/ Piracicaba. Estagiário no Anderson, Coe & King, LLP Attorneys at Law em Baltimore (Maryland), Estados Unidos.

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AMORIM, I. G.

te. Assim também o é dentro de uma perspectiva


da cidadania. Contudo, em que pese os inúmeros
1) Os Direitos Sociais no Brasil debates acerca da aplicação ou validade do de-
A partir do último terço do século XIX senvolvimento teórico apresentado por Marshall,
começam na Europa algumas especulações em os direitos sociais integram a última das três fases
torno do Direito Social. Para uma ilustração (ou elementos) constitutivos da cidadania.3 Neste
destas teorias, importante recordar as teorias de sentido, os direitos sociais representam uma
Gierke quando utiliza o termo como uma cate- participação na riqueza coletiva, e acabam por
goria entre o direito público e o direito privado, recair sobre os denominados direito ao trabalho,
a fim de demonstrar a incorporação do individuo à saúde, educação, aposentadoria, etc.
à comunidade em função social.1 Dentro destes
No Brasil, embora o constituinte não tenha
debates, a expressão direito social é utilizada
previsto a cidadania no Título II da CF/88, a dou-
como um ramo novo do direito, apresentando
com isso uma definição distinta da que antes se trina majoritária brasileira entende a cidadania
encontrava no mundo jurídico. E nesta perspec- como um direito fundamental. Ressalte-se neste
tiva, o direito social se apresenta como sendo ponto o parágrafo 2o do artigo 5o da Constituição
o conjunto de princípios, instituições e normas que estabelece que são direitos fundamentais os
que em função de integração, protegem, tutelam que se encontram expressos na Constituição.
e reivindicam aos que vivem de seu trabalho e Destarte, ainda que ‘topograficamente o direito
aos economicamente débeis. 2 à cidadania não esteja previsto no Título II, mas
Com efeito, o direito ao trabalho enquanto no Título I, sua natureza de norma de direito
um direito social é um tema razoavelmente recen- fundamental não está prejudicada”.4
1
MOYA (1977). p., 62. Para o mesmo autor, a teoria de Gierke é teoria sociológica e teoria jurídica, que concebe o Direito Social como uma dis-
ciplina autônoma frente ao direito público e o direito privado. Não obstante, na Alemanha se apresentam contradições sociais pois, por um lado
Bismarck obtém a expedição da lei de 21 de outubro de 1878 que proíbe as coalizões de trabalhadores e que é contraria a um dos direitos sociais
mais importantes do direito do trabalho (em prejuízo dos trabalhadores); e por outro cria, posteriormente, os seguros sociais de 1883 a 1889. Frente
a sua política anti-socialista, elabora um direito de seguridade social para tentar conter a luta da classe operária. Idem.p., 62.
2
Dentro destes debates nas ciências jurídicas e sociais, tal ramo novo do direito se identificava, no México, no artigo 123 com o direito do trabalho
e da previsão social, como ‘dois oceanos que ao unirse formam um só com a força incontível da fusão de suas águas’ e ainda, formam parte do
direito agrário e outras disciplinas para a segurança e bem estar da classe trabalhadora e dos débeis em geral. Sendo assim, são teorias integradoras
do direito social difundida e aceita, as que sustentam o caráter protecionista, igualitário e nivelador do direito social, e como parte deste o direito
obreiro e o direito econômico. Uma outra teoria, tratada como exclusiva dos teóricos mexicanos, proclama não somente o fim protecionista e tutelar
do Estado como também o Direito Social enquanto sendo reivindicatório dos economicamente débeis e do proletariado. Porém, ambas as teorias se
complementam e integram a Teoria Geral do Direito Social contida no artigo 123 da Constituição da época. A primeira teoria sustenta que, frente a
Constituição mexicana de 1917 e a alemã de Weimar, de 1919, e ainda as que se seguiram a esta para tratar do direito social. Outra teoria, sustenta
o fundamento da Constituição mexicana enquanto um caráter reivindicatório, sendo esta última a teoria adotada pelo autor. MOYA. Op. Cit. p.,
64-65. Existem ainda autores que tratam a perspectiva do direito ao trabalho em função das atividades grevistas como mecanismo de manutenção
do emprego e de um direito ao trabalho. Sobre o assunto, ver: GALLEGO (1950). p., 326. Nas palavras de José Afonso da Silva, “a questão da
natureza dos direitos sociais ainda se põe porque há ainda setores do constitucionalismo, especialmente o ligados à doutrina constitucional norte-
americana, que recusam não só a idéia de que tais direitos sejam uma categoria dos direitos fundamentais da pessoa humana, mas até mesma que
sejam matéria constitucional, ou, quando admitem serem constitucionais, qualificam-nos de meramente programáticos, meras intenções e coisas
semelhantes. De minha parte, sempre tomei a expressão direitos fundamentais da pessoa humana num sentido abrangente dos direitos sociais, e,
portanto, não apenas os entendi como matéria constitucional mas como matéria constitucional qualificada pelo valor transcendente da dignidade
da pessoa humana. Assim pensava antes da Constituição de 1988, guiado até pelo conteúdo de documentos internacionais de proteção dos direitos
humanos (...)” SILVA, José Afonso da. Garantias econômicas, políticas e jurídicas da eficácia dos Direitos Sociais. Disponível na Internet: <http://
www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 10/05/2009.
3
Segundo DÉCIO SAES, as principais críticas a Marshall: a) se refere ‘a aplicabilidade ou não (ver TURNER) do esquema teórico de Marshall a
outros processos nacionais de cidadania que não o inglês; b) ‘a fidelidade de Marshall ‘a evolução da cidadania da Inglaterra contemporânea; c)
não faz referência ‘a Revolução Política anti-feudal; ‘a Revolução Puritana de 1640 e da Revolução Gloriosa de 1688, na instauração da liberdade
civil no país; d) subestima o potencial do processo revolucionário na destruição do status feudal; e) não instaura a cidadania civil como processo
de evolução institucional, caracterizados pela fusão no plano geográfico e pela separação no plano funcional; f) se considera como evolucionista,
porém desconsidera a possibilidade de revolução, ou seja, um salto qualitativo; g; as críticas do evolucionismo de Marshall sobre a cidadania
pode ser observado em TURNER, Anthony GIDDENS e Reinhard BENDIX, questionando o processo interno de evolução da cidadania. Para um
aprofundamento teórico dos debates em uma perspectiva da teoria política, ver: SAES (2000). p., 8-40. Sobre a ambigüidade do conceito, ver:
DALLARI. (2007)
4 Aplicando-se a definição de direitos fundamentais à cidadania, temos: a) norma jurídica positiva de nível constitucional: o direito ‘a cidadania é
norma constitucional positivada, expressa no art. 1o, II, da CF/88; b) valor essencial da sociedade: a previsão da cidadania como um dos funda-
mentos do Estado Democrático de Direito; c) proteção direta da dignidade da pessoa humana: pois na medida que a cidadania é um direito que
objetiva garantir a participação política direta e imediata dos cidadãos, ela se relaciona com a dignidade da pessoa humana; d) legitimação jurídica

80 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009


CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

Dentro desta perspectiva, a exata definição e, no artigo seguinte, os Direitos Sociais em


de Direito Social, e não direitos sociais em si, sentido estrito, conhecido também como Direi-
fora matéria de controvérsia no debate político e tos Trabalhistas. Não obstante, é explicitado em
jurídico no País. Enquanto uns definiam o Direito sentido amplo os Direitos Sociais no Título VIII
Social como sendo a reunião do Direito do Tra- (da Ordem Social, que envolve saúde, educação,
balho com a Previdência e a Assistência Social, previdência social, dentre outros).8
outros entendiam-no como desvinculado do Destarte, LEITE aponta para uma classi-
direito trabalhista, por considerarem as normas ficação dos direitos sociais, sustentando haver
reguladoras das relações trabalhistas como apar- direitos sociais pertinentes ao trabalho, ao meio
tado do seguro e assistência sociais. Sendo assim, ambiente, à seguridade, à família e educação,
o Direito Social não poderia regular as relações por exemplo. Os direitos sociais representariam
de trabalho entre empregadores e empregados.5 assim, uma dimensão dos direitos fundamentais,
Em suas relações com o trabalho, uma sendo prestações positivas enunciadas em nor-
corrente colocada como minoritária colocava mas constitucionais.9
o Direito do Trabalho como um Direito Social Não menos importante, CARVALHO
Específico.6 aponta que a cronologia lógica da seqüência
Neste debate acerca da distinção entre os apresentada por Marshall foi invertida aqui no
conceitos pertinentes ao Direito Social, seja Brasil. Os direitos sociais foram primariamente
ele enquanto um Direito do Trabalho, uma implementados em períodos de supressão dos
Legislação Social ou do Trabalho, cabe-nos direitos civis e políticos. Posteriormente foi a
aqui apenas apresentar que a noção de Direito vez dos direitos políticos, num período em que
Social foi desenvolvida com os propósitos das órgãos de representação política foram trans-
relações de trabalho e com o desenvolvimento formadas em ‘peças decorativas’ do regime.
econômico.7 E por fim, ainda nos dias de hoje, muitos dos
Nos comentários acerca da Constituição do direitos civis (a base da seqüência apresentada
Brasil de 1988, outros entendem que o artigo 6o por Marshall), continuam inacessíveis para boa
enumera os Direitos Sociais em sentido genérico parte da população.10

da atuação estatal: uma vez que a norma sobre cidadania visa garantir o direito de participação política de todos os cidadãos, será um mecanismo
de controle de atuação do Estado. Por fim, a natureza de cláusula pétrea do direito fundamental ‘a cidadania, em função de sua natureza de direito
fundamental individual, está prevista no art. 60, parágrafo 4o, IV, o que impede sua revogação normativa. Com efeito, levando-se em consideração
nossa realidade constitucional, uma melhor classificação partiria de critérios do sujeito titular de direitos: individuais (direitos que possuem como
titular pessoas físicas ou jurídicas); coletivos (direitos que têm como titular grupo determinado de pessoas unidas por uma relação jurídica básica);
sociais (titular pessoa física em situação de desigualdade social); e difusos (direitos indivisíveis cujo titular é grupo indeterminado de pessoas). No
caso da cidadania, fala-se em cidadania individual no caso de impetração de ação popular, por exemplo; e de cidadania enquanto direito coletivo
no caso do sufrágio. LOPES (2007). p., 28-32.
5
OLIVEIRA (1952). p., 11. No liame que vincula estas temáticas acima descritas, nasceu no direito industrial (em matéria de acidentes de trabalho,
frente a influência de Bismarck),a noção de ‘risco profissional’. Nesse sentido, não se tratava de estabelecer a culpa do patrão ou do empregado,
mas de comprovar o acidente. A lei, desta forma, regularia a indenização ao preço alçado. Da mesma maneira, apareceu na mesma época na França
(entre civilistas reputados, tais como SALEILLES e JOSSERAND, a doutrina da responsabilidade objetiva, que independe da culpabilidade. No
Direito Penal, nas mesmas condições, surge a teoria da defesa social. PRINS(1912). p., 63-64.
6
CEZARINO JR. Vol. 2. (1957). p., 24. O mesmo autor, em seu volume 1o, apresenta os motivos que o condicionam a entender o conceito de Direito
Social como sendo um qualificativo melhor para a definição da Disciplina que alguns entendem por Direito do Trabalho.
7
A Faculdade de Direito da USP, pela Lei Paulista n. 3023/37, em seu artigo 7o, batizava de Legislação Social sua disciplina jurídica. Pela Lei
Federal n. 2724 de 1956, as demais Faculdades de Direito do País denominavam de Legislação do Trabalho as disciplinas cuja concepção fora
antes suprimida pela expressão sinônima de Direito Laboral, mudada posteriormente para Direito do Trabalho, sendo que o Direito Industrial seria
estudado com o Direito Comercial, como antes já ocorria na Faculdade de São Paulo. A Constituição de 1946, no artigo 5o, XV, letra ‘a’, fala em
Direito do Trabalho; enquanto o artigo 157 emprega a denominação de Legislação do Trabalho. O decreto- lei n. 1237/39, que instituiu a Justiça
do Trabalho, em seu artigo 1o, se referia a Legislação Social, e em seu artigo 94 falava de Direito Social. O artigo 693, ‘a’ da CLT, ao tempo,
dispunha de um Direito Social. Esta denominação também é adotada por Evaristo de Moraes Filho. Com isso, o debate recai sobre a evolução da
própria disciplina: direito industrial, direito operário, direito corporativo ou corporativo-sindical, legislação social, do trabalho ou social-trabalhista,
direito social, direito do trabalho, além de um possível direito econômico e profissional. FILHO, E. de M. p., 157 a 228. In: CEZARINO JR. Op.
Cit..Vol. 1o. p., 11-15.
8
WATERHOUSE (1989). p., 196.
9
LEITE (1997). p., 22-25.
10
CARVALHO (2001).p., 219-222.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009 81


AMORIM, I. G.

trabalho traduz-se, assim, em princípio, funda-


mento, valor e direito social.11
2) O ‘trabalho’ como ‘valor social’
Nesta perspectiva, note-se ainda que a
na Constituição Federal de 1988 questão do trabalho relaciona-se ainda com
os direitos humanos, bem como com diversos
A natureza do conceito ‘trabalho’ nem
sempre foi a mesma. Ela se transformou ao lon- outros princípios constitucionais, tais como a
go dos séculos, passando de uma concepção de cidadania e a justiça social, irradiando-se por
esforço, sofrimento para uma concepção mais toda a Constituição na busca pela redução das
social, relacionada ao conceito de dignidade da desigualdades sociais.
pessoa humana. Neste sentido, diversas Constituições abor-
No Brasil, a valorização do trabalho está daram sobre o ‘trabalho’ em sua dimensão social
repetidamente enfatizada pela CF/88. Desde seu e individual, firmando como corolário o princípio
“Preâmbulo”, como também demarcando-se do ‘direito ao trabalho’, e figurando-os, inclu-
nos “Princípios Fundamentais” da República sive, em diversos Preâmbulos constitucionais.12
Federativa do Brasil e da própria Constituição Abstraindo a constitucionalização dos
(Título I), sendo ainda especificada ao tratar dos aspectos concernentes ao trabalho que ora nos
“direitos sociais” (arts. 6º e 7º), concretizando-se, propomos a discorrer, e levando-se em conta o
por fim, no plano da Economia e da Sociedade, sentimento de solidariedade social que envolvia
ao buscar reger a “Ordem Econômica e Finan- e condicionava grupos organizados ou isolados
ceira” (Título VII), com seus “Princípios Gerais
a buscarem melhores condições de vida e de
da Atividade Econômica” (art. 170), ao lado da
trabalho ou, por que não, de um direito ao tra-
“Ordem Social” (Título VIII) e sua “Disposição
balho, devemos considerar que a solidariedade
Geral” (art. 193). Na verdade, são quatro os prin-
humana e o valor trabalho permeiam quase todo
cipais princípios constitucionais afirmativos do
trabalho na ordem jurídico-cultural brasileira: o desenvolvimento de nosso estudo.13
o da valorização do trabalho, em especial do Ulysses Guimarães denominou de ‘Cons-
emprego; o da justiça social; o da submissão tituição Coragem’ um texto que anteriormente
da propriedade à sua função socioambiental; compunha a Constituição Federal e que fora
o princípio da dignidade da pessoa humana. O posteriormente retirada pela alegação de incons-
11
Em seu Título I (“Dos Princípios Fundamentais”), a Constituição fixa serem fundamentos da República Federativa do Brasil, ao lado de outros, a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV). No mesmo título, em seu art. 3º, que constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento na-
cional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O enquadramento do trabalho como direito social está explicitado
no art. 6º da Constituição, concretizando-se em inúmeros dos direitos que se listam no art. 7º. Perceba-se, que esse enquadramento não reduz,
normativamente, o patamar de afirmação do trabalho (de princípio, valor e fundamento para direito social). Por fim, ao tratar da “Ordem Social”,
em sua “Disposição Geral”, a mesma Constituição reenfatiza que a “ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-
estar e a justiça sociais” (Título VIII, Capítulo I, art. 193). DELGADO, M. G. (2006). p., 23-26.
12
A Constituição da Organização dos Estados da América, aprovada em Bogotá no artigo 29, letra ‘b’, declara que o ‘trabalho é um direito e um dever
social’. No Brasil, a Carta de 37, em seu artigo 136, dispunha que “o trabalho é obrigação social”, estatuindo que a “todos é garantido o direito
de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger,
assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa”. A Carta de 34 não continha declaração semelhante. Na Constituição de 1946, o artigo
145 prevê que “a todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social”. Na Constituição de 1931 da Espanha,
no artigo 46, o trabalho é uma obrigação social. Na mesma Constituição, no artigo 24, estabelece que os espanhóis “têm direito ao trabalho e o
dever de exercer uma atividade socialmente útil”. Em Portugal, na Constituição de 1935, em seu artigo 35 declara que o trabalho desempenha uma
função social. Na Rússia, na Carta de 36, em seu artigo 12 estabelece que o trabalho é para todo o cidadão apto “um dever e uma questão de honra”.
Na França, em 1946, já no Preâmbulo, menciona que “tem cada um o dever de trabalhar e o direito de obter emprego”, constando o propósito do
direito ao trabalho já em 1848 (art. VII). Na Itália, em sua Constituição de 1947, o artigo 4o coloca que “a República reconhece a todos os cidadãos
o direito ao trabalho e favorece as condições de tornar esse direito efetivo”. De toda sorte, a Carta del Lavoro não previa o direito ao trabalho. Mas
entre as Constituições Americanas, merecem destaque: Colômbia (1945, art. 17); Costa Rica (1871, art. 52 e incluído no texto constitucional em
1943); Nicarágua (1939, art. 53); Panamá (1946, artigo 53); República de Salvador (1945, art. 155); Uruguai (de 1934, no art. 52) e Venezuela (no
texto de 1947, art. 61). MENEZES (1956). p., 54-56.
13
São inúmeros os documentos históricos que envolvem manifestações por melhores condições de trabalho. De maneira exemplificativa, em relação
às manifestações operárias no início de sua formação, importante ressaltar o Boletim da Comissão Executiva do 3oCongresso Operário. Ano I.
N. 1. São Paulo: Agosto de 1920.

82 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009


CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

titucionalidade de suas palavras. De qualquer trabalho fora incluído no rol dos direitos sociais.
maneira, assim dizia o texto: Ademais, o valor dado ao trabalho foi colocado
como fundamento do Estado Democrático (art.
“O Homem é o problema da sociedade
1o, IV), em igualdade de importância com os
brasileira: sem salário, analfabeto, sem
demais fundamentos do Estado Democrático de
saúde, sem casa, portanto sem cidadania.
Direito, tais como a cidadania; a soberania; a
A Constituição luta contra os bolsões
dignidade da pessoa humana; a livre iniciativa
de miséria que envergonham o país.
e o pluralismo político.15 Assim, a Constituição
Diferentemente das sete constituições
Federal apresenta um aspecto econômico e outro
anteriores, começa com o homem. Gra-
social, sendo que o valor trabalho aparece como
ficamente testemunha a primazia do
fundamento e base da Ordem Social e Econômi-
homem, que foi escrita para o homem,
ca, e permeia toda a Constituição.16
que o homem é seu fim e sua esperança.
É a constituição cidadã. Cidadão é o De toda maneira, o tema ‘trabalho’ é muito
que ganha, come, sabe, mora, pode se mais complexo do que nos propomos a estudar
curar. (...)”14 nesse trabalho. Mas devemos nos atentar também
para outras manifestações que a problemática
Nestes termos, notemos que a noção dos pode apresentar. Assim:
direitos sociais integram o conceito de cidadania “Não obstante, fica claro que a maioria
na Constituição Federal de 1988, corroborando destas demandas ainda não foi satisfeita. Se a
com o anteriormente mencionado e com o que crescente sensibilidade de largas parcelas da
dispõe acerca da temática que agora discorremos. força de trabalho para a utilidade negativa do
No Brasil, a palavra ‘trabalho’ nem sempre trabalho assalariado coincidir com a percepção
foi tida como um ‘valor social’, conforme dis- de um declínio no valor de uso de seus produtos,
põe o atual artigo 1o, inciso IV da CF/88, mas pode-se esperar uma perda crescente na rele-
transformou-se ao longo dos tempos, vinculan- vância subjetiva do trabalho assalariado ou uma
do-se com diversos princípios constitucionais aceitação decrescente de suas condições físicas,
e irradiando-se por toda a Constituição. Na psicológicas e institucionais. É sintomático
CF/88, o ‘primado do trabalho’ figura-se como desta possibilidade o fato de que a tradicional
princípio constitucional. Tal princípio é a base reivindicação sindical por um efetivo “direito
da Ordem Social. ao trabalho” - uma demanda que atualmente já
E nesta perspectiva, os direitos sociais possui um pronunciado tom utópico - seja criti-
correspondem à luta pela igualdade, manifesta- cada como insuficiente, e, portanto, refraseada
da por esforços conjuntos do homem na busca numa demanda pelo “direito ao trabalho útil e
17
por melhores condições. Tanto assim o é que o significativo””
14
http://www.tc.df.gov.br/contaspublicas/ice5/contas/2007/Arq03i_Apresentacao_004-016.pdf
15
SANTOS (2003). p., 83-84.
16
O Artigo 170, assegura que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humanoe na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VIII - busca do pleno emprego“. Ademais: o
trabalho é requisito para configuração da função social da propriedade (Art. 186, III); e para a configuração da usucapião (Art. 191), ambos da
CF/88. O trabalho também se constitui como requisito para a emancipação. No Artigo 193 da CF/88, “A ordem social tem como baseo primado do
trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. O Artigo 195, I, ‘a’, dispõe que “A seguridade social será financiada por toda a socieda-
de, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, e das seguintes contribuições sociais: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho (...). O Artigo 203 da CF/88 estabelece
que “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição `a seguridade social, e tem por objetivos: III)
- a promoção da integração ao mercado de trabalho. No Artigo 205, da CF/88: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho“. O Artigo 214 assegura que “A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando
`a articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e `a integração das ações do Poder Público que conduzam `a: IV) formação
para o trabalho. Grifo nosso.
17
MUECKENBERGER, U. (s/d), “Zur Problematik eines Rechts auf Arbeit”, in Arbeitsprozess, Vergesellschaftung, Sozialverfassung. Bremen.
Apud: OFFE, Claus. Trabalho: categoria- chave da sociologia? shttp://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_10/rbcs10_01. Acesso em:
17/11/2008.
18
Diversos autores dos tempos antigos traziam o trabalho num sentido de esforço, cansaço, pena, castigo e expiação. Na Índia e no Egito pré-cristão
já se encontravam menções ao trabalho como expurgação. Na Grécia antiga também não se deu de maneira diversa. O cidadão romano não fazia,

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009 83


AMORIM, I. G.

Nas palavras de BARASSI:


“La giuridicitá parrebbe a prima vista piena
3) O Direito ao Trabalho como um per quanto riguarda il diritto al lavoro nei limiti
Direito Social in cui questo diritto `e stato riconosciuto nella
Costituzione e che questa ha voluto espressamen-
O ‘Direito ao Trabalho’ é conceito ambí-
te indicare. Questo limiti parrebbe determinare
guo18 e indeterminado, apresentando dimensões
nel “diritto al lavoro” una natura pubblicistica: in
que relacionam-se com todo um histórico de
quanto a tale diritto corrisponderebbe il dovere
lutas por melhores condições sociais e de vida,
per lo Stato- e per gli altri enti autarchici, territo-
recaindo pois sobre todas as esferas que reco-
riali nei limiti ad essi assegnati dalle norme dello
brem a pessoa humana. Sendo assim, o direito ao
Stato e dalla propria competenza - di provvedere
trabalho acaba por relacionar-se com o próprio
le condizioni piú adeguate per ovviare al triste
‘Direito do Trabalho’, com todo o sistema de
fenomeno della disoccupazione (...).”19
Seguridade Social (que envolve a Assistência
Social, a Previdência Social e o Sistema Único de Para o nosso caso, com base no esboço
Saúde), com a Ordem Econômica, Social, além da Comissão Especial revelado por Evaristo de
de outros igualmente importantes na valorização Moraes Filho, o ‘direito ao trabalho’ está vin-
da pessoa humana. culado com a política de emprego, com o dever
social do trabalho e com a não discriminação.
Da mesma maneira, o conceito apresenta
Assim era o esboço de previsão constitucional
uma busca pelo trabalho e por condições que
sobre o tema:
garantam aos cidadãos acesso em um posto de
trabalho. Esta dimensão do Estado vincula-o “Art. (...) A ordem social tem por fim
com políticas na busca de um pleno emprego, realizar a justiça social, com base nos
tendo esta última uma dimensão mais econômica seguintes princípios:
que social. I) direito ao trabalho que possibilite a
Mas o tema não pode ser abordado de uma existência digna, mediante uma polí-
maneira simplista, eis que envolvem dimensões tica de pleno emprego;
que relacionam-se e excluem-se entre si. II) o trabalho como dever social, salvo

mas ordenava aos escravos ou estrangeiros para que o fizessem. Com o surgimento do cristianismo, podemos pensar Jesus e seu Pai como a repre-
sentação do trabalho, encontrada em diversas passagens. Por volta de 1748, Montesquieu proclamava que ‘um homem não é pobre pelo fato de nada
possuir, mas sim porque não trabalhe” Mesma linha encontramos o posicionamento de Locke. Com estas mudanças no perfil, o trabalho seria assim
(não mais um castigo), mas a causa da riqueza, da prosperidade do homem e, na ótica que pretende encontrar êxito no patrimônio, na relação de
propriedade. Em 1819, Charles Fourier começava a proclamar assuntos de interesse dos trabalhadores. Na Franca, em Lion, recordamos de frases
como’viver livre trabalhando ou morrer combatendo’. O cantão suíço de Valud, em 1830, erigiu a posição de garantia legal do direito ao trabalho e,
em 1845, quando o Parlamento radical ascendeu ao poder, o parlamentar Druey logrou do Conselho do Cantão a aprovação do dispositivo. Três anos
mais tarde, a França, em trabalho de elaboração constitucional, não admitiu a inclusão do preceito do direito ao trabalho no texto constitucional. A
própria Suíça não conseguiu elevar o direito ao trabalho ao status de constitucional, quando o projeto de Emenda Constitucional proposto por Émile
Frey foi rejeitado por 75% do eleitorado. Com isso, cabe registrar o conteúdo de norma programática do direito ao trabalho, quando da criação do
Seguro Social obrigatório na Alemanha de Bismarck. Na Carta del Lavoro de abril de 1927, o trabalho, em qualquer de suas formas, era um dever
social e, somente sob este titulo deveria ser tutelado pelo Estado. Em março de 1938, nas vésperas da 2a Grande Guerra e durante a Guerra Civil
Espanhola, na mesma linha fascista, o Fuero del Trabajo assegurava que todos os espanhóis tem direito ao trabalho. A partir de meados de 1945,
o Brasil, a Itália e diversas outras Constituições incluem o direito ao trabalho em nível Constitucional. AMORIM E SOUZA (1985). p., 13-16.
19
BARASSI (1949). p., 4-5. Paolo Biscaretti di Ruffia (Diritto Costituzionale), estudando a Constituição Italiana de 1.947, afirma a respeito do
direito ao trabalho que o art. 4o.o reconhece, ainda que com um caráter essencialmente programático, no parágrafo 1o. “A República reconhece a
todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que tornam efetivo este direito”. E no parágrafo 2o estabelece o dever do trabalho.
Além disso, é oportuno integrar o artigo 4o. com o significativo enunciado do parágrafo 1o. do artigo 1o. da Constituição, que reza: “A Itália é
uma República Democrática fundada sobre o trabalho”. A Constituição Soviética, nesta linha, enumera o direito ao trabalho, mas não devemos
olvidar que o valor aí predominante é o espírito comunitário e que os deveres enumerados têm conseqüências práticas muito definidas, sendo
sintomático que o dever de trabalhar, como serviço à comunidade, apareça dezoito anos antes do direito ao trabalho. LIMA, Fernando Machado
da Silva. Direito ao Trabalho. http://www.profpito.com/direitoaotrabalho.html. Acesso em: 12/11/2008.
20
SÜSSEKIND sugeriu a seguinte redação do primeiro inciso: I) direito ao trabalho, mediante política de pleno emprego”. Quanto aos outros dois,
fundiriam -se num só. SÜSSEKIND. Op. Cit. 57-58. Nesta linha, observamos o direito ao trabalho como um princípio constitucional.
21
O Artigo 6° da CF/88, dispõe que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção ‘a maternidade e ‘a infância, a assistência aos desamparados.
22
A Lei 10257/2001, por sua vez, dispõe em seu artigo 2o que: “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I)garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

razões de idade, doença ou invalidez; num reconhecimento da obrigatoriedade do


III) igualdade de oportunidades na escolha trabalho.24
da profissão ou gênero de trabalho.”20 Sendo assim, proteger o desempregado é
Nos dias de hoje, o direito ao trabalho uma evidência do valor social do trabalho, que
aparece como um direito social no artigo 6o demonstra que o trabalho e a dignidade são valo-
da CF/8821, e também como uma diretriz22 para res indissociáveis, onde a atuação do primado do
ordenar o desenvolvimento da política urbana no trabalho na Ordem Social é substrato dos direitos
desenvolvimento das funções sociais da cidade e sociais. Sendo os objetivos da Ordem Social o
propriedade urbana. É também um ‘valor social’, bem- estar e a justiça social, notemos que ambos
conforme prevê o artigo 1o, inc. IV da CF/88. inexistiriam sem o trabalho.
O direito ao trabalho, enquanto previsto na No preâmbulo constitucional, observamos
Constituição, não impõe o dever de se garantir ainda que o bem- estar e a justiça aparece como
emprego para todos, mas se refere à possibili- um dos valores supremos de uma sociedade
dade de se exercer licitamente a atividade. Por fraterna, ao lado dos direitos sociais e indivi-
outro lado, o direito ao trabalho enquanto direito duais, sendo a sociedade justa, livre e solidária
social, se espalha por todos os incisos do artigo um objetivo da República (artigo 3o, inc. I e
7o da CF/88. E é justamente por tal motivo que IV, da CF/88). O que ocorre, é que existe um
não existe um direito subjetivo em se exigir uma entrelaçamento dos direitos sociais com os fun-
prestação na obtenção do emprego, justamente damentos e objetivos fundamentais do Estado
pela possibilidade em se exigir um seguro- de- Democrático de Direito, e com os princípios que
semprego. Segundo SANTOS, a solução para regem as relações do Estado com os membros
essa problemática estaria na classificação dos da comunidade internacional.25
princípios dada por DWORKIN.23 Num âmbito internacional, o direito ao
Além disso, o direito ao trabalho não es- trabalho é retratado no artigo 23, inciso I, da
tabelece uma obrigação do Estado em arrumar Declaração Universal dos Direitos Humanos,
trabalho para todos os que estejam desocupados, quando diz que “toda a pessoa tem direito ao
mas deve assumir um compromisso de empregar trabalho, `a livre escolha do trabalho, a condi-
recursos para proporcionar ocupação aos que ções eqüitativas e satisfatórias de trabalho e à
dela careçam. De outra maneira, a declaração proteção contra o desemprego”.26 Já a Declaração
do trabalho como dever social não implica da Filadélfia, referia-se ao “emprego integral

direito ‘a terra urbana, ‘a moradia, ao saneamento ambiental, ‘a infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer,
para as presentes e futuras gerações”. Ainda nessa linha legislativa, no tocante ao direito ao trabalho, pensemos no seguinte: direito ao trabalho
dos indivíduos portadores de deficiências e dos indivíduos soropositivos; na Lei 9956/00 e Lei 9799/99 que proíbe as bombas de auto-serviço nos
postos de gasolina; no PL 4244/04 que busca uma regulamentação dos profissionais do sexo; Decreto-Lei 3688/41, em seu art. 59, que dispõe
sobre a contravenção de vadiagem.
23
SANTOS. Op. Cit. p., 90-93.
24
A Constituição da Guatemala de 1945 coloca, em seu artigo 55, que “ o trabalho é um direito do indivíduo e uma obrigação social. A ociosidade
é punível”. A Constituição italiana, comentando PERSOLESI, diz que o dever de trabalhar é um dever de natureza moral e política, pois não é
acompanhada de uma sanção. MENEZES. Op. Cit. p., 56.
25
Assim, bem- estar e justiça sociais não seriam princípios, mas diretrizes (objetivos) que a CF/88 quer ver atingidos com a implementação dos
direitos sociais, o que somente ocorreria com o trabalho. O primado do trabalho, conjugado com os objetivos da Ordem Social, dá o desfecho ‘a
questão social, na forma desejada pelo Constituinte de 1988, respeitando a dignidade humana. Com efeito, seriam esses objetivos as diretrizes
para o legislador infraconstitucional e o intérprete da lei. Por fim, o conceito de justiça social se observa como um dos objetivos da ordem social,
já mencionando o Preâmbulo acerca dessa questão. Não menos importante, são alguns dispositivos constitucionais que apontam para o conceito
de justiça social: o artigo 1o, no Título I, dos Princípios Fundamentais; o artigo 3o que enumera os fundamentos da República; o artigo 4o no
âmbito de suas relações internacionais; o Título II, Capítulo I, que enumera o rol dos direitos individuais e coletivos; o artigo 6o e 7o da CF/88 e
ainda os artigos que trata da Ordem Econômica e Financeira (arts. 170-192). Por sua vez, a efetivação dos direitos sociais teria seu modus operandi
estabelecido constitucionalmente por meio de seu desenvolvimento (fundado na solidariedade social) para se chegar ‘a justiça social. SANTOS.
Op.Cit. p., 92-94; 127-137.
26
Na perspectiva internacional do direito ao trabalho, vide: Artigo 6.º, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Artigo
1o da Convenção 122 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); Artigo 1o da Carta Social Européia; Pacto dos Direitos Civis e Políticos;
a Convenção sobre os Direitos das Crianças; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migratórios e
seus Familiares; o Pacto de São José da Costa Rica e diversos outros que expressamente tratam do direito ao trabalho.
27
SÜSSEKIND. Op. Cit. p., 59. Para o autor, o ideal seria se a Constituição dispusesse de um artigo que tratasse especificamente dos princípios,

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AMORIM, I. G.

para todos” (Item III), visando acabar com o ao cidadão não trabalhar. Neste sentido, recor-
desemprego e o sub-emprego, e a “dar a cada demos de algumas Constituições mencionadas
trabalhador uma ocupação na qual ele tenha a anteriormente, que inclui o trabalho como um
satisfação de utilizar, plenamente, sua habilidade ‘dever social’ ou ‘obrigação social’.31
e seus conhecimentos e de contribuir para o bem Noutra perspectiva, temos a definição de
geral” (Item III, b). E sobre o prisma constitu- direito ao trabalho, onde:
cional, o direito ao trabalho se dirige para todas
“Le devoir de travailler et le droit d’obtenir
as pessoas (especialmente ao Estado), possuindo un emploi proclamés par le préambule cons-
caráter jurídico público e obrigando o Estado titutionnel fondent en fait le droit `a l’emploi,
a preocupar-se, na medida do possível, com a l’emploi étant le travail saise dans sa durée. Il ne
criação de novas oportunidades de trabalho.27 s’agit pas, selon le Conseil constitutionnel, d’un
Com fundamento neste artigo da Declara- droit subjectif ‘il appartient `a la loi de poser des
ção dos Direitos Humanos, o direito ao trabalho régles propres `a assurer au mieux le droit pour
apresenta quatro aspectos diversos, sendo eles chacun d’obtenir emploi’. La recherche du plein
o direito ao trabalho em si; à livre escolha do emploi correspond donc `a un ‘droit collectif’’, `a
emprego; condições justas e favoráveis; e pro- une “mission constitutionnelle de service public”.
teção contra o desemprego.28 Assim, o direito Dans un rapport sur les ‘politiques de l’emploi
humano ao trabalho concebido como direito dans une économie mondialisée (...)”.32
subjetivo, não pode ser interpretado como um Na doutrina espanhola, o direito ao trabalho
direito a determinado posto de trabalho, o que aparece como conseqüência de um dever social.
seria incompatível com o regime democrático de Mas se existe o dever de trabalhar, há que ter
direito. Relaciona-se sim, com um direito a pos- um direito de trabalhar, necessário para poder
suir oportunidades de emprego. Sendo assim, o cumprir esse dever. Sendo assim, o direito ao
Estado só poderia dispor de um posto de trabalho trabalho é uma necessidade social, mas é tam-
para cada indivíduo em um sistema econômico bém, dentro das relações sociais, uma expressão
totalitário e de direção centralizada.29 de justiça. Responde a um reconhecimento de
Com efeito, direito ao trabalho e pleno em- uma necessidade sentida universalmente. Na
prego são conceitos relacionados entre si, sendo doutrina constitucional, vincula-se com as rea-
o direito ao trabalho uma referência à aquisição lizações práticas dos planos Beveridge e Zipfel,
ou conservação de uma ocupação remunerada que tendem a converter o direito ao trabalho na
por parte dos que possuem capacidade de tra- política de pleno emprego.33
balho. Assim, reforça no âmbito do emprego De qualquer maneira, o direito ao trabalho,
o direito à não discriminação, e proporciona ainda num sentido constitucional, se dirige à tota-
apoio constitucional às normas de fomento ao lidade das pessoas e, principalmente, ao Estado,
trabalho.30 possuindo caráter jurídico público e obrigando
O texto argentino, ao abordar do direito o Estado a preocupar-se (dentro do possível)
ao trabalho, se mostra mais como um direito com a criação das oportunidades de trabalho.34
(que uma obrigação), de tal forma que é lícito Sendo assim, direito ao trabalho, que também é

outro das normas programáticas, e outros das normas de eficácia plena e imediata. Estas últimas configurariam diretos subjetivos do trabalhador,
passíveis de serem assegurados pelo Poder Judiciário. Idem. p., 68. Ver ainda: SIMONSEN (1948).
28
SANTOS. Op. Cit. p., 88. No que concerne estas normas internacionais, não é demais lembrarmos que a Parte XIII do Tratado de Versalhes, que
consignou em partes alguns desses direitos, foi posteriormente ratificada e ampliada na Declaração da Filadélfia, na Carta das Nações Unidas e na
Declaração dos Direitos Humanos, como também em outras editadas posteriormente.
29
ARANGO (2001). p., 151-152.
30
VALVERDE; MURCIA; GUTIERREZ (1998). p., 147.
31
GRONDA. [s.d] p., 64.
32
BONNECHERE. (1997) p., 19.
33
A Carta da Nação Argentina de 1947, previa o direito de trabalhar, onde: “O trabalho é o meio indispensável para satisfazer as necessidades
espirituais e materiais do indivíduo e da comunidade, a causa de todas as conquistas da civilização e o fundamento da prosperidade geral; daí
que o direito de trabalhar deve ser protegido pela sociedade, considerando-o com a dignidade que merece e prevendo-se ocupação a quem dele
necessite”. TALLERIA (1952) p., 81-88.

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

entendido como o direito a trabalhar, são atribu- de Constituição Social ou do Trabalho, baseou-se
tos constitutivos da pessoa humana, sendo ainda em dois pilares: a) a idéia da Constituição como
um dos fundamentos da ordem social, sendo que instrumento normativo, pois cuida da matéria
deriva deste fato uma obrigação em se combater econômica, que determina a relação capital/tra-
a desocupação, que exige a intervenção do Esta- balho; b) a idéia de que o trabalho é tido como
do e uma cooperação econômica, ainda que no expressão maior da dinâmica do homem em sua
plano internacional.35 convivência sociopolítica. A absorção de tais
conceitos e de sua prática constitucional, deter-
minou que matérias pertinentes ‘a ordem social
4) O Direito ao Trabalho como um e econômica fossem integrados nos preceitos
direito fundamental constitucionais de diversos Estados.37
Com efeito, a dimensão social do constitu-
Partindo-se da evolução do constituciona- cionalismo advém do século XX, com a decor-
lismo e da conseqüente positivação dos direitos rência da Constituição Mexicana (proclamando
humanos, o tema acaba por vincular-se aos com pioneirismo alguns direitos concernentes
direitos fundamentais. aos trabalhadores); a de Weimar e com a Revo-
Coube à Constituição mexicana abrigar, lução Russa e sua declaração de direitos.38
pela primeira 36 vez numa normatização es- Assim, se pensarmos o conceito de ci-
pecífica, a matéria pertinente ‘a ordem social dadania partindo-se da ótica brasileira de seu
e econômica, que acabou por influenciar o desenvolvimento, devemos entendê-la como
constitucionalismo do século XX. Dela partiu diretamente relacionado ao estudo histórico da
a elaboração concebida doutrinariamente como evolução constitucional, em que pese a atual
Constituição Social e Econômica. A noção de positivação dos direitos sociais, econômicos e
Constituição Econômica, associada com a noção culturais.39
34
AMORIM E SOUZA. Op. Cit. p., 17. Não podemos encarar o direito ao trabalho apenas como uma representação do combate ao desemprego,
pois isto representa uma visão parcial do problema. Assim, não se torna justo nem razoável que a sociedade responda, a cada passo, pelo insucesso
(ainda que ocasional) da empresa, quando não é essa comunidade a imediata destinatária do lucro; e não se deve, mesmo, cogitar de impor ao
Estado tal ônus, porque é evidente que o Estado também é a comunidade. Idem. p., 21-22.
35
RUBINSTEIN (1984). p., 15-16. Numa perspectiva diversa, há quem considere o direito ao trabalho como um atentado contra as noções de
justiça. Sendo assim, o direito ao trabalho seria um meio e uma conseqüência, constituindo-se como uma utopia do comunismo. Para FERRAN, o
direito ao trabalho como um atributo daqueles que pensem ser tal direito como uma ajuda aos desvalidos e como um ato humanitário, por virtude
de uma assistência pública, figura uma grande e flagrante injustiça, sendo tal realização um absurdo e uma impossível formula dentro de qualquer
outra fórmula que comunistas e socialistas tenham proposto. Prova disso e de ‘ter chamado o direito ao trabalho de direito de assistência, irmão
gêmeo e precursor do direito ao trabalho’,são os debates que tomam forma em relação ao assunto. Manifestando-se veemente contrario ao direito
ao trabalho, FERRAN denomina o direito ao trabalho como sendo um direito de trabalhar com os frutos provenientes da propriedade alheia, o que
considera como uma forma vergonhosa de comunismo. Sendo assim, o direito ao trabalho é uma injustiça, entendido também falsamente como
um direito. FERREN (1812). p., 43-59.
36
A primeira Constituição que inseriu direitos importantes para os trabalhadores foi a Suíça (1874), posteriormente emendada em 1896. A Consti-
tuição Francesa de 1848 já previa o direito ao trabalho, mas teve curtíssima duração. E embora a Declaração de Direitos da França de 1793 não
cogitasse direitos sociais específicos para o trabalhador, foi a Constituição mexicana de 1917 a que efetivamente armou significativo quadro de
direitos sociais do trabalhador, posteriormente repetidos por muitos dos países da América Latina. Para a Constitucionalização dos direitos sociais,
os passos mais relevantes foram o Tratado de Versalhes e a Constituição de Weimar (que consagrou a denominada democracia social, mesmo que
‘democracia’ fosse compreendida pouco mais tarde). No Brasil, depois da Revolução de 30 todas as Constituições brasileiras dispuseram sobre
direitos dos trabalhadores. Assim, os direitos devem ser assegurados pelo Estado a fim de se dar eficácia imediata para as normas consagradoras
de direito público subjetivo ao trabalhador. SÜSSEKIND. Op. Cit p., 14-16; 34-35.
37
ROCHA (2001). p., 16-17. Uma das matrizes fundamentais encampadas pelo Constituinte, é o decidido engajamento do Estado brasileiro em um
compromisso de realização de democracia social, indicados nos ‘fundamentos’ da República (tais como cidadania e dignidade da pessoa humana),
e sobretudo nos ‘objetivos fundamentais’, bem como na enunciação da idéia de governo da atividade econômica, ou seja, a ‘valorização do trabalho
humano’ a fim de se assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, em conformidade aos princípios, dentre os quais
o da ‘redução das desigualdades sociais e regionais’ e a ‘busca do pleno emprego’. MELLO (2001) p., 35-37. Para DALLARI, a Constituição pro-
curou assegurar o uso e a defesa dos direitos fundamentais, estabelecendo dispositivos importantes (tais como os parágrafos do artigo 5oda CF/88),
observada a questão da aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais na Constituição. DALLARI (2001) p., 62-63.
38
No sentido do proletariado como uma força política, o autor trabalha com os marcos da declaração solene de direitos sociais, ao lado dos direitos
individuais. Assim, são marcos da declaração solene de direitos: a Proclamação das Quatro Liberdades, de Roosevelt (1941); a Declaração das
Nações Unidas (Washington, 1942); as conclusões da Conferência de Moscou (1943); as conclusões da Conferência de Dumbarton Oaks (1944);
as conclusões da Conferência de São Francisco (1945); e finalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Ademais, a dimensão
‘social’ da democracia marcou o primeiro salto na conceituação dos ‘direitos humanos’ e no significado prático da ‘cidadania’. HERKENHOFF
(2004). p., 47-49. Idem. p., 42.

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AMORIM, I. G.

Nesta linha do direito ao trabalho como função do fundamento que se denota a este dever,
parte integrante dos direitos humanos, tem-se porque se trata de um direito natural derivado de
que tal direito se encontra enraizado no próprio outros direitos naturais primários.41
direito de viver, pois a pessoa humana ser inteli- Ainda no que se refere aos longos debates
gente, livre e responsável, se realiza mediante o doutrinários em relação ao tema, pertinentes são
trabalho. Sendo assim, o direito ao trabalho é um as palavras de SASTRE-IBARRECHE sobre
direito próprio da pessoa humana, pois permite a todo o desenvolvimento em relação ao tema.
pessoa humana desenvolver-se em todas as suas Para o autor, tal direito ao trabalho manifesta-
dimensões. E em sua vinculação com o Estado, se como primeiro direito social historicamente
não cabe ao Estado procurar diretamente trabalho
reivindicado e de elemento em torno do qual
para todos os desocupados conforme entendem
se desencadeia um importante debate entre o
alguns, porque se obrigará ao Estado a procu-
pensamento liberal e socialista.42
rar obrigatoriamente trabalho a seus membros
com uma ingerência absoluta, o que somente No tocante aos direitos fundamentais,
seria possível com um Estado totalitário, que é temos que são eles construções integradas ao
contrário a liberdade, eis que a pessoa humana patrimônio comum da humanidade, resultantes
dependeria completamente do Estado.40 do processo de constitucionalização (iniciado no
Apresentada algumas considerações sobre final do século XVIII) dos denominados direitos
os diversos entendimentos acerca do direito ao naturais do homem, passando a ser objeto de
trabalho, existe autores que entendem a temáti- reconhecimento também, na seara internacional,
ca como um direito natural. Ou ainda, entende representado sobretudo com a Declaração Uni-
o tema como sendo um principio geral de que versal dos Direitos Humanos, de 1948.43
o trabalho não é apenas um dever como uma Conforme GOMES, o direito ao trabalho
afirmação teológica e filosófica. Sendo assim, o é um direito social fundamental. E enquanto tal,
direito ao trabalho trata-se de um direito natural embora diretamente relacionado com o princípio
como conseqüência de um dever que está em da dignidade da pessoa humana, não se pode
39
Devemos pensar com isso nas Constituições outorgadas (de 1824, 1937 e 1967) e nas promulgadas (de 1891, 1934, 1946 e na atual, de 1988), o que
inclui o desenvolvimento do constitucionalismo brasileiro que acabou por culminar nas normas de proteção e valorização do trabalho, incluindo
os avanços e retrocessos em relação a cidadania. Idem. p., 63-107.
40
Dentro desta ótica, a missão do Estado enquanto guardião do bem comum é o de estabelecer instituições favoráveis ao desenvolvimento da coletividade,
fomentando a criação de fontes de trabalho e impulsionando as que já existam, organizando a sociedade de maneira mais propicia para o trabalho.
Com isso, o autor apresentaros precedentes de tais debates através do informe redigido por Beveridge. SOBREVILLA (1960). p., 53-64.
41
Com efeito, o direito natural ao trabalho apóia sua derivação em outros direitos naturais, tais como o direito a conservação da vida, o direito ao
acesso a propriedade e o direito a instituição da família. Trata-se de assim de um direito à existência e um direito ao domínio. Em resumo, o direito
ao trabalho fundamenta sua naturalidade em ser o trabalho uma integração vital do homem e da natureza, do criador e da criatura, do espírito e
suas potencias. Por isso que, em uma sistemática dos direitos naturais,
o direito natural ao trabalho deve ser situado depois do direito a vida, do direito a propriedade, ao matrimonio, a família e a sucessão, que se apóiam
em ordem ontológicas e anteriores a humanidade. MUÑUZ (1962). p., 24-30.
42
Assim, SASTRE-IBARRECHE situa o direito ao trabalho a partir do último terço do século XVIII, coincidindo com a troca fundamental que se
produze na concepção e valorização do trabalho. John Locke, com efeito, formula uma das primeiras reivindicações modernas em relação ao tema,
enquanto principio do valor e da propriedade. No mesmo século, tais idéias são retomadas por Montesquieu e Rousseau. Dado que a relação de
conflito entre o direito ao trabalho e a liberdade de trabalhar consistira, com efeito, a primeira das confrontações entre liberais e socialistas, convém
destacar que embriões do instrumento normativo ao direito ao trabalho recai sobre o Edito de Turgot de 1776 e da Lei Chapelier, de 1791. Sobre
tais precedentes, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, assinalou pontos de referencia em relação aos direitos fundamen-
tais. A partir de tal momento, o direito ao trabalho se reconhece enquanto extremamente importante a partir de 1848. Nesta questão, se constitui
enquanto extensão destes debates o que Fichte utiliza de argumentos parecidos com os colocados por Locke e pelos revolucionários franceses do
século XVIII, para deduzir sobre a base de um direito a propriedade privada que sustenta a propriedade adquirida pelo trabalho, a existência de um
direito ao trabalho e de um direito de assistência, nos moldes de que tratou Hegel. Ademais, nomes como o de Fourier, Considerant, Proudhon e
Blanc resultam como chaves para o tema em questão. Fourier tem sido considerado o precursor do direito ao trabalho. A argumentação do discípulo
de Fourier, Considerant, recorre novamente a idéia de necessária legitimação da propriedade privada pelo trabalho, vendo ainda uma espécie de
reconhecimento de indenização para os proprietários de terra. Em contrario, Proudhon pensa o direito ao trabalho como uma serie de defeitos a fim
de justificar uma posição contraria a seu reconhecimento, qualificando como indigno condenar o trabalhador para sempre ao trabalho. Em resumo,
tanto socialistas como republicanos moderados coincidem em colocar o direito a vida como principio que legitima os direitos sociais, ainda que
entendam diferentemente a forma de compreensão da vida e do trabalho. SASTRE-IBARRECHE. (1996) p., 23-32.
43
SARLET (1999). p., 129-130. Os direitos humanos e os direitos fundamentais compartilham de uma fundamentalidade (ao menos no aspecto
material), pois ambos se referem ao reconhecimento e proteção de certos valores e bens jurídicos, além de reivindicações essenciais aos seres
humanos em geral ou de determinado Estado. Assim, a denominação de direitos fundamentais sociais encontra sua razão na circunstância, comum
aos direitos sociais de defesa e aos direitos sociais prestacionais, de que todos consideram o ser humano na sua concreta situação na ordem social,

88 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009


CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

reduzir a dignidade humana ‘a noção de trabalho jetivamente, não existindo um critério pelo qual
sob a pena de se considerar menos digna a pessoa se opere tal limitação. Mas recordemo-nos que
que não trabalha.44 Não obstante, é o direito ao o artigo 193 da CF/88 estabelece que o trabalho
trabalho um direito fundamental, pois através é a base da ordem social. No que se refere ‘as
dele que se vai obter a seguridade social e, com contingências (art. 201, CF) revela-nos que todas
isto, o direito ‘a saúde, previdência, etc.45 elas estão relacionadas ‘a capacidade laborativa
dos que vivem do próprio trabalho (ou de fami-
liares ou dependentes). Nesse sentido, exercer
5) Direito (Fundamental) ao o trabalho é um critério básico de admissão ao
Trabalho (Digno)46 sistema previdenciário. Também, a remuneração
auferida em contraprestação ao trabalho, dá ao
A Doutrina Social da Igreja, desde a trabalhador condição econômica de participar
Encíclica Rerum Novarum contribuiu para a do custeio das prestações que irão protegê-lo.49
compreensão dos direitos sociais. Tal Encíclica
Sendo assim, o valor trabalho vincula-se
valorizou o trabalho e o homem. Quarenta anos
com as demais dimensões dos direitos sociais.
depois, com a Encíclica Quadragésimo Anno
O trabalho permite a superação de algumas con-
(1931), Pio XI demonstrou a preocupação da
tingências sociais. Sua não superação envolve
Igreja com a questão social. A questão social des-
ações positivas assistenciais do Estado para
crita na primeira das Encíclicas retrata a história
ensejar uma condição de vida digna aos que não
dos direitos sociais como a luta contra a miséria
trabalham.
do operariado. Por sua vez, na comemoração dos
noventa anos da Encíclica, o Papa João Paulo II Por outro lado, o Estado deve promover
editou a Carta Encíclica Laborem Exercens, que políticas que assegurem o pleno emprego e a
trata do trabalho humano. E neste linha, com o liberdade de escolha de um trabalho digno (nesta
trabalho é que se concretizaria a dignidade da perspectiva poderíamos relevar muitas das leis
pessoa humana.47 que protegem a saúde e segurança do trabalha-
Com efeito, a Doutrina Social da Igreja dor, e não um posto de trabalho em si). Sendo
aponta o trabalho nos sentidos objetivo (em que a assim, lembremo-nos que a possibilidade de um
submissão da terra se dá no trabalho e mediante o seguro-desemprego reconhece a impossibilidade
trabalho do homem), e subjetivo, pois é enquanto fática em não se garantir um posto de trabalho
pessoa que o homem é sujeito do trabalho, con- para todos os cidadãos.
ferindo uma dignidade ao trabalho. A finalidade Ademais, o trabalho também auxilia no
do trabalho é a dignidade humana, pois somente sustento das políticas de seguridade social. As-
por meio do trabalho é que se pode efetivar sua sim, o valor trabalho permeia toda a estrutura da
realização como pessoa e contribuir com o pro- ‘Constituição Cidadã’, recaindo sobre o princípio
gresso dos demais integrantes do grupo social.48 da dignidade da pessoa humana.
No âmbito do direito positivo, da previdên- Enquanto tal, deve-se assegurar uma condi-
cia social por exemplo, a proteção é limitada sub- ção de vida digna aos trabalhadores e nos locais

objetivando a garantia de uma igualdade e liberdade material, por meio de prestações materiais e normativas, e por meio de proteção e manutenção
do equilíbrio de forças no âmbito das relações de trabalho. Idem. p., 139; 149. Há que observar ainda o caráter necessariamente relativo da proibição
de retrocesso nos direitos sociais, ilustrado, dentre outros aspectos, pela irredutibilidade salarial. Ver: SARLET (2006) p., 291-335.
44
GOMES (2008). p., 61. No que concerne a dignidade da pessoa humana enquanto um valor e um conceito constitucional, ver densa obra de:
BARTOLOMEI (1987).
45
MELLO, Celso de. A Proteção dos Direitos Humanos Sociais nas Nações Unidas. In.: GOMES. Op. Cit. p., 67.
46
Numa perspectiva filosófica do direito fundamental ao trabalho digno, vide: DELGADO (2006).
47
SANTOS. Op. Cit. 84-87.
48
Idem. p., 86-87. Existe o entendimento de que o conceito de trabalho fora incorporada ao Direito Social brasileiro, na Constituição de 1937, com
base na Doutrina de Leão XIII. Quanto ao assunto, ver: ASHCAR [s.d]. p., 48.
49
O critério essencial de filiação prévia ao sistema previdenciário consiste no exercício do trabalho. Tal sistema visa atender duas necessidades:
a) conservação e criação de condições favoráveis para o trabalho e; b) a viabilidade econômica do sistema, já que se presume que o trabalhador
pode contribuir. Por outro lado, uma filiação facultativa implica numa exceção, pois visa proteger o trabalhador e seus dependentes. O trabalho,

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009 89


AMORIM, I. G.

de trabalho. A Constituição por exemplo, seguin- mesma ótica, uma vez que apenas norma vigente
do diretrizes internacionais, prevê a existência será eficaz por ser aplicável e na medida de sua
de um meio ambiente do trabalho50. aplicabilidade.
Não obstante, a Constituição do Estado Destarte, a problemática recai sobre as
de São Paulo prevê a possibilidade de se inter- maneiras de interpretação do conteúdo e natureza
romper as atividades, sem prejuízo dos salários, das normas constitucionais (o que incide sobre
quando os trabalhadores estiverem em condi- a efetividade e aplicabilidade, ou eficácia), e
ções de risco nos locais de trabalho.51 Não por de outra maneira, também pode ser analisada
mera coincidência, o artigo 3o da Lei 8080/90 partindo-se de algumas técnicas positivação dos
aponta o trabalho (dentre outros) como fator direitos econômicos, sociais e culturais.
determinante e condicionante da saúde.52 Ao Em recente obra, CANOTILHO aponta
referir a promoção, recuperação e proteção da para as técnicas de positivação constitucional
saúde, a Constituição adota o conceito amplo dos direitos econômicos, sociais e culturais
de saúde, “reconhecendo não só a perspectiva de sustentando que as técnicas de positivação des-
pretensão a um corpo e uma mente sem doenças, ses direitos a prestações constitui uma ‘eleição
como também a condições de vida e a um meio racional’ de ‘enunciados semânticos’ ou ‘ditos
ambiente equilibrado”53. E dentro do conceito constitucionais’, sendo ela feita tanto por cons-
de meio ambiente, insere-se o conceito de meio tituintes espanhóis como portugueses.54
ambiente do trabalho.
Nesta perspectiva, observamos que as
maiores críticas que incidem sobre o debate
6) Eficácia e Aplicabilidade do acerca do conteúdo normativo constitucional
referem-se, mesmo que por via reflexa, sobre as
Direito ao Trabalho
técnicas de positivação e natureza das normas
Primeiramente, cumpre ressaltar que efi- da Constituição.55
cácia e aplicabilidade são fenômenos conexos, Ao tratar do problema dos Direitos Funda-
sendo a eficácia encarada como uma potencia- mentais Sociais na CF/88, MORO observa que o
lidade (possibilidade em se gerar efeitos jurídi- Constituinte fez a opção no sentido de outorgar
cos), e a aplicabilidade, por sua vez, vincula-se aos direitos sociais o caráter de fundamentais, se-
com a realizabilidade, razão pela qual eficácia e guindo tendência no plano internacional, como se
aplicabilidade podem ser vistas dentro de uma vê no Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais
assim, resulta importante para a superação das contingências sociais, ao menosalgumas delas. A manutenção dos mínimos de condições de vida
ao trabalhador é o que se busca cumprir com o sistema previdenciário, em contraposição ao mecanismo assistencial de garantias a quaisquer
cidadãos. PULINO (2001). p., 36-50.
50
A doutrina classifica o meio ambiente previsto no artigo 225 da CF/88 como sendo: natural, artificial, cultural e do trabalho, conforme o conjunto
de regras e normas que integram toda a dogmática jurídica. Sendo assim, dentro desta compreensão do meio ambiente nele incluímos o do trabalho.
Lembremos, neste sentido, ainda que ede maneira breve, o seguinte: Art. 7o, inc. XXII CF/88, no tocante aos direitos dos trabalhadores; Art. 200,
CF/88. “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (...) VIII) colaborar na proteção do meio ambiente, nele
compreendido o do trabalho.“ Nesta linha, recordemo-nos também da Convenção de n. 148 da OIT, que dispõe do meio ambiente do trabalho, e
diversas outras Convenções da OIT que visa proteger a saúde e dar mais segurança ao trabalhador. Mas numa ótica da legislação brasileira, devemos
levar em consideração também as inúmeras normas regulamentadoras (NR), instruções normativas e demais garantias de melhores condições de
saúde e segurança no meio ambiente do trabalho, expressamente contidas e dispostas em legislação infraconstitucional, muitas delas acessíveis no
site do Ministério do Trabalho, ou ainda os artigos constantes da CLT sobre a proteção do trabalhador.Sobre esta questão, notemos que o legislador
outorgou ao Ministério do Trabalho (conforme orientação do Art. 200 da CLT), a regulamentação das questões concernentes à segurança e saúde
do trabalhador, havendo com isso 32 normas regulamentadoras neste sentido.
51
Trata-se da denominada ‘greve ambiental’. Assim, prevê o Artigo 229, parágrafo 2º, da Constituição Paulista que: “Em condições de risco grave
ou iminente no local de trabalho, será lícito ao empregado interromper suas atividades, sem prejuízo de quaisquer direitos, até a eliminação do
risco”.
52
Acerca da saúde, temos o Artigo 3o da Lei 8080/90, que: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros (...), o meio
ambiente, o trabalho, (...)”.
53
WEICHERT (2004). p., 124.
54
A positivação se daria das seguintes formas: a) sob a forma de normas programáticas definidoras de fins e tarefas do Estado, de conteúdo social;
b) na qualidade de normas de organização, atributivas de competências para a emanação de medidas para esses planos; c)através da consagração
constitucional de garantias institucionais, tal como se dá na saúde por exemplo; e d) positivação dos direitos sociais como direitos subjetivos
públicos, ou seja, como direitos inerentes a existência do cidadão. CANOTILHO (2008). p., 37-38.

90 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009


CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

e Culturais por exemplo. No entanto, ressalta o materializam-se com a entrega de determinadas


autor acerca dos questionamentos em relação utilidades concretas, tais como a educação e a
‘a capacidade e legitimidade em se tutelar judi- saúde.59
cialmente os direitos sociais. No que concerne Dependendo das circunstâncias do caso
‘a ‘judiciabilidade’ dos Direitos Fundamentais concreto, a norma materializada a partir de um
Sociais, além da efetividade do direito, assume
único enunciado formalizador do direito ao
igual importância a questão institucional da
trabalho poderá assumir o caráter tanto de prin-
proteção e efetivação dos direito fundamental.56
cípios como o de regras. Tal noção recai pois,
Na perspectiva teórica da doutrina brasilei- sob uma perspectiva pós positivista de análise.60
ra que reconhece a efetividade e força normativa
Ao trabalhar partindo-se das dimensões
da Constituição, os direitos constitucionais, e os
direitos sociais em particular, converteram-se em objetivas e subjetivas do direito ao trabalho,
direitos subjetivos em sentido pleno, comportan- ressalta-se que a Constituição de 1988 não
do tutela judicial específica.57 explicitou um dever fundamental de trabalhar.
Neste aspecto, nos países em que não se pode
Nesta doutrina da efetividade, de reco-
exigir do Estado um posto de trabalho, como é
nhecimento de força normativa das normas
o nosso caso, o dever de trabalhar assume uma
constitucionais, estas normas jurídicas (como as
normas em geral), são dotadas de um atributo de dimensão ética, onde não se pode constranger
imperatividade. Dessa forma, tais direitos subje- alguém a trabalhar.61
tivos (políticos, individuais, sociais ou difusos), Entrementes, “nem toda a obrigação jurí-
são exigíveis do Poder Público por via de ações dica decorrente de uma norma jurídica terá, ao
constitucionais e infraconstitucionais.58 seu lado, um direito subjetivo”. Sendo assim, é
Sendo assim, os direitos sociais são comu- o titular do direito ao trabalho a pessoa humana,
mente identificados como aqueles que envol- que poderá com o trabalho superar suas as con-
vem prestações positivas por parte do Estado, tingências sociais. Sendo a pessoa humana tal
motivo pelo qual demandariam investimentos titular, pode ela estar atuando como trabalhador
de recursos nem sempre disponíveis. Estes autônomo ou subordinado, esteja ela sem qual-
direitos, também referidos como prestacionais, quer ocupação imediata.62
55
Algumas dessas críticas, ou objeções ao problema da fundamentalidade material dos direitos sociais, são de caráter: Deontológica; Institucional
(‘não justiciabilidade’); Particularista (‘não fundamentabilidade’); Majoritária ou Democrática; Contratual ou de Controle (‘controlabilidade’ das
ações governamentais); Funcional ou Ideológica; Pragmática; e Formal-positivista. GOMES. Op. Cit. p., 7-8.
56
Duas opções: a) limitar ‘a esfera política as conseqüências da atribuição a um direito de caráter fundamental; b) atribuir ‘a instituição o poder de
garantidor de direito fundamental, independentemente da maioria política. Não obstante, a jurisdição constitucional representa garantia institucional
superior ao direito fundamental. Embora pareça contraditório se falar em direitos fundamentais destituídos de proteção institucional contra a maioria
política, não há, em realidade, uma vinculação semântica necessária entre fundamentalidade e jurisdição constitucional. Trata-se de uma opção
política que se fundamenta na oposição entre democracia e direitos fundamentais. A oposição é agravada pela questão institucional quando a guarda
dos direitos fundamentais é atribuída a órgãos independentes da maioria política, como é o caso da jurisdição constitucional. Com efeito, a CF/88
optou pela jurisdição constitucional adotando um sistema de controle de constitucionalidade que mesclou características do modelo norte- americano
e do modelo europeu. Com isso, pode-se entender a tarefa atribuída ao Judiciário de proteção e efetivação dos direitos fundamentais sociais. Em
relação a atuação judicial em prol dos direitos fundamentais sociais, existem basicamente duas perspectivas: 1) no tocante ‘a inexistência de lei, é
passível a efetivação judicial; 2)existindo lei (direitos sociais), se exige do juiz constitucional a consideração de tais estruturas como relacionadas
aos direitos fundamentais. Assim, as ações coletivas são o meio mais adequado para uma avaliação de política pública destinada a proteção e
efetivação dos direitos sociais fundamentais. Em conclusão, os direitos fundamentais sociais (além de merecida qualificação) são passíveis de
proteção e efetivação judicial, com amplas perspectivas de atuação do Judiciário. MORO (2006). p., 269-292.
57
BARROSO (2008). p., 221-222.
58
Idem. p., 223-224.
59
Reconhece-se a necessidade em se elaborar novas formulações doutrinárias de base pós-positivista, que abrigue debates como: a colisão entre
normas; a ponderação de princípios; mínimo existencial e fundamentalidade material dos direitos. De toda sorte, o autor utiliza-se de uma meto-
dologia positivista (eis que Direito Constitucional é norma); e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos, pois
‘se está na Constituição é para ser cumprido’. BARROSO. Op. Cit. p., 223-224.
60
GOMES. Op. Cit. p., 89.
61
Idem. p., 117. O direito ao trabalho não pode concretizar-se contra a liberdade de trabalho e profissão, não podendo o Estado impedir ou impor
determinada atividade sob o pretexto da realização do direito ao trabalho. In: MIRANDA, J. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV, p., 498.
62
Apud: GOMES. Op. Cit. p., 120.
O conceito de titularidade congrega ainda a capacidade para o seu exercício. Quanto ao destinatário, além do Estado passou-se a cogitar também a
possibilidade de aplicação no âmbito privado. Sobre esta possibilidade, as teorias são divergentes (Vieira de Andrade, por um lado; NIPPERDAY

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009 91


AMORIM, I. G.

No mais, os direitos sociais não podem ser teriam a estrutura característica dos princípios.
protegidos como pretensões justiciáveis, ou seja, Não obstante, existe ainda entendimentos que
como demandas cuja satisfação possa ser exigida interpretam os direitos fundamentais (inclusive
perante órgão competente. Nesta linha, recorda os direitos sociais) como regras.64
o que ALEXY denomina de ‘justiciabilidade Partindo do debate de ALEXY acerca
deficiente’. Estes direitos, por sua vez, possuem da distinção entre regras e princípios, RAMÍ-
um conteúdo geral que não pode (na maioria das REZ aponta que (frente ao debate acerca da
vezes), se deduzir pretensões jurídicas concretas aplicabilidade das normas constitucionais), a
(tarefa via Legislativo).63 indeterminação do conteúdo de muitos dos di-
Buscando superar alguns dos debates reitos fundamentais (assim como a necessidade
brevemente expostos, o autor parte de que não de ponderação) atuam como fundamentos para
há nada nos direitos sociais que os impeça de determinar que as normas de direito fundamen-
considerá-los fonte de deveres tanto para os tal têm caráter de princípio. No caso de direitos
poderes públicos como para os particulares (ci- prestacionais em sentido estrito (ou direitos
dadãos). Nesse sentido, acredita que a opinião sociais), o caráter principal das normas que
dominante em torno da questão é a que considera constituem as disposições fundamentais adquire
que as normas constitucionais que recolhem ou maior notoriedade.65 Destarte, dentre as normas
enunciam direitos fundamentais em geral (e qui- constitucionais, podem algumas possuir plena e
çá os direitos sociais prestacionais, em especial), imediata eficácia; e outras devem ser discipli-

e CANARIS, em certo sentido, por outro). A identificação do destinatário, assim, se vincula com a existência (ou não) de uma relação jurídica
base. No caso de uma relação jurídica abstrata, não haverá um direito subjetivo de demandar em juízo; e o destinatário jurídico implícito será
sempre o Estado quanto ao seu dever de guardar este direito fundamental. Neste aspecto, defende o autor um caráter alimentar do salário, com
isso passível de uma prisão civil. GOMES. Op. Cit. p., 147-170. Para CLEVE, as correntes brasileiras que pensam sobre o tema demonstram que
ao Estado cabe um duplo papel, abster-se (por um lado), e por outro agir para promover as iniciativas dirigidas ‘a promoção de tais direitos, bem
como os pressupostos para seu exercício. Nestes termos, o direito ao trabalho fora incluído no título adequado, constituindo-se portanto como um
direito fundamental e não meras normas programa. Sendo assim, ao tratar dos direitos de defesa e dos direitos prestacionais, observa-se que estes
incidem sobre os parágrafos do artigo 5o da Constituição Federal de 1988. Ademais, vincula-se o artigo 6o com os direitos fundamentais em suas
dimensões objetiva e subjetiva e, ainda, numa normativa constitucional no campo da autonomia privada (eficácia horizontal dos direitos funda-
mentais). Encontram-se ainda no artigo 6o da CF/88 direitos prestacionais originários (aplicáveis mesmo sem norma regulamentadora) e direitos
prestacionais derivados. Nestas análises, se faz importante as ressalvas acerca do mínimo existencial em relação aos direitos sociais e acerca da
proibição de retrocesso social e reserva do possível. CLEVE (2003). p., 17-29.
63
RAMIREZ (2000). Este tema se converteu numa dogmática constitucional alemã do pós guerra, num importante setor em que FORSTHOFF en-
cabeçava, sustentando a não constitucionalização dos direitos sociais. Nesta linha, o Estado de Direito e Estado Social não são compatíveis (num
plano constitucional), pois não se pode estender a Constituição do Estado de Direito até a garantia de previsão de existência, vez que a ‘Consti-
tuição não é um supermercado onde se possam satisfazer todos os desejos’. Com isso, os direitos sociais não seriam tipos de formulações aptos
para fundamentar direitos e deveres concretos. Assim, direitos sociais, como o direito ao trabalho, não se podem captar em uma norma abstrata
suscetível de interpretação. FERRAJOLI, por sua vez, sustenta que o Estado Social de Direito não tem conseguido introduzir mecanismos capazes
de assegurar uma satisfação dos direitos sociais. CASCAJO, prosseguindo, coloca a necessidade em se superar a tese de que a incompatibilidade
de aplicação imediata dos direitos sociais constitucionais vem de sua própria indeterminação (época de Weimar). Com efeito, PRIETO contribui
para a superação do positivismo teórico que considerava a impossibilidade em se falar em verdadeiras normas, onde falta um suposto fato ou uma
conseqüência jurídica perfeitamente delimitada. Assim, as normas materiais da Constituição seriam em geral esquemáticas, abstratas, indetermi-
nadas e elásticas, mas não por isso significaria (ou representaria) alguma dificuldade em seu caráter vinculante. BOCKENFORDE, sustenta que
embora os direitos sociais não desfrutem de aplicabilidade imediata e possibilidade de ser justiciável, não significa que seriam simples proposições
pragmáticas. Deles derivam deveres jurídicos- objetivos, se podendo extrair um componente jurídico- subjetivo. Idem.
64
RAMÍREZ. Op. Cit.
65
Partindo de uma perspectiva da Constituição Espanhola, RAMÍREZ sustenta não ser possível a derivação de regras com um conteúdo definitivo por
três razões: a) a indeterminação e ambigüidade das normas jusfundamentais que regulam constitucionalmente o direito ao trabalho: que partindo de
SASTRE- IBARRECHE, apresenta o caráter difuso do conceito, sendo que os elementos que compõe a estrutura do direito ao trabalho (sujeito ativo
e passivo; objeto e garantias de efetividade) ficam afetados pela difusão conceitual. Nessa linha, PRIETO menciona que haveria uma modalidade
de direitos prestacionais denominados de “direitos propriamente ditos” que apresentam a fisionomia de direitos, tal como o direito ao trabalho.
Estes ‘direitos propriamente ditos’ não seriam princípios abertos, mas regras que, ainda que imprecisas, permitiriam fundar pretensões concretas
via interpretação. Ao destacar SASTRE- IBARRECHE, aponta o direito ao trabalho como uma medida de fomento de emprego e ideal de que cada
pessoa possa garantir e gozar de um trabalho adequado e seguro. Em torno da idéia de regulação e interpretação dos direitos fundamentais gira a
teoria defendida por RODRIGUEZ- TOUBES. Mas acerca deste primeiro item, adverte o autor que ponto de vista similar nos conduziria à uma
concepção absolutista em demasia e rigorista dos direitos sociais e, em geral, dos direitos fundamentais. b) outra razão é a impossibilidade fática
e jurídica do cumprimento do conteúdo máximo, cujo debate recai na distinção de ALEXY de conteúdo máximo e mínimo dos direitos sociais
fundamentais, podendo-se também aplicar ao direito ao trabalho. Assim, o direito ao trabalho não atribui a seus titulares a habilitação constitucional
de obter a qualquer momento um posto de trabalho adequado, pois: 1) nem o Estado e nem o sistema econômico compreendem o número suficiente
de postos de trabalho para assegurar emprego para todos; e 2) num plano normativo, esta temática nos conduziria ‘a uma colisão entre direitos
sociais e direitos de liberdade. Tais teses conduzem PECES- BARBA a considerar que o direito ao trabalho (entendido como o direito de reclamar

92 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009


CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

nadas por lei ordinária. Mas ambas devem ser Constituição, que só vai ser preservada onde os
iluminadas por princípios consagrados, os quais direitos sociais e individuais também são preser-
representam os fundamentos básicos para a reali- vados, sem ceder a pressões de natureza fática
zação dos postulados da justiça social e da ordem e de contingência. Assim, uma vez localizados
econômica. A esses princípios cabe o comando os direitos sociais e colocados como direitos
da integração das normas enunciadas, previstas fundamentais, a dinâmica de interpretação será
ou possibilitadas ao sistema constitucional.66 aquela que tem por escopo a unidade político-
Para CANOTILHO, tratar-se-ia de “uma constitucional dentro desse sistema.70
obrigação não- relacional, no sentido de que As normas de direitos fundamentais são,
haveria, em face deste direito, um dever não- assim, valores que devem guiar a interpretação
relacional do Estado, uma obrigação ‘prima face’ da Constituição. Desse modo, os enunciados do
garantida por normas não vinculantes”.67 É ainda
artigo 6o da CF/88 possuem densidade normativa
um direito social fundamental. Um complexo de
vinculado ao princípio da dignidade da pessoa
posições jusfundamentais, regras e princípios,
humana, constituindo-se como valores basilares
que podem funcionar autonomamente.68 Assim,
do Estado Social e Democrático de Direito e,
exceto algumas especificações, apenas cabe qua-
portanto cláusulas pétreas, cuja abolição acaba-
lificar como princípios (no sentido de mandatos
de otimização) e não como regras, as normas que ria por destruir a própria identidade da ordem
protegem o direito ao trabalho.69 Mas o problema constitucional.71
básico que se observa é o de força normativa da

um posto de trabalho) não pode ser positivado pelo fato de não ser, realmente, direito. c) por fim, uma última razão recai sobre o caráter reflexo do
conteúdo das posições subjetivas prestacionais do direito ao trabalho, em que parte da doutrina e jurisprudência defendem que o conteúdo prestacional
realizável do direito ao trabalho teria um caráter débil ou diluído. Com isso, o direito ao trabalho seria (em partes) a realização do pleno emprego
e sua política. Tais princípios seriam entendidos como mandato de otimização. RAMÍREZ então apresenta duas possibilidades de se inscrever o
direito ao trabalho normas com a estrutura de regras: 1) naquilo que ALEXY denomina de direitos sociais mínimos e; 2) o fato de que o direito
dos presos ‘a um trabalho remunerado está protegido como regra e não como mandato de otimização (artigo 25, II da Constituição Espanhola).
Neste sentido, apenas os presos são legitimados a propor e reclamar ante a jurisdição ordinária tal pretensão, sendo aspecto um autêntico direito
subjetivo, e constituindo-se como uma norma de princípio (mandato de otimização) e não como uma regra. Idem.
66
Auto- executável ou mesmo programática, qualquer princípio constitucional é um mandamento vinculante em suas relações concretas. Válido é
mencionar ainda que o artigo 157 da Constituição de 1967, relativamente aos princípios, dispôs que a ordem econômica, com o fim de realizar a
justiça social, se baseava em princípios, dentre os quais o da “valorização do trabalho humano como condição da dignidade humana” (inc. II); e
da “harmonia e solidariedade entre os fatores de produção” (inc. IV). Este texto foi parcialmente modificado pela Emenda Constitucional de 1969,
prescrevendo em seu artigo 160, que a ordem econômica e social teria por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base
nos princípios mencionados anteriormente, acrescido de um sexto inciso, que previa como princípio a “expansão das oportunidades de emprego
produtivo”. Nesta linha, os princípios relativos `a ordem econômica e social, em virtude dos quais a liberdade de iniciativa (cujos freios são as
exigências da função social da propriedade e a necessidade de valorização do trabalho em defesa da dignidade humana), fundamentam: a intervenção
básica do Estado nas relações de trabalho, legitimada pelo princípio da proteção; e pelo princípio consagrado desde o Tratado de Versalhes, onde
o trabalho não pode ser considerado artigo de comércio. SÜSSEKIND, A. Op. Cit. p., 45-51.
67
CANOTILHO. (2008) p., 94.
68
GOMES. Op. Cit. p., 95. Assim, corrobora com a teoria desenvolvida por Alexy, que (após análise da estrutura deôntica das normas) conclui que
elas encerram num feixe de posições jusfundamentais. Com isso, pretendeu demonstrar que um mesmo dispositivo normativo pode gerar normas
diversas (com estrutura deôntica de direitos prestacionais e direitos de defesa), em consonância com os casos concretos. Tais normas, no entanto,
investem o titular numa gama de posições jusfundamentais, de modo que ele pode assumir uma exigência ou uma abstenção do Estado, no sentido
de que deveria o Estado fornecer condições materiais para que tal direito fosse exercido. OLSEN (2008). p., 57.
69
RAMIREZ. Op. Cit.
70
CORREIA toma como base o estudo da segurança social. Nesta linha, a interpretação deve-se fazer via perspectiva onde os direitos sociais são
fundamentais. Portanto, ao lado dos direitos individuais fundamentais existem os direitos fundamentais sociais, e a estes aplicam-se a metodologia
de dicção e interpretação do direito, que é aplicável aos primeiros, no sentido de uma maximização de resultados. CORREIA. p., 263-264; 268.
No tocante ao artigo 6o da CF/88, o que se está fazendo é positivando um direito fundamental como subjetivo. Mas não é pelo fato de referir-se a
um direito ao trabalho que se pode extrair a conseqüência de que o particular possa reclamar judicialmente um emprego. SARLET(2007). p., 320.
71
Partindo-se dos direitos fundamentais enquanto normas programáticas, as normas de direitos sociais do artigo 6o da CF/88 são tidas como aquelas
cujo objetivo visado é o propiciamento aos indivíduos de redução de desigualdade social e efetiva liberdade material, em prol da justiça social.
A norma jurídica possui caráter prescritivo, embora o legislador utilize uma linguagem descritiva. Sendo assim, o referido artigo está indicando
que há uma série de bens jurídicos a serem tutelados. E estas normas programáticas possuem natureza principiológica, vez que, ao instituírem
estes bens, proclamam um ideal de coisas a ser atingido. Dos efeitos reconhecidos ‘as normas programáticas, conseqüência da sua dimensão
objetiva, resume-se da seguinte maneira: têm elas função de princípios; constituem sentido teleológico; irradiam efeitos para as relações privadas;
condicionam as demais normas constitucionais e infraconstitucionais; atuam como parâmetro do direito objetivo; geram dever de proteção do
Estado com relação aos bens jurídicos por elas tutelados; necessidade de organizações e procedimentos; devido sua natureza principiológica,
constituem-se como mandados de otimização. E dessa irradiação, surge direitos subjetivos para os particulares (uns perante os outros), e ações
negativas. MEIRELES (2008). p., 460-469.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009 93


AMORIM, I. G.

mo atual, quais sejam a aplicação das normas


previstas constitucionalmente, os debates acerca
7) Considerações Finais do mínimo existencial, dos princípios constitu-
cionais, etc.
Em suma, temos que o direito ao trabalho
é um direito social e também um direito funda-
mental. Enquanto direito social, vincula-se com Referências Bibliograficas
o debate teórico acerca da cidadania, eis que
encontra-se como parte de evolução do próprio ALEXY, Robert. Epilogo a la Teoria de los
conceito. Por sua vez, enquanto direito funda- Derechos Fundamentales. Madrid: Colegio de
mental, o direito ao trabalho relaciona-se com o Registradores, 2004.
processo de positivação dos direitos humanos e
com todo o processo de evolução do constitucio- AMORIM E SOUZA, Ronald. Direito ao Tra-
nalismo. E neste sentido, recai sobre a própria balho. São Paulo: LTr, 1985.
discussão sobre a dignidade da pessoa humana e ARANGO, Rodolfo. Protección Nacional e In-
sobre o Estado Democrático de Direito. ternacional de los Derechos Humanos Sociales.
Não obstante, o direito ao trabalho e a En: Ciudadanía y Derechos Humanos Sociales.
cidadania são normas jurídicas positivadas Escuela Nacional Sindical, 2001.
constitucionalmente. O ‘trabalho’, ademais, é
ASHCAR, Camilo. Leão XIII e o Direito Social
um ‘valor social’, sendo ainda um principio,
Brasileiro. São Paulo: Clássico- Científica, [s.d].
fundamento, valor e direito social. O ‘primado
do trabalho’, neste sentido, figura-se como um BARASSI, Lodovico. Diritto del Lavoro. Vol.
princípio constitucional e como base da Ordem II. Milano: Ed. Dott. A. Giuffre, 1949.
Social. O valor dado ao trabalho, ainda, foi colo- BARBALET, J. M. A Cidadania. Lisboa: Es-
cado como fundamento do Estado Democrático
tampa, 1989.
de Direito em igualdade de importância com a
cidadania, apresentando um caráter social mas BARROSO, Luis Roberto. Da Falta de Efeti-
também econômico. No mais, além de direito vidade ‘a Judicialização Excessiva: direito ‘a
social o direito ao trabalho é uma diretriz a ser saúde, fornecimento gratuito de medicamentos
perseguida pela legislação infraconstitucional, se e parâmetros para a atuação judicial. In: Consti-
tomarmos, por exemplo, a Lei n. 10257/2001. tuição e Efetividade Constitucional. Cap. XIII.
Com efeito, o direito ao trabalho não es- São Paulo: JusPodivm, 2008.
tabelece uma obrigação do Estado em arrumar BARTOLOMEI, Franco. La Dignitá Umana
trabalho para todos, eis que proteger o desem- come Concetto e Valore Constituzionale. Torino:
pregado também está previsto na dogmática G. Giappichelli, 1987.
jurídica. Não menos importante, o trabalho é um
critério de admissão ao sistema da previdência Boletim da Comissão Executiva do 3o Congresso
social, e também forma de financiamento de Operário. Ano I. N. 1. São Paulo: Agosto de
todo o sistema da Seguridade Social, nele com- 1920.
preendido, além da Previdência, a Assistência BONAVIDES, P; LIMA, F. G. M. de; BEDÊ,
Social e o Sistema Único de Saúde. Nesta ótica, F. S. Constituição e Democracia. Estudos em
o trabalho permite a superação das contingências homenagem ao Prf. J. J. Gomes Canotilho. São
sociais (ou ao menos algumas delas), sendo que Paulo: Malheiros, 2006.
a sua não superação envolve ações positivas
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(assistenciais) por parte do Estado para ensejar
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condições de vida digna aos que não trabalham.
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fim, recai sobre os debates do constitucionalis- Fundamentais. São Paulo: LTr, 2008.

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96 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 79-96, junho/2009


Artigo

SEGURANÇA ALIMENTAR NA
ERA BIOTECNOLÓGICA

João Carlos de Carvalho Rocha* RESUMO: O objetivo deste artigo é delimitar


o conteúdo do direito humano à alimentação, e
discutir em que medida os alimentos genetica-
mente modificados afetam o combate à fome no
mundo, seja negativa ou positivamente,. Para
tanto, além do estado atual da produção biotéc-
nológica, considera-se o instrumental teórico
desenvolvido por Amartya Sen em seus estudos
sobre a fome e desnutrição.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Alimentos
geneticamente modificados. Combate à fome.
Biotecnologia

ABSTRACT: This article aims to define the


content of the human right to food, and to discuss
the extent in which genetically modified food
affects the fight against hunger in the world,
whether negatively or positively. Thus, beyond
the current state of biotechnological production,
it is taken into account the theoretical tools deve-
loped by Amartya Sen in his studies on hunger
and malnutrition.
Keywords: Human rights. Genetically modified
food. Gighting hunger. Biotechnology

1. Introdução

Um dos argumentos mais persuasivos


manejado pelos defensores da biotecnologia
de modificação genética é a possibilidade de
aumentar o potencial nutritivo de alimentos

*
Procurador Regional da República na 4a. Região, Mestre em Direito pela PUC/RS, autor do livro Direito ambiental e transgênicos: princípios
fundamentais da biossegurança (2008).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009 97


ROCHA, J. C. C.

tradicionalmente consumidos em países pobres viuvez, velhice e outros casos de perda


e assim erradicar a fome de centenas de milhões dos meios de subsistência em circuns-
de pessoas. É sobre esse argumento, com o qual tâncias fora de seu controle.”
a indústria biotecnológica procura se apresentar
como aliada dos direitos humanos, que se bus- O direito à alimentação constitui-se por-
cará refletir neste breve estudo. tanto em direito humano de conteúdo material,
porque envolve o cumprimento de prestações
Para tanto é necessário abordar os diversos
positivas, e é diretamente afetado por políticas
aspectos relacionados com a alimentação, distin-
sociais e econômicas e delas depende para sua
guir a fome de outros fenômenos relacionados
realização, se não quanto a sua promoção, pelo
com deficiências na dieta humana, delimitar
menos para evitar que as políticas sociais e
os aspectos positivos e negativos das novas econômicas não criem obstáculos à realização
técnicas em biotecnologia e, sobretudo, definir desse direito. No Brasil, a lei n. 11.346, de 15
parâmetros de segurança alimentar e explicitar de setembro de 2006, criou o Sistema Nacional
os critérios que levam a adoção de determinado de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN,
modelo de segurança alimentar e os valores em com o objetivo primordial de assegurar o direito
jogo na adoção desses critérios. humano à alimentação adequada. O seu art. 2º
A conclusão esperada deve confrontar os situa com precisão a alimentação adequada como
meios atuais de produção agrícola de organismos direito fundamental:
geneticamente modificados com o modelo de
segurança alimentar que venha a se entender Art. 2o A alimentação adequada é direito
fundamental do ser humano, inerente à
mais adequado para a efetividade do direito à
dignidade da pessoa humana e indispen-
alimentação.
sável à realização dos direitos consagra-
dos na Constituição Federal, devendo o
2. Direito humano à alimentação poder público adotar as políticas e ações
que se façam necessárias para promover
O direito à vida é o primeiro dos direitos e garantir a segurança alimentar e nutri-
humanos, vez que é a garantia da própria exis- cional da população.
tência. O acesso à alimentação adequada, a uma O direito humano ao alimento, entendido
quantidade regular de calorias e nutrientes, é como direito à segurança alimentar, é parte in-
essencial para que o ser humano permaneça vivo tegrante do direito ao desenvolvimento, o que
e que seu corpo e sua mente se desenvolvam implica na análise das condições que produzem
de forma saudável. A respeito, a Declaração e perpetuam a fome, como estratégia de negação
Universal dos Direitos do Homem, aprovada na do acesso às condições de desenvolvimento a
III Sessão Ordinária da Assembléia Geral das países, regiões e povos. Para o Banco Mundial
Nações Unidas, dispõe em seu art. XXV,1: segurança alimentar “é o acesso permanente de
“ARTIGO XXV todas as pessoas a alimentos suficientes para
uma vida saudável e ativa”1. A Conferência
1) Todo homem tem direito a um padrão Mundial sobre Alimentação de 1996, promovida
de vida capaz de assegurar a si e a sua pela FAO, define segurança alimentar em termos
família saúde e bem-estar, inclusive convergentes: “Existe seguridad alimentaria
alimentação, vestuário, habitação, cui- cuando todas las personas tienen en todo mo-
dados médicos e os serviços sociais mento acceso físico y económico a suficientes
indispensáveis, e direito à segurança em alimentos inocuos y nutritivos para satisfacer sus
caso de desemprego, doença, invalidez, necessidades alimentícias y sus preferencias en
1
CONWAY, Gordon. Produção de alimentos no século XXI - biotecnologia e meio ambiente, p. 323.

98 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009


SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA BIOTECNOLÓGICA

cuanto a los alimentos a fin de llevar una vida Considerados os parâmetros definidos pelo
activa y sana”2. National Research Council (EUA), aqui registra-
Não obstante o aspecto positivo das defini- dos apenas para fins ilustrativos, recomenda-se
ções transcritas em por em relevo a questão do uma ingestão diária de 2.900 calorias para ho-
acesso permanente e universal, o problema da se- mens entre 19 a 50 anos e de 2.200 calorias para
gurança alimentar não se encontra simplesmente mulheres no mesmo intervalo etário. Admitido
na quantidade, mas em especial, na qualidade que o número de homens e mulheres na popu-
dos alimentos postos à disposição. É importan- lação é aproximado, o consumo calórico médio
te considerar, em complemento, que uma vida entre adultos é de 2.550 calorias/dia. À exceção
saudável e ativa deve abarcar o atendimento de dos adolescentes do sexo masculino entre 15 e
outras necessidades com destaque aquelas que 18 anos, cujo consumo recomendado é de 3.000
abragem o mínimo existencial nas áreas de saú- calorias/dia, e dos homens jovens,nenhum outro
de, educação, vestuário e habitação. Assim, o grupo fica acima daquela média.4
acesso à alimentação, para ser efetivo, não deve Dados da FAO (Organização das Nações
prejudicar nem comprometer o acesso aos de- Unidas para Agricultura e Alimentação), referen-
mais direitos que definem as condições materiais tes as diversas regiões do planeta, indicam que
essenciais para a vida com dignidade. o consumo calórico diário é assim distribuído:
Diversos aspectos devem ser considerados mais de 3.500 cal./dia na América do Norte e
ao situarmos o direito ao alimento na perspectiva Europa Ocidental; 3.010 cal./dia no oeste da
mais ampla do direito ao desenvolvimento, entre Ásia e norte da África; 2.690 cal./dia na América
as quais: sobrevivência, bem-estar, identidade, Latina e Caribe; 2.600 cal./dia no leste da Ásia;
2.220 cal./dia no sul da Ásia e 2.100 cal./dia na
liberdade, produção, distribuição, natureza,
África subsaariana.5
estrutura e cultura3. A luta contra a fome é, em
primeiro plano, uma luta pela sobrevivência. Mas É claro que essa distribuição não tem em
a questão da fome não é efetivamente resolvida conta diversas outras variáveis, como o clima, a
sem que se assegure o acesso das populações aos maior ou menor dependência das circunstâncias
alimentos, respeitando as opções, as formas de naturais (precipitação de chuvas, ventos, etc.)
produção e consumo, os hábitos, preferências e na economia local, e as necessidades indivi-
preceitos de cada grupo humano em relação aos dualizadas de consumo, seja por maior uso da
alimentos. Não se trata de garantir apenas uma energia muscular (trabalhadores braçais) ou por
quantidade diária de calorias e nutrientes ou deficiência metabólica (algumas populações são
de descobrir o Big Mac universal que saciará mais sujeitas a doenças como anemia e diabetes).
a todos. E ainda que o quantum mínimo de calorias esteja
suprimido, podem haver sérias deficiências desta
ou daquela vitamina ou mineral.
3. O problema da fome Evidente que tanto a subnutrição quanto
a fome, entendida como o estado crônico de
A fome não é um fenômeno exclusiva- carência alimentar que leva a morte, coletiva ou
mente biológico. Entretanto, para compreendê- endêmica, atentam contra o direito humano à se-
la cumpre analisar o que a fome não é. E aqui gurança alimentar. De acordo com a Declaração
perquirimos inicialmente sobre a desnutrição e de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial,
outras disfunções no consumo de alimentos. oitocentos milhões de pessoas ao redor do

2
Plan de Acción de la Cumbre Mundial sobre la Alimentación, documento firmado pela Conferência Mundial sobre Alimentação, realizada em
Roma, entre 13-17 de novembro de 1996. Cf.
http://www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm. Acesso on line em 20/02/04, às 17:38.
3
GALTUNG, Johan. Direitos humanos - uma nova perspectiva, pp. 180-183.
4
Apud WILLIAMS, Sue Rodwell. Fundamentos de Nutrição e Dietoterapia, p. 242, tabela 12.2. e p. 258, tabela 13.1.
5
CONWAY, Gordon. Ob. cit., p. 24.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009 99


ROCHA, J. C. C.

mundo, e em particular nos países em desenvol- Creta. Dela se originou a cornucópia, ou Corno
vimento, não dispõem de alimentos suficientes da Abundância. Narra o mito que um dia Zeus
para satisfazer suas necessidades nutricionais bá- estava brincando com a cabra quando quebrou
sicas6. Confirmando esses dados, o relatório The o seu chifre. Para compensá-la, Zeus conferiu
state of food and agriculture 2003-2004, da FAO a esse corno o poder de se encher com todos
(Food and Agriculture Organization), produzido os frutos que fossem desejados. A cornucópia
oito anos após a Declaração de Roma, indica a tornou-se, assim, símbolo da abundância e da
existência de 842 milhões de subnutridos no fertilidade ilimitada, que só pode ser obtida por
mundo, sendo 798 milhões em países em desen- dom divino9.
volvimento, 34 milhões em países em transição Separado do mito grego por milênios, o
e 10 milhões em países desenvolvidos. A África país da Cocanha reflete a mesma simbologia
subsaariana e a Ásia respondem por 703 milhões dessa feita em um universo medieval. Com al-
do total. O percentual de indivíduos subnutridos gumas variações, a Cocanha é apresentada como
em relação à população mundial é de 17%, contra uma terra fantástica, na qual doces nascem em
a taxa de 28% de duas décadas atrás.7 árvores, caldas jorram de nascentes, pombos e
É justamente naquelas situações de fome faisões devidamente assados voam pelo ar, vales
endêmica ou epidêmica que o ser humano é mais são formados por manteiga derretida e vulcões
vilipendiado em sua dignidade e auto-estima, lançam sopa quente das entranhas da terra10.
alcançando graus extremos de exclusão social. A imagem de uma fonte infinita de recur-
O faminto torna-se um ser invisível na sociedade sos, obtidos pelo mero desejo, vale dizer, pela
em que vive. Por ser a fome um tema cercado de representação mental, é muito enraizada em uma
tabus, a sociedade não a reconhece como uma humanidade para a qual a prática agrícola sempre
questão sua, e, por essa via, nega reconhecimento foi uma atividade incerta. Mas a abundância
ao próprio faminto. Essa negação da humanidade não é atributo para qualquer um. Seu atributo
ao faminto, associada ao stress fisiológico da vem diretamente de Zeus, pai dos deuses e dos
fome, leva muitas vêzes a atitudes extremas e homens. E, por ser um objeto único em todo o
inesperadas de agressividade. Muitas vezes a Mundo, só pode ser encontrado entre as ninfas
quem tem fome resta como identidade final ser de Creta, com as quais vive Amaltéia11. Ou em
classificado como louco ou insano.8 um país fantástico cuja localização permanece
desconhecida.
As questões envolvendo o problema da
4. Angústia da abundância: abundância seguem essencialmente as mesmas
Amaltéia no país da Cocanha desde os tempos mitológicos: quem confere
abundância e quem dela se beneficia. A abundân-
A incerteza da colheita, os ciclos do clima, cia existe e pode ser usufruída, desde que se tenha
a precariedade dos silos,o esgotamento do solo, titularidade e acesso a ela. A abundância, para ser
todos os fatores que levam à escassez fizeram a percebida, deve conviver com a carência, ou má
espécie humana a criar narrativas fantásticas que fortuna, daqueles que dela são despossuídos.
expressam seu desejo e sua angústia em torno A idéia de abundância corresponde atual-
da abundância de alimentos. Amaltéia é a cabra mente tanto a uma produção de alimentos acima
mitológica que amamentou o pequeno Zeus em das necessidades de consumo como a produção

6
A Declaração for firmada ao término da Conferência Mundial sobre Alimentação, realizada em Roma, entre 13-17 de novembro de 1996. Cf. http://
www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm. Acesso on line em 20/02/04, às 17:38.
7
Documento em formato PDF disponível on line no sítio http://www.fao.org/docrep/006/Y5160E/Y5160E00.HTM, acessado em 10 de fevereiro
de 2005, p. 109.
8
REBELLO, Lêda Maria Vargas. Loucuras da fome. Cadernos de Saúde Pública, 14(3), 643-646.
9
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. I, p. 262-264.
10
MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. Dicionários de lugares imaginários, p. 110 e 123.
11
Amaltéia também designa, conforme a narrativa, uma das ninfas de Creta.

100 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009


SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA BIOTECNOLÓGICA

de alimentos maiores e com maior quantidade de agrícola cresceria em progressão aritmética e a


nutrientes do que os alimentos tradicionais. Há população humana em progressão geométrica,
aqui um apelo irracional da garantia pelo excesso associado com a urbanização crescente e a per-
que não guarda correspondência com o conceito cepção de que não haviam mais grandes áreas do
de segurança alimentar. Volta-se, de certa forma, planeta a serem descobertas, a espécie humana
à idéia, predominante até a década de 1970, de passou a temer o advento de uma fome eminente
que a segurança alimentar se traduz pela dispo- e generalizada.
nibilidade de alimentos (abastecimento) e não Paralelamente a essas preocupações, de-
pelo garantia de acesso12. senvolvem-se os estudos sobre a genética e suas
aplicações tecnológicas. As idéias de gene e de
código genético, remontam, respectivamente, a
5. As promessas dos alimentos 1865, com Gregor Mendel e a 1953, com James
geneticamente modificados D. Watson, Maurice H. F. Wilkins e Francis. H.
Compton Crick. De fato, foi em 25 de abril de
Desde o Neolítico, há dez mil anos atrás, 1953 que a revista Nature publicou o primeiro
quando a nossa espécie passou a praticar a agri- artigo propondo a estrutura de dupla hélice do
cultura e a domesticar animais, manipulamos ADN, acompanhado de mais dois outros artigos
genes para as mais diversas finalidades, nota- que davam suporte para a geometria helicoidal
damente para alimentação. Cães, gatos, vacas, do código genético13. Antes da descoberta do
porcos, ovelhas, cavalos, feijões, milhos, batatas, ácido desoxirribonucléico (ADN) e do ácido
cereais, etc., são inúmeras as espécies que tive- ribonucléico (ARN) não é possível falar em en-
ram a evolução natural modificada em razão da genharia genética, transgenia e em organismos
sua utilidade para o ser humano. Esse processo geneticamente modificados (OGMs)14.
vinha ocorrendo mediante o emprego de técnicas É importante ter clareza que a biotec-
e procedimentos ainda largamente utilizados, nologia não é única, mas antes constitui uma
como o cruzamento seletivo de espécimes, o pluralidade de técnicas que utilizam organismos
descarte de espécimes com características con- vivos para fabricar ou modificar produtos, e, na
sideradas indesejáveis, a introdução de espécies perspectiva da utilidade ao homem, melhorar
já domesticadas em ecossistemas novos e pela plantas e animais e desenvolver microorganismo
enxertia, no caso dos vegetais. para usos específicos15. O desenvolvimento de
Foram as práticas agrícolas e de pecuária novos organismos por métodos de transgenia é
desenvolvidas a partir da Revolução Neolítica a modalidade mais recente e mais radical entre
que permitiram a formação de aldeias e cidades, as biotecnologias.
o controle sobre os recursos hídricos, o supri- Já ao final da década de 1980, se consi-
mento de alimentos sem necessidade dos deslo- deradas apenas as variedades de camundongos
camentos constantes decorrentes do nomadismo transgênicos, haviam sido desenvolvidos mais
e o aumento constante da população humana, de mil organismos geneticamente modificados
muito embora ciclos de fome decorrentes de em laboratórios no mundo inteiro. Além de doze
guerras, doenças ou pragas. No século XIX, tipos de porcos, diversas variedades de coelhos,
com o enunciado de Malthus de que a produção peixes, vacas, bactérias e vegetais16. É a partir
12
CONWAY, Gordon. Ob. cit., p.322.
13
Sobre o cinqüentenário dessa descoberta, a Universidade de Cambridge organizou uma conferência comemorativa, cujo conteúdo encontra-se
resumido no sítio <http://www.admin.cam.ac.uk/univ/science/dna/anniversary.html>. Para um breve relato histórico da biotecnologia e da engenharia
genética, cf. de José Luiz Telles: “Bioética, biotecnologias e biossegurança: desafios para o século XXI”, em especial p. 76-82. In: VALLE, Silvio
e TELLES, José Luiz (org.). Bioética e biorrisco: abordagem transdisciplinar
. Rio de Janeiro: Interciência, 2003.
14
Organismo geneticamente modificado é o organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia
genética (art. 2º, I, da Resolução CONAMA nº 305, de 12 de junho de 2002).
15
PORRAS DEL CORRAL, Manuel. Biotecnología, derecho y derechos humanos, p. 25.
16
McKIBBEN, Bill. O fim da natureza, pp. 159-160.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009 101


ROCHA, J. C. C.

da metade década de 1990 que as técnicas de pelo homem possuem variantes transgênicas), os
transgenia passam a merecer uma discussão argumentos favoráveis e contrários aos OGMs
mais ampla em diversos setores da sociedade, são apresentados com particular intensidade.
além de mobilizarem imensos recursos de grupos Comparecem a esse debate, além de diversas
internacionais, inclusive das poderosas indústrias questões ambientais, fatores de comércio interna-
da farmoquímica e de agrotóxicos. A época em cional que não podem ser olvidados, na medida
que vivemos foi adequadamente denominada de em que os Estados Unidos detém dois terços das
Século da Biotecnologia, porque pela primeira áreas agrícolas cultivadas com OGMs em todo
vez o homem domina uma conquista tecnológica o planeta, e a Argentina responde por cerca de
fora da civilização do fogo, caracterizada por vinte e dois porcento desse total19. Por paradoxal
uma economia geradora de emissões, e passa a que possa parecer, a biotecnologia pode levar ao
adquirir a capacidade de alterar a constituição fim da própria agricultura como a conhecemos,
de cada ser vivo, conforme os seus interesses substituídas por cultivos em ambientes total-
e necessidades. Neste sentido, o domínio da mente construídos, a denominada agricultura
energia nuclear foi a última e mais contundente indoor20, totalmente controlada pelas grandes
conquista da pirotecnologia antes da expansão corporações e dependente de um único recurso
da biotecnologia17. natural: a energia solar.
Qualquer ser vivo, animal ou vegetal, ma- Sempre quando se fala em tentativas de me-
cro ou microscópico pode ter a sua seqüência lhorar a dieta tradicional de populações pobres, o
genética alterada por meio de técnica de enge- único caso cujo relato se repete como um man-
nharia genética. Vale dizer, microorganismos tra, é o arroz dourado, cujos direitos de patente
(bactérias, vírus, etc.), vegetais, animais (domés- pertencem a empresa Syngenta. Trata-se de um
ticos ou não) ou mesmo hominídeos, podem vir tipo de arroz que possui betacaroteno, de modo
a dar origem a OGMs. Outro passo, ainda mais a se constituir em fonte de vitamina A para seus
ousado no campo da engenharia genética, é o consumidores. Não apenas ajudaria a combater
anunciado propósito de construção de um ser a fome na Ásia como multiplicaria por quatro
vivo totalmente sintético18. o volume de exportação dos mercados daquele
A finalidade do OGM dependerá das carac- continente21. Esse arroz ainda não se encontra
terísticas para as quais foi concebido e da técnica disponível para plantio, mas é o grande argumen-
adotada. Tanto é possível acrescentar um gene to manejado pela indústria de biotecnologia para
ou uma seqüência de genes no organismo quanto apresentar o lado humanitário dos organismos
subtrair um gene defeituoso. A alteração gené- GM. Tendo em vista evitar a alteração no modo
tica terapêutica não é o foco aqui apresentado, de plantio tradicional do arroz, especialmente em
mas antes a possibilidade de criação de novos zonas rurais da Ásia, seus criadores pretendem
organismos, vale dizer, novas formas de vida, cruzá-lo com variedades tradicionais.
mediante a adição de genes de um ser em indi- Ocorre que até agora não foi possível con-
víduo de outra espécie, gerando um organismo tornar problemas intrínsecos ao arroz dourado,
antes não existente para a biologia. como produção constante e invariável e resis-
Especialmente no que diz respeito a plantas tência a pragas. Sua introdução e miscigenação
transgênicas (os principais cereais cultivados com espécies nativas, pode suprir a avitaminose
17
RIFKIN, Jeremy. The Biotech Century, p. 36.
18
O governo norte-americano destinou uma verba de três milhões de dólares para o desenvolvimento de uma bactéria sintética, cf. noticiado em
“Venter quer refazer bactéria com US$ 3 mi”, Folha de São Paulo, 22/11/2002, p. A15.
19
De acordo com o relatório “Let de facts speak for themselves”, produzido pela American Soybean Association, juntamente com outras oito enti-
dades agrícolas norte americanas, em setembro de 2002. Conferir em especial os dados da p. 15. Os principais produtores de grãos transgênicos,
de acordo com o relatório, são EUA, Argentina, Canadá e China, esta última com 3% da produção mundial. Seguem-se África do Sul, Austrália,
México, Bulgária, Uruguai, Romênia, Espanha, Indonésia e Alemanha, além da Índia, que iniciou o cultimo de milho BT em 2002.
20
RIFKIN, Jeremy. Ob. cit., p. 240, nota 29.
21
ANDERSON, Kym e outros. Genetically Modified Rice Adoption: Implications for Welfare and Poverty Alleviation (August 19, 2004). Disponível
no sítio http://ssrn.com/abstract=625257.

102 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009


SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA BIOTECNOLÓGICA

A ou causar sucessivas frustrações de safra, encarecer o custo da produção agrícola, alterar a


agravando a desnutrição na população rural da cadeia alimentar de ecossistemas naturais, gerar
Ásia e mesmo gerando episódios de fome em ervas daninhas e pragas mais resistentes, reduzir
determinadas comunidades22. a biodiversidade, além da dificuldade de controle
dos efeitos pleiotrópicos26.
Ironicamente, os partidários da biotecno-
6. Impactos da biotecnologia logia transgênica criticam a Revolução Verde
ocorrida a partir dos anos 1960, por ser químico-
A concentração de patentes de variáveis
intensiva, contrapondo a nova Revolução Verde
agrícolas transgênicas em alguns países e a
como menos intrusiva27. O que não deixa de ser
correspondente redução no plantio de espéci-
um mea culpa, já que as mesmas empresas pro-
mes nativos equivalentes, contribuem para uma
moveram e lucraram com as duas “revoluções”.
maior dependência alimentar dos países do sul
Entretanto, até agora o que tem se constatado,
em relação aos centros mais desenvolvidos do
além do uso do agrotóxico, é que a interação da
hemisfério norte, erodindo ainda mais a precária
planta GM com o meio em que eram plantadas
segurança alimentar dos povos mais pobres. O
as modalidades tradicionais tem propiciado o
impacto de organismos oriundos de ecossistemas
desenvolvimento de pragas mais resistentes28.
situados na África, Ásia e Europa nas Américas
e na Oceania, em verdadeiro processo de impe- No âmbito da farmacologia, o professor
rialismo ecológico, é o único símile histórico do Flávio Finardi Filho e a pesquisadora Regina
que pode vir a ocorrer com a liberação adversa S. Minazzi Rodrigues , dentre outros casos
de organismos geneticamente modificados no suspeitos, referem à intoxicação por suplemen-
ambiente23. O que se extrai dessa experiência to alimentar, produzido pela empresa Showa
precursora é que a perda da biodiversidade vem Denko. Esse suplemento possuía altos teores
acompanhada da perda da sociodiversidade, de triptofano, aminoácido natural, mas que fora
inclusive com a redução das populações hu- obtido pela empresa a partir de uma bactéria
manas. geneticamente modificada mediante inclusão de
Os partidários do cultivo de OGMs sus- genes de um microrganismo do solo. A inclusão
tentam que eles reduzirão a fome no mundo, da seqüência genética do microrganismo levou
fornecerão alimentos mais nutritivos e duráveis consigo uma toxina, cuja ingestão afetou cinco
e mais resistentes a agrotóxicos.24 Os adversá- mil pessoas, tendo incapacitado um mil e qui-
rios argumentam que vegetais geneticamente nhentas e matado outras trinta e sete29.
modificados podem causar alergias25, apresentar Nos EUA, o país de regulação mais per-
elevada toxicidade, aumentar a dependência missiva em relação aos transgênicos, no ano de
dos agricultores em relação aos agrotóxicos, 2002 a EPA (Environmental Protection Agency),

22
LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas, p. 100-109.
23
CROSBY, Alfred . Ecological Imperialism - the biological expansion of Europe: 900:1900, p. 71.
24
Para uma síntese dos argumentos favoráveis: BjØrn Lomborg, O ambientalista cético, pp. 411-417. Também o relatório da American Soybean
Association elenca 19 supostos factóides apresentados contra o emprego de OGMs na agricultura.
25
6 a 8% de ocorrência de alergias em crianças, conforme relatório Genetically modified plants for food use and human health - an update, publicado
em fevereiro de 2002, pela Royal Society, p. 7.
26
Quando um ou mais genes produzem efeitos fenotípicos diversos, diz-se que sua expressão é pleiotrópica. Para um levantamento mais detalhado
dos impactos ambientais das plantas geneticamente modificadas, ver de Miguel Pedro Guerra e outros: Impactos ambientais das plantas trans-
gênicas, pp. 30-41.
27
HALFORD, Nigel G. Genetically modified crops, p. 41-45. Cf. tb. LACEY, Hugh. Ob. cit., p. 96.
28
Vandana Shiva alerta para o fato de que nos trópicos as variedades de plantas cultivadas e de ervas daninhas se hibridizam livremente há séculos.
Essa interação genética natural, quando em contato com variedades GM resistentes a agrotóxicos, facilita a transmissão da mesma característica
para as ervas daninhas, e explica muitos dos casos em que a alegada vantagem do organismo GM é anulada, causando o incremento nas aplicações
de agrotóxicos (Monoculturas da mente, p. 137).
29
HIRATA, Mário Hiroyuki e MANCINI FILHO, Jorge (coord.). Manual de biossegurança, p. 260261. Também são citados no mesmo trabalho
casos suspeitos com batatas, ervilhas, milho e soja GM, essa última com a inclusão de seqüência protéica da castanha-do-pará. Importante ressaltar
que para cada commodity agrícola de maior valor há diversos tipos de variações geneticamente modificadas. Assim, não é exato dizer que “chuchu
GM” faz mal para a saúde ou para o meio ambiente, mas que o “chuchu GM do tipo tal” apresenta tal ou qual toxina ou efeito adverso.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009 103


ROCHA, J. C. C.

tendo em vista o manejo da resistência a insetos, órica do economista indiano Amartya Sen, cuja
firmou acordo com as empresas de biotecnologia influência sobre o Banco Mundial e o sistema de
americana que condiciona o cultivo de milho BT organismos internacionais da ONU é notória. No
ao plantio de pelo menos de 20% de variedades ensaio Poverty and Famines (1981), aquele autor
convencionais, percentual que chega a 50% nos sustenta que em situações de escassez de alimen-
Estados sulistas30. No mesmo ano, a FDA (Food tos enquanto alguns grupos, aqueles socialmente
and Drugs Agency) diante de uma plantação de mais frágeis, estão sujeitos a situações de priva-
soja convencional cultivada sobre área de ante- ção absoluta, outros grupos parecem não sentir
rior plantação experimental de milho transgênico qualquer efeito da escassez e que nada indica
para produção de medicamentos, com a conse- que o consumo de alimentos de grupos distintos
quente contaminação genética do novo cultivo, deva variar na mesma direção, não obstante a
teve que proibir o uso da soja colhida em toda a ocorrência de escassez32. Sen analisa grandes
cadeia alimentar humana ou animal31. episódios de fome ocorridos em Bengala33, Eti-
Ainda que não haja impacto negativo para ópia34, Sahel35, Bangladesh36, e Irlanda37, para
o ambiente e a saúde no plantio de determinado concluir que é a forma de organização política da
OGM, haverá um maior custo econômico para sociedade o fator predominante para a prevenção
o agricultor, devido ao regime de patentes e a das situações de fome coletiva38.
vinculação com uma única corporação, sem Aqui no Brasil também são as regiões com
vantagens nutricionais que possam ser eviden- maior índice de exclusão social aquelas sujeitas
ciadas. a episódios graves de fome. Cabe relembrar o
mapeamento produzido por Josué de Castro
7. Segurança alimentar como em sua Geografia da fome, quando tratou da
liberdade ocorrência do problema no território nacional.
Segundo aquele autor, o Brasil possui cinco áreas
Recapitulando, a segurança alimentar vem alimentares, divididas em três categorias: fome
sendo definida a partir de dois critérios distintos: endêmica, fome epidêmica e área de subnutrição.
o da acessibilidade, que enfatiza a capacidade A fome endêmica abrange a Amazônia e o Nor-
física e econômica de se ter acesso aos alimentos, deste açucareiro. No estudo efetuado pelo autor
e o da disponibilidade, que enfatiza a capacidade há duas áreas de subnutrição: a primeira inclui
de manter estoques de alimentos e abastecer o Centro-Oeste, os estados de Tocantins e Minas
as populações carentes em tempos de crise. O Gerais; a segunda abrange os demais estados do
critério predominante hoje, tanto no âmbito do sudeste e a região sul do Brasil39.
Banco Mundial quanto na FAO, é o da segurança O principal conceito com o qual Sen vai
alimentar mediante a criação e manutenção de abordar a questão da pobreza e da fome é o de
condições de acesso da população aos nutrientes entitlement. No seu ensaio dedicado ao estudo
necessários para a sua sobrevivência e bem-estar. da fome, Sen resume a perspectiva pela qual
Para a consolidação dessa perspectiva aborda o problema: “The entitlement approach
inovadora em muito contribuiu a produção te- to starvation and famines concentrates on the
30
Transgênicos nos EUA. Valor Econômico, 20/11/2002, p. B12.
31
“Antigo plantio alterado afeta geração seguinte”. Folha de São Paulo, 20/11/2002, p. A14.
32
Poverty and famines - An essay on entitlement and deprivation, pp. 43-44. Em Desenvolvimento como liberdade, capítulos 7 e 9, o autor repete os
argumentos e exemplos históricos daquele ensaio. Não se pode desconsiderar, quanto a rápida repercussão do ensaio nos meios técnicos especiali-
zados na década de 1980, a formulação matemática da tese sustentada pelo autor, contida nos seus apêndices de A a C, pp. 167-194.
33
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 52 e segs.
34
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 86 e segs.
35
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 113 e segs. O Sahel é a área de transição entre o deserto do Saara e a floresta equatorial ao sul. Entre os países que o
36
integram destacam-se o Senegal, a Mauritânia, o Mali, o Burkina Faso, o Níger, a parte norte da Nigéria, o Chade e o Sudão.
37
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 131 e segs.
38
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 199-205.
39
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 208-219.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome, p. 37.

104 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009


SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA BIOTECNOLÓGICA

ability of people to command food through the fornecimento de uma nova geração de OGM,
legal means available in the society, including repetindo estratégia bem sucedida em outra
the use of production possibilities, trade opportu- atividade de ponta, a informática.
nities, entitlements vis-à-vis the state, and other
methods of acquiring food”40.
O conceito de entitlement não pode ser 8. Conclusão
resumido a sua dimensão jurídica, econômica
ou política, justamente porque é agregador, em Do que foi exposto até agora, o que se
um único termo, de capacidades que tradicional- pode dizer sobre a capacidade da biotecnologia,
mente são abordadas de forma estanques pelo mediante a produção de alimentos geneticamente
direito, economia, ciência política e sociologia, e modificados, vir a contribuir decisivamente para
que são necessárias para dimensionar o conjunto o combate à fome no mundo, reduzindo a cifra
capacitário de uma pessoa (ou seja, de pacotes de oitocentos milhões de famintos a um número
de bens, mercadorias e funcionamentos que pode menos doído?
adquirir)41. Antes de mais nada, é preciso evitar a ten-
Mas não estar sujeito as privações da fome tação de falar sobre quimeras, neste caso, sobre
não é apenas uma questão de capacidade de os superalimentos inexistentes. Não há até agora
produzir ou adquirir alimentos, a partir de uma nenhum alimento geneticamente modificado que
adequada disposição jurídica, política e econômi- represente uma contribuição altamente inovadora
ca das estruturas básicas da sociedade. O próprio em termos de nutrientes. No estado atual da tec-
Sen sustenta, com muita propriedade, que existe nologia, o mercado é dominado por organismos
uma liberdade de não ter fome. O senso comum que: a) são resistentes a um determinado tipo
reconhecer que não ter fome aumenta a esfera de agrotóxico, produzido pela mesma empresa
de bem-estar da pessoa, mas não é tão óbvio que detentora da patente do OGM, caso da tecnologia
aumente a sua esfera de liberdade. Sen retorna a round up; b) emitem uma toxina que equivale a
Isaiah Berlin para argumentar que se ser livre é produção do agrotóxico na própria planta, casa
ter liberdade se viver como se deseja, então estar da tecnologia Bt.
livre da fome amplia esse espaço de escolha42. Mas há pesquisas para o desenvolvimento
Como ninguém escolheria viver com fome, a de espécimes resistentes a secas ou que neces-
fome é apenas um severo limitador das diversas sitam de menor volume de água para irrigação
formas possíveis de vida social. Portanto, conclui e portanto, guardam um interesse ao tema. A
o autor, “a noção de liberdade como poder efeti- pesquisa em biotecnologia está apenas iniciando
vo para realizar o que se escolheria é uma parte e deve prosseguir, observados os mais estritos
importante da idéia geral de liberdade”43. parâmetros técnicos de biossegurança.
O estado atual da agricultura biotecno- Entretanto a produção em larga escala de
lógica parece indicar um caminho oposto ao alimentos geneticamente modificados deve aten-
apontado pelo modelo de Sen, já que a sua prática tar, para cada tipo de organismo desenvolvido, a
coloca o agricultor na dependência de uma úni- seus impactos, positivos e negativos, quanto ao
ca grande corporação, quanto ao fornecimento meio ambiente, diversidade biológica, práticas
de sementes, agrotóxicos, assistência técnica e agrícolas, valores culturais e estruturas sociais.
pagamento de royalties. Em caso de problemas O argumento de que os alimentos transgê-
como declínio de produtividade e surgimento nicos podem reduzir a fome no mundo parece
de novas pragas, a empresa responderá com o repetir o modelo de segurança alimentar pela
40 SEN, Amartya. Poverty and famines, p. 45.
41 Cf. sobre entitlement: Desigualdade reexaminada, glossário, p. 235; Desenvolvimento como liberdade, nota do tradutor, pp. 53-54; Poverty and
famines, pp. 1-8, 44-51 e apêndice A (no qual é apresentada uma explicação econométrica do conceito).
42 Desigualdade reexaminada, pp. 115-116.
43 Idem, p. 118.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009 105


ROCHA, J. C. C.

disponibilidade ou capacidade de abastecimento. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega.


A presença de alimentos geneticamente modifi- Petrópolis: Vozes, vol. I, 14ª ed., 2000.
cados no mercado em nada altera a incapacidade
CAMBRIDGE UNIVERSITY. DNA 2003: 50
dos famintos em adquirí-los, já que sofrem priva-
years of DNA discovery. Disponível on line na
ções até mesmo dos alimentos tradicionais, usu-
Internet in <http://www.admin.cam.ac.uk/univ/
almente existentes em sua cultura alimentar.
science/dna/anniversary.html>.
Há, por outro lado, o risco de que essas
privações se tornem mais agudas, em razão do CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São
pagamento de royalties, da concentração das Paulo: Círculo do Livro, 1991.
técnicas de produção de alimentos por grandes CONWAY, Gordon. Produção de alimentos no
corporações e de uma maior dependência em século XXI: biotecnologia e meio ambiente. São
relação aos países desenvolvidos do hemisfério Paulo: Estação Liberdade, 2003.
norte44. Neste sentido, é importante estimular a
pesquisa pública, para que os conhecimentos CROSBY, Alfred. Ecological imperialism: the
adquiridos na área de biotecnologia possam biological expansion of Europe, 900-1900.
ser compartilhados por toda a comunidade e Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
aplicados em respeito aos valores culturais das FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZA-
populações tradicionais. TION OF THE UNITED NATIONS. The state
De qualquer modo, sempre que houver a li- of food and agriculture 2003-2004. Roma: FAO,
beração de alimentos geneticamente modificados disponível no formato PDF no sítio http://www.
para a comercialização deve haver a informação, fao.org/docrep/006/Y5160E/Y5160E00.HTM,
mediante rotulagem adequada, sobre a natureza 207 páginas, 2004.
do alimento e seus eventuais riscos.
FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZA-
Antes de tudo, a pessoa sujeita a riscos na TION OF THE UNITED NATIONS. Plan de
sua segurança alimentar deve ser visto como
Acción de la Cumbre Mundial sobre la Alimen-
em sua integralidade, e não como cobaia de ex-
tación. Roma: FAO, disponível no sítio http://
perimentos sociais ou científicos. Do contrário,
www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.
haverá a repetição, em escala muito maior, do
thm, 1996.
que ocorre no interior da África e outras regiões
periféricas com a aplicação experimental de me- FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZA-
dicamentos. Ter em mente a dimensão humana TION OF THE UNITED NATIONS. Declaração
da questão da fome ainda é a maneira mais direta de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial.
e eficiente de superá-la. Roma: FAO, disponível no sítio http://www.fao.
org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm, 1996.
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ponível no sítio http://ssrn.com/abstract=625257. set. 2001, pp. 30-41.

44
Em interessante paralelo, Gordon Conway ao comentar os efeitos econômicos da Revolução Verde (décadas de 1960-1970), registra que não obstante
tenha havido produção de alimentos mais baratos e aumento da renda da terra, a introdução da mecanização tendeu a corroer esses benefícios, até
mesmo acarretando perda da renda real e aumento da fome. Ob. cit., p. 112.

106 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009


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108 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES


NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL
E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO(1)

José Renato Martins(2) RESUMO: Partindo-se da idéia de que as ati-


vidades nucleares são importantes e necessárias
ao desenvolvimento dos seres humanos, em
função da sua utilização segura e pacífica em
vários setores sociais, razão pela qual devem
ser mantidas e incentivadas, deve-se tecer uma
especial regulamentação jurídica em torno dessas
atividades para que sua utilização se desenvolva
de maneira consciente, segura e responsável, em
conformidade com a necessidade de sustentabili-
dade ambiental do desenvolvimento econômico
nacional. Sendo assim, torna-se imprescindível
uma completa regulamentação jurídica sobre o
assunto e, em particular, um tratamento jurídico-
penal das atividades nucleares, propiciando, de
um lado, o desenvolvimento de uma tecnologia
que está voltada ao bem-estar do ser humano,
da sua dignidade e do meio ambiente, e de outro
lado, utilizado exclusivamente como ultima ratio
para que não implique em violação dos princípios
que são fundamentais para a própria preservação
do estado social e democrático de direito.
Palavras-chave: Atividades nucleares. Estado
social. Estado democrático de direito.

ABSTRACT: Based on the idea that nuclear


activities are important and necessary for the
development of men, with its peaceful and safe
utilization in various social sectors, that should
be maintained and encouraged, however must be
make a special legal regulations around those ac-
tivities for their utilization to be developed with
consciousness, security and with responsibility,

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009 109


MARTINS, J. R.

in accordance with the need for environmental a cada dia, novas técnicas nucleares, que são
sustainability of economic development nation- desenvolvidas nos diversos campos da atividade
ally. Therefore, it is essential for complete legal humana, possibilitando, dessa forma, a execu-
regulations on the subject, and in particular, a ção de tarefas impossíveis de serem realizadas
legal-criminal treatment of nuclear activities in pelos meios convencionais. A descoberta dos
modern society, providing, on the one hand, the radioisótopos ou isótopos radioativos, estimulou,
development of a technology that is dedicated devido à propriedade de emitirem radiações,
to the welfare of men, your dignity and the pesquisas em diversas áreas como a medicina,
environment, and on the other hand, it will be a indústria (particularmente a farmacêutica) e a
use only as ultima ratio for doesn’t involve a agricultura.
violation of the principles that are fundamental Atualmente, não se consegue cogitar sobre
to the own preservation of the social state and a possibilidade de se viver sem a energia nu-
democratic of law. clear. Ocorre que os benefícios trazidos por ela
Keywords: Nuclear activities. Social state são muito grandes e a cada dia são descobertos
Democratic state of law. empregos diferentes dos radioisótopos nas mais
diversas áreas do saber.
No campo da pesquisa, existe uma técnica
1. Considerações iniciais sobre as especial conhecida como a técnica dos traçado-
atividades nucleares res, pois tendo em vista que as radiações emitidas
por radioisótopos podem atravessar a matéria e,
Consideram-se atividades nucleares todas dependendo da energia que os mesmos possuam,
aquelas que liberam, de forma direta ou indireta, detectá-las onde estiverem por meio de aparelhos
radiação ionizante extraída de átomos existentes apropriados, chamados detectores de radiação,
na natureza. o deslocamento de um radioisótopo pode ser
Nos dias de hoje, sabe-se que a energia acompanhado e seu percurso, traçado. Logo,
nuclear não se restringe à produção de energia recebe o nome de traçador radioativo. Assim,
elétrica e que a descoberta dos radioisótopos “esses radioisótopos podem ser usados para de-
estimulou sua aplicação no ensino, em especial, terminar a quantidade de uma única substância
a física nuclear, a biologia, a nutrição, a radio- numa mistura”.(4)
farmácia e a ecologia, bem como pesquisa em Outra técnica curiosa é a denominada
diversas áreas, como a medicina, a odontologia, a datação, que consiste em um “processo de de-
agricultura, a indústria, etc. Porém, para que isso terminação da idade de um objeto pela medida
ocorresse, a humanidade teve que passar por um da atividade de um nuclídeo”.(5) Por intermédio
período obscuro durante sua evolução. desse processo é possível precisar a idade de
Infelizmente, o mundo inteirou-se da pos- fósseis e rochas, encontrando-se dados sobre a
sibilidade do uso da energia nuclear através das evolução do planeta e, por conseguinte, estudar
bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e a própria evolução humana.
Nagasaki, em 1945 (dias 6 e 9 de agosto). Logo, A utilização da energia nuclear na área mé-
sua primeira aplicação foi bélica e dificilmente dica é de suma importância. Exemplo típico é o
deixará a humanidade se esquecer dessa possi- seu uso na radioterapia.(6) Nesse caso, a radiação
bilidade. Tais bombas, denominadas A, sucede- atinge com maior facilidade, as células doentes
ram as ditas bombas B e, depois, as bombas H, do que as sadias, avaliando-se a radiação e sua
que lograram estabelecer o que foi cunhado de incidência sobre tecidos vivos do organismo do
“equilíbrio do terror”.(3) ser humano.(7)
Verifica-se que a utilização pacífica da A medicina nuclear é uma especialidade
energia nuclear – que, como já foi frisado não se na qual se utilizam os radioisótopos, tanto em
restringe à produção de energia elétrica – gera, diagnósticos como em terapias, e com o uso de

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

traçadores.(8) Na pediatria, a medicina nuclear haverá produto de descendência e a espécie será


tem boa acolhida, pois a criança recebe “dose de extinta.(14)
radiação muito menor que a do raio X”.(9) Tam- A irradiação de alimentos é outro empre-
bém nessa área, os radiofármicos têm diversas go útil dos radioisótopos. É um tratamento no
aplicações e seu uso em hospitais é imprescin- qual os alimentos, embalados ou a granel, são
dível para diagnóstico e tratamento adequado de submetidos a uma quantidade minuciosamente
muitas doenças. Aqui também são utilizados os controlada de radiação ionizante, por tempo
chamados traçadores, haja vista que a viabilida- prefixado e com objetivos determinados. Vale
de do estudo de doenças metabólicas se mostra frisar, ainda, que o processo não aumenta o nível
possível justamente a partir da utilização, neste de radioatividade normal dos alimentos.(15)
processo, de elementos como carbono, hidrogê- O objetivo da irradiação aplicada a ali-
nio, oxigênio, fósforo, ferro, etc.(10) mentos é o aumento de sua vida útil. Esse
Além disso, a utilização de radionuclídeos processo de conservação pode ser aplicado em
de meia-vida curta tem sido positiva para a iden- vários tipos de alimentos e, além de aumentar
tificação de doenças que atingem órgãos vitais o tempo de conservação, pode ser usado para
para o homem, como cérebro, pulmão, fígado, destruir insetos, bactérias patogênicas, fungos e
coração, estômago, rins, intestino, entre outros. leveduras. O retardo de maturação e senescência
Não obstante, existem estudos no sentido de (envelhecimento) de frutas e a inibição de brota-
que a aplicação de baixas doses de radiação em mento de bulbos e tubérculos podem ser citados
seres humanos (hormese das radiações) pode como influências benéficas na conservação de
apresentar cinco efeitos benéficos ao homem, a alimentos.
saber: “fortalecimento do sistema imunológico, O processo de irradiação pode impedir a
ativação dos mecanismos de reparo do DNA, divisão de células vivas (bactérias e células de
rejuvenescimento das células, aumento das organismos superiores), ao alterar suas estruturas
enzimas-chave, e terapia para doenças como moleculares, e retardar a maturação de frutas e
diabetes e hipertensão”.(11) legumes, ao produzir reações bioquímicas nos
Na agricultura é muito importante o em- processos fisiológicos dos tecidos vegetais.(16)
prego desses radioisótopos. Os citados traça- Ainda no campo dos alimentos, uma aplica-
dores radioativos são utilizados “em pesquisas ção importante é a irradiação para a conservação
agrícolas como agentes informativos de taxas de produtos agrícolas, como batata, cebola, alho
e de velocidades de absorção de fertilizantes e e feijão. Nesses casos, o objetivo é aumentar a
outros alimentos, assim como do metabolismo vida útil de determinados produtos alimentícios,
e da preferência dos mesmos em se acumular visando auxiliar nos processos de distribuição
em certos tecidos do organismo vegetal”.(12) e comercialização dos mesmos. Além disso, o
Essa técnica possibilita, inclusive, o estudo incremento em tempo de conservação também
do comportamento de insetos, como abelhas e é sentido pelo principal ator no cenário comer-
formigas.(13) cial: o consumidor. Considere-se, também, que
Esse sistema de “marcadores” configura a irradiação de alimentos não causa prejuízos
mais um eficiente instrumento para eliminar ao mesmo no que tange a formação de novos
pragas, identificando qual predador se alimenta compostos químicos que poderiam transmitir
de determinado inseto que, no caso, se deseja ex- doenças ao ser humano quando da sua ingestão.
terminar. Com o intuito de conter a ação deletéria No entanto, como em todo processo de conser-
desses insetos sobre as plantações, os machos vação, existem perdas de ordem nutricional e
devem ser esterilizados através da emissão de organoléptica nos alimentos.(17)
radiação. Posteriormente, com a sua liberação, Em se tratando de gado, pesquisas mostram
faz-se o cruzamento desses com as fêmeas. Com que o uso da irradiação “poderia diminuir alguns
o tempo, em razão da esterilização ocorrida, não parasitas internos de animais, tornando-os inó-

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MARTINS, J. R.

cuos e utilizando-os na preparação de vacinas dades desses raios, deduzindo-se o quantum de


contra várias enfermidades parasitórias mortais”. elementos neles contido.(24)
(18) Trata-se de importante emprego da utiliza- Destarte, aconselha-se a utilização desse
ção dos isótopos radioativos, haja vista que os sistema em, por exemplo, portos, aeroportos,
parasitas internos são causadores de redução de rodoviárias, ferroviárias e correios, “onde não
crescimento e mortes desnecessárias de vários se pode abrir os pacotes e por onde passa uma
animais em todo o mundo.(19) grande quantidade de volumes num curto espaço
Verifica-se, também, que a aplicação dos de tempo”.(25)
radioisótopos é feita na indústria e em larga es- É certo, que as atividades nucleares têm
cala, com distintos objetivos e de muita serventia larga e positiva aplicação na sociedade e que a
para a sociedade. A técnica mais conhecida é a radioatividade se faz presente na natureza sob
radiografia de peças metálicas ou gamagrafia diversas formas. O homem sempre conviveu com
industrial.(20) Por exemplo, as espessuras de a mesma, razão pela qual o seu organismo está
chapas, folhas e lâminas (metálicas ou não) apto a resistir aos efeitos radioativos. Todavia, a
sofrem um controle automático, por meio da resistência humana às radiações não é ilimitada,
utilização de radioisótopos e com a finalidade podendo a saúde ser seriamente afetada.
de homogeneizá-las. Os fabricantes de válvu- Não se pode esquecer, contudo, que a vida
las usam a gamagrafia na área de controle da humana (ou qualquer outra) é sempre acompa-
qualidade para verificar se existem defeitos ou nhada de riscos, como doenças, fome, conflitos
rachaduras no corpo das peças. As empresas entre indivíduos, etc.
de aviação a utilizam durante as inspeções fre-
Nos últimos séculos, novas tecnologias in-
qüentes nos aviões, com objetivo de verificar
troduziram novos tipos de riscos à vida humana,
se há fadiga nas partes metálicas e/ou soldas
sendo que, particularmente nas grandes cidades,
essenciais, sujeitas a um maior esforço nas asas
a poluição do ar é experiência vivenciada dia-
e turbinas.(21)
riamente, causando milhares de mortes por ano.
Ainda é possível controlar, pelo uso dos Os altos prédios estão sujeitos aos riscos de
radioisótopos, o teor do tabaco existente nos incêndios e terremotos. Os acidentes de trânsito
cigarros ou esterilizar produtos como algodão, e de transportes aéreo, marítimo, ferroviário e
cotonetes, batom, fraldas descartáveis e cosmé- terrestre são conhecidos e envolvem milhares de
ticos em geral, bem como materiais hospitalares, vítimas anualmente. Ainda são bem conhecidos
como gazes e seringas.(22) os riscos apresentados pelas indústrias químicas
Outras utilidades dos radioisótopos são e pelos lixos de todos os tipos se acumulando
na arqueologia (determinar a idade de objetos no mundo todo. Igualmente, a radioatividade,
históricos); na geologia (determinar a idade de assim como qualquer outro avanço tecnológi-
materiais geológicos); na sedimentologia (deter- co, apresenta tanto benefícios quanto riscos; ou
minar a idade de rochas sedimentares e erupções seja, há certa dose de risco em toda e qualquer
vulcânicas); na hidrologia (detectar falhas ou atividade humana.
vazamentos em barragens); e em outras áreas Por tudo isso, “renunciar à energia nuclear
da ciência.(23) seria agora renunciar à civilização atual. Os
Enfim, há a neutrongrafia ou radiografia de benefícios que ela nos proporcionará são sufi-
nêutrons, técnica que visa a segurança e o com- cientemente importantes para que valha a pena
bate à criminalidade. Por meio dela, detecta-se termos todo o cuidado para não ‘envenenar’ a
cocaína e explosivos plásticos, pois os nêutrons natureza [...]”.(26)
reagem com o nitrogênio, oxigênio, hidrogênio Destarte, é válida e necessária a preocu-
e carbono, substâncias presentes nesses produ- pação com a segurança humana e ambiental, e
tos, provocando emissões de raios gama. Então, mesmo em nível planetário, adotando-se, para
medem-se e registram-se as energias e intensi- tanto, medidas cabíveis, com o intuito de que a

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

energia nuclear seja utilizada pacificamente e da


melhor maneira possível. 3.1. Lei nº 6.453/77 de responsabilidade
Sendo assim, partindo-se do pressuposto criminal por atos relativos às atividades
de que as atividades nucleares constituem na nucleares
sociedade moderna um importante instrumento No que diz respeito à tutela penal das ati-
de evolução social e técnico-científica, sendo vidades nucleares, deve-se tomar como norma
necessária sua manutenção e aprimoramento referencial a Lei nº 6.453/77, a primeira a dis-
constante, tem-se que a regulamentação jurídica por sobre a responsabilidade criminal por atos
das mesmas é imprescindível para que essas relativos às atividades dessa natureza. Nela são
atividades atendam aos objetivos dentre os definidos oito tipos penais relacionados, em par-
quais são adotados por uma sociedade pacífica ticular, com a segurança, instalações e materiais
e um estado social e democrático de direito(27) nucleares, e com o assecuramento do controle de
que visam, inclusive, a preservação da saúde e tais atividades pelo Poder Público.
da vida dos seres humanos, com a conseqüente O objetivo fundamental da conceituação
preservação do meio ambiente em que vivem. desses delitos parece ter sido mesmo o de asse-
Nesse sentido, tem-se que a regulamenta- gurar a implantação de uma nova modalidade
ção das atividades nucleares no direito brasileiro geradora de energia sem causar riscos ou danos
deve ocorrer sob o tríplice aspecto cível, admi- para a população e para as relações externas.
nistrativo e penal, independentemente do fato Como resgata Sérgio de Oliveira Médici,
de essa regulamentação poder ser considerada essa “lei veio atender a dois itens do art. V do
correta ou incorreta. Certo, portanto, é que as Acordo Brasil-Alemanha sobre Cooperação no
atividades dessa natureza exigem um controle
Campo dos Usos Pacíficos da Energia Nucle-
jurídico rígido e eficiente.
ar”,(28) celebrado seis meses depois da ela-
Entretanto, objetiva-se, nesta oportunidade, boração do Programa Nuclear Brasileiro. Tais
analisar apenas a tutela penal dessas atividades dispositivos estabelecem o seguinte: “Artigo V.
de acordo com a legislação em vigor no direito 1) Cada Parte Contratante tomará as providências
brasileiro, concluindo-se, certamente, se a mes- necessárias para garantir a proteção física dos
ma está ou não em conformidade com os prin- materiais, equipamentos e instalações nucleares
cípios do estado social e democrático de direito, no seu território, bem como no caso de trans-
sob a ótica do direito penal moderno. porte dos mesmos entre os territórios das Partes
Contratantes e para terceiros países. 2) Essas
providências deverão ser de tal natureza que, na
3. Tutela penal das atividades nucle- medida do possível, evitem danos, acidentes,
ares no âmbito do estado social e furtos, sabotagens, roubos, desvios, prejuízos,
democrático de direito trocas e outros riscos”(29).
Os assim chamados crimes nucleares(30)
Uma leitura atenta da legislação vigente
estão tipificados nos artigos 20 a 27 da Lei em
sobre as atividades nucleares no Direito bra-
questão, sendo que o artigo 19 limita-se a fazer
sileiro conduz à conclusão de que há três leis
uma exposição genérica dos preceitos nos quais
extravagentes que tratam, de uma forma ou de
estão previstos os crimes cometidos com o em-
outra, as questões penais relativas às atividades
prego e produção da energia nuclear.
nucleares. Tem-se, portanto, a seguinte norma-
tização: a) Lei nº 6.453/77, de Responsabilidade a) Utilização clandestina ou irregular.
Criminal por Atos Relativos às Atividades Nu- O primeiro delito está fixado no artigo 20
cleares; b) Lei nº 6.938/81, de Política Nacional da Lei nº 6.453/77 e tem a seguinte redação:
do Meio Ambiente; c) Lei nº 9.605/98, de Crimes “Produzir, processar, fornecer ou usar material
Ambientais. nuclear sem a necessária autorização ou para fim

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MARTINS, J. R.

diverso do permitido em lei. Pena: reclusão, de sua operação sem a necessária autorização. Pena:
quatro a dez anos”. reclusão, de dois a seis anos”.
Esse tipo penal “visa a assegurar o mo- Nesse caso, o crime é próprio e só pode
nopólio da União nessa atividade, bem como ser cometido por aquelas pessoas que tenham
a impedir a utilização irregular do material determinada qualificação, ou seja, nos termos
nuclear pelos órgãos oficiais”,(31) lembrando legais, o responsável pela instalação nuclear. A
que a União não possui mais o monopólio dos Lei utilizou o termo “responsável” e não “ope-
radioisótopos de “meia-vida” igual ou inferior rador”. Nos termos de seu artigo 1º, inciso I, da
a duas horas, cuja produção, comercialização e Lei nº 6.453/77, entende-se por “’operador’,
utilização são autorizadas para a pesquisa e usos a pessoa jurídica devidamente autorizada para
médicos, agrícolas e industriais (Constituição operar instalação nuclear”. Logo, a norma em
Federal, artigos 21, inciso XXIII, alíneas b e c, e questão destina-se ao diretor da empresa ou
177, inciso V, conforme Emenda Constitucional instituição operadora da instalação nuclear, pois
n. 49/2006), tutelando-se, pois, o poder de polícia a responsabilidade é pessoal.(32)
da Administração Pública de modo que o Poder Apesar de regularmente instalado, o orga-
Público controle a atividade nuclear. nismo depende sempre, para funcionar, de autori-
Nos termos da definição legal constante zação da CNEN, sendo que “instalação nuclear”
da Lei ora estudada (inciso IV, do artigo 1º), também é um conceito legal e consiste em: a) um
“material nuclear” deve ser entendido como “o reator nuclear, salvo o utilizado como fonte de
combustível nuclear e os produtos ou rejeitos energia em meio de transporte, para a propulsão
radioativos”. Combustível nuclear é todo aquele ou outros fins; b) uma fábrica que utilize com-
capaz de produzir energia mediante processo bustível nuclear para a produção de materiais
auto-sustentado de fissão nuclear (inciso II) e nucleares ou na qual se faça o tratamento desses
produtos ou rejeitos radioativos são os materiais materiais, incluídas as instalações de reprocessa-
radioativos obtidos durante o processo de produ- mento de combustível nuclear irradiado; e c) um
ção ou utilização de combustíveis nucleares, ou local de armazenamento de materiais nucleares,
cuja radioatividade se tenha originado da expo- exceto aqueles usados ocasionalmente durante o
sição às irradiações inerentes a tal processo, com transporte.(33)
exceção dos radioisótopos que já alcançaram o Mais uma vez, a lei enfatiza a preocupação
estágio final de elaboração e podem ser utilizados de que o projeto nuclear não seja levado a efeito à
para fins científicos, médicos, agrícolas, comer- revelia do governo,(34) tutelando, assim, o poder
ciais ou industriais (inciso III). de polícia da Administração Pública.
Sendo assim, as condutas previstas na Interessante a informação de Walter Tolen-
norma – produzir, processar, fornecer ou usar – tino Álvares quanto ao processo de concessão
somente podem ser praticadas mediante autoriza- de licença, analisando as legislações do Brasil e
ção específica de órgão do Poder Público, no caso dos EUA: “Pela legislação brasileira o processo
a CNEN, que, por sua vez, autoriza unicamente a é inteiramente administrativo, fechado, de sorte
pessoas e organismos preparados para o desem- que, todo o poder decisório decorre do órgão
penho dessas atividades. Na verdade, a expressão federal competente, como conseqüência [...], de
“sem a necessária autorização” indica a presença que sendo no Brasil um monopólio da União,
do elemento normativo do tipo, relacionado com somente a ela cabe decisão pelos seus órgãos, a
a antijuridicidade. Logo, a concretização da quem outorgar a autorização para a construção de
figura típica depende de o agente não ter obtido reatores. [...] Nos Estados Unidos [...] a relação
a referida autorização legal. se desenvolve nos quadros do que se pode desig-
b) Operação irregular. nar por indústria sob regulamentação”.(35)
No artigo 21 está previsto o seguinte delito: Conforme entende Lincoln Magalhães da
“permitir o responsável pela instalação nuclear Rocha, “o uso do átomo em desacordo com as

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

salvaguardas enseja o enquadramento do infrator conduta de transmissão de informação sigilosa


na lei repressiva nuclear”.(36) E as salvaguardas se o objeto não apresenta essa característica?
vedam o uso do material nuclear para armas Ocorre, que as informações referentes ao ciclo
atômicas ou outro fim militar.(37) nuclear já se acham, atualmente, divulgadas
c) Aquisição ou porte indevidos. de forma ampla e global, tanto na comunidade
científica como na sociedade em geral.
Aqui, entende-se que os elementos cons-
tantes do tipo do artigo 22 são os seguintes: “pos- A propósito, explica Paulo de Bessa Antu-
suir, adquirir, transferir, transportar, guardar ou nes: “Diversas centrais nucleares são negociadas
trazer consigo material nuclear, sem a necessária entre empresas e governos e, de fato, a utilização
autorização. Pena: reclusão, de dois a seis anos”. civil da energia nuclear não conhece mais se-
Novamente o legislador se refere à au- gredos. Eventualmente, podem existir segredos
torização como condição necessária para que industriais e não nucleares como pretende a lei.
a conduta do agente não se revista do caráter O segredo nuclear, tal como está estipulado no
ilícito. Quanto ao conceito de material nuclear, tipo, parece-me ser de natureza militar e, por-
já foi exposto que se trata do combustível nuclear tanto, incabível em lei destinada às atividades
ou do produto ou rejeito radioativo, cuja posse civis”.(42)
é proibida, “não só porque o seu uso tem de ser Ademais, as instalações nucleares brasi-
autorizado, mas também pelo fato de ser um leiras foram adquiridas no exterior, razão pela
material perigoso”, razão pela qual a lei, em seu qual não há que se falar em segredo industrial
texto, “previne uma conduta mais perigosa para em relação às mesmas, porquanto produzidas em
a comunidade indo à raiz do fato: proibindo o série e com tecnologia conhecida.
seu porte ou guarda”.(38) e) Atividades ilícitas.
Tem-se como objetivo fundamental “impe- O artigo 24 da Lei nº 6.453/77 está redi-
dir que o material nuclear seja desviado de seu gido da seguinte forma: “extrair, beneficiar ou
emprego regular ou caia em mãos de curiosos ou comerciar ilegalmente minério nuclear. Pena:
de terroristas”.(39) Tutela-se, também, o poder reclusão, de dois a seis anos”.
de polícia da Administração Pública. As condutas previstas no tipo, devendo ser
d) Violação do sigilo. consideradas ilegais, têm como objetivo tutelar
O artigo 23 da presente lei define como a Administração Pública e o seu interesse em
crime: “transmitir ilicitamente informações controlar a circulação econômica dos minérios
sigilosas, concernentes à energia nuclear. Pena: nucleares, entendidos estes como toda “subs-
reclusão, de quatro a oito anos”. tância encontrada na natureza com a qual são
Visando impedir a indevida transmissão produzidos alguns combustíveis nucleares, como
de informações sigilosas, porque contrárias às o urânio, o tório e outros”.(43)
normas legais que regem o assunto ou porque Vale frisar que, quanto aos elementos nu-
as autoridades competentes previamente consi- cleares, a CNEN periodicamente especificará
deraram o assunto sigiloso,(40) buscou-se, com quais podem ser considerados como tal, além
o tipo, tutelar a segurança nacional. do urânio natural, do tório e do plutônio (Lei
No caso, as informações sigilosas se refe- nº 6.189/74, artigo 2º, inciso XIII, letra c, com
rem à energia nuclear, ou seja, “aquela que se as alterações da Lei nº 7.781/89). Logo, não se
desprende quando, numa reação nuclear, a soma trata de um bem extra commercium, mas de uma
das massas das partículas que reagem é maior mercadoria sob a tutela do Estado.(44)
que a soma das massas das que se produzem”. f) Importação e exportação ilegais.
(41) Prevê o artigo 25 da Lei em apreço: “ex-
Este tipo apresenta uma curiosidade, e portar ou importar, sem a necessária licença,
remete à seguinte indagação: como reprimir a material nuclear, minérios nucleares e seus

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MARTINS, J. R.

concentrados, minérios de interesse para a nucleares, ou na qual se proceda a tratamento de


energia nuclear e minérios e concentrados que materiais nucleares, e o local de armazenamento
contenham elementos nucleares. Pena: reclusão, de materiais nucleares (artigo 1º, inciso VI); o
de dois a oito anos”. segundo, abrange todo o combustível nuclear e
As condutas envolvem atos de comércio os produtos ou rejeitos radioativos (artigo 1º,
internacional, “embora possa ser praticado sem inciso IV).
qualquer ‘intuitus lucri faciendi’”,(45) as quais Embora considerada “norma de fundamen-
só se tornam ofensivas ao ordenamento jurídico tal importância para a atividade nuclear, qual
penal em função da ausência de autorização por seja, a de defender a população dos efeitos noci-
essas práticas. Aqui, o objeto da tutela também é vos da radiação e de uma acidente nuclear”,(48)
o poder de polícia da Administração Pública “e, limita-se o tipo a mencionar um genérico “ou-
em especial, o interesse desta de manter contro- trem”, assim como o fazem os tipos voltados à
le da entrada e saída de material radioativo do repressão de delitos individuais cometidos contra
território nacional”.(46) indivíduos. Ocorre, porém, que “o dano nuclear é
O tipo é mais amplo quanto aos bens sempre coletivo, a história não registra um único
protegidos, pois abrange o material nuclear, os caso em que um dano nuclear tenha sido sofrido
minérios nucleares e seus concentrados (sub- por um único indivíduo”.(49)
metidos a tratamento laboratorial), minérios de É certo que as ações relativas às ativida-
interesse para a energia nuclear (como o zircônio des nucleares são regidas por toda uma série de
e a monazita)(47) e minérios e concentrados normas técnicas de segurança e de proteção,
contendo elementos nucleares. Cabe à CNEN estabelecidas pela CNEN e com o propósito de
especificar os elementos e materiais de interesse evitar os temíveis acidentes. “Trata-se realmente
para a energia nuclear (Lei nº 6.189/74, artigo 2º, de uma atividade com alto índice de risco ... e os
inciso VII, alterada pela Lei nº 7.781/89). sinistros, quando verificados, são irremediáveis
Por ser exigida a presença do elemento e catastróficos”.(50)
normativo (“sem a necessária licença”), exclui-se h) Obstrução ao funcionamento ou ao
a tipicidade quando a importação ou exportação transporte.
é autorizada pelo órgão competente. Por fim, diz o artigo 27: “impedir ou difi-
g) Inobservância de segurança e prote- cultar o funcionamento de instalação nuclear ou
ção. o transporte de material nuclear. Pena: reclusão,
O texto do artigo 26 apresenta a seguinte de quatro a dez anos”.
redação: “deixar de observar as normas de se- Neste tipo penal, o legislador visou im-
gurança ou de proteção relativas à instalação pedir a ocorrência de manifestações populares
nuclear ou ao uso, transporte, posse e guarda que possam obstruir o funcionamento de uma
de material nuclear, expondo a perigo a vida, instalação nuclear ou o transporte desse tipo de
a integridade física ou o patrimônio de outrem. material. Em relação a isso, Sérgio de Oliveira
Pena: reclusão, de dois a oito anos”. Médici lembra que: “No Japão e em vários países
Dentre os tipos penais previstos na Lei nº europeus, mobilizações de pessoas contrárias a
6.453/77, este é o único que não diz respeito atividade nuclear, embora pacíficas, consegui-
à Administração Pública ou às circunstâncias ram dificultar a montagem de usinas atômicas”.
inerentes ao processo de produção nuclear, cuja (51) Sendo assim, a realização desses atos sem
finalidade, nesse caso, é proteger a vida, a inte- prejuízo ao funcionamento ou ao transporte de
gridade física e o patrimônio das pessoas diante material nuclear é atípica.
do grave perigo que as instalações nucleares e o O delito ainda é referido como “boicote ou
material nuclear representam. As primeiras com- sabotagem da atividade nuclear” e ofende “não
preendem o reator nuclear, a fábrica que utiliza só a política nuclear, mas o livre exercício de
combustível nuclear para a produção de materiais atividade industrial ou regional”.(52)

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

Quanto à conduta do agente, Luiz Regis da qualidade ambiental resultante de atividades


Prado aponta que: “Em caso de emprego de vio- que direta ou indiretamente”: a) prejudiquem
lência para fins de obstaculizar ou tornar difícil o a população no tocante à saúde, à segurança e
funcionamento da instalação nuclear ou o trans- ao bem-estar; b) criem condições consideradas
porte de material nuclear, ter-se-á caracterizado adversas às atividades sociais e econômicas; c)
o crime contra a segurança nacional, e não o afetem de forma desfavorável a biota(57); d)
delito em tela”.(53) A propósito, vale frisar que afetem o ambiente quanto às condições estéti-
o artigo 19 da Lei em comento enfatiza que os cas ou sanitárias; ou, ainda, e) lancem no meio
tipos penais em questão não revogam os “crimes ambiente matérias ou energia em desacordo com
nucleares” previstos na Lei de Segurança Nacio- os padrões ambientais estabelecidos.
nal (7.170/83)(54) e nas demais leis. O intuito do legislador foi o de proteger o
Percebe-se assim, que o dispositivo em patrimônio natural e a qualidade de vida do ser
apreço assume mais um caráter de defesa das humano, bem como a fauna, a flora, o solo e as
instalações nucleares do que da comunidade em águas,(58) cujo dispositivo passou recentemente
si, registrando-se ainda, que “tanto do ponto de a ser aplicado pela jurisprudência em caso de
vista penal como do ponto de vista civil, a Lei poluição de águas já poluídas, ou seja, em que
nº 6.453/77 é muito mais uma lei de defesa da houvesse um agravamento da poluição.(59) Em
energia nuclear do que uma lei de defesa dos outras palavras, nos casos em que a conduta do
cidadãos contra a energia nuclear”.(55) agente não se subsumisse no delito previsto no
artigo 271 do Código Penal.(60)
3.2. Lei nº 6.938/81 de política nacional do Nos termos do artigo 3º, inciso IV, entende-
meio ambiente se por “poluidor” “a pessoa física ou jurídica, de
direito público ou privado, responsável, direta ou
Também visando à tutela infraconstitucio- indiretamente, por atividade causadora de degra-
nal penal das atividades nucleares, previu a Lei nº dação ambiental”, definição que traz algumas
6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) questões de difícil solução e que revelam a má
um tipo penal genérico, voltado a todas as ativi- redação do tipo. Ocorre que a responsabilidade
dades poluidoras, inclusive as nucleares, norma- penal da pessoa jurídica de Direito privado era (e
tizando a questão da seguinte forma: “Artigo 15. ainda é) bastante controversa em 1989, quando
O poluidor que expuser a perigo a incolumidade foi incluído o artigo 15 na Lei nº 6.938/81, bem
humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando como pela impossibilidade de a pessoa jurídica
mais grave situação de perigo existente, fica de Direito público ser sujeito ativo de crime.
sujeito à pena de reclusão de um a três anos e Ou seja, “o tipo penal criado no art. 15 punia
multa [...]. Parágrafo 1º. A pena é aumentada o poluidor e, no entanto, não se podia aplicar a
até o dobro se: I – resultar: a) dano irreversível ele a definição que lhe dava o art. 3o da própria
à fauna, à flora e ao meio ambiente; b) lesão lei”.(61)
corporal grave; II – a poluição é decorrente de Igualmente, como a lei em questão requer
atividade industrial ou de transporte; III – o crime que o sujeito ativo seja o “poluidor”, e tendo em
é praticado durante a noite, em domingo ou em vista que a mesma já define quem pode ser assim
feriado. Parágrafo 2º. Incorre no mesmo crime a considerado, aquele que expuser em perigo a
autoridade competente que deixar de promover incolumidade humana, animal ou vegetal, mas
as medidas tendentes a impedir a prática das não puder ser encaixado no conceito legal de
condutas acima transcritas (Artigo com redação “poluidor”, não responderá pelo delito do artigo
determinada pela Lei nº 7.804/89)”. 15 dessa lei. A razão disso é que, nesse caso, o
O artigo contemplou o “crime de indivíduo em questão não preenche todos os
poluição”(56) e, nos termos dessa Lei (artigo 3º, elementos exigidos pelo tipo, pois não basta a
inciso III, letras a, b, c, d e e), a terminologia “po- existência da poluição em si; ainda é preciso que
luição” pode ser entendida como “a degradação a incolumidade humana, animal ou vegetal seja

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colocada em perigo. Logo, depreende-se que o se reporte expressamente às substâncias nucle-


objeto de proteção desse delito não é apenas o ares ou radioativas.
meio ambiente, mas, também, a pessoa huma- a) Artigo 54 da Lei nº 9.605/98.
na, além do que o tipo exige a ocorrência de
Inaugurando a Seção III, do Capítulo V, da
um perigo real e concreto para a incolumidade
referida Lei, o dispositivo em questão trata do de-
humana, animal ou vegetal, as quais possam ser
lito de poluição de qualquer natureza e apresenta
potencialmente afetadas no futuro com a conduta
a seguinte redação: “Artigo 54. Causar poluição
do agente.
de qualquer natureza em níveis tais que resultem
Para finalizar, ainda em relação ao conceito ou possam resultar em danos à saúde humana,
de “poluidor” no sentido jurídico-legal do termo, ou que provoquem a mortandade de animais ou
este só será identificado por meio da realização a destruição significativa da flora. Pena: reclu-
de perícia, pois, para se concluir que a atividade são, de um a quatro anos, e multa. Parágrafo 1º.
desenvolvida pelo pretenso poluidor afeta, por Se o crime é culposo. Pena: detenção, de seis
exemplo, as condições estéticas ou sanitárias do a um ano, e multa. Parágrafo 2º. Se o crime:
meio ambiente, nos termos da Lei nº 6.938/81 I – tornar uma área, urbana ou rural, imprópria
(artigo 3º, inciso III, alínea d), é preciso que para a ocupação humana; II – causar poluição
especialistas (peritos) o digam. Isso porque não atmosférica que provoque a retirada, ainda que
é qualquer alteração ambiental que ocasiona um momentânea, dos habitantes das áreas afetadas,
real prejuízo ao bem em tela, reprimível pelo ou que cause danos diretos à saúde da população;
direito. O mesmo se aplica em relação ao artigo III – causar poluição hídrica que torne necessária
3º, inciso III, alínea e, porque, nesta hipótese, a interrupção do abastecimento público de água
urge que se verifique, através de perícia, o quanto de uma comunidade; IV – dificultar ou impedir
de matérias e energia está sendo lançado pelo o uso público das praias; V – ocorrer por lança-
agente para que se possa estabelecer um con-
mento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos,
fronto entre esses dados e aqueles previstos nas
ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em
normas estabelecedoras dos padrões ambientais
desacordo com as exigências estabelecidas em
– as denominadas normas de emissão – e con-
leis ou regulamentos. Pena: reclusão, de um a
cluir se aquela atividade empresarial é ou não
cinco anos. Parágrafo 3º. Incorre nas mesmas
poluidora.(62)
penas previstas no parágrafo anterior quem deixa
de adotar, quando assim o exigir a autoridade
3.3. Lei nº 9.605/98 de crimes ambientais competente, medidas de precaução em caso de
Atualmente, o instrumento mais completo risco de dano ambiental grave ou irreversível”.
– a despeito de toda a crítica que se lhe faz pos- O legislador criou o crime de poluição com
sível – no âmbito penal, com vistas à proteção o objetivo de tutelar o meio ambiente em toda
do meio ambiente, encontra-se na chamada Lei sua amplitude, abrangendo a poluição hídrica,
de Crimes Ambientais, promulgada no Direito atmosférica, do solo, sonora, etc. O conceito
pátrio nos termos da Lei nº 9.605/98. de “poluição”, por sua vez, é aquele já citado,
Assim, importa a análise da citada lei, que descrito na Lei nº 6.938/81 (artigo 3º, inciso III,
dispõe sobre os crimes contra o meio ambiente, alíneas a, b, c, d e e). A tutela é feita em razão
abordando os delitos que podem ser aplicados às da poluição, que diminui a qualidade ambiental
atividades envolvendo a energia nuclear, o que com a introdução de elementos exógenos nesse
pode ser conferido em seu Capítulo V – “Dos meio, causando desequilíbrio prejudicial à saúde,
crimes contra o meio ambiente”, na Seção III – à segurança, ao bem-estar da população, à fauna
“Da poluição e outros crimes ambientais”, e na e à flora, etc., e tornando-o desnaturado e inade-
Seção V – “Dos crimes contra a administração quado a uma utilização específica.(63)
ambiental”, conquanto tão somente um destes Entretanto, as condutas do agente estão
dispositivos legais (o parágrafo 2º do artigo 56) ligadas a elementos que tradicionalmente são

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

objetos de controvérsias doutrinárias, como, ainda que com aparência de verossimilhança”.


por exemplo, “causar poluição de qualquer na- (72) De todo modo, o legislador procurou valo-
tureza”. Essa abertura do tipo, com a utilização rizar na legislação brasileira um dos princípios
de termos vagos e comprometedores,(64) reve- fundamentais do direito ambiental, chamado
ladora de um objeto indeterminado, abrangente de precaução ou princípio da prudência ou da
das espécies e formas de poluição, independen- cautela.(73)
temente de seus elementos constitutivos(65), de b) Artigo 55 da Lei nº 9.605/98.
duvidosa constitucionalidade(66), transmitiria a Tal dispositivo visou à criminalidade na
idéia de imprecisão, e incerteza, o que conduziria exploração mineral, relativamente à pesquisa,
à insegurança e ao arbítrio.(67) lavra e extração de recursos minerais, cujos ele-
Outro problema está ligado ao fato de mentos do tipo são: “executar pesquisa, lavra ou
causar poluição “em níveis tais” e “destruição extração de recursos minerais sem a competente
significativa”. Ocorre que tais expressões en- autorização, permissão, concessão ou licença, ou
cerrariam situações obscuras, de modo que o em desacordo com a obtida. Pena: detenção, de
seu entendimento e esclarecimento ficariam ao seis meses a um ano, e multa”.
total arbítrio do julgador,(68) o que não condiz O objetivo da tutela penal neste caso é o
com um direito penal moderno, “que quer ver meio ambiente agredido pela mineração, já que
o transgressor sujeito à determinação da lei. A este tipo de atividade causa consideráveis im-
condenação justa é a que garante ao acusado a pactos ambientais. De fato, a extração mineral
ampla defesa, o que só será possível se a ele for apresenta um elevado grau de impacto ambiental.
imputado um fato certo descrito como crime”. Nesse sentido, observam Paulo Afonso Brum
(69) Vaz e Murilo Mendes que, “de um modo geral,
com mais ou menos intensidade, a atividade
O legislador julgou necessária a tipificação
mineradora, de qualquer espécie, é ofensiva
da conduta culposa no que tange à poluição. Se
ao meio ambiente, pelo menos enquanto não
tal fato for entendido como positivo, pode-se
planejada, indiscriminada, clandestina ou não
dizer que, assim agindo, “avançou-se signifi-
fiscalizada”.(74)
cativamente em relação à Lei de 1981 (Política
Nacional do Meio Ambiente), que só admitia o Tendo em vista a exigência do elemento
normativo na composição desse tipo penal,
crime de poluição na forma dolosa, justamente
pressupõe-se que somente será considerada ati-
a mais difícil de ocorrer”.(70)
vidade agressora do meio ambiente e, portanto,
Por sua vez, o parágrafo segundo, do artigo poluidora, “quando efetuada à revelia ou em
54, contemplou cinco hipóteses em que o crime excesso ao ato administrativo competente para
se torna qualificado: em relação à poluição do permitir, autorizar ou licenciar a atividade”.(75)
solo (inciso I), atmosférica (inciso II), da água Entretanto, na mesma linha do artigo ante-
(inciso III), das praias (inciso IV), e devido ao rior, o dispositivo em análise é genérico, fazendo
lançamento de resíduos sólidos, líquidos, gaso- referência exclusivamente à execução de pesqui-
sos, detritos, óleos e substâncias oleosas (inciso sa, lavra ou extração de recursos minerais(76)
V). Tratando-se de poluição radioativa, há que se deixando de mencionar de forma expressa os
atentar aos incisos II e III, porquanto os elemen- materiais nucleares e radioativos.
tos neles descritos (ar e água) são instrumentos
Além da conduta básica, a norma tipifica
facilitadores de sua propagação.(71) como criminosa a ausência de recuperação da
Essa norma ainda criminalizou a ausência área degradada. Conforme a redação do artigo
de medidas de precaução em caso de risco de 55, parágrafo único: “Nas mesmas penas incor-
dano ambiental grave ou irreversível. Todavia, re quem deixa de recuperar a área pesquisada
conforme Paulo Affonso Leme Machado, “torna- ou explorada, nos termos da autorização, per-
se temerário poder impor-se a pena de limitação missão, concessão ou determinação do órgão
da liberdade individual diante de um fato incerto, competente”.

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O dever de recuperação na exploração normas administrativas durante o manuseio de


mineral, já imposto expressamente pela Carta tais produtos”.(77)
Magna (artigo 225, parágrafo 2º), também foi Esse mesmo artigo da lei em comento
tutelado penalmente. Deve-se atentar, todavia, também considera criminoso o abandono dos
que a recuperação ambiental caracterizadora produtos ou substâncias tóxicas, perigosas ou
do crime deve ocorrer segundo a determinação nocivas à saúde humana ou ao meio ambiente.
do órgão competente ou conforme os termos da Nesses casos, basta o abandono desses produtos
autorização, permissão, licença ou concessão. ou substâncias para a caracterização do delito
c) Artigo 56 da Lei nº 9.605/98. previsto no parágrafo 1º, independentemente da
O presente tipo penal, que versa sobre existência de lei ou regulamento repetindo que tal
o produto ou a substância tóxica, de natureza produto ou substância não possa ser abandonado.
perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio “O tipo penal proíbe, portanto, deixar, jogar,
ambiente, tem a seguinte redação: “Artigo 56. esquecer, não remover para depósito autorizado,
Produzir, processar, embalar, importar, exportar, os produtos ou substâncias tóxicas, perigosas ou
comercializar, fornecer, transportar, armazenar, nocivas”.(78)
guardar, ter em depósito ou usar produto ou Em relação às “substâncias tóxicas”, elas
substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde podem ser entendidas como aquelas que, “se
humana ou ao meio ambiente, em desacordo forem inaladas ou ingeridas, ou se penetrarem
com as exigências estabelecidas em leis ou nos na pele, podem implicar efeitos posteriores
seus regulamentos. Pena: reclusão, de um a graves, até mesmo a morte”. Já, as “substâncias
quatro anos, e multa. Parágrafo 1º. Nas mesmas perigosas” são aquelas “cuja utilização pode
penas incorre quem abandona os produtos ou representar riscos imediatos ou futuros ao meio
substâncias referidos no caput, ou os utiliza em ambiente”. Por sua vez, as “substâncias nocivas
desacordo com as normas de segurança. Parágra- à saúde” são “as que, por inalação, ingestão ou
fo 2º. Se o produto ou a substância for nuclear ou via cutânea, podem ocasionar efeitos graves ao
radioativa, a pena é aumentada de um sexto a um ser humano”; finalmente, “substâncias nocivas
terço. Parágrafo 3º. Se o crime é culposo. Pena: ao meio ambiente” são “as que possam atingir a
detenção, de seis meses a um ano, e multa”. flora, a fauna, a água, tudo enfim que faça parte
Igualmente visando à tutela do meio am- dos recursos naturais”.(79)
biente sadio e equilibrado e da saúde do próprio No parágrafo 2º, do artigo 56, o legislador
ser humano, o dispositivo ora em análise reprime resolveu tratar, especialmente, de produto ou
qualquer manuseio de elementos perigosos, tóxi- substância nuclear ou radioativa. A definição de
cos ou nocivos, condicionando que a conduta do “produto ou substância nuclear ou radioativa”
agente seja realizada ao arrepio da legislação ou não existe na CNEN, razão pela qual o termo cor-
das normas administrativas. Logo, para se esta- reto, como já registrado anteriormente, consiste
belecer a existência desse delito é preciso saber no “material nuclear ou radioativo”, conforme o
o que pode ser entendido como material tóxico, inciso IV, do artigo 1º, da Lei nº 6.453/77, “não
perigoso ou nocivo, além de conhecer quais as que haja diferença em termos lingüísticos, mas
regras de manuseio fixadas pela Administração sim por uma questão de precisão terminológica,
Pública. para que sejam evitados problemas interpretati-
Incrimina-se, portanto, a conduta de polui- vos”.(80)
ção do solo por resíduos perigosos, bem como Ao tratar da questão de modo específico,
a mera conduta de manuseio de elementos não o legislador tão somente mencionou que se o
residuais, ou seja, pune-se a utilização de subs- produto ou a substância for nuclear ou radioa-
tâncias que em potencial possam causar danos ao tiva, haverá um aumento da pena (de um sexto
meio ambiente. Sendo assim, “não é a poluição a um terço), indicando, desse modo, uma maior
que se incrimina, mas sim a não-observância das gravidade do desvalor da ação do sujeito ativo,

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

influindo diretamente na medida do injusto que possa causar degradação ambiental, isto é,
penal. “alteração adversa das características do meio
A dúvida que surge nesse ponto é se o le- ambiente”.(82)
gislador agiu corretamente ao inserir, na Lei nº Aqui, também com o propósito de tutelar
9.605/98, um dispositivo tratando especialmente o meio ambiente como um todo, o legislador
das atividades nucleares e radioativas, quando tipificou a conduta do agente que mantém, em
existe lei específica sobre o tema, no caso, a Lei desconformidade com a legislação pertinente,
nº 6.453/77. Esse assunto será objeto de análise, estabelecimento potencialmente poluidor, seja
em separado, no próximo tópico.(81) na ausência de licença ou autorização, seja com
Por derradeiro, a lei previu expressamente, a inobservância do conteúdo desses atos admi-
no parágrafo 3º, do artigo 56, da Lei nº 9.605/98, nistrativos. Relacionam-se, então, às instalações
a punição do delito a título de culpa. Então, o nucleares ou radioativas.(83)
crime pode ser cometido por negligência, impru- No entanto, urge que se faça uma correção:
dência ou imperícia, quer o objeto seja substância a primeira parte do artigo 60 faz referência aos
tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao “órgãos ambientais competentes”. Ocorre que
meio ambiente, e o ato se dê em descordo com a CNEN, órgão responsável pela concessão de
normas administrativas, quer se trate de aban- licença ou autorização no âmbito da energia
dono ou utilização em desacordo com a norma nuclear, não é órgão ambiental, como requer o
específica, bem como em se tratando de material dispositivo em análise. De outro lado, o IBAMA
nuclear ou radioativo; porém, neste caso, sem o – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
aumento de pena determinado pelo parágrafo 2º Recursos Naturais Renováveis, que é órgão am-
da Lei em questão. biental, deve apenas manter entendimentos com
d) Artigo 60 da Lei nº 9.605/98. a CNEN para: “a) informar-se permanentemente
O tipo penal constante do artigo 60 com relação às instalações nucleares, unidades
apresenta os seguintes elementos: “Construir, de transporte e respectivos roteiros, a fim de
reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, delimitar as áreas passíveis de serem afetadas;
em qualquer parte do território nacional, esta- e b) estabelecer normas de prevenção e proteção
belecimentos, obras ou serviços potencialmente ambiental referentes ao uso da energia nuclear”
poluidores, sem licença ou autorização dos ór- (artigo 11, inciso III, alíneas a e b, do Decreto
gãos ambientais competentes, ou contrariando nº 2.210/97), sendo que em momento algum há
as normas legais e regulamentares pertinentes. previsão no sentido de que aquele órgão pode
Pena: detenção, de um a seis meses, ou multa, conceder licença ou autorização, tratando-se de
ou ambas as penas cumulativamente”. instalações nucleares ou radioativas.
Inicialmente é válido registrar que o li- Já, a segunda parte do artigo 60 pode ser
cenciamento e a revisão de atividade efetiva aplicada conforme sua redação, porquanto o
ou potencialmente poluidora constituem instru- IBAMA pode estabelecer normas de prevenção
mentos da Política Nacional do Meio Ambiente e proteção ambientais referentes à energia nu-
(Lei nº 6.938/81, artigo 9º, inciso IV). Tamanha clear (artigo 11, inciso III, alínea b, do Decreto
é a relevância de tais atividades que a lei esta- nº 2.210/97), ocasião em que as normas legais
beleceu, para sua instalação, a obrigatoriedade ou regulamentares podem ser contrariadas. De
de prévio licenciamento, independentemente de qualquer forma, “é imperioso frisar que tendo em
outras licenças exigíveis (hipóteses do artigo 10 vista as dificuldades provenientes das particula-
da referida Lei). ridades das instalações nucleares, tormentosa é
Quanto as definições que importam à a aplicação do art. 60”.(84)
construção desse tipo penal, deve-se entender, Pune-se, portanto, a prática das ações de-
por obra, a construção ou a edificação e, por monstradas nos núcleos do tipo, sem que haja
serviço potencialmente poluidor, a atividade licença administrativa corretamente expedida.

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Ademais, todas as atividades para as quais a lei O tipo penal em tela está voltado ao ato
ou as normas regulamentares exigem licença ou de concessão irregular de licença, autorização
autorização são potencialmente poluidoras. Na ou permissão, seja na forma dolosa (caput), ou
verdade, “trata-se de presunção que acompanha mesmo na forma culposa (parágrafo único). E
a exigência de prévia permissão, concessão, como seu antecedente, esse tipo define um cri-
autorização ou licença administrativa”.(85) me funcional, para cuja tipificação exige-se do
e) Artigo 66 da Lei nº 9.605/98. agente (funcionário público) capacidade especial
consistente no exercício de função pública.
Visando conceder maior eficácia aos tipos
penais ambientais, previstos na Lei nº 9.605/98, Trata-se de um tipo abrangente, pois não
o legislador também protegeu a administração atinge só atividades, obras ou serviços relaciona-
ambiental ao elevar determinadas condutas à dos aos radioisótopos, mas apresenta uma “forma
categoria de fatos delituosos, mas sempre com redacional tautológica”, haja vista que o legisla-
o objetivo principal de tutelar o meio ambiente. dor tipifica a conduta de conceder autorização às
Nesse sentido, o início se deu com a criação do atividades que dependem de autorização, e “cabe
artigo 66, cuja redação é a seguinte: “Fazer o dar autorização para atividades que dependam de
funcionário público afirmação falsa ou enganosa, autorização...” .(89)
omitir a verdade, sonegar informações ou dados g) Artigo 68 da Lei nº 9.605/98.
técnico-científicos em procedimentos de auto- Nos termos do disposto no artigo 68 da Lei
rização ou de licenciamento ambiental. Pena: ora estudada, configura crime contra o meio am-
reclusão, de um a três anos, e multa”. biente, particularmente contra a administração
Primeiramente, constata-se que o delito ambiental: “deixar, aquele que tiver o dever legal
em questão é voltado ao funcionário público, ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação
de conformidade com seu conceito para efeitos de relevante interesse ambiental. Pena: detenção
penais, previsto no Código Penal brasileiro(86) de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se
para o qual há o dever de exercer as funções o crime é culposo, a pena é de três meses a um
corretamente como serviço público, ou seja, de ano, sem prejuízo da multa”.
interesse geral, de acordo com o legalmente pre- Em razão da técnica redacional emprega-
visto (princípios da legalidade e eficiência).(87) da na sua construção, críticas doutrinárias não
Também é importante salientar que as faltam ao referido artigo, especialmente no que
informações ou os dados técnico-científicos aos diz respeito à “obrigação de relevante interesse
quais o legislador fez referência são da maior ambiental”(90), não havendo definição do que
importância nos procedimentos administrativos essa expressão deseja significar.
de autorização(88) ou licenciamento ambiental. Convém esclarecer que, diante do exposto
É certo, porém, que são os especialistas da área nesse dispositivo, comete o delito o agente que
que farão a análise e dirão se o projeto é compa- descumprir a obrigação de relevante interesse
tível com a proteção do meio ambiente. ambiental prevista em contrato.(91) Observa-se,
f) Artigo 67 da Lei nº 9.605/98. portanto, que o legislador preferiu lançar mão do
Com os mesmos objetivos e seguindo a direito penal imediatamente, de forma que “as
mesma linha de tutela penal, prevê o artigo 67: esferas cível e administrativa são ‘esquecidas’,
“Conceder o funcionário público licença, autori- ou melhor, ignoradas”.(92)
zação ou permissão em desacordo com as normas Por exemplo: a Norma CNEN-NE-1.28,
ambientais, para as atividades, obras ou serviços de 11/10/1999, estabelece os requisitos exigidos
cuja realização depende de ato autorizativo do pela CNEN para a qualificação de uma entidade
Poder Público. Pena: detenção, de um a três anos, como Órgão de Supervisão Técnica Indepen-
e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a dente (OSTI) em área específica de atividades
pena é de três meses a um ano de detenção, sem em usinas núcleo-elétricas e demais instalações,
prejuízo da multa”. nucleares ou radioativas. Dessa forma, “a de-

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

sobediência às obrigações expressas na Norma a três anos. Parágrafo 2º. A pena é aumentada de
1-28 pelos integrantes, como pessoas físicas do um terço a dois terços, se há dano significativo
OSTI [...] tornam essas pessoas passíveis de ao meio ambiente, em decorrência do uso de
serem enquadrados no crime do art. 68 da Lei informação falsa, incompleta ou enganosa”.
nº 9.605/98”.(93) Com esse novo dispositivo, o legislador,
Há, ainda, previsão legal da forma culposa com o fito de tutelar o meio ambiente, busca
na modalidade negligência, “uma vez que é invi- punir os envolvidos na elaboração ou mesmo
ável alguém, por imprudência ou imperícia, não apresentação de estudo, laudo ou relatório
cumprir o dever legal ou contratual”.(94) técnico com conteúdo falso ou enganoso, por
h) Artigo 69 da Lei nº 9.605/98. conta do licenciamento ambiental, concessão
florestal ou outro procedimento administrativo
Também visando a tutela penal do meio
dessa natureza.
ambiente, o artigo em epígrafe prevê como crime
a conduta de: “Obstar ou dificultar a ação fisca- Sendo assim, tanto o agente público de
lizadora do Poder Público no trato de questões órgão ambiental, que elabore um laudo técnico,
ambientais. Pena: detenção, de um a três anos, como o empreendedor que apresente esse do-
e multa”. cumento, sendo o mesmo total ou parcialmente
falso, pode responder pelo delito. Exemplo disso
Tem-se igualmente aqui um tipo penal é o caso de quem elabora ou apresenta um laudo
aberto, pois de forma genérica criminaliza a técnico à CNEN para obter a licença de funcio-
conduta do agente que crie obstáculos à ação namento de instalação radioativa, onde se afirma,
fiscalizadora do Poder Público, lembrando que falsamente, que o local não apresenta riscos ao
a redação utiliza tal expressão (“Poder Público”) meio ambiente; incide, pois, no tipo. Também há
porque cabe aos entes federativos de todos os previsão culposa do crime, bem como de uma
níveis (federal, estadual e municipal, mais o majorante no caso de significativo dano ao meio
Distrito Federal) zelar pela proteção do meio ambiente por conta da utilização da informação
ambiente (Constituição Federal, artigos 23, falsa, incompleta ou enganosa.
inciso VI, e 24, inciso VI).
Também aqui surgem problemas quanto
De fato, incrimina-se a causa de emba- à descrição típica das condutas puníveis, pois
raço ou empecilho capazes de obstaculizar ou como avaliar se a falha ou omissão foram in-
dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público tencionais ou culposas? E o que se entende pela
de todas as esferas do Poder, tratando-se de expressão “dano significativo”, a que alude o
questões ambientais, como avaliação de danos, parágrafo 2º do artigo em comento?
determinação de prejuízos, inspeção de objetos
Sobre tais questões, Edis Milaré retrata a
ou locais, e outras dessa natureza.(95)
seguinte situação: “Suponha-se que o empreen-
i) Artigo 69-A da Lei nº 9.605/98. dedor contrate uma empresa de consultoria para
Derradeiramente, concluindo a tutela pe- a elaboração de um EIA-RIMA, com vistas à
nal infraconstitucional do meio ambiente, com obtenção de licenciamento ambiental para de-
a introdução deste novel tipo penal pela Lei terminado empreendimento ou atividade para a
nº 11.284/06, o legislador buscou criminalizar qual a legislação preveja a apresentação de tal
de forma mais grave a conduta do agente nos estudo. Suponha-se ainda que na análise de tal
casos da Lei nº 9.605/98. A redação do tipo é estudo, pela autoridade ambiental, seja cons-
esta: “Artigo 69-A. Elaborar ou apresentar, no tatado um erro ou uma informação dissonante
licenciamento, concessão florestal ou qualquer com a realidade. Ora, segundo os ditames do
outro procedimento administrativo, estudo, lau- dispositivo legal em apreço, a empresa de consul-
do ou relatório ambiental total ou parcialmente toria responderá pelo crime descrito nesse artigo
falso ou enganoso, inclusive por omissão. Pena: – pois elaborou o estudo reputado enganoso –,
reclusão, de três a seis anos, e multa. Parágrafo assim como o empreendedor que o apresenta às
1º. Se o crime é culposo. Pena: detenção, de um autoridades”.(96)

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Ocorre que, no mais das vezes, o empre- Em um primeiro momento, ocorre que a
endedor não dispõe de conhecimento técnico conduta de “extrair” se faz presente nos dois
suficiente para analisar e avaliar o trabalho téc- dispositivos, a despeito de a Lei de Crimes Am-
nico apresentado – motivo pelo qual contratou bientais não utilizar o verbo, mas a atividade
um terceiro para fazê-lo – e, no entanto, haverá o (“extração”). Além disso, a expressão “recursos
risco de ele responder por um engano ou omissão minerais” apresenta uma abrangência maior
sem mesmo ter dado causa. em relação àquela que se refere ao “minério
Frise-se, por fim, que “a altíssima pena nuclear”, permitindo, então, que se faça um ni-
cominada ao crime pode inibir ainda mais a velamento de todos os minérios, seja o mesmo
disposição de peritos, expertos e profissionais de natureza nuclear ou não.(101) Para completar,
para aceitar trabalhos cujas conclusões, ainda a Lei nº 9.605/98 condiciona as condutas típicas
que técnica e cientificamente defensáveis, à inexistência de “autorização, permissão, con-
possam de algum modo não ser aceitas pelos cessão ou licença” ou, ainda, “em desacordo com
técnicos dos órgãos ambientais ou do Ministério a obtida”, como faz a Lei nº 6.453/77, quando
Público”,(97) ensejando uma ação penal. também restringe os comportamentos proibidos
à forma “ilegalmente”, que deve ser tomada no
Destarte, feita a análise global desses tipos
sentido lato, englobando a ausência de normas
penais aplicáveis, de uma forma ou de outra, às
regulamentares decorrentes dos referidos atos
atividades nucleares, passa-se agora às obser-
administrativos. Entende-se, em razão desses
vações e conclusões preliminares e necessárias
motivos, que o artigo 55 da Lei de Crimes Am-
sobre o assunto, as quais servirão de base para
bientais revogou parcialmente o artigo 24 da Lei
a sustentação da tese de que a legislação penal
das Atividades Nucleares.
em questão não funciona, além do que carece
de reformas. Quanto à outra parte da redação desse
dispositivo legal, as condutas de “beneficiar”
e “comercializar” foram revogadas pelas ações
3.4. Tomada de posição múltiplas contidas no tipo previsto no artigo 56
Inicialmente, deve-se questionar sobre a da Lei de Crimes Ambientais(102), muito mais
vigência dos tipos penais analisados. Apesar abrangentes em relação às primeiras.
das divergências doutrinárias existentes(98) – Entende-se, também, que esse mesmo
as quais poderiam inexistir, caso o legislador artigo 56 da Lei nº 9.605/98 revogou os artigos
de 1998 tivesse mencionado expressamente, na 20, 22 e 25 da Lei nº 6.453/77, diante da grande
Lei nº 9.605, quais artigos foram revogados(99) extensão abarcada pelas condutas típicas nele
–, deve-se entender revogados tacitamente os descritas. Sendo assim, as ações nucleares de
artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei nº 6.453/77(100) “produzir, processar, fornecer ou usar” (artigo
pelos artigos 55 (parte do artigo 24) e 56 (parte 20); “possuir, adquirir, transferir, transportar,
do artigo 24 e os demais referidos); e, também, guardar ou trazer consigo” (artigo 22); e “expor-
o artigo 15, da Lei nº 6.938/81, pelo artigo 54, tar ou importar” (artigo 25), estão previstas, de
todos da Lei nº 9.605/98. um modo ou de outro(103), naquele dispositivo
O caput do artigo 55, da Lei nº 9.605/98, da Lei de Crimes Ambientais, o qual, assim como
trata da execução de três atividades, a saber: a os citados tipos penais da Lei das Atividades Nu-
“pesquisa”, a “lavra” e a “extração”, cujo objeto cleares, exige que a conduta se dê em desacordo
são os “recursos minerais”, desde que tal ação com a norma.
seja levada a efeito “sem a competente autori- Finalmente, houve a revogação do artigo
zação, permissão, concessão ou licença, ou em 15, da Lei nº 6.938/81, pelo artigo 54, da Lei nº
desacordo com a obtida”. Por sua vez, o artigo 9.605/98. Aquele dispositivo, previsto na Lei de
24 da Lei nº 6.453/77 estabelece três condutas Política Nacional do Meio Ambiente, trata do
típicas: “extrair”, “beneficiar” e “comercializar” crime de poluição, assim compreendido pelos tri-
minério nuclear de forma ilegal. bunais brasileiros: “Ação civil pública. Dano ao

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

meio ambiente. Poluidor indireto. I – O poluidor Contudo, dependendo da forma como fo-
que causa dano ao meio ambiente tem definição rem desenvolvidas as atividades nucleares, tais
legal e é aquele que proporciona, mesmo indi- bens jurídicos (vida, integridade física, patrimô-
retamente, degradação ambiental. E o poluidor nio, meio ambiente) podem ser afetados direta ou
é sujeito ao pagamento de indenização, além de indiretamente e de forma muito grave, o que pode
outras penalidades”.(104) implicar na sua destruição total e irreversível, os
Já, o segundo dispositivo mencionado, da quais, portanto, devem receber um tratamento
Lei de Crimes Ambientais, concedeu novo e adequado por parte da lei penal.
amplo tratamento à matéria, portanto, de maior Também no que se refere à amplitude de
abrangência que a anterior, o qual até então tutela penal por parte da Lei nº 6.453/77, há de
era a única referência expressa à poluição e ao se observar que a mesma só regula as instalações
enquadramento correto para todo crime da natu- nucleares; porém, ignora as instalações radioa-
reza em epígrafe, mas isso antes da aplicação da tivas, ou seja, a lei contempla a energia nuclear,
legislação criminal a partir de 1998.(105) mas não abarca a questão das radiações ionizan-
Sendo assim, conclui-se que permanecem tes, sendo que ambas têm potencial para afetar
em vigor os artigos 21, 23, 26 e 27 da Lei nº bens jurídicos dignos de tutela penal.
6.453/77, e artigos 54 a 56, 60, 66 a 69, e 69-A O segundo motivo para se refutar a atual
da Lei nº 9.605/98. legislação infraconstitucional penal é que a Lei
Embora estejam vigendo duas leis espe- de Crimes Ambientais não atende às especifici-
cíficas sobre o tema relacionado às atividades dades exigidas pelas atividades nucleares, diante
nucleares, em que pese a impossibilidade de da forma genérica com que trata a questão, apesar
consenso quanto aos tipos penais vigentes, de ter voltado atenção à tutela do meio ambiente,
partindo-se, contudo, da posição adotada em além da saúde humana, ordenação territorial e
relação a essa questão, o fato é que a legislação Adminstração Pública.
infraconstitucional penal existente no momento
Demonstrou-se, ainda, que a Lei nº
não serve para conferir uma adequada tutela
9.605/98 dispõe sobre crimes contra o meio am-
penal, seja no que diz respeito à Lei nº 6.453/77,
biente, priorizando a tutela desse bem jurídico e
ou mesmo em relação à Lei nº 9.605/98.
abordando os delitos relativos à energia nuclear
O primeiro motivo para tal afirmativa é que em apenas alguns dos seus dispositivos (previs-
a Lei das Atividades Nucleares (6.453/77) não tos nas Seções III e V do Capítulo V), contudo,
promove essa tutela específica de forma ampla,
de maneira genérica. De forma específica, tem-se
haja vista que apenas um tipo penal da Lei em
só o parágrafo 2º, do seu artigo 56, que trata da
tela teve como objetivo a proteção da vida, da
poluição radioativa. No entanto, a despeito de o
integridade física ou do patrimônio das pessoas.
legislador ter feito uma particular referência às
Além disso, ela não abarcou a segurança coletiva
atividades nucleares e radioativas nesse dispo-
e a proteção do meio ambiente.(106)
sitivo, ele não agiu corretamente.
Conforme já foi analisado, no que concerne
Ocorre que, nesse caso em particular, existe
aos delitos descritos nessa lei, verifica-se que os
mesmos não se referem ao meio ambiente, mas uma lei específica dispondo sobre as atividades
à segurança nacional, às instalações nucleares, dessa natureza (Lei nº 6.453/77), muito embora a
aos materiais nucleares e ao assecuramento do mesma não tenha tratado do assunto da maneira
controle das atividades nucleares pelo Poder devida, ou seja, de forma ampla, englobando
Público.(107) À época da elaboração da Lei nº como bens jurídicos a vida, a integridade física,
6.453/77, o legislador se preocupou mais com a o patrimônio, a segurança coletiva e o meio
restrição de condutas com capacidade de ofensa ambiente, e tutelando, além das instalações nu-
aos bens jurídicos diversos do meio ambiente, cleares, também as radioativas.
voltando-se às atividades desenvolvidas nas Finalmente, a terceira razão para se pre-
instalações nucleares(108). conizar uma reforma legislativa sobre o tema é

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009 125


MARTINS, J. R.

aquela relacionada à maneira como determinados buscando-se a sua compatibilidade com os prin-
bens jurídicos podem ser expostos à ofensa (ou cípios constitucionais tidos como fundamentais
afetados) pelas condutas que tomem por base as no estado social e democrático de direito, de
atividades nucleares em seu sentido amplo, tam- importância singular para a delimitação do
bém no tocante à existência de um bem jurídico direito de punir. Deve-se iniciar, na verdade,
principal, objeto da tutela, e sobre a forma como uma empreitada no sentido de apontar um novo
se dá a intervenção penal quando da ocorrência modelo de tutela penal das atividades nucleares
dos comportamentos proibidos. neste mesmo estado. Mas isto é assunto para ser
Verifica-se que em ambas as leis – 6.453/77 discutido em outra oportunidade.
e 9.605/98 – existem vários tipos que são cons-
truídos a partir de uma técnica legislativa que
opta pela utilização de elementos próprios do 4. Conclusões
chamado direito penal de risco, como os crimes
Entre os avanços técnicos e/ou científicos
de perigo abstrato e as normas penais em branco,
dos últimos tempos, poucos têm levantado tanta
buscando-se, com isso, a antecipação da tutela
polêmica na sociedade contemporânea quanto a
penal na medida em que tais elementos servem,
obtenção de energia derivada do processamento
respectivamente, de barreira de contenção para
atômico, genericamente denominada energia nu-
que delitos mais graves não ocorram, e como
clear ou atômica, a qual apresenta, inclusive, um
propiciadores de uma interdisciplinaridade entre
risco que pode desembocar em uma catástrofe
o direito e outras áreas do saber.
para a humanidade. Porém, as atividades nuclea-
Falhas e equívocos também estão presentes res envolvem não somente a utilização da energia
nos dois diplomas quanto às intervenções penais nuclear, mas também, o emprego das radiações
em cada hipótese. Comparando-se uma norma ionizantes em diversas áreas do conhecimennto,
com outra, percebe-se que o tratamento dado sendo, ambas, ao mesmo tempo, instrumentos
pela Lei nº 6.453/77 é muito rígido, ao passo fundamentais para o desenvolvimento da socie-
que a Lei nº 9.605/98 tratou a questão de forma dade e temas geradores de muita preocupação e
mais branda, o que pode conduzir à constatação tensão para os homens e o meio ambiente.
de que o legislador infraconstitucional descon- A energia nuclear e as radiações ionzantes
siderou a relação de proporcionalidade que deve têm aplicações variadas e importantes em um
haver entre a lesão (ou então, ameaça de lesão) considerável número de atividades humanas.
ao bem jurídico tutelado e a sanção imposta Há, entretanto, de se levar em conta que tais
nesses casos. atividades também implicam conseqüências
Diante de todo o exposto, conclui-se que boa e ruins ao ser humano e ao meio ambiente,
existe uma confusão legislativa em torno das se mal utilizadas ou direcionadas às práticas
leis que dispõem sobre as atividades nucleares lesivas. Em razão disso, as atividades nucleares
no direito brasileiro. Há de fato uma grande demandam uma regulamentação jurídica ampla
miscelânea legislativa no que diz respeito aos e consistente, a fim de permitir seu emprego de
objetivos perseguidos pelos legisladores de cada maneira séria e consciente voltado ao benefício
uma delas, além da utilização desordenada dos do homem e do meio ambiente.
elementos componentes da estrutura dos tipos Quanto a regulamentação jurídica das ati-
contidos nas mesmas, o que, por si só, exige um vidades nucleares no direito brasileiro, tem-se
novo tratamento jurídico-penal. uma tutela em diferentes níveis, com a regu-
Enfim, torna-se imperioso analisar se e lamentação constitucional e a regulamentação
até onde aqueles instrumentos podem ser úteis infraconstitucional, abarcando normas de direito
para a tutela penal das atividades nucleares, mas internacional, direito civil, administrativo e pe-
desde que se tenha em vista, de forma clara, quais nal. A regulamentação jurídico-penal, por seu
são os bens jurídicos que devem ser protegidos, turno, é levada a efeito, em princípio, por meio de

126 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009


TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

três leis especiais, a saber: a Lei n. 6.453/77 (Lei Biblioteca do Exército, 1979.
de Responsabilidade Criminal por Atos Lesivos
ADEODATO, João Maurício L. Ética, subdesen-
às Atividades Nucleares), a Lei n. 6.938/81 (Lei
volvimento e utilização de energia nuclear. In:
de Política Nacional do Meio Ambiente) e a Lei
Revista da Procuradoria Geral da República,
n. 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), cada São Paulo, n. 6, 1994.
qual com seus objetivos e especificidades.
No entanto, entende-se que a Lei n. ÁLVARES, Walter Tolentino. Curso de direito
6.453/77 – voltada particularmente às atividades da energia. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
nucleares – teve a maioria dos seus dispositivos ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental.
tacitamente revogados pela Lei n. 9.605/98 – di- 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
recionada às condutas atentatórias ao meio am-
ARANHA, Fábio. Neutrongrafia: técnica nuclear
biente –, a qual também teria revogado, ainda que
ajuda a combater drogas e terrorismo. Brasil
tacitamente, o único artigo da Lei n. 6.938/81 que
nuclear, Rio de Janeiro, ano 8, n. 23, Associação
poderia ter aplicação à matéria nuclear. A bem
Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), abr.-set.
da verdade, ocorre uma confusão legislativa no
2001.
direito pátrio em relação às condutas referentes
às atividades dessa natureza: a Lei n. 6.453/77 só BECHARA, Érika. Aspectos penais da Lei da
regula as instalações nucleares, ignorando as ins- Política Nacional do Meio Ambiente. In: Boletim
talações radioativas, ou seja, contempla a energia do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
nuclear, mas não abarca a questão das radiações São Paulo, n. 49, dez. 1996.
ionizantes, sendo que ambas têm potencial para BEDNARSKI, José Luiz. Lei 9.605/1998: equí-
afetar bens jurídicos dignos de tutela penal; já, a vocos do legislador. In: Boletim IBCCrim, São
Lei n. 9.605/98 dispõe sobre os crimes contra o Paulo, n. 68, 1998.
meio ambiente e prioriza a tutela do citado bem
jurídico, abordando os delitos relativos à energia BIASI, Renato de. A energia nuclear no Brasil.
nuclear em apenas alguns dos seus dispositivos Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979.
e, ainda assim, de forma genérica (especifica- CAMARGO, Adriano Costa de. Conservação
mente, trata apenas da poluição radioativa), os por irradiação. Disponível no site:http://www.
quais envolvem a ofensa ou exposição a perigo cena.usp.br/irradiacao/cons_irrad.html. Acesso
de outros bens jurídicos além do meio ambiente. em: 19/09/2007.
Por tais razões e, ainda, pela necessidade de se
CARVALHO, Joaquim Francisco de. O acordo
analisar os instrumentos que podem ser úteis à
nuclear Brasil-Alemanha. O Brasil nuclear: uma
tutela penal das atividades nucleares, deve-se
anatomia do desenvolvimento nuclear brasileiro.
proceder à construção legislativa de um novo
Porto Alegre: Tchê!, 1987.
modelo de tutela penal das atividades nucleares
em consonância com o estado social e democrá- COELHO, Aristides Pinto. Energia nuclear. Rio
tico de direito. de Janeiro: Compósita/Iarte, 1977.
COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NU-
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____. Meio ambiente e Direito penal brasileiro. do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do
In: Revista de Ciências Penais, São Paulo, ano Largo São Francisco – USP, no dia 3/9/ 2008.
2, n. 4, 2005. (2) Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo –
USP. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade
RIBEIRO, Viviane Martins. Tutela penal nas Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Direito
atividades nucleares. São Paulo: Revista dos Penal nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Facul-
dade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba –
Tribunais, 2004.
UNIMEP. Professor de Direito Penal na Faculdade de Direito
ROCHA, Lincoln Magalhães da. Responsabili- das Faculdades de Campinas – FACAMP. Coordenador do
dade criminal e civil pelos ilícitos da era nuclear. Curso de Direito Campus Taquaral da Universidade Meto-
dista de Piracicaba – UNIMEP. Advogado e Ex-Delegado
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SEGEL, Irwin H. Bioquímica: teorias e proble- Denise Mattatia Grassiano. Rio de Janeiro: Livros Técnicos
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Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979. (5) MACEDO, Horácio. Dicionário de física. Rio de Janeiro:
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(8) DANTAS, Vera. O átomo que cura. Brasil nuclear, Rio de Ja-
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 1ª Re- neiro, ano 6, n. 19, Associação Brasileira de Energia Nuclear
gião. Ap. Crim. n. 95.01.11586-0/PI. Relator (ABEN), abr.-jun. 1999, p. 13. Vale registrar, que a medicina
Juiz Tourinho Neto. 3. T. Unânime. Diário da nuclear não se confunde com a radioterapia, distinguindo-se
Justiça 18/04/1996. quanto à forma de utilização do material radioativo: “En-
quanto a radioterapia usa fontes seladas (ou fechadas), que
SIGURBJÖRNSSON, Björn; VOSE, Peter. emitem radiação externa ao paciente, a medicina nuclear
Técnicas nucleares para el desarrollo agrícola y emprega fontes de radiação abertas, administradas in vivo
(via oral ou endovenosa). Se, na radioterapia, a radiação é
alimentario: 1964 a 1994. In: Boletín del OIEA, dirigida para o ponto a ser tratado, na medicina nuclear é
OIEA, Viena, n. 3, vol. 36, 1994. o próprio metabolismo do organismo do paciente que se
encarrega de levar o material radioativo para o órgão a ser
VAZ, Paulo Afonso Brum; MENDES, Murilo. examinado ou tratado” (id., ibid.).
Meio ambiente e mineração. In: FREITAS,
(9) Id., p. 16. Importa frisar, que “a medicina nuclear, no entanto,
Gilberto Passos de (org.). Direito ambiental em não veio substituir a radiologia [...]. Os dois exames são
evolução. 2. ed. v. 1. Curitiba: Juruá, 2003. complementares” (id., ibid.).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009 129


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(10) CARVALHO, Joaquim Francisco de. O acordo nuclear (28) MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Crimes relativos às atividades
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desenvolvimento nuclear brasileiro. Porto Alegre: Tchê!, 561, jul. 1982, p. 293.
1987, p. 50. (29) ACORDO ENTRE O GOVERNO DA REPÚBLICA FE-
(11) GIURLANI, Sílvia. Quando a radiação faz bem. Brasil DERATIVA DO BRASIL E O GOVERNO DA REPÚBLI-
nuclear, Rio de Janeiro, ano 4, n. 13, Associação Brasileira CA FEDERAL DA ALEMANHA SOBRE COOPERAÇÃO
de Energia Nuclear (ABEN), abr.-jun., 1997, p. 9. NO CAMPO DOS USOS PACÍFICOS DA ENERGIA
NUCLEAR, apud BIASI, Renato de. A energia nuclear no
(12) SAFFIOTI, Waldemar. Fundamentos de energia nuclear. Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979, p. 154.
Petrópolis: Vozes, 1982, p. 151.
(30) Conforme Paulo Roberto Lyrio Pimenta, denominam-se
(13) COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR “crimes nucleares aquelas infrações penais, descritas em lei,
(CNEN). Aplicações da energia nuclear. Disponível no site: oriundas basicamente da utilização desse tipo de energia”
www.cnen.gov.br/ensino/apostila/aplica.pdf, p. 9. Acesso (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Os crimes nucleares. In:
em: 15/09/2007. Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA,
Salvador, n. 5, jan. 1996-dez. 1997, p. 306). Ainda, de
(14) Nesse sentido, conferir: CARVALHO, Joaquim Francisco
acordo com o autor, “A Lei nº 6.453/77 [...] define oito
de, op. cit., p. 51; SAFFIOTI, Waldemar, op. cit., p. 151;
crimes relacionados com o emprego e produção da energia
CNEN, op. cit., p. 10. No Brasil, a erradicação de certos nuclear” (id., p. 307), sendo que ”o escopo principal visa-
insetos mediante irradiação dos machos até a esterilização do com a tipificação dessas condutas foi o de assegurar a
tem sido efetuada na região de Piracicaba-SP, através do implantação da nova modalidade geradora de energia sem
Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA). A causar riscos ou danos para a população e para as relações
principal vantagem deste processo é que ele é mais barato, externas” (id., p. 308).
comparando-se à utilização de agrotóxicos. Nesse sentido: (31) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 293.
DANTAS, Vera. Técnicas nucleares na agricultura – Piraci-
(32) ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 5. ed. Rio
caba mira na exportação e acerta na mosca... da fruta. Brasil
de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 591.
Nuclear, Rio de Janeiro, ano 6, n. 19, Associação Brasileira
de Energia Nuclear – ABEN, abr.-jun. 1999, p. 8. (33) Lei nº 6.453/77: artigo 1º, inciso VI, letras a, b e c.
(15) INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY (34) ROCHA, Lincoln Magalhães da. Responsabilidade criminal
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Legislativa, Brasília, Senado Federal, ano 22, n. 86, abr.-
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jun. 1985, p. 237.
(16) DIEHL, Johannes Friedrich. Safety of irradiated foods.
(35) ÁLVARES, Walter Tolentino. Curso de direito da energia.
New York: Marcel Dekker, 1995, p. 454. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 532.
(17) CAMARGO, Adriano Costa de. Conservação por irradia- (36) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 238.
ção. Disponível no site: http://www.cena.usp.br/irradiacao/
(37) Sobre a utilização da energia nuclear, para João Maurício L.
cons_irrad.html. Acesso em: 19/09/2007.
Adeodato há “três alternativas [...]: a tese do uso total (fins
(18) SIGURBJÖRNSSON, Björn; VOSE, Peter. Técnicas nucle- bélicos e pacíficos), a tese do uso apenas pacífico e a tese
ares para el desarrollo agrícola y alimentario: 1964 a 1994. da renúncia à utilização da energia nuclear em larga escala.
In: Boletín del OIEA, OIEA, Viena, n. 3, vol. 36, 1994, p. 43. Exclui-se aqui uma quarta e inusitada hipótese, a de utili-
(19) Id., ibid. zação da energia nuclear exclusivamente para fins bélicos”
(ADEODATO, João Maurício L. Ética, subdesenvolvimento
(20) A gamagrafia é a impressão de radiação gama em filme e utilização de energia nuclear. In: Revista da Procuradoria
fotográfico. Geral da República, São Paulo, n. 6, 1994, p. 68).
(21) COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR (38) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 239.
(CNEN), op. cit., p. 12. (39) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 294.
(22) COELHO, Aristides Pinto. Energia nuclear. Rio de Janeiro: (40) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 295. Desse modo,
Compósita/Iarte, 1977, p. 333. conforme Paulo Roberto Lyrio Pimenta, “a configuração do
(23) ISHIGURO, Yuji. A energia nuclear para o Brasil. São delito exige que a matéria chegue ao conhecimento do desti-
Paulo: Makron Books, 2002, p. 95-97. natário” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio, op. cit., p. 311).
(24) ARANHA, Fábio. Neutrongrafia: técnica nuclear ajuda a (41) PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo:
combater drogas e terrorismo. Brasil nuclear, Rio de Janei- Revista dos Tribunais, 2005, p. 457.
ro, ano 8, n. 23, Associação Brasileira de Energia Nuclear (42) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 591.
(ABEN), abr.-set. 2001, p. 19. (43) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 295.
(25) Id., p. 21. (44) De fato, “[...] a lei não exige a prática de atos de comércio
(26) DORST, Jean. Antes que a natureza morra: por uma eco- para a configuração do delito” (PIMENTA, Paulo Roberto
logia política. Trad. Rita Buongermino. São Paulo: Edgard Lyrio, op. cit., p. 312).
Blücher/Universidade de São Paulo, 1973, p. 259. (45) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 241.
(27) Entendido como aquele modelo de estado que pretende (46) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 592.
reunir, superando-os, os modelos de estado liberal e estado (47) Nesse ponto, surge um alerta: “O legislador fala também
social. em minério ‘de interesse para a energia nuclear’. Ora,

130 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009


TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

trata-se de um tipo muito aberto que retira à definição legal animal e vegetal” (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 1ª
aquela garantia que representa o princípio da legalidade. Região. Ap. Crim. n. 95.01.11586-0/PI. Relator Juiz Tou-
Não usou de boa técnica o legislador ao dimensionar de rinho Neto. 3. T. Unânime. Diário da Justiça 18/04/1996.
forma tão vaga o objeto da tutela penal. Tal modo de legislar p. 25.206).
ofende ao princípio do nullum crimen sine lege, pois dá (60) SIFUENTES, Mônica. Responsabilidade penal pela má
uma abertura demasiada ao critério subjetivo do julgador. utilização da água. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 623,
Quantos minérios podem interessar ao problema nuclear de 23 mar. 2005. Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/
maneira indireta ou mesmo direta e não se alinharem entre doutrina/texto.asp?id=6506, p. 3. Acesso em: 01/11/2007.
os estritamente nucleares?” (ROCHA, Lincoln Magalhães
(61) Id., ibid. Lembra a autora ainda, que: “essa lei jamais teve
da, op. cit., p. 242).
efetividade, sendo poucos os casos levados aos tribunais”
(48) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 242. (id., ibid.).
(49) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 592. (62) BECHARA, Érika. Aspectos penais da Lei da Política Na-
(50) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 243. cional do Meio Ambiente. In: Boletim do Instituto Brasileiro
(51) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 296. de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, dez. 1996, p. 11.
Conforme a autora: “A responsabilidade criminal por condu-
(52) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 244. tas lesivas ao meio ambiente, aliada à responsabilidade civil
(53) PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo: e administrativa, que podem incidir cumulativamente sem
Revista dos Tribunais, 2005, p. 461. gerar bis in idem (art. 225, § 3º, CF), logra por desencorajar
(54) “Lei nº 7.170/83. Artigo 13. Comunicar, entregar ou as condutas causadoras de degradação e desequilíbrio do
permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo entorno, razão pela qual se destaca, providencialmente, como
estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, um importante e inafastável instrumento de preservação e
de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, proteção ambiental. Assim, resta-nos concluir que o art. 15
códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado bra- da Lei 6.938/81 tem um salutar papel a cumprir na defesa
sileiro, são classificados como sigilosos. Pena: reclusão, de do meio ambiente e da vida digna da coletividade. Acertou o
três a quinze anos. [...] Artigo 15. Praticar sabotagem contra legislador ao instituí-lo e acertará, ainda mais, o magistrado,
instalações militares, meios de comunicações, meios e vias ao aplicá-lo” (id., ibid.).
de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, (63) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney
barragem, depósitos e outras instalações congêneres. Pena: de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de. Crimes
reclusão, de três a dez anos. Parágrafo 1º. Se do fato resulta: ambientais e infrações administrativas ambientais. 2. ed.
a) lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 282.
b) dano, destruição ou neutralização de meios de defesa (64) REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente e Direito penal
ou de segurança; paralisação, total ou parcial, de atividade brasileiro. In: Revista de Ciências Penais, São Paulo, ano
ou serviços públicos reputados essenciais para a defesa, a 2, n. 4, 2005, p. 75.
segurança ou a economia do País, a pena aumenta-se até o
dobro; c) morte, a pena aumenta-se até o triplo. Parágrafo (65) PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 418-419.
2º. Punem-se os atos preparatórios de sabotagem com a pena (66) MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 5. ed. São Paulo:
deste artigo reduzida de dois terços, se o fato não constitui Revista dos Tribunais, 2007, p. 950.
crime mais grave”. (67) RIBEIRO, Viviane Martins. Tutela penal nas atividades
(55) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 593. nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 190.
(56) Id., p. 593. (68) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 950. De acordo com Miguel
(57) A denominada “biota” pode ser compreendida como o Reale Júnior: “Fica ao alvitre do intérprete, com efetiva lesão
“conjunto de seres vivos de um ecossistema; a fauna e a ao princípio da legalidade, dizer o que vem a ser ‘níveis
flora juntas; conjunto de componentes vivos (bióticos) de tais’, sem se ter qualquer parâmetro sequer na legislação
um ecossistema” (LIMA E SILVA, Pedro Paulo de et. al. regulamentar, à qual não se remete o tipo penal” (REALE
Dicionário brasileiro de ciências ambientais. Rio de Janeiro: JÚNIOR, Miguel, op. cit., p. 75). E acrescenta: “[...] com
Thex, 2002., p. 32). relação à fauna e à flora só é crime a ação da qual decorram
danos e danos elevados: mortandade de animais ou destrui-
(58) SILVA, Rodrigo Alves da. A responsabilidade penal por ção significativa da flora. Há manifesta imprecisão acerca
danos ao meio ambiente. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, do significado e limite do que deva ser considerado como
n. 61, jan. 2003. Disponível no site:http://jus2.uol.com.br/ mortandade, bem como referentemente ao que se caracteriza
doutrina/texto.asp?id=3630, p. 3. Acesso em: 01/11/2007. como significativa destruição da flora” (id., p. 75-76). Para
(59) “PENAL. PROCESSO PENAL. NOVA DEFINIÇÃO Luiz Regis Prado, “o termo em níveis tais exprime um certo
JURÍDICA. CPP, art. 383. DEFESA. MEIO AMBIENTE. quantum – suficiente –, elevado o bastante para resultar ou
POLUIÇÃO. O RIO PARNAÍBA. LEI Nº 6.938, DE 1981, poder resultar em lesão à saúde humana. Por destruição
ART.15. LEI Nº 7.804, DE 1989. I – Não é da classificação significativa da flora deve ser entendida aquela realizada de
do crime que o réu se defende e sim da imputação contida maneira expressiva, de gravidade considerável. Tratam-se de
na denúncia (CPP, art. 383). II – Comete o crime previsto corretivos típicos, excluindo-se do âmbito do injusto típico
no art. 15 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, alterado as condutas escassamente lesivas ou de pouca relevância
pela Lei nº 7.804, de 18 de julho de 1989, o proprietário de para o bem jurídico tutelado” (PRADO, Luiz Regis, op.
curtume que lança no rio matérias orgânicas putrefactas, ma- cit., p. 419). Paulo de Bessa Antunes também afirma que: “a
térias não-biodegradáveis, substâncias tóxicas, poluindo-o; morte de um animal, ou de quantidade diminuta de animais,
criando, assim, uma situação de perigo para a vida humana, não poderá ser considerada como típica, para as finalidades

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009 131


MARTINS, J. R.

do artigo que está sendo examinado. Igual raciocínio deve que “essa posição, contudo, não deve ser admitida, pois,
ser válido para a flora” (ANTUNES, Paulo de Bessa, op. da forma como está a redação desse artigo, ‘transferiu-se
cit., p. 511). Já Ivete Senise Ferreira frisa o seguinte: “Uma para o fiscal do meio ambiente (de órgão ambiental federal,
questão de grande relevância na estrutura do tipo penal am- estadual ou municipal) o poder de singularizar a norma penal
biental é o da sua amplitude ou indeterminação da conduta para transformar em crime uma conduta omissiva de uma
incriminada, caracterizando o chamado ‘tipo aberto’, que empresa ou pessoa física determinada que venha a deixar de
também pode levar à incerteza jurídica, beirando os limites adotar uma certa medida de precaução que aquela autoridade
da infringência ao princípio da legalidade” (FERREIRA, lhe exigiu. Há manifesto arbítrio para a autoridade adminis-
Ivete Senise. Tutela penal do patrimônio cultural. São Pau- trativa ambiental, que pode, por ato seu de caráter singular
lo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 94). E, a esse respeito, – dirigido a agente determinado – criar um tipo penal novo,
conclui Viviane Martins Ribeiro: “[...] o artigo discutido através de uma simples notificação fiscal ambiental’. Com
é, indubitavelmente, inconstitucional. A sua admissão em certeza, trata-se, mais uma vez, de um dispositivo inconsti-
nosso ordenamento jurídico é uma afronta aos princípios tucional. A sua amplitude permite a criação de tipos penais
basilares da Constituição Federal” (RIBEIRO, Viviane aleatoriamente por autoridades competentes, ofendendo,
Martins, op. cit., p. 191). Contrário a essas críticas, Paulo conseqüentemente, o princípio da legalidade” (RIBEIRO,
Affonso Leme Machado afirma, categoricamente: “Não é Viviane Martins, op. cit., p. 193-194, nota n. 84).
excessivo o espectro da locução – ‘qualquer natureza’ –, pois (74) VAZ, Paulo Afonso Brum; MENDES, Murilo. Meio
para a consumação do delito é preciso mais do que poluir: ambiente e mineração. In: FREITAS, Gilberto Passos de
é necessário poluir perigosamente ou causando dano”, (org.), op. cit., p. 251.
acrescentando ainda, que ele não entende “censurável o
emprego das locuções ‘de qualquer natureza’, ‘em níveis (75) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de
tais’, pois todas essas expressões estão fortemente ligadas à Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 326.
possibilidade de causar perigo ou dano aos bens protegidos. (76) Pesquisa mineral é a execução dos trabalhos necessários
É um tipo penal aberto, que, entretanto, não gera arbítrio do à definição de jazida, sua avaliação e a determinação da
julgador, nem insegurança para o acusado” (MACHADO, exeqüibilidade do seu aproveitamento econômico (cf. artigo
Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16. ed. 14 do Decreto nº-Lei nº 227/67). Lavra é o conjunto de ope-
São Paulo: Malheiros, 2008, p. 717-718). rações coordenadas objetivando o aproveitamento industrial
(69) BEDNARSKI, José Luiz. Lei 9.605/1998: equívocos do da jazida (cf. artigo 36 do Decreto nº-Lei nº 227/67). Extra-
legislador. In: Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 68, 1998, p. 4. ção é a atividade de aproveitamento de substâncias minerais
garimpáveis (cf. artigo 10 da Lei nº 7.805/89). Por sua vez,
(70) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 950. jazida é “toda massa individualizada de substância mineral
(71) Sobre a poluição atmosférica, explica Luiz Regis Prado ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da
que tal pode ser “entendida como a alteração do meio aé- terra e que tenha valor econômico” (artigo 4º do Decreto
reo em decorrência do lançamento de gases ou partículas nº-Lei nº 227/67).
poluentes (substâncias ácidas, tóxicas ou radioativas) –, em (77) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de
tal concentração que determine ou obrigue a retirada (parcial Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 332.
ou total, definitiva ou momentânea) dos habitantes do local
atingido, ou que cause danos diretos e efetivos à sua saúde” (78) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental
(PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 421). Quanto à poluição ..., p. 726.
da água, lembra Gilberto Passos de Freitas que “as causas (79) FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos
mais comuns da poluição da água são: os dejetos humanos e de. Crimes contra a natureza. 6. ed. São Paulo: Revista dos
industriais, os produtos químicos e radioativos” [(FREITAS, Tribunais, 2000, p. 189-190.
Gilberto Passos de. Do crime de poluição. In: FREITAS, (80) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 195.
Gilberto Passos de (org.). Direito ambiental em evolução.
(81) A respeito, Paulo Affonso Leme Machado diz que: “Não
2. ed. v. 1. Curitiba: Juruá, 2003, p. 143)].
foi feliz a Lei 9.605/98 ao inserir a questão nuclear em um
(72) MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 722. pequeno parágrafo, semeando confusão ao tratar da matéria,
(73) MILARÉ, Édis, op. cit, p. 950; MACHADO, Paulo Affon- como abordando-a de forma insignificante. Os assuntos
so Leme, op. cit., p. 67; ANTUNES, Paulo de Bessa, op. envolvendo a produção nuclear, em seus aspectos criminais,
cit., p. 29; MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Le droit na sua quase-totalidade, continuam regidos pelo Cap. III da
de l’environnement. 6. ed. Paris: Presses Universitaires de Lei 6.453/77” (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito
France, 2003, p. 14. A esse respeito, afirma Gilberto Passos ambiental ..., p. 728). Para Luiz Regis Prado: “Teria sido
de Freitas: “Um dos princípios basilares do Direito ambien- preferível a não inclusão da matéria nuclear no âmbito dos
tal é o da precaução. Muitos danos ao meio ambiente são delitos contra o ambiente de modo genérico. Na verdade,
irrecuperáveis, irreversíveis. Portanto, se a autoridade exigir os delitos relativos à energia nuclear, pela sua grande es-
que sejam adotadas medidas para evitar a ocorrência de um pecificidade e pela extrema gravidade que encerram, com
dano ambiental grave e irreversível, e o agente não obedece, atentados a bens jurídicos fundamentais como a vida, saúde
estará cometendo o crime” (FREITAS, Gilberto Passos de, pública, integridade corporal e ambiental, ficariam melhor se
op. cit., p. 150). Seguindo a tese da inconstitucionalidade alocados em lei específica, já que exigem também propor-
deste dispositivo, Viviane Martins Ribeiro, citando Marcelo cionalmente ao desvalor do ato e do resultado uma sanção
Leonardo (LEONARDO, Marcelo. Crimes ambientais e mais severa” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 429). Nicolao
os princípios da reserva legal e da taxatividade do tipo em Dino de Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e
Direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Flávio Dino de Castro e Costa registram que: “Embora de má
São Paulo, ano 10, n. 37, jan.-mar. 2002, p. 165), entende técnica [...], o artigo define um novo tratamento para todos

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

os tipos penais descritos no art. 56 e seu § 1º, inaugurando Édis, op. cit., p. 952). Luiz Regis Prado afirma se tratar de
um novo tratamento para toda conduta descrita que tenha uma “expressão por demais genérica” (PRADO, Luiz Re-
por objeto material radioativo ou nuclear” (COSTA NETO, gis, op. cit., p. 538). Vladimir Passos de Freitas e Gilberto
Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO Passos de Freitas alertam: “Trata-se de tipo penal aberto,
E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 337). Já Vladimir Pas- ou seja, cuja abrangência alcança uma grande quantidade
sos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas admitem: “Andou de situações fáticas. Esse fato, que é inquestionável, exige
certo o legislador ao estabelecer essa causa de aumento de prudência do Ministério Público e do Judiciário. É preciso
pena, considerando os riscos que derivam do emprego de que no caso concreto se examine o constrangimento de se
tais produtos” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, submeter cidadãos às agruras do processo penal, sem que
Gilberto Passos de, op. cit., p. 191). haja justa causa. Se não houver discernimento na apreciação
(82) Lei nº 6.938/81: artigo 3º, inciso II. dos fatos, as mais variadas atividades poderão, sob o critério
subjetivo do autor da denúncia, configurar esse crime, em
(83) Relativamente às instalações nucleares e radioativas, ob-
tese” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto
serva Viviane Martins Ribeiro que: “Cabe, porém, fazer a
Passos de, op. cit., p. 215-216). Já para Nicolao Dino de
ressalva de que esse dispositivo tem uma maior incidência
Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e Flávio
quanto às segundas – instalações radioativas – pelo simples
Dino de Castro e Costa “[...] este preceito consagra um tipo
fato de que não é fácil proceder à construção, reforma,
extremamente aberto que, se de um lado tem o inconveniente
ampliação, instalação ou funcionamento de instalações nu-
de fragilizar o princípio da segurança jurídica, por outro
cleares em razão de sua complexidade, ainda mais se se levar
possibilita uma atuação judicial mais eficaz no que se refere
em conta que elas dependem de aprovação do Congresso
à repressão às agressões ao meio ambiente [...] a sofisticação
Nacional” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 196).
do sistema de revisão de decisões judiciais – mormente na
(84) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 197. órbita criminal –, bem como a expressiva tradição jurispru-
(85) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de dencial de tutela da liberdade, devem funcionar como fatores
Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 345. tranqüilizadores para os mais receosos” (COSTA NETO,
(86) “Artigo 327. Considera-se funcionário público, para os Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO
efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 371).
remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. (91) REALE JÚNIOR, Miguel. A lei ..., p. 127.
Parágrafo 1º. Equipara-se a funcionário público quem exerce (92) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 198.
cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem
(93) MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 876.
trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou
conveniada para a execução de atividade típica da Admi- (94) FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos
nistração Pública [...]”. de, op. cit., p. 217.
(87) Artigo 37 da Constituição Federal: “A administração pú- (95) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de
blica direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 541.
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá (96) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 953.
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
(97) Id., ibid.
publicidade e eficiência [...]”.
(98) De acordo com Viviane Martins Ribeiro: “Dos oito tipos
(88) Autorização administrativa é entendida como “o ato
legais inicialmente previstos no texto legislativo de 1977,
administrativo unilateral, discricionário e precário pelo
apenas quatro permanecem em vigor (arts. 21, 23, 26 e 27)”
qual a Administração faculta ao particular o uso de bem
(RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 176-177). Vladimir
público (autorização de uso), ou a prestação de serviço
Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas acrescentam:
público (autorização de serviço público), ou o desempenho
“Pois bem: um exame perfunctório do art. 56 da Lei 9.605/98
de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse
leva à conclusão de que ele dá novo tratamento aos arts.
consentimento, seriam legalmente proibidos (autorização
20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 da Lei 6.453/77. Portanto, esses
como ato de polícia)” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
dispositivos foram revogados pela lei nova. Não, porém o
Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.
art. 27 [...]. Logo, só esse tipo penal remanesce na antiga
237). Para os conceitos de “permissão” e “licença” dessa
lei que define as atividades nucleares” (FREITAS, Vladimir
mesma autora, vide notas de n. 181 e n. 182.
Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 247).
(89) REALE JÚNIOR, Miguel. A lei de crimes ambientais. Para Nicolao Dino de Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho
In: Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 345, jan.-mar. e Flávio Dino Castro e Costa, “os tipos penais dos arts. 20,
1999, p. 127. 22 e parte do 25 da Lei nº 6.453/77 foram revogados pelo §
(90) Para Édis Milaré: “Trata-se [...] de um tipo extremamente 2º do art. 56 [...]. Igualmente, as condutas que correspondem
aberto, do qual é difícil (senão impossível) extrair situações a utilizar-se sem a devida atenção as normas de segurança,
definidas e precisas, em prejuízo dos valores da certeza e ou descarte de materiais radioativos ou nucleares que se
da segurança, essenciais à garantia dos direitos da pessoa encontravam previstas na Lei nº 6.455/77 foram substituí-
humana. O que vem a ser ‘relevante interesse ambiental’? das pelo tipo criado a partir da combinação dos §§ 1º e 2º”
Parece inevitável um componente de relatividade, ou mesmo (COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney
de subjetividade, na apreciação desse interesse. A própria de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p.
diferença existente entre os vários ambientes – a principiar 337). Na opinião de Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado,
pela diferença entre os ambientes natural, cultural e artificial “o art. 55 da Lei 9.605/98 revogou o art. 24 da Lei 6.453/77
– sugere que o ‘relevante interesse’ tem aspectos e pesos e o art. 56 (§ 2º) da Lei 9.605/98 revogou os arts. 20, 22,
variados. Como estabelecer a figura do crime?” (MILARÉ, 24 e 25, permanecendo em vigor os arts. 21, 23 e 26 da

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009 133


MARTINS, J. R.

Lei 6.453/77” (PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Lei 9.605/98: ‘produzir, processar, fornecer ou usar material
Proteção penal do meio ambiente. São Paulo: Atlas, 2000, nuclear’ (art. 20); ‘transportar, guardar’ (art. 22) e ‘exportar,
p. 161). Guilherme de Souza Nucci admite que: “o art. 56 importar’ (art. 25). Entretanto, a lei nuclear contém compor-
abre espaço para a aplicação do preceituado nos artigos tamentos que a Lei 9.605/98 não previu: ‘possuir, adquirir,
20, 22, 24 e 25 da Lei 6.453/77” (NUCCI, Guilherme de trazer consigo’ (art. 22) e ‘exportação e importação de
Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São minérios nucleares’ (art. 25)” (MACHADO, Paulo Affonso
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 561). Por fim, para Leme, op. cit., p. 727).
Luiz Regis Prado, o artigo 56 da Lei nº 9.605/98 revogou (104) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 511.
implicitamente “os artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei 6.453/77”
(105) Enquanto a ação prevista no artigo 15 da Lei nº 6.938/81
(PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 428 – nota de rodapé n.
se subsume só à exposição da incolumidade humana,
237), o artigo 55 da Lei nº 9.605/98 “revogou tacitamente o
animal ou vegetal a perigo, ou à elevação da situação de
artigo 24 da Lei 6.453/1977” (id., p. 453 – nota de rodapé n.
perigo existente por parte do poluidor, o artigo 54 da Lei
271) e o artigo 67 da Lei nº 9.605/98 “revogou tacitamente
nº 9.605/98 pune o fato de ele causar poluição de qualquer
o artigo 21 da Lei 6.453/1977” (id., p. 535 – nota de rodapé
natureza e que possa atingir, indistintamente, as espécies
n. 15). No mesmo sentido: MILARÉ, Édis, op. cit., p. 949
de elementos físicos ou biológicos componentes do meio
e 955; ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 512 e 514.
ambiente, observando-se, porém, que “não se pune toda
(99) De fato, percebe-se, de acordo com Alessandra Rapassi emissão de poluentes, mas somente aquela efetivamente
Mascarenhas Prado, que o legislador em questão falhou ao danosa ou perigosa para a saúde humana, ou a que provoque
não revogar expressamente os delitos, “descumprindo um a matança de animais ou destruição [...] significativa da flora.
dos objetivos da nova Lei, que era a sistematização da le- Exige-se então a real lesão ou o risco provável de dano à
gislação penal esparsa relativa ao meio ambiente” (PRADO, saúde humana, extermínio de exemplares da fauna local ou
Alessandra Rapassi Mascarenhas, op. cit., p. 161). destruição expressiva de parcela representativa do conjunto
(100) Qualquer tese relativa à revogação de dispositivos pre- de vegetais de determinada região” (PRADO, Luiz Regis,
vistos na Lei nº 6.453/77 por outros constantes da Lei nº op. cit., p. 418).
9.605/98, somente pode ter como suporte a revogação na (106) Para Viviane Martins Ribeiro: “Dentre os oito tipos pre-
sua forma tácita, diante da redação dos artigos em questão, vistos na Lei 6.453/77 – observando, porém, que não mais
pois não houve qualquer revogação expressa. Além disso, vigem todos os dispositivos desta lei –, apenas um deles
não há sequer um julgado a esse respeito no Poder Judiciário tutelou a vida, a integridade física e o patrimônio (art. 26).
brasileiro. Logo, a postura adotada neste trabalho quanto Nenhum deles protegeu o ambiente” (RIBEIRO, Viviane
ao tema da revogação de dispositivos penais atinentes às Martins, op. cit., p. 156-157). Paulo de Bessa Antunes
atividades nucleares caminha nesse sentido. acrescenta: “Qualquer ato ou omissão que implique dano
(101) Os chamados recursos minerais são compreendidos efetivo causado contra [...] o meio ambiente [...] deverá ser
como as “concentrações minerais na crosta terrestre cujas punido pela legislação penal comum” (ANTUNES, Paulo
características fazem com que sua extração seja ou possa de Bessa, op. cit., p. 590). Também no sentido de que essa
chegar a ser técnica e economicamente factível”, ao passo lei não tutelou o meio ambiente: FREITAS, Vladimir Passos
que o minério em si mesmo considerado constitui um de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 191 e 246.
“mineral ou associação de minerais que podem, em condi- (107) Verifica-se, portanto, conforme Fernando Fragoso, que
ções favoráveis, serem trabalhados industrialmente para a “apenas uma das condutas incriminadas interessa direta-
extração de um ou mais metais”, os quais podem conter ou mente à tutela do meio ambiente: a exposição da vida, ou
não apresentar elementos nucleares como constituinte prin- da saúde ou do patrimônio a perigo por não observação das
cipal (PORTAL DE RECURSOS MINERAIS. Glossário. regras de segurança e proteção relativas à instalação nuclear
Disponível no site: http://www.prossiga.br/recursosmine- ou o uso, o transporte, a posse e a guarda de material nuclear
rais. Acesso em: 02/03/2008). Já a Comissão Nacional de (art. 26, Lei nº 6.453)” (FRAGOSO, Fernando. Os crimes
Energia Nuclear define minério como sendo todo “mineral contra o meio ambiente no Brasil. In: Revista Forense, Rio
ou associação de minerais do qual pode ser concentrado e de Janeiro, jan.-mar. 1992, v. 317, p. 112).
extraído, economicamente, um elemento químico ou um
(108) A esse propósito, são válidas as razões expostas por
bem mineral” [(COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA
Viviane Martins Ribeiro: “Em um primeiro momento, a
NUCLEAR (CNEN). Requisitos de segurança e proteção
preocupação restringia-se às atividades nucleares em si. Não
radiológica para instalações mínero-industriais. Norma
se cogitava sobre possíveis malefícios que a energia nuclear
CNEN-NN-4.01, de 06/01/2005)].
poderia proporcionar à saúde humana e ao meio ambiente.
(102) As ações nucleares previstas no caput do artigo 56 da Lei Mesmo porque esta noção de meio ambiente era, ainda,
nº 9.605/98 são: “Produzir, processar, embalar, importar, incipiente. A Conferência de Estocolmo [...], em 1972, e
exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, suas idéias apenas haviam sido lançadas, mas não assimi-
guardar, ter em depósito ou usar”. Já o seu parágrafo 1º ladas por todos os Estados. Ao contrário, enfatizavam-se os
se refere à conduta de abandonar ou utilizar o respectivo benefícios dessa energia e o que estes poderiam representar
objeto material do crime. ao desenvolvimento das nações, inclusive o da brasileira.
(103) S.m.j., não se deve analisar a questão, portanto, sob a A análise dos bens jurídicos tutelados pelas diversas figu-
perspectiva que o faz Paulo Affonso Leme Machado, que ras delitivas constantes da Lei 6.453/77 projeta todo esse
diz: “Os arts. 20 e 22 e parte do art. 25 da Lei 6.453/77 contexto no qual a sociedade vivia” (RIBEIRO, Viviane
incriminam os mesmos comportamentos que o art. 56 da Martins, op. cit., p. 154).

134 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 109-134, junho/2009


Artigo

DIREITO AO AMBIENTE SADIO:


JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E
INTERNACIONAL

Juliana Santilli1 RESUMO: Através de uma análise crítica da


jurisprudência nacional e internacional, o texto
aborda a questão do direito ao ambiente sadio
como um direito humano e ao qual, portanto,
deverão ser reconhecidos instrumentos para ga-
rantir a sua proteção. Nesse sentido, menciona-se
um acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
Federal em que se reconheceu o direito ao am-
biente sadio como um dos direitos humanos de
terceira geração (ou terceira dimensão), cuja
natureza seria metaindividual, difusa e coletiva.
Por sua vez, é feito também um estudo a res-
peito da várias decisões provenientes da Corte
Americana e da Corte Européia de Direitos Hu-
manos, dentre as quais se cita, como importantes
exemplos, o julgamento da Corte Americana de
Direitos Humanos que reconheceu o direito dos
povos indígenas da Nicarágua a seu território
e recursos naturais, adotando o paradigma do
multiculturalismo e do respeito e proteção das
culturas indígenas, e os desafios enfrentados
pela Corte Européia de Direitos Humanos ao
decidir casos envolvendo violações ao direito
ao ambiente sadio, a qual ainda analisa esta
infração apenas de modo indireto pela ausência
de previsão expressa do termo na Convenção
Européia para Proteção dos Direitos dos Homens
e das Liberdades Públicas.
Palavras – chave: Ambiente sadio. Direitos
humanos. Jurisprudência.

1
Promotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA), mestre em Direito pela Univer-
sidade de Brasília e doutoranda pela PUC-PR. Autora do livro “Socioambientalismo e novos direitos” (Editora Peirópolis/ISA/IEB, 2005)

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 135


SANTILLI, J.

ABSTRACT: Through a critical analysis of the Européia de Direitos Humanos sobre questões
national and international jurisprudence, the text ambientais.
approaches the question of the right to the heal- Tais casos revelam as possibilidades de
thy environment as a human right and for which, utilização dos instrumentos e de toda estrutura
therefore, will have to be recognized instruments legal internacional em matéria de direitos huma-
to guarantee its protection. In this direction, a nos para promover os direitos ambientais, bem
sentence pronounced by the Supreme Federal como as suas limitações.
Court is mentioned in which it was recognized
the right to the healthy environment as one of the
human rights of third generation (or third dimen- 2. O Supremo Tribunal Federal e o
sion), whose nature would be metaindividual, reconhecimento do direito humano
diffuse and collective. In turn, a study regarding ao ambiente sadio.
some decisions proceeding from the American
Court and the European Court of Human Rights
is also made, amongst which it may highlighted, Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitu-
as important examples, the judgment of the Ame- cionalidade nº 3.540-1
rican Court of Human Rights that recognized the
Relator: Ministro Celso de Mello
right of the aboriginal peoples of Nicaragua to
its territory and natural resources, adopting the Requerente: Procurador-Geral da República
paradigm of the multiculturalism and the respect Requerido: Presidente da República
and protection of the aboriginals cultures, and the
challenges faced by the European Court of Rights Ementa: MEIO AMBIENTE - DIREI-
Human when deciding cases involving violations TO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRI-
of the right to a healthy environment, which still DADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA
analyzes this infraction only indirectly because QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE
the absence of express provision of the word in METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO
the European Convention for Protection of the DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NO-
Rights of the Men and the Public Freedoms. VÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA
Keywords: Healthy environment. Human rights. O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE
Jurisprudence. - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A
TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA
IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDA-
DE, CONFLITOS INTERGENERACIO-
1. Introdução NAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPE-
CIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225,
O presente artigo analisa casos paradigmá- § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO
ticos da jurisprudência nacional e internacional REGIME JURÍDICO A ELES PERTINEN-
acerca do direito humano ao ambiente sadio, TE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO
enfocando os principais marcos jurídicos pro- CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI
tetivos, tanto no âmbito nacional como interna- - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA
cional. Na primeira parte, destaca um acórdão DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POS-
do Supremo Tribunal Federal, em que o direito SIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO
humano ao ambiente sadio é expressamente PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS
reconhecido, e sua natureza coletiva e interge- LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU
neracional. É também consagrado o princípio do PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES
desenvolvimento sustentável, que deve orientar a NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PRO-
atividade econômica. Na segunda parte, o artigo TEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA,
aborda decisões das Cortes Inter-Americana e QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE

136 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO índole meramente econômica, ainda mais se


REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RE- se tiver presente que a atividade econômica,
LAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. considerada a disciplina constitucional que a
3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA rege, está subordinada, dentre outros princí-
(CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS pios gerais, àquele que privilegia a “defesa do
FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SU- meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz
PERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO conceito amplo e abrangente das noções de
ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS meio ambiente natural, de meio ambiente
RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS cultural, de meio ambiente artificial (espaço
DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina.
GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de
DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUES- natureza constitucional objetivam viabilizar
TÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À a tutela efetiva do meio ambiente, para que
PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: não se alterem as propriedades e os atributos
UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL que lhe são inerentes, o que provocaria inacei-
EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMI- tável comprometimento da saúde, segurança,
CA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO cultura, trabalho e bem-estar da população,
REFERENDADA - CONSEQÜENTE IN- além de causar graves danos ecológicos ao pa-
DEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDI- trimônio ambiental, considerado este em seu
DA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA
aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO
INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE:
DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF,
EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM
ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRE-
DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE
SERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO
À GENERALIDADE DAS PESSOAS. - Todos
AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO
têm direito ao meio ambiente ecologicamente
DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
equilibrado. Trata-se de um típico direito de
COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO
terceira geração (ou de novíssima dimensão),
EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS
que assiste a todo o gênero humano (RTJ
158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O
coletividade, a especial obrigação de defen- princípio do desenvolvimento sustentável,
der e preservar, em benefício das presentes e além de impregnado de caráter eminente-
futuras gerações, esse direito de titularidade mente constitucional, encontra suporte le-
coletiva e de caráter transindividual (RTJ gitimador em compromissos internacionais
164/158-161). O adimplemento desse encargo, assumidos pelo Estado brasileiro e representa
que é irrenunciável, representa a garantia de fator de obtenção do justo equilíbrio entre
que não se instaurarão, no seio da coletivi- as exigências da economia e as da ecologia,
dade, os graves conflitos intergeneracionais subordinada, no entanto, a invocação desse
marcados pelo desrespeito ao dever de soli- postulado, quando ocorrente situação de con-
dariedade, que a todos se impõe, na prote- flito entre valores constitucionais relevantes,
ção desse bem essencial de uso comum das a uma condição inafastável, cuja observância
pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE não comprometa nem esvazie o conteúdo es-
ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA sencial de um dos mais significativos direitos
EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS fundamentais: o direito à preservação do meio
DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A ambiente, que traduz bem de uso comum da
PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A generalidade das pessoas, a ser resguardado
incolumidade do meio ambiente não pode em favor das presentes e futuras gerações.
ser comprometida por interesses empresa- O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A
riais nem ficar dependente de motivações de MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001:

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 137


SANTILLI, J.

UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA O acórdão do Supremo Tribunal Federal


DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMA- cuja ementa está transcrita acima é o primeiro
NENTE. - A Medida Provisória nº 2.166-67, a reconhecer, de forma tão explícita e incisiva3,
de 24/08/2001, na parte em que introduziu o direito humano ao meio ambiente ecologica-
significativas alterações no art. 4o do Código mente equilibrado, já consagrado em declarações
Florestal, longe de comprometer os valores e convenções internacionais4. Reconhece ainda
constitucionais consagrados no art. 225 da que se trata de um direito de “terceira geração”,
Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, ou de “novíssima dimensão”, consagrando o
mecanismos que permitem um real controle, postulado da solidariedade. Faz, assim, uma
pelo Estado, das atividades desenvolvidas no diferenciação em relação aos direitos humanos
âmbito das áreas de preservação permanente, de “primeira geração”, que são os direitos civis
e políticos, e os de “segunda geração”, que são
em ordem a impedir ações predatórias e lesi-
os direitos sociais, econômicos e culturais.
vas ao patrimônio ambiental, cuja situação de
maior vulnerabilidade reclama proteção mais Os direitos humanos se somam e se com-
intensa, agora propiciada, de modo adequado plementam, e não substituem uns aos outros,
e compatível com o texto constitucional, pelo como poderia levar a crer a idéia de “gerações”
de direitos5. O conceito mais aceito atualmente
diploma normativo em questão. - Somente a
é de que o direito ao meio ambiente ecologi-
alteração e a supressão do regime jurídico
camente equilibrado é um direito humano de
pertinente aos espaços territoriais especial-
“terceira dimensão”, em função de sua natureza
mente protegidos qualificam-se, por efeito
metaindividual, difusa e coletiva, tratando-se de
da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, um “direito de solidariedade”, que não se enqua-
da Constituição, como matérias sujeitas ao dra nem no público nem no privado, tal como o
princípio da reserva legal. - É lícito ao Poder direito à autodeterminação dos povos e à paz.
Público - qualquer que seja a dimensão ins-
Analisando o capítulo de meio ambiente da
titucional em que se posicione na estrutura
Constituição brasileira (artigo 225 e seus diver-
federativa (União, Estados-membros, Distrito
sos incisos e parágrafos), o acórdão destaca ainda
Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou que a atividade econômica não pode ser exercida
permitir a execução de obras e/ou a realização em desarmonia com os princípios destinados a
de serviços no âmbito dos espaços territoriais tornar efetiva a proteção ao meio ambiente, e rei-
especialmente protegidos, desde que, além tera o princípio do desenvolvimento sustentável
de observadas as restrições, limitações e - desenvolvido a partir do relatório da Comissão
exigências abstratamente estabelecidas em de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Na-
lei, não resulte comprometida a integridade ções Unidas, intitulado “Nosso Futuro Comum”,
dos atributos que justificaram, quanto a tais coordenado pela então primeira-ministra da
territórios, a instituição de regime jurídico Noruega, Gro Brundtland, e divulgado em 1987.
de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III). 2 O desenvolvimento sustentável é “aquele que
2
O Tribunal, por maioria, negou referendo à decisão que deferiu o pedido de medida cautelar, restaurando a eficácia e a aplicabilidade do diploma
legislativo impugnado, nos termos do voto do relator, Ministro Celso de Mello, vencidos os Ministros Carlos Britto e Marco Aurélio. Plenário,
01.09.2005. - Acórdão, DJ 03.02.2006.
3
Outras decisões do STF se referem ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Segundo o acórdão proferido no MS 22164/SP: “O
direito à integridade do meio ambiente, típico direito de terceira geração, constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro
do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade,
mas num sentido verdadeiramente abrangente, à própria coletividade social” (Tribunal Pleno, publicado no DJ de 17/11/1995).
4
A Declaração do Rio de Janeiro, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, tem
como o seu primeiro princípio: “Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm
direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza”. No mesmo sentido, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conhecido como o “Protocolo
de São Salvador”, e promulgado pelo Decreto nº 3.321/99, afirma, em seu artigo 11, que: “Toda pessoa tem direito de viver em meio ambiente sadio
e a dispor dos serviços públicos básicos. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente”.
5
WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos. In: WOLKMER, Antônio Carlos; MORATO
LEITE, José Rubens (Orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p.9 e ss.

138 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

satisfaz as necessidades das gerações atuais sem O acesso aos bens ambientais, naturais e
comprometer a capacidade das gerações futuras culturais, deve ser eqüitativo9, e baseado nos
de satisfazer as suas próprias necessidades”. Tal princípios da inclusão e da justiça social. Outros
princípio passou a permear o texto constitucional princípios do Direito Ambiental, que orientam
e as leis ordinárias. todo o sistema normativo ambiental, nacional e
O acórdão reconhece ainda, com base no internacional, são:
texto constitucional, o princípio da eqüidade - O princípio da precaução, também chamado
intergeneracional, fundamentado no direito de princípio da prudência ou cautela: baseia-
intergeneracional – das presentes e das futuras se no Princípio 15 da Declaração do Rio de
gerações – ao ambiente sadio. Pela primeira vez, Janeiro, de 1992, segundo o qual: “quando
são assegurados direitos a gerações que ainda não houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis,
existem, e tais direitos restringem e condicionam a ausência de absoluta certeza científica não
a utilização e o consumo dos recursos naturais deve ser utilizada como razão para postergar
pelas presentes gerações, bem como as políticas medidas eficazes e economicamente viáveis
públicas a serem adotadas pelo Estado, que de- para prevenir a degradação ambiental”. É con-
verão considerar sempre a sustentabilidade dos sagrado também na Convenção da Diversidade
recursos naturais a longo prazo. Biológica e na Convenção-Quadro sobre mu-
A Constituição consagra ainda o princípio danças climáticas10, e no nosso ordenamento
da obrigatoriedade da intervenção do Poder constitucional, uma de suas expressões é a
Público, em seus diversos níveis e instâncias, obrigação de realização de estudo prévio de
impondo-se ao Poder Público a obrigação cons- impacto ambiental para atividades degradado-
titucional tanto de prevenir como de reparar ras do meio ambiente.
danos ambientais. O princípio da obrigatorie-
- O princípio da responsabilidade, expressamente
dade da intervenção estatal é complementado
consagrado no texto constitucional que, no
pelo princípio da participação democrática e da
artigo 225, parágrafo 3º, estabelece que “as
transparência na gestão dos recursos ambientais,
condutas e atividades consideradas lesivas ao
por meio da publicidade dos instrumentos de
avaliação de impacto ambiental e do licencia- meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
mento ambiental, da participação da sociedade físicas ou jurídicas, a sanções penais e admi-
civil em colegiados ambientais e em audiências nistrativas, independentemente da obrigação de
públicas e do efetivo controle social sobre as reparar os danos causados”. Trata-se da consa-
políticas públicas. O acesso à informação6 e à gração da responsabilidade administrativa, civil
educação ambiental7 são também reconhecidos e penal pelos danos causados ao meio ambiente.
como fundamentais à formação e à capacitação - O princípio do poluidor-pagador procura
para a participação consciente e eficaz na gestão internalizar os custos externos de deteriora-
socioambiental8. ção ambiental. Conforme destaca Derani 11,

6
A Lei nº 10.650, de 16/4/2003, dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama.
7
A Lei nº 9.795, de 27/4/1999, dispõe sobre a educação ambiental, instituindo a Política Nacional de Educação Ambiental. Entre os princípios básicos
da educação ambiental, estão o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo.
8
Veja-se, a respeito, o excelente trabalho de Rachel Biderman Furriela, intitulado Democracia, cidadania e proteção do meio ambiente, São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2002. Veja-se, também, a dissertação de mestrado de Raul Silva Telles do Valle, sobre Sociedade civil e gestão ambiental
no Brasil: uma análise da implementação do direito à participação em nossa legislação. Departamento de Direito Econômico da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, 2002. Vide, também, nosso artigo, em parceria com Márcio Santilli, intitulado Meio ambiente e democracia:
participação social na gestão ambiental, In: LIMA, André (Org.). O Direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental
e Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.49-53 e AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do meio ambiente e participação
popular. Brasília: Ibama, 1998.
9
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, 11. ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2003,
p.49-51.
10
Veja, a respeito, BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias. O princípio da precaução e sua aplicação comparada nos regimes
da diversidade biológica e de mudanças climáticas. Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Revista de Direitos Difusos, Ano II, volume 12:
Bioética e biodiversidade, abril de 2002, p. 1587-1596.
11
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.162.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 139


SANTILLI, J.

pela “aplicação desse princípio, impõe-se ao públicas ambientais devem ser transversais, ou
“sujeito econômico” (produtor, consumidor, seja, perpassar o conjunto das políticas públicas
transportador), que nessa relação pode causar capazes de influenciar o campo socioambiental13.
um problema ambiental, arcar com os custos da A questão ambiental permeia o texto constitucio-
diminuição ou afastamento do dano”. nal não apenas mediante referências explícitas
- O princípio da cooperação impõe uma política ao meio ambiente, como também por meio de
de cooperação entre os Estados e os diferentes dispositivos em que os valores ambientais es-
atores sociais, pois os danos ambientais não tão em “penumbra constitucional, passíveis de
respeitam fronteiras políticas e administrativas, descoberta”14.
e têm dimensões transfronteiriças. A coopera- Entre os princípios gerais da atividade eco-
ção entre os Estados para a proteção ambiental nômica, elencados no artigo 170 da Constituição,
implica uma soberania mais solidária. está a defesa do meio ambiente, ao lado da função
Verifica-se, no texto constitucional bra- social da propriedade, da livre concorrência, da
sileiro, uma clara influência de documentos defesa do consumidor e da redução das desi-
referenciais elaborados por instituições conser- gualdades regionais e sociais, entre outros. Da
vacionistas internacionais, fundamentados em mesma forma, o capítulo constitucional dedicado
estudos científicos, especialmente o documento à política agrícola e fundiária e à reforma agrária
“Estratégia mundial para a conservação” (World (artigo 184 e seguintes), estabelece que a função
Conservation Strategy), lançado em 1980 pela social é cumprida quando a propriedade rural
União Internacional para a Conservação da atende, simultaneamente, aos seguintes requi-
Natureza (UICN, cuja sigla em inglês é IUCN), sitos: utilização adequada dos recursos naturais
pelo Programa das Nações Unidas para o Meio disponíveis e preservação do meio ambiente,
Ambiente (Pnuma ou Unep, em inglês) e pelo aproveitamento racional e adequado, observân-
Fundo Mundial para a Natureza (World Wildlife cia das disposições que regulam as relações de
Fund – WWF, em inglês)12. Tal documento define trabalho e exploração que favoreça o bem-estar
os três principais objetivos da conservação, todos dos proprietários e dos trabalhadores. Trata-se,
eles incorporados ao texto constitucional: - ma- claramente, da consagração da função socioam-
nutenção dos processos ecológicos essenciais e biental da propriedade15.
dos sistemas de sustentação da vida; - preserva- O capítulo constitucional dedicado à políti-
ção da diversidade genética; - utilização susten- ca urbana (artigos 182 e 183) também consagra
tável das espécies e dos ecossistemas. o direito à cidade sustentável, ao estabelecer
A questão ambiental não é tratada apenas que a política de desenvolvimento urbano tem
no capítulo da Constituição especificamente por objetivo ordenar o desenvolvimento das
destinado ao meio ambiente, mas está presente funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
em diversos outros capítulos constitucionais de seus habitantes. A qualidade e o equilíbrio do
(economia, desenvolvimento agrário, etc.), ambiente urbano são também tutelados consti-
consagrando a orientação de que as políticas tucionalmente. Pela primeira vez na história,
12
As mesmas entidades lançaram, em 1991, um novo documento, intitulado Cuidando do planeta Terra, que dá seqüência à Estratégia e é dividido
em três partes: princípios da vida sustentável, ações adicionais para a vida sustentável e implementação e continuidade.
13
SANTILLI, Márcio. Transversalidade na corda bamba. Apresentação ao balanço de seis meses do governo Lula na área socioambiental, produzido
pelo Instituto Socioambiental, e disponível no seu site
na Internet: <www.socioambiental.org>.
14
Conforme MAGALHÃES Jr., Renato. Direitos e deveres ecológicos: efetividade constitucional e subsídios do Direito norte-americano. Tese de
doutoramento apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP, 1990, p.126. Apud SILVA, José
Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 26.
15
Em relação à função socioambiental da propriedade, a sentença proferida pelo juiz José Godinho Filho, da 2ª. Vara da Justiça Federal de Tocantins,
estabelece um precedente importante. A decisão ainda não transitou em julgado, mas pode se tornar o primeiro caso do país de desapropriação
ambiental. Apesar de ter sido declarada produtiva, a Fazenda Bacaba, em Miranorte (TO), pode ser desapropriada para reforma agrária, por ter
descumprido a sua função socioambiental. 573,66 hectares da reserva legal foram transformados em pastagem, descumprindo a exigência de que
30% da propriedade sejam preservados. Segundo a sentença, “está patente que a Fazenda Bacaba vem sendo explorada economicamente ao arrepio
das normas legais de preservação do meio ambiente, levando à conclusão de que o dito imóvel não cumpre a sua função social.”

140 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

a Constituição incluiu um capítulo específico A ECO-92 foi, claramente, um marco na


para a política urbana, que prevê uma série de história do ambientalismo internacional – e
instrumentos para a garantia, no âmbito de cada nacional, e a maior conferência até então reali-
município, do direito à cidade sustentável, da zada pela ONU. Os documentos internacionais
defesa da função social da cidade, da proprie- assinados durante a ECO-92 são referências
dade e da democratização da gestão urbana. fundamentais para o Direito Ambiental Inter-
A regulamentação foi estabelecida pela Lei nº nacional, e pautaram a formulação de políticas
10.257/2001, mais conhecida como o “Estatuto públicas sociais e ambientais em todo o mundo.
da Cidade”. São eles:
A questão ambiental permeia vários capí- 1) a Declaração do Rio de Janeiro sobre meio
tulos constitucionais, que revelam o reconheci- ambiente e desenvolvimento, contendo 27
mento de sua transversalidade, e de que todas as princípios que norteiam e fundamentam toda
políticas setoriais – pesqueira, florestal, mineral, a legislação ambiental. Destacamos os mais
industrial, econômica, agrícola, urbana, etc. – e importantes: desenvolvimento sustentável,
serviços públicos – saúde, educação, cultura, precaução, poluidor-pagador, participação so-
ciência e tecnologia, etc. – devem incorporar o cial na gestão ambiental e acesso à informação
componente e as variáveis ambientais16. ambiental, e obrigatoriedade da intervenção
Quatro anos após a promulgação da nova estatal (já descritos acima), entre outros.
Constituição, foi realizada a 2ª Conferência 2) a Convenção sobre a Diversidade Biológica
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e (CDB), cujos objetivos são a conservação da
Desenvolvimento, em 1992 (conhecida como a diversidade biológica, a utilização sustentável
ECO-92), no Rio de Janeiro, que trouxe gran- de seus componentes e a repartição justa e
de visibilidade pública e força política para a eqüitativa dos benefícios derivados da utili-
questão ambiental, inserindo definitivamente o zação dos recursos genéticos. Nos termos da
meio ambiente entre os grandes temas da agenda Convenção, o acesso aos recursos biológicos e
nacional e global. Em 1990, com o objetivo de genéticos deve estar sujeito ao “consentimen-
acompanhar a conferência, foi criado o Fórum to prévio informado” dos países de origem e
Brasileiro de Organizações Não-Governamentais das populações tradicionais detentoras dos
(ONGs) e Movimentos Sociais para o Meio conhecimentos tradicionais associados à
Ambiente e o Desenvolvimento. Esse fórum biodiversidade, e os benefícios derivados da
teve um papel fundamental na articulação de utilização comercial, ou de qualquer natureza,
centenas de organizações durante o período de tais recursos devem ser compartilhados de
preparatório da ECO-92, voltada para a parti- forma “justa e eqüitativa” com esses países
cipação da sociedade civil brasileira. O Fórum e essas populações, até mesmo mediante a
de ONGs foi um espaço privilegiado para novas transferência de biotecnologia e da partici-
articulações e parcerias entre movimentos sociais pação dos países de origem nas atividades
e o movimento ambientalista, e foi responsável de pesquisa. O Brasil foi o primeiro país a
pela elaboração do Tratado das ONGs e Orga- assinar a Convenção, seguido de mais uma
nizações Sociais, elaborado durante a ECO-92, centena de países, durante a ECO-92, e esta
paralelamente ao relatório oficial. foi ratificada pelo Congresso Nacional em

16
Outro precedente importante é a decisão proferida pelo ministro Carlos Britto, do STF, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº
3378/DF, em 14/6/2006. A ADI ainda não foi julgada, porque, após o voto do referido ministro, pediu vista o ministro Marco Aurélio. (Andamento
processual em 25/6/06). A ação foi ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria, a fim de ver declarado inconstitucional o art. 36, caput e
parágrafos, da Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Tal dispositivo determina que, nos casos de licen-
ciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de
unidades de conservação do grupo de proteção integral (parques, estações ecológicas, reservas biológicas, etc.) O ministro Carlos Britto julgou
improcedente o pedido por considerar que o referido texto legal institui uma forma de compartilhamento de despesas entre o Poder Público e o
empreendedor, densificando o princípio do usuário-pagador, que impõe ao empreender a obrigação de responder pelas medidas de prevenção de
impactos ambientais que possam decorrer da implementação da atividade econômica.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 141


SANTILLI, J.

maio de 1994. Entre os avanços representa- de uma maneira sustentável17. A Convenção


dos pela referida Convenção está a adoção reconhece que a base econômica e produtiva
do princípio da soberania dos Estados sobre atual depende de atividades (industriais e de
os recursos biológicos e genéticos existentes transportes) que emitem gases de efeito estu-
em seus territórios, que prevaleceu sobre o fa. O princípio básico da Convenção é o da
conceito anterior de que tais recursos consti- responsabilidade comum, porém diferenciada,
tuiriam “patrimônio da humanidade”. Países pelo qual os países desenvolvidos devem as-
como o Japão e os Estados Unidos (que até sumir os primeiros compromissos de redução
hoje não ratificaram a Convenção), ricos em das emissões, uma vez que historicamente são
biotecnologia, pleiteavam o livre acesso a tais eles os grandes emissores e apresentam maior
recursos, o que contrariaria os interesses dos capacidade econômica para suportar tais cus-
países da chamada megadiversidade: Brasil, tos. Em 1997, durante a 3ª. Conferência das
México, China, Colômbia, Indonésia, Quênia, Partes, foi elaborado o Protocolo de Quioto,
Peru, Venezuela, Equador, Índia, Costa Rica e com o objetivo de alcançar metas específicas
África do Sul, que, juntos, representam 70% de redução de emissões de seis dos gases de
da diversidade biológica do mundo. efeito estufa18.
3) Declaração de princípios para um consen- 5) a Agenda 21 é um amplo plano de ação
so global sobre o manejo, conservação e voltado para o desenvolvimento sustentável,
desenvolvimento sustentável de todos os com quatro seções, quarenta capítulos, 115
tipos de florestas (mais conhecida como programas e aproximadamente 2.500 ações
“Declaração de princípios das florestas”). a serem implementadas. As quatro seções
Contém um conjunto de 15 princípios relacio- abrangem os seguintes temas:
nados ao manejo e conservação das florestas e a) dimensões econômicas e sociais: trata das
foi o primeiro documento a tratar da questão relações entre meio ambiente e pobreza,
florestal de maneira universal. saúde, comércio, dívida externa, consumo
4) Convenção-quadro sobre mudanças climá- e população;
ticas. Neste acordo, a comunidade internacio- b) conservação e administração de recursos;
nal reconhece as mudanças climáticas como
c) fortalecimento dos grupos sociais;
um problema ambiental, real e global, bem
como o papel das atividades humanas nas mu- d) meios de implementação: financiamentos
danças climáticas e a necessidade de coopera- e papel das atividades governamentais e
ção internacional. Estabelece como objetivo não-governamentais.
final a estabilização dos gases de efeito estufa Os documentos internacionais aprovados
em um nível no qual a atividade humana não durante a ECO-92 já refletem a incorporação de
interfira no sistema climático, ou no qual as conceitos socioambientais, e a concepção de que
mudanças no clima ocorram lentamente de o novo paradigma do desenvolvimento sustentá-
modo a permitir a adaptação dos ecossistemas, vel deveria incorporar não só a sustentabilidade
além de assegurar que a produção de alimen- ambiental como também a sustentabilidade
tos e que o desenvolvimento econômico sigam social19

17
INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (Ipam). Cartilha: perguntas e respostas sobre mudanças climáticas. Belém, Pará,
2002.
18
O Protocolo de Quioto já entrou em vigor. O Brasil ratificou o Protocolo de Quioto, ao contrário dos EUA.
19
Dez anos após a realização da ECO-92, as Nações Unidas realizaram em Johannesburgo, na África do Sul, de 26 de agosto a 4 de setembro de
2002, a Cúpula mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (mais conhecida como a Rio +10). Os seus resultados formais foram a Declaração de
Johannesburgo para o desenvolvimento sustentável e o Plano de implementação, contendo metas genéricas relacionadas ao acesso a água tratada,
saneamento, recuperação de estoques pesqueiros, gerenciamento de resíduos tóxicos e uso de fontes alternativas de energia. O sentimento geral das
organizações ambientalistas é de que não houve qualquer avanço em relação aos documentos assinados durante a ECO-92 e que o Plano de imple-
mentação é vago, contendo metas genéricas e ambíguas, e sem a previsão de cronogramas e compromissos globais efetivos para a implementação
dos acordos assinados durante a Cúpula da Terra (a ECO-92). Os grandes “vilões” apontados como responsáveis pelo fracasso das negociações
durante a Rio + 10 foram os países do grupo conhecido como JUSCANZ (Japão, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia).

142 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

para ingressar nas terras dos Awas Tigni e iniciar


alguns trabalhos preliminares voltados para a
2. A Corte Interamericana de exploração madeireira, e a empresa já havia
Direitos Humanos e o direito iniciado a construção, nas imediações, de uma
dos povos indígenas aos seus indústria de processamento de madeira.
territórios tradicionais e recursos A decisão da Corte expressa a sua com-
naturais. O caso da comunidade preensão de que a reprodução física e cultural
indígena dos Awas Tingni (que dos povos indígenas só é possível por meio da
pertence ao povo Mayagna, também proteção dos recursos ambientais existentes em
conhecido como Sumo), contra a seus territórios. A relação dos povos indígenas
com a natureza é determinada por seus padrões
Nicarágua.
culturais, estando intimamente associadas a di-
versidade biológica e a diversidade cultural.
Em 31 de Agosto de 2001, a Corte Intera- No plano internacional, o principal instru-
mericana de Direitos Humanos proferiu decisão mento é a Convenção nº 169 da Organização
inédita e paradigmática no reconhecimento de Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos
direitos indígenas e ambientais. A Corte reconhe- Indígenas e Tribais, já ratificada pelo Brasil. Ela
ceu direitos coletivos dos povos indígenas aos substituiu a Convenção 107 da OIT, que adota-
va uma orientação integracionista, claramente
seus territórios e recursos ambientais, e deter-
superada pela Convenção nº 169, cujo princípio
minou ao governo da Nicarágua que estabeleça
é o respeito e a proteção das culturas, costumes
mecanismos legais para demarcar os territórios
e leis tradicionais dos povos indígenas e tribais.
indígenas da Nicarágua, especialmente da co-
Garante aos povos indígenas o direito de decidir
munidade dos Awas Tingni. Condenou ainda a
sobre suas prioridades em relação ao processo de
Nicarágua a pagar US$ 50 mil aos Awas Tingni,
desenvolvimento, e de gerir, na medida do pos-
a título de indenização, além de US$ 30 mil para
sível, seu próprio desenvolvimento econômico,
cobrir custas processuais e honorários.
social e cultural. Utiliza a expressão “povos”,
Foi o primeiro caso decidido pela Corte ressalvando que esta não deve ser interpretada
acerca de direitos territoriais indígenas, e abriu no sentido conferido pelo direito internacional,
um importante precedente jurisprudencial inter- ou seja, no sentido de formação de Estados pró-
nacional para o reconhecimento dos direitos de prios. Tanto a Organização das Nações Unidas
todos os povos indígenas americanos. (ONU) como a Organização dos Estados Ame-
A decisão estabelece também um preceden- ricanos (OEA) estão em processo de elaboração
te importante do ponto de vista socioambiental, de declarações internacionais sobre os direitos
e do reconhecimento dos direitos dos povos in- indígenas.
dígenas aos recursos naturais existentes em seus A Corte Interamericana é o órgão jurisdi-
territórios tradicionais, privilegiando a interface cional internacional responsável pelo julgamento
entre direitos culturais e ambientais. A sobrevi- de violações dos direitos previstos na Convenção
vência física e cultural dos Awas Tingni estava Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de
ameaçada pela decisão do governo da Nicarágua San José da Costa Rica), e sua decisão entendeu
de conceder a uma empresa coreana uma conces- que a Nicarágua violou os direitos de propriedade
são de longo prazo para exploração madeireira (em sua dimensão coletiva), de proteção judicial
dentro do seu território. O governo nicaragüense adequada e de igualdade perante a lei, previstos
já havia concedido à empresa coreana permissão na referida Convenção.
20
Consultar: SANTILLI, Juliana (org.). Os direitos indígenas e a Constituição. Brasília: Núcleo de Direitos Indígenas e Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1993; MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1999; SAN-
TILLI, Márcio. Os brasileiros e os índios. São Paulo: Editora SENAC, 2000; ROCHA, Ana Flávia (Org.). A defesa dos direitos socioambientais
no Judiciário. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 143


SANTILLI, J.

A Constituição brasileira aprovada em à cultura, e à liberdade de expressão, entre


1988 claramente segue o paradigma do multi-
20
outros. Em virtude da ausência de referência
culturalismo, ao reconhecer direitos territoriais, expressa ao direito ao ambiente sadio na Con-
culturais e ambientais aos povos indígenas, venção Européia para a Proteção dos Direitos
quilombolas e a outras populações tradicionais do Homem e das Liberdades Fundamentais, os
e ao romper com o modelo assimilacionista e pleitos formulados perante a Corte Européia de
homogeneizador. Ganharam força as noções Direitos Humanos estão sempre fundamentados
constitucionais de titularidade coletiva de direi- em violações de outros direitos, e a violação do
tos, de uso e posse compartilhados de recursos direito ao ambiente sadio é analisada de forma
naturais e territórios e de respeito às diferenças indireta, conforme veremos adiante23.
culturais. A orientação multicultural da Consti-
tuição brasileira se revela pelo reconhecimento 3.1. Okyay e outros X Turquia (Data do
de direitos coletivos a povos indígenas e qui- julgamento: 12/07/2005)
lombolas, como povos cultural e etnicamente
diferenciados. Aos povos indígenas passou a as- Dez advogados que vivem e trabalham
segurar direitos permanentes e não mais direitos em Izmir, uma cidade da Turquia, peticionaram
transitórios, já que o direito à identidade étnica à Corte Européia de Direitos Humanos em vir-
e cultural diferenciada também foi assegurado. tude do fato de que as autoridades locais não
A Constituição rompeu definitivamente com a cumpriram decisões de Cortes administrativas
ideologia integracionista do Código Civil (até turcas determinando a suspensão das atividades
então em vigor) e do Estatuto do Índio (Lei nº de três usinas termelétricas: Yatagan, Gökova
6.001/7321), expressa nos dispositivos que se e Yenikö, situadas na província de Mugla, na
referem à “integração dos índios à comunhão região sudoeste da Turquia. A cidade de Izmir
nacional” e à sua “adaptação à civilização do está situada a aproximadamente 250 km das três
país” como objetivos a serem atingidos.22 usinas termelétricas, e os advogados alegaram
que as suas atividades estavam causando danos
ao meio ambiente, e traziam riscos para a vida
3. A Corte Européia de Direitos e a saúde da população local. Alegaram que as
Humanos e os direitos ambientais. suas atividades impactariam espécies da fauna,
bem como as florestas e áreas agrícolas, e teriam
Destacamos, abaixo, alguns precedentes um impacto negativo sobre o turismo, em virtude
jurisprudenciais da Corte Européia de Direitos das emissões tóxicas.
Humanos, que mostram a orientação deste órgão Os advogados alegaram violação do art.
jurisdicional internacional na interpretação e 6º, par.1º, da Convenção européia para a pro-
julgamento dos direitos ambientais. As decisões teção dos direitos do homem e das liberdades
da Corte têm reconhecido violações dos direitos fundamentais, que prevê o direito a um processo
à proteção judicial e a remédios efetivos, ao eqüitativo. Estabelece o art. 6º, par. 1º, que:
respeito pela vida privada e familiar, à saúde, “qualquer pessoa tem direito a que sua causa
21
Há diversos dispositivos do Estatuto do Índio em vigor (Lei nº 6.001/73) que não foram recepcionados pela nova Constituição. Desde 1991, tra-
mita no Congresso Nacional o projeto de lei que institui o novo “Estatuto das Sociedades Indígenas”, que procura adaptar a legislação ordinária
aos novos parâmetros constitucionais, a partir de uma perspectiva mais centrada nos direitos coletivos dos povos indígenas do que nos direitos
individuais dos índios.
22
Segundo o Instituto Socioambiental, existem hoje, no Brasil, cerca de 220 povos indígenas, que falam mais de 180 línguas diferentes e totalizam
aproximadamente 400 mil indivíduos. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 618 terras indí-
genas, de Norte a Sul do território nacional. Informação disponível em: <http://www.socioambiental.org.>.
23
Consultar: ROBB, Cairo A.R. (ed.) International environmental law reports. Human rights and environment, vol. 3. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001; PICOLOTTI, Romina; TAILLANT, Jorge Daniel (eds.) Linking human rights and the environment. Tucson, Arizona: The
University of Arizona Press, 2003; SACHS, Aaron. Eco-justice: linking human rights and the environment. Washington: Worldwatch Institute,
December 1995; ZARSKY, Lyuba (ed.) Human rights & the environment: conflicts and norms in a globalizing world. London: Earthscan publi-
cations, 2002; LOUKA, Elli. Biodiversity & human rights: the international rules for the protection of biodiversity. Ardsley, NY: Transnational
publishers, 2002; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.

144 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

seja examinada, eqüitativa e publicamente, num vida privada e familiar (“Qualquer pessoa tem
prazo razoável, por um tribunal independente e direito ao respeito da sua vida privada e familiar,
imparcial, estabelecido por lei”. A Corte enten- do seu domicílio e da sua correspondência”).
deu que houve violação de tal direito, e condenou Condenou ainda ao pagamento de uma indeni-
a Turquia a pagar, a cada peticionário, a quantia zação de 3 mil euros a cada peticionário.
de mil euros, a título de indenização.
3.3. Bladet Tromso e Stensaas X Noruega
3.2. Taskin e outros X Turquia (Data do (data do julgamento: 20/05/1999)
julgamento: 10/11/2004)
Bladet Tromso é o nome de um jornal
Dez pessoas que vivem nas proximidades norueguês, e Stensaas é o seu editor. O jornal
de uma mina de ouro situada na região de Ber- publicou uma entrevista com um funcionário
gama peticionaram à Corte Européia de Direitos encarregado da fiscalização da caça às focas,
Humanos em virtude de licenças de operação Lindberg, e o seu relatório oficial, que o governo
concedidas por autoridades locais. Os peticio- havia optado por não divulgar, ambos críticos da
nários alegaram que, em virtude das operações indústria, e, especialmente, de uma embarcação
da mina, eles estavam sofrendo os efeitos da denominada M/S Harmoni. A Noruega criou
degradação ambiental; mais especificamente, uma Comissão de Inquérito que concluiu que a
a poluição causada pelo uso de maquinaria e maior parte das alegações de Lindberg não es-
explosivos e pela movimentação de pessoas. tava provada, mas identificou diversas violações
A decisão do Ministério do Meio Ambiente de dos regulamentos de caça através das filmagens
conceder a licença para a prospecção de ouro de Lindberg, e recomendou alterações nos
para a empresa E.M. Eurogold Madencilik regulamentos e no treinamento dos caçadores.
(posteriormente nomeada Madencilik A.S.) foi A tripulação do M/S Harmoni moveu diversas
questionada perante as Cortes locais, devido ao ações judiciais por difamação, inclusive contra os
perigo representado pelo uso de cianeto na ex- peticionários, e obteve a condenação dos mesmos
tração de ouro, e os riscos de contaminação da ao pagamento de multas e indenizações.
água subterrânea, de destruição da fauna e flora
A Corte Européia entendeu que o Estado
e de danos para a saúde humana.
norueguês não poderia invocar as suas leis de
Os peticionários recorreram à Suprema difamação para restringir a divulgação de infor-
Corte Administrativa da Turquia, que avaliou mação ambiental. Entendeu que houve violação
os impactos ambientais, sociais e culturais das do art. 10 da Convenção Européia, que prevê o
atividades da mina de ouro, tal como descritas no direito à liberdade de expressão, inclusive de re-
relatório de impacto ambiental. A Corte turca en- ceber ou transmitir informações sem ingerência
tendeu que estavam comprovados os riscos para estatal. Segundo a decisão, o relatório divulgado
o ecossistema local e para a saúde humana repre- pelo jornal era oficial, e o papel da imprensa é
sentados pelo uso do cianeto e que a concessão contribuir para o debate público sobre temas de
da licença de operação não atendia ao interesse interesse legítimo.
público, e que as medidas de segurança adotadas
pela empresa não eram suficientes para eliminar
os riscos da atividade. Entretanto, a decisão da 3.4. Maria Guerra e outros X Itália (Data
Corte não foi cumprida pelas autoridades locais do julgamento: 19/02/1998)
dentro do período de tempo prescrito. Os peticionários viviam na cidade de Man-
A Corte Européia de Direitos Humanos fredonia, nas proximidades de uma fábrica de
entendeu que houve violação do art. 6º, par. 1º produtos químicos agrícolas. No seu ciclo produ-
(já transcrito acima), que prevê o direito a um tivo, a fábrica emitia grandes quantidades de gás
processo eqüitativo, e do art. 8º da Convenção inflamável, gerando graves riscos de explosões
Européia, que prevê o direito ao respeito pela e de liberação de substâncias altamente tóxicas.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 145


SANTILLI, J.

Em 1976, uma explosão resultou no escapamento teria obrigações positivas de coletar e disseminar
de toneladas de substâncias altamente tóxicas e informações em algumas circunstâncias.
levou à hospitalização de 150 pessoas, devido
ao envenenamento com arsênico. O relatório de
3.5. López Ostra e outros X Espanha
um comitê de especialistas apontou que os equi- (Data do julgamento: 09/12/1994)
pamentos de tratamento de emissões da fábrica
eram inadequados e que a avaliação de impacto O peticionário e sua família sofreram
ambiental era incompleta. problemas de saúde em decorrência do barulho,
A Corte Européia entendeu que houve cheiro e fumaça provocados por uma estação de
violação do art. 8º da Convenção Européia, que tratamento de lixo situada nas proximidades de
prevê o direito ao respeito pela vida privada e sua casa, em Lorca. Esta cidade espanhola tem
familiar. Segundo a decisão da Corte, embora o uma grande concentração de indústrias de couro,
art. 8º vise, essencialmente, proteger os indiví- e uma das empresas mantinha uma estação de
duos da interferência arbitrária das autoridades tratamento de resíduos líquidos e sólidos, cons-
públicas, ele não se limita a obrigar o Estado truída com recursos públicos, a 12m da casa do
a se abster de realizar tal interferência, e não peticionário.
contém apenas uma obrigação negativa, mas A Corte Interamericana de Direitos Hu-
também obrigações positivas inerentes ao efetivo manos entendeu que houve violação do art. 8º
respeito pela vida privada e familiar. A decisão da Convenção Européia, que prevê o direito ao
da Corte reitera que a poluição ambiental grave respeito pela vida privada e familiar (“Qual-
pode afetar o bem estar dos indivíduos e a sua quer pessoa tem direito ao respeito da sua vida
vida privada e familiar, e que os peticionários privada e familiar, do seu domicílio e da sua
tiveram que esperar até que cessasse a produção correspondência”), e condenou ao pagamento
de pesticidas, em 1994, para obter informações de uma indenização de 4 milhões de pesetas,
essenciais acerca dos riscos que eles e suas mais as custas processuais. A Corte Européia
famílias corriam se continuassem vivendo na decidiu quando uma ação judicial questionando
cidade de Manfredonia, particularmente exposta a legalidade da construção e operação da estação
a riscos no caso de acidente na fábrica. Assim, ainda não havia sido julgada perante a Suprema
o Estado não cumpriu a sua obrigação de asse- Corte espanhola.
gurar aos peticionários o direito ao respeito pela Segundo a decisão da Corte, a poluição
vida privada e familiar, o que viola o art. 8º da ambiental grave pode afetar o bem estar dos
Convenção Européia. O Estado foi condenado indivíduos e impedi-los de usufruir de seus lares
a pagar a cada peticionário 10 milhões de liras, de uma forma que afeta a sua vida privada e
a título de indenização. familiar, mesmo que não haja comprometimento
Entretanto, o principal fundamento da sério da saúde. A família do peticionário teve
demanda era o acesso à informação, e não a po- que suportar os incômodos provocados pela
luição em si. Os peticionários fundamentaram a estação por três anos, até mudar de casa. Eles se
sua demanda no art. 10 da Convenção Européia, mudaram quando se tornou claro que a situação
que prevê o direito à liberdade de expressão, já persistiria indefinidamente.
que o governo deixou de informar a população
sobre os riscos e medidas a serem adotadas no
3.6. Zanden X Suécia (data do julgamento:
caso de acidente. A decisão da Corte entendeu,
25/11/1993)
entretanto, que não houve violação do art. 10,
porque o direito à liberdade de expressão não Os peticionários viviam em uma proprie-
poderia ser interpretado como uma imposição, ao dade com um poço de água, adjacente a uma
Estado, de obrigações positivas de coletar e dis- área onde uma empresa (“Vafab”) mantinha
seminar informações. Oito dos 20 juízes enten- um depósito de lixo industrial. A água do poço
deram, em opiniões em separado, que o Estado foi contaminada por cianeto, proveniente do

146 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

depósito. As autoridades locais proibiram o uso e imediata com algum dos direitos humanos
da água do poço e forneceram água limpa por expressos, será muito difícil defender o caso
um tempo. Quando a empresa que mantinha o perante o sistema. Isto faz com o que o sistema
depósito pediu uma nova licença, os peticioná- internacional de defesa dos direitos humanos
rios argumentaram que os riscos de poluição da só seja eficaz para a defesa de certos direitos
água seriam suficientemente altos para justificar ambientais, e não todos. Os casos de poluição,
a obrigação da empresa de fornecer água limpa e por exemplo, têm maior chance de sucesso, em
própria para consumo. Entretanto, a licença foi virtude de suas evidentes conseqüências para a
concedida, e a demanda dos peticionários não saúde humana, do que as demandas relativas à
foi atendida, levando-os a tentar, sem sucesso, proteção de ecossistemas e espécies ameaçadas
obter a revisão judicial da decisão concessiva de extinção.
da licença. As Cortes Internacionais de direitos hu-
Os peticionários recorreram à Corte Eu- manos têm adaptado permanentemente a sua
ropéia de Direitos Humanos, sob o argumento jurisprudência, a fim de incorporar novos con-
de que a impossibilidade de conseguirem uma ceitos, interpretando e reinterpretando os direitos
revisão judicial da decisão que concedeu a licen- humanos. É fundamental incorporar os tratados
ça violava o direito a um processo eqüitativo, internacionais na área ambiental ao sistema de
previsto no art. 6º da Convenção Européia. A proteção, a fim de que o direito ao ambiente sadio
Corte entendeu que houve violação do art. 6º da possa ser diretamente invocado em demandas
Convenção Européia, e determinou o pagamento de vítimas da degradação ambiental. Isto daria
de uma indenização de 30 mil coroas suecas para maior força e plenitude ao próprio sistema de
cada peticionário. proteção aos direitos humanos, que fortaleceria
a proteção aos direitos ambientais, e conferiria
maior eficácia aos tratados ambientais, que ge-
4. Conclusão ralmente não prevêem o direito de petição e os
remédios adequados em casos de violações de
As decisões da Corte Européia elencadas suas normas.
acima mostram como os instrumentos de defesa Um dos principais trunfos do direito inter-
dos direitos humanos podem ser utilizados para nacional dos direitos humanos é o fato de que
promover e assegurar o direito ao ambiente permite que as vítimas tenham acesso direto às
sadio. Tais instrumentos podem ser úteis, princi- Cortes internacionais. Os indivíduos são sujeitos
palmente se considerarmos que não há Tribunais de direito e podem apresentar demandas envol-
internacionais na área ambiental (com exceção vendo violações de direitos humanos praticadas
de Tribunais estabelecidos por organizações não- por Estados perante as Cortes internacionais.
governamentais, como o Tribunal Internacional Entretanto, uma limitação do sistema, no tocante
da Água, sediado em Amsterdã, na Holanda), à proteção dos direitos ambientais, é justamente
e que as vítimas da degradação ambiental não o excessivo enfoque nos direitos individuais, em
podem recorrer a outras estruturas legais interna- detrimento dos direitos coletivos.
cionais além das Cortes que julgam as violações O direito ao ambiente sadio é essencial-
de direitos humanos. mente um direito coletivo, de que é titular toda
Quando recorrem às Cortes Internacionais a coletividade, e não apenas os indivíduos. Os
de direitos humanos, entretanto, as vítimas da danos ambientais assumem as mais complexas
degradação ambiental devem sempre invocar dimensões espaciais e ambientais. Vejamos o
outros direitos (proteção judicial, respeito à vida caso das mudanças climáticas provocadas pela
familiar e pessoal, etc.), expressamente previstos emissão de gases de efeito-estufa, por exemplo.
nos tratados internacionais de direitos humanos. Embora os principais emissores sejam os países
Se não é possível demonstrar que um caso de desenvolvidos, a previsão dos especialistas é
degradação ambiental tem uma vinculação direta de que os seus impactos se farão sentir mais

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 147


SANTILLI, J.

fortemente sobre os países e populações pobres, A decisão da Corte Européia, ao exigir que
principalmente aqueles que vivem da agricultura o risco ambiental seja “iminente”, desrespeitou
e da pesca. um princípio fundamental do Direito Ambiental:
Outro exemplo é o da poluição marítima o da precaução, segundo o qual: “quando houver
por derramamentos de óleo provocados por na- ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausên-
cia de absoluta certeza científica não deve ser
vios, por exemplo. A poluição pode se alastrar
utilizada como razão para postergar medidas efi-
pelo mar territorial de vários países, e impactar
cazes e economicamente viáveis para prevenir a
diversas comunidades, transcendendo as frontei-
degradação ambiental”. Tal princípio foi também
ras político-administrativas. Tais fronteiras são
frontalmente desrespeitado no posicionamento
artificiais, e os danos ambientais evidentemente do Comitê de Direitos Humanos das Nações
não as respeitam, assumindo dimensões trans- Unidas no caso Bordes, Taiura e Temeharo
fronteiriças e internacionais. X França25. Os peticionários, residentes da
Os danos ambientais têm também suas pró- Polinésia francesa, alegaram que a realização
prias dimensões temporais. O direito ao ambiente de testes nucleares nos atóis de Mururoa e Fan-
sadio é intergeneracional, e pertence não só às gataufa, no Pacífico Sul, pelo governo francês,
presentes como as futuras gerações. Os impactos representava uma ameaça ao seu direito à vida. O
ambientais são tanto atuais como futuros, alguns Comitê considerou o caso “inadmissível”, e que
até imprevisíveis. Restringir a legitimidade os peticionários não poderiam ser considerados
para acessar o sistema internacional de direitos “vítimas”, porque os riscos envolvidos com os
humanos a vítimas específicas e determinadas, testes nucleares eram altamente controvertidos
pessoal e diretamente afetadas pela degradação no meio científico. Os peticionários tentaram
ambiental, é extremamente limitante, quando se impor o ônus da prova ao governo francês, ale-
trata de direitos ambientais. gando que as autoridades francesas não tinham
sido capazes de demonstrar que os testes não
No caso Balmer-Schafroth e outros X Su- colocariam em risco a saúde da população que
íça , por exemplo, apresentado perante a Corte
24
vive no Pacífico Sul, ou o meio ambiente, por
Européia de Direitos Humanos, os peticioná- representar riscos à estrutura geológica dos atóis,
rios argumentaram que tinham o direito de ser mas a Corte não aceitou o argumento.
consultados acerca da renovação da licença de
Tais decisões só reforçam a necessidade de
operação concedida pelo governo suíço a uma que os tratados ambientais sejam incorporados
usina nuclear. A Corte entendeu que não houve ao sistema de proteção dos direitos ambientais, a
violação do art. 6º da Convenção (que prevê fim de que os princípios ambientais sejam efeti-
o direito a um processo eqüitativo) porque os vamente respeitados, pois expressam conquistas
peticionários não conseguiram demonstrar que de uma cidadania ambiental global.
a operação da usina os expunha a um risco
Para tanto, seria necessária uma aliança
“pessoal, sério, específico e iminente”. Trata-se mais próxima entre organizações ambientalis-
de interpretação claramente restritiva: os riscos tas e de direitos humanos. As primeiras tendem
representados por uma usina nuclear evidente- a priorizar, em suas agendas, os direitos civis
mente afetam não apenas os peticionários, mas e políticos, e a dar pouca atenção aos direitos
toda a coletividade, direta ou indiretamente. ambientais. Ainda são poucas as organizações de
Qualquer cidadão deveria ser parte legítima para defesa de direitos humanos que incluem a defesa
peticionar perante a Corte, e não apenas aqueles do meio ambiente entre os seus objetivos, igno-
pessoal e diretamente afetados. O direito coletivo rando que os direitos à vida, à saúde, à cultura,
pode ser exercido por qualquer cidadão, e a sua etc. não existem sem a garantia da integridade
defesa aproveita a toda a coletividade. dos recursos ambientais.
24
Data do julgamento: 26/08/1997.
25
Data do julgamento: 22/07/1996.

148 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009


DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

No Brasil, os movimentos sociais e am- ambiental tendem a pertencer aos setores mais
bientais da Amazônia, principalmente, têm vulneráveis da sociedade, que arcam com os
adquirido uma maior consciência da associação maiores ônus dos problemas ambientais.
entre desmatamento, grilagem de terras públicas Em um país pobre e com tantas desigual-
e violência contra trabalhadores rurais. Entre- dades sociais como o nosso, um novo paradigma
tanto, muitas organizações ambientalistas ainda de desenvolvimento deve promover não só a
tendem a enfocar principalmente a conservação sustentabilidade estritamente ambiental, como
de espécies, ecossistemas e processos ecológicos, também a sustentabilidade social – ou seja,
deixando de lado as conseqüências da degrada- deve contribuir para a redução da pobreza e das
ção ambiental para as populações humanas, e o desigualdades sociais e promover valores como
fato de que as principais vítimas da degradação justiça social e eqüidade.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 135-149, junho/2009 149


150 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:
O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE
À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

Luis Manuel Fonseca Pires* RESUMO: O princípio da publicidade da Ad-


ministração Pública, com previsão no art. 37,
caput, da Constituição da República Federativa
do Brasil é norma fundamental à transparência
das funções públicas e à realização dos ideais
democráticos anunciados por este diploma. To-
davia, a era da comunicação que definitivamente
marca o início do terceiro milênio – e que define
a sociedade da informação e do risco – não pode
deixar de encarecer este princípio constitucional
sem descurar da proteção à imagem e à intimi-
dade dos cidadãos. A intelecção do princípio
da publicidade e a solução da sua colisão com
outros direitos fundamentais dependem de bem
definir os três planos da individualidade do ser
(intimidade, privacidade e relações sociais), e
para tanto é imprescindível compreender a teoria
dos papéis sociais.
Palavras-chave: Princípio da publicidade da
Administração Pública. Proteção à imagem.
Teoria dos papéis sociais.

ABSTRACT: The principle of publicity of


Public Administration, provided by the art. 37,
caput, of the Constitution of the Federative Re-
public of Brazil, is fundamental to the transpa-
rency of public functions and the achievement of

*
Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. Juiz de Direito em São Paulo.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 151


PIRES, L. M. F.

democratic ideals declared by this Act. However, transmute-se em algoz do direito fundamental
the age of communication that definitely marks de proteção à imagem e à intimidade.
the beginning of the third millennium - and that Desde logo, portanto, convém destacarmos
defines the society of information and risk - can que o objeto deste estudo não será outro senão
only enhance the constitutional principle of analisarmos algumas referências que devem
protection without leaving unattended the image ser consideradas em busca da concretização
and privacy of the citizens. The intellection of do princípio constitucional da publicidade da
the principle of publicity and the solution of its Administração. Isto é, pretendemos propor a
collision with other rights depend on the good reflexão de alguns informes que contribuem à
definition of the three levels of individuality of lídima definição da ansiada transparência da
the being (intimacy, privacy and social relations), Administração Pública – com outros termos:
for which is essential to understand the theory como atender à publicidade a ser observada pelo
of social roles.
Poder Público sem a violação a outros direitos
Keywords: Principle of publicity of Public fundamentais, sobretudo o direito de proteção à
Administration. Image protection. Theory of imagem e à intimidade.
social roles.
Para isto anotaremos, com brevidade,
noções que são fundamentais para posterior-
mente trabalharmos com o nosso tema central.
Introdução.
Iniciaremos, então, com a consignação das pre-
O princípio constitucional da publicidade missas necessárias: algumas noções do princípio
da Administração Pública representa inequívoca constitucional da publicidade da Administração
conquista que cumpre – ao menos no plano hipo- Pública (I) e proporemos a adoção da teoria dos
tético – os anseios de um regime democrático que papéis sociais na seara das relações do Poder
deve primar e conduzir-se pela transparência. Público (II).
Mas neste início de terceiro milênio, em Por fim, cuidaremos do tema central deste
meio ao evolver da revolução dos meios de co- nosso estudo: os contornos e os limites do princí-
municação principiada nas últimas décadas do pio constitucional da publicidade da Administra-
século passado, acreditamos oportuno refletir ção Pública (III), o que pretendemos fazê-lo com
sobre a escorreita conformação que esta norma a consideração do dever de informar, corolário
jurídica – o princípio da publicidade – deve do princípio constitucional da publicidade (III.
externar. 1), e ainda do direito de proteção à imagem e à
Pois a escalada da tecnologia da comuni- intimidade (III. 2). Diante do conflito possível
cação tem proporcionado o que se convencionou que pode existir entre o princípio constitucional
denominar de sociedade da informação e do da publicidade da Administração Pública e o
risco1. direito de proteção à imagem e à intimidade – o
que caracteriza a contemporânea sociedade da
Em outras palavras, se a ordem constitu-
informação e do risco – formularemos algumas
cional da República Federativa do Brasil inau-
propostas de soluções possíveis, o que para
gurou com a Constituição Federal uma nova era
tanto laboraremos com alguns breves exemplos
que transpôs a obscuridade e o descaso com a
a ilustrar o tema.
informação e a transparência, por outro lado é
necessário não deixar que a norma assecuratória Iniciemos, então, o estudo.
desta conquista – o princípio da publicidade –

1
É o jurista português, José Eduardo Figueiredo Dias, quem utiliza esta expressão em invocação ao termo “sociedade do risco” do sociólogo ale-
mão Ulrich Beck (Direito à informação, protecção da intimidade e autoridades administrativas independentes, p. 615). Retornaremos ao tema,
explicando-o com mais vagar, no tópico III. 1.

152 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

informações, ou de pronto oferecê-las quando


I – Noções do princípio solicitadas pelos administrados. A transparên-
constitucional da publicidade da cia reclama, na elaboração de seu significado
Administração Pública. na seara do direito público, a divulgação oficial
das atividades, atos e decisões da Administração
O princípio constitucional da publicidade Pública.
da Administração Pública não se encontra cer- Em um regime democrático de direito é en-
rado em um único dispositivo. A despeito de sua carecida a noção de função, da expressão função
explícita prescrição no art. 37, caput, da Cons- pública, como o cumprimento de misteres em
tituição Federal de 1988 como um dever a ser nome de terceiros, em nome da coletividade. E
observado pela Administração Pública Direta e ao bem agir em representação da sociedade os
Indireta de todos os entes federativos a sua impe- agentes públicos devem informar, antes, durante
ratividade pode ser reconhecida da interpretação e após as suas atividades como estão gerindo o
sistemática da ordem constitucional. patrimônio público.
São diversos os direitos fundamentais que O argentino Roberto Dromi8 diz que a
prescrevem a transparência da Administração publicidade é um predicado da ética pública. E
Pública. com razão, pois é pelo princípio da publicidade,
Qualquer pessoa pode, em princípio, exigir ainda, que outros direitos fundamentais têm
dos órgãos públicos informações de seu interesse condições de realizarem-se, como pode aconte-
particular, ou de interesse da sociedade2, e inde- cer com o princípio da isonomia, como lembra
pendentemente do pagamento de taxa é possível Lúcia Valle Figueiredo9 – decerto, apenas pela
obter certidões em repartições públicas para a publicidade da atividade do Poder Público é
defesa de direitos e esclarecimento de situações possível aferir se a Administração Pública trata
de interesse pessoal3, pois o exercício do direito os iguais do mesmo modo, se não fere o princípio
a uma tutela judicial efetiva4 pode depender da igualdade ao conceder privilégios e benesses
destas informações. A eventual recusa, por parte diferenciadas a alguns. Por tudo isto, enfim, a
do Poder Público, em realizar o princípio da publicidade torna-se condição de eficácia dos
publicidade e prestar informações enseja a quem atos da Administração Pública10.
prejudicado demandar perante o Judiciário5 o Para parcela da doutrina o princípio cons-
cumprimento deste dever jurídico. É um dever, titucional da publicidade abarcaria, ainda, a
portanto, que como regra geral se impõe a todos vedação de promoção pessoal do agente público,
os Poderes do Estado6. nos termos do art. 37, § 1º, da Constituição Fede-
É possível, portanto, definir o princípio ral11, mas entendemos que esta intelecção me-
constitucional da publicidade, como se depreende lhor se amolda ao princípio da imparcialidade.
do texto normativo relacionado, de acordo com Preferimos reservar ao princípio da publicidade
a precisa síntese de Celso Antônio Bandeira de o sentido de dever do Poder Público de proceder
Mello: é “(...) o dever administrativo de manter com transparência, o que representa a imperiosa
plena transparência em seus comportamentos” necessidade de divulgar oficiosamente as suas
7. É a transparência que determina a iniciativa ações e prontamente disponibilizá-las quando
a ser assumida pelo Poder Público de prestar solicitadas por qualquer pessoa.
2
Art. 5º, XXXIII, primeira parte.
3
Art. 5º, XXXIV, b.
4
Art. 5º, XXXV.
5
Novamente, art. 5º, XXXV, e ainda o inciso LXXII, a.
6
Como a exemplo se tem do comando do art. 93, IX.
7
Curso de direito administrativo, p. 102.
8
Derecho administrativo, p. 227-229.
9
Curso de direito administrativo, p. 62.
10
É a posição de José Cretella Júnior, Das licitações públicas, p. 138.
11
Conforme Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 87.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 153


PIRES, L. M. F.

É por meio das informações divulgadas formações uma situação na qual o administrado
e disponibilizadas que a sociedade controla o pretende obter, da polícia militar, informes sobre
cumprimento do mandato público, que se per- a quantidade de armas do batalhão, qual a estra-
mite a fiscalização do Poder Público e dos seus tégia adotada para a distribuição do policiamento
agentes, que se confere real sentido ao princípio pela cidade, quantos policiais encontram-se
fundamental de que todo o poder emana do em exercício durante os turnos da manhã e da
povo12 e, em razão disto, aqueles que exercem noite e outras informações mais que não devem
o poder atuam como servidores, isto é, exercem ser repassadas a qualquer interessado sob pena
uma função – um dever em nome, no caso, da de comprometer a segurança pública. Apenas
coletividade. investigações e requisições realizadas por ór-
De tal sorte, o princípio da publicidade gãos e Poderes competentes para tanto, como
apenas se cumpre se, como ensina Diógenes o Ministério Público e o Judiciário, ou mesmo
Gasparini13, a informação decorre de publicação solicitações feitas pelo Chefe do Executivo,
de órgão oficial, e não por notícia divulgada pela máxima autoridade hierárquica dentro do Exe-
imprensa, ainda que o programa ou a instituição cutivo, podem concretamente justificar o retorno
do dever de cumprir o princípio constitucional
mantenha alguma relação com o Governo, como
da publicidade, ou ao menos determinar que com
acontece com a Voz do Brasil transmitida por
eles seja compartilhada a informação sigilosa
rádio.
para que se avalie a sua pertinência.
Mas se o princípio constitucional da publi-
A exemplo disso lembramos a Lei 8.159/90
cidade, em última análise, é norma permeada no
que dispõe sobre a política nacional de arquivos
sistema constitucional, deve admitir, em regime
públicos e privados. Prescreve esta lei que é
de exceção, o seu afastamento para, em hipóteses
dever do Poder Público a gestão documental e
concretamente justificáveis, atender a outros 14
a proteção especial a documentos de arquivos ,
comandos igualmente previstos na Constituição
que todos têm o direito de receber dos órgãos
Federal. É o que dispõe o art. 5º, XXXIII, em sua
públicos informações, contidas em documentos
parte final ao conceber, ao menos hipoteticamen-
de arquivos, de seu interesse particular ou de in-
te, que o sigilo – que se contrapõe à publicidade
teresse coletivo ou geral, mas ressalvadas aquelas
– é admissível quando “(...) imprescindível à cujo sigilo seja imprescindível à segurança da
segurança da sociedade e do Estado”. A exceção sociedade e do Estado, e ainda à inviolabilidade
reproduz-se em uma situação específica, igual- da intimidade, da vida privada, da honra e da
mente prevista no ordenamento constitucional, imagem das pessoas15. Em seu art. 23 prescreve
no art. 37, § 3º, II, ao se determinar que a lei que por Decreto serão fixadas as categorias de
ordinária deve disciplinar as formas de partici- sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos
pação do usuário na Administração Pública, e no públicos na classificação dos documentos, e em
tocante ao acesso a registros administrativos e seu § 2º que o acesso aos documentos sigilosos
demais informações sobre os atos de governo é referentes à segurança da sociedade e do Estado
necessário observar o inciso XXXIII do art. 5º, é restrito por um prazo máximo de trinta anos a
o que envolve, é claro, a possibilidade de sigilo. contar da data de sua produção, e que este prazo
A previsão constitucional é compreensí- pode ser prorrogado, por uma única vez, por
vel. Não há direito absoluto – sequer a vida, igual período, e que o acesso aos documentos
pois a legítima defesa e as hipóteses de aborto sigilosos referentes à honra e à imagem das
são exemplos disto. Portanto, é fácil considerar pessoas é restrito por um prazo máximo de cem
como exemplo de recusa legítima de prestar in- anos a contar da sua data de produção16.
12
Art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.
13
Direito administrativo, p. 11.
14
Art. 1º.
15
Art. 4º.
16
§ 3º.

154 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

Esta lei confirma a nota de excepciona- as estatais devem sujeitar-se ao regime jurídico
lidade do sigilo, tanto quanto às razões que o próprio das empresas privadas, conforme dispõe
fundamentam (em síntese, a segurança pública o art. 173, § 1º, II da Constituição Federal.
e a proteção à imagem e à moral) quanto pelo Mas no que se refere às outras atividades
tempo a imperar a reserva de informação (pois o de suporte das estatais que exploram atividades
sigilo não pode ser indefinido). E mesmo durante econômicas, tal como acontece com a contrata-
o período de sigilo é expressamente prescrito o ção para a edificação de uma filial ou ampliação
que de outra forma não poderia ser – sob pena de ou reforma de unidades já existentes, ou a con-
inconstitucionalidade –: pode o Poder Judiciário, tratação de empregados e outras inúmeras ativi-
em qualquer instância, determinar a exibição re- dades do gênero, incide amplamente o princípio
servada de qualquer documento sigiloso, sempre constitucional da publicidade.
que indispensável à defesa de direito próprio ou Derradeira anotação de ordem geral é que
esclarecimento de situação pessoal da parte17. sendo a publicidade a regra, a sua violação, se
Outra referência ao sigilo advém da Lei não encontrar respaldo nas exceções vistas, pode
11.111/05. Dispõe esta norma que o acesso aos caracterizar, se houver dolo do agente público,
documentos públicos de interesse particular ou um ato de improbidade administrativa – previsto
de interesse coletivo ou geral é ressalvado ex- no art. 11, IV, da Lei 8.429/92.
clusivamente nas hipóteses em que o sigilo seja
ou permaneça imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado18. Mas em seu art. 6o, ao se II – A teoria dos papéis sociais
reportar aos prazos de sigilo que acima reprodu- e o princípio constitucional da
zimos do art. 23 da Lei 8.159/91, é categórico ao publicidade da Administração
afirmar que os documentos classificados no mais
Pública.
alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público.
Resta-nos esclarecer, ainda, que esta norma Porque o tema do nosso estudo cuida de
– o princípio da publicidade – é aplicável, como confrontos possíveis entre interesses particulares
dispõe o caput do art. 37 da Constituição Federal, – o direito de proteção à imagem e à intimidade
a todos os Poderes, de todos os entes da fede- dos cidadãos – e interesses públicos – o dever de
ração, e em relação ao Executivo abrange ainda informar do Estado – é que nos parece de signi-
as pessoas da Administração indireta, como ficativa importância fazermos referência à teoria
as autarquias, fundações, empresas públicas e dos papéis sociais. A teoria dos papéis sociais
sociedades de economia mista. é informe que auxilia o intérprete a identificar
A única ressalva que deve ser feita diz res- qual a real necessidade subjetiva dos sujeitos
peito a estas duas últimas. As empresas públicas em conflito e, com isto, clareia os verdadeiros
e as sociedades de economia mista são criadas ou valores e fatos que devem ser perquiridos junto
para a prestação de um serviço público ou para a ao sistema jurídico.
exploração da atividade econômica, e neste últi- Podemos considerar, segundo a teoria a que
mo caso, e apenas em relação às informações que aludimos, que é possível identificar na sociedade
se referem à atividade-fim, como exemplo as que inúmeros “papéis sociais”. Vale dizer – como
tratam do bem de consumo produzido, de suas uma informação objetiva –, há infindáveis
técnicas de produção, comercialização etc, não núcleos de ações e comportamentos que são
é exigível a publicidade, pois nesta circunstância preenchidos, amiúde, por indivíduos.
17
Art. 24.
18
Art. 2º. É verdade que em seu § 2o o artigo 6º dispõe sobre a possibilidade de antes de expirada a prorrogação do prazo a autoridade competente
para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise
de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaça a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacio-
nais do País, casos em que a Comissão pode manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular. De todo modo,
a intensidade de justificativa deve ser mais acentuada, e as hipóteses para esta indefinida prorrogação reduzem-se ainda mais (apenas se houver
ameaça à soberania, à integridade territorial nacional ou às relações internacionais do País).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 155


PIRES, L. M. F.

Tanto como uma personagem em sua vida conduta não é o homem autêntico, o ser humano
pessoal – como pai, marido, mulher, filha etc –, individual, mas um papel, uma personagem20.
ou na profissional – como médico, empresário, Percebe-se, nessa ordem de idéias, que
trabalhador braçal ou desempregado –, ou na so- o conceito de cada papel social é essencialmente
cial – como integrante de uma associação, como mutável – aliás, como o próprio Direito.
sócio de um clube, em participação de atividades
A propósito do tema, Luiz Antônio Rizza-
em praças e parques públicos etc –, como ainda
to Nunes, com muita propriedade, esclarece a
nas infinitas áreas de relacionamento – lazer,
respeito:
educação, trabalho, família etc. – que se inter-
comunicam e, ao mesmo tempo, representam Para essa teoria dos papéis sociais, o que
o palco de atuação destas personagens, há, no vale é o dado objetivo da escolha. Não
mundo fenomênico, estes núcleos de imagens se está – isso não importa para o papel
(personagens) e ações e comportamentos (áreas social – pensando na motivação que
de relacionamento). levou à escolha (...) nem na capacidade
Pela teoria dos papéis sociais, portanto, há ou condição da pessoa que escolheu (...)
diversos núcleos que enfeixam, em cada caso nem ainda nos interesses que geraram
concreto, considerando qual personagem que a seleção (...). O que vale é a seleção
se trata e em qual área de relacionamento se objetivamente operada”21.
encontra, características próprias e objetivas.
E prossegue o professor, pouco mais adian-
A esses papéis as pessoas aderem espon- te, ao remate oportuno:
taneamente.
O indivíduo é uma soma de papéis e
Não a um ou a outro exclusivamente, mas
por vezes esse indivíduo, enquanto ser
aos diversos e ao mesmo tempo tal como o ho-
real, confunde-se com os papéis que
mem que ao mesmo tempo em que é pai também
exerce. O indivíduo é simultaneamente
é um empresário e integrante da associação do
pai, filho, irmão, estudante, profissional,
bairro em que mora.
político, torcedor, etc. num composto
E é por isso que o ser humano deve a esses de papéis sociais. E nesse ponto podem
papéis amoldar-se, não transformá-los ao seu estar papéis sociais públicos e privados,
talante, à imagem que idealiza para si, mas ao nem sempre sendo fácil distinguir quan-
que a sociedade conhece e espera, pois isto é do o comportamento social real é de um
ínsito à condição de viver em sociedade. ou de outro22.
Luis Recaséns Siches afirma que o sujeito
pode viver três classes de modos de conduta: a) Consideraremos, ainda, que a intimidade é
propriamente individual; b) não individual (in- a esfera mais íntima da pessoa humana, revelada
terindividual); c) coletivo. Sob esta última é que por seus sentimentos mais circunscritos, intros-
o sujeito vive como “(...) titular de um ‘papel’ pectivos, e, circundando-a, há a privacidade,
ou de uma ‘função’ (...)”, algo “(...) ‘comum, afeita à vida no âmbito familiar e amistoso;
tipificado, anônimo, geral (...) como sujeito de e secundando estas duas, tendo-as em seu di-
um círculo ou grupo”19. âmetro, por tanto com maior largueza ainda,
E o mundo do direito – prossegue o autor – há o relacionamento público, que se refere à
pertence mesmo ao âmbito do modo e dos nexos interação social.
coletivos da vida humana. O direito, diz ele, é A maior ou menor proteção do ordena-
um conjunto de modos coletivos da existência mento jurídico a cada uma dessas esferas da
humana, logo, o sujeito dos modos coletivos de individualidade (intimidade, privacidade e re-
19
Introduccion al estudio del derecho, p. 32.
20
Op. cit., p. 34.
21
Comentários ao código de defesa do consumidor – Direito Material, p. 32.
22
Ibidem, p. 33.

156 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

lacionamento público) acontece na proporção Façamo-nos mais claros: para ponderar a


do papel social que o indivíduo exerce em cada constitucionalidade de uma limitação adminis-
caso concreto, justificando-se, portanto, quando, trativa, para avaliar a legitimidade de uma ação
a título de exemplo, para um empregado numa concreta do Poder Público a pretexto de observar
empresa da iniciativa privada há maior proteção uma norma geral que traceje uma limitação ad-
à sua privacidade do que tem um funcionário ministrativa, para saber se há realmente apenas
público em cargo de chefia, mas este, por outro a conformação de um direito ou algum sacrifício
lado, mais proteção goza do que um agente – que neste último caso pode ensejar alguma in-
político. denização –, ou mesmo para constatar algum ato
São papéis sociais diferentes, o que jus- arbitrário, mostra-se ser de grande valia ponderar
tifica tratamentos diferenciados na medida em os papéis sociais em pauta.
que O papel social do Poder Público é mesmo
(...) cada um exerce papel diferente, a de titular de um interesse público primário,
cada momento, e tem que obedecer às defende, no caso concreto, um interesse da co-
regras específicas de seu papel. Assim, letividade, ou atua como particular com o fito de
no ambiente do lar exerce o papel que atingir interesses que apenas mediatamente refle-
lhe cabe no seio da família. Ao atuar tem os anseios coletivos?; ou o papel social que
profissionalmente tem que se compor- representa em dada situação revela que persegue
tar conforme as regras do ambiente os interesses particulares de algum integrante de
de trabalho (...) Já nas atividades de sua estrutura?
lazer, tem outros parâmetros para seu
Um exemplo: pretende o Poder Público re-
comportamento. Conforme o papel, na
alizar, sem qualquer tradição em anos anteriores,
sociedade diferenciada, o ser humano
uma festa pública de ingente proporção tendo
deve protagonizar corretamente o perso-
como mote prestigiar alguma classe profissio-
nagem, por isso vai variar de indumen-
nal determinada, e tudo isto em ano de eleição,
tária, conforme o local, e a imposição
e sendo o atual Chefe do Executivo integrante
do papel, tanto quanto vai se comportar
desta classe; percebe-se, neste exemplo dado,
conforme as regras de cada conjunto
que a despeito das dificuldades de investigar a
social, que será composto por diferentes
vontade subjetiva dos agentes públicos é possível
seres humanos, como protagonistas23.
identificar, ao menos reconhecer indícios, de
Cumpre identificar, portanto, em cada caso que o Executivo não cumpre seu papel social,
concreto, quais são os papeis sociais exercidos mas sim se propõe a propalar os interesses elei-
pelos partícipes da relação jurídica e se estes toreiros de seu representante. Isto porque não é
papéis justificavam suas atitudes. papel social da Administração Pública voltar-se
Numa relação entre o Poder Público e o com exclusividade a um grupo restrito, atuar
administrado é possível divisar, por exemplo, concretamente em benefício de determinados
que o aplicador do direito deve considerar, ao administrados, sem igualdade de condições em
interpretar as limitações administrativas, que relação a outros grupos, e tudo com a associação
por terem como fundamento jurídico o regime deste comportamento ao fato do agente público
jurídico administrativo24 para o cumprimento da que promove o evento pertencer ao mesmo grupo
função administrativa a teoria dos papéis sociais e ainda ser candidato à reeleição.
é elemento que ampara a hermenêutica jurídica De outro lado, se um indivíduo pode ter o
por permitir a melhor compreensão da posição legítimo interesse de opor-se à intenção de seu
dos sujeitos envolvidos. vizinho de ingressar em seu lar para combater
23
Renam Lotufo, Curso avançado de direito civil, p. 21, v. I.
24
Mencionamos exemplos que cuidamos em outra obra (Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin,
2006).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 157


PIRES, L. M. F.

algum foco de desenvolvimento de insetos que direito, sobretudo quando se trata – como é o caso
transmitam doenças graves como a dengue, do presente estudo – do conflito entre o dever de
o mesmo não pode ocorrer, diante do perigo informar – por parte da Administração Pública,
concreto, se o pretendente for o Poder Público, como consectário do princípio da publicidade – e
pois na relação que há com ele o papel social o direito de proteção à imagem e à intimidade
do indivíduo é de quem deve subordinar-se ao do administrado.
interesse geral de colaborar em exterminar o Retornaremos ao tema mais adiante (III.
desenvolvimento das causas de contágio. 3).
Quer-nos parecer que oportunas a estas
reflexões são as seguintes considerações do
administrativista argentino Héctor Jorge Escola III – Os contornos e os limites do
quando trata das ações que compõem a vida princípio constitucional da publici-
privada e que passam a afetar a ordem e a moral dade da Administração Pública.
públicas: “Na liberdade pessoal, assim conside-
rada, é possível distinguir a existência de duas Se existe o dever de transparência que
esferas ou modalidades: uma, que constitui a determina a divulgação de atos e fatos referen-
vida privada, a vida íntima de cada pessoa; tes à Administração Pública e aos seus agentes,
e outra, a liberdade comum, que é a qual até cumpre-nos compreender o sentido e o alcance
agora nós temos nos referido”25. A distinção é deste princípio – da publicidade – de modo a não
feita porque, nas lições do doutrinador, o que ele afligir, como dissemos alhures (I), outros direitos
denomina de “poder de polícia” não tem campo fundamentais.
ou legitimidade quando se trata da “esfera sa- A seguir, então, demarcaremos estes co-
grada da vida privada”, mas é possível se estas mandos normativos distintos – de um lado, o
ações transcendem para atingir a “liberdade princípio da publicidade e o dever de informar
comum”26. (III. 1), do outro, o direito de proteção à imagem
Note-se, noutro exemplo pautado no cha- e à intimidade (III. 2) –, para em seguida, com
mado “rodízio de veículos” da capital de São a consideração da teoria dos papéis sociais que
Paulo, que a despeito da impossibilidade de um vimos no tópico precedente (II), propormos
particular impingir a seu par que circule com o algumas soluções possíveis com a ilustração de
veículo dele em certo dia da semana, o Poder alguns casos práticos.
Público, por sua vez, tem a legitimidade de assim
agir e o destinatário deve suportar porque o seu
papel social de administrado (isto é, em relação III. 1 – O dever de informar: a sociedade da
com o Poder Público, o titular do interesse co- informação e do risco.
letivo) é diferente do papel social de um sujeito Como vimos (I), o princípio constitucional
titular de direitos privados em conflito com outro da publicidade (art. 37, caput) impõe à Admi-
sujeito também titular de interesses protegidos nistração Pública o dever de transparência que
pelo direito privado. implica o dever de informar, e a este princípio
Em suma, não desconsideramos nem dis- relacionam-se ainda outras normas como inte-
pensamos – ao contrário, deve ser o ponto de grantes de sua interpretação sistemática27. Mas a
partida do intérprete – toda a doutrina de Direito par desta análise de um princípio que compõe o
Administrativo sobre o regime jurídico adminis- regime jurídico administrativo convém lembrar
trativo e a função administrativa, mas sugerimos, outras normas constitucionais que regem, de um
de forma ancilar, a consideração da teoria dos modo geral, a liberdade da comunicação mesmo
papéis sociais em vista a auxiliar o aplicador do entre particulares. Recordamos os princípios da
25
Compendio de derecho administrativo, p. 895, v. II.
26
Ibidem, p. 896.
27
Art. 5º, XXXIII, primeira parte, XXXIV, b, XXXV e LXXII, a.

158 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

liberdade de pensamento28, da liberdade de co- Por conseguinte, é preciso atentar para o


municação e opinião29 e do direito de informar que o autor lembra que vem sendo denominado
e de ser informado30. de “digitalização dos direitos fundamentais”33 –
Mesmo se não houvesse, portanto, o explí- o risco, perante esta sociedade da informação,
cito princípio constitucional da publicidade no diante da constante evolução das tecnologias
caput do art. 37, ainda assim, como já asseve- de comunicação (como é exemplo a internet),
ramos na primeira parte deste estudo, da leitura o risco de menoscabar os direitos fundamentais
como a intimidade e a privacidade.
do regime democrático, marcado por normas que
elevam a liberdade de expressão a um dever de Decerto, o princípio constitucional da pu-
respeito, recenderia o princípio da publicidade blicidade, ao prescrever a transparência como
como um dever de informar por parte do Estado. norma de conduta da Administração Pública,
Especificamente o art. 5º, XIV, ao dispor que “é exterioriza verdadeiro dever de informar, o que
assegurado a todos o acesso à informação (...)”, em contrapartida franqueia aos administrados
não trata de um direito imponível apenas a outros de um modo geral, como insistimos em linhas
particulares, mas ainda ao Poder Público. passadas (I), um direito à informação adminis-
trativa34, mas este dever de informar precisa ser
O princípio constitucional da publicida- contextualizado com os avanços da tecnologia
de, como acreditamos que restou bem demarcado de comunicação pelos quais passou a sociedade
no tópico I, é mesmo um dever de informar a mundial nas últimas décadas e que nos albores
ser pronto e espontaneamente cumprido pelo do século XXI prenuncia progressos ainda mais
Poder Público, o que bem corresponde à lição marcantes. De tal sorte, compete-nos compre-
de José Cretella Júnior31 ao dizer que a vontade ender que a reboco da informação existem, por
do Poder Público deve ser “anunciada aos quatro exemplo, os riscos da internet que resultam do
cantos”. amplo acesso proporcionado às informações da
Mas o que neste tópico aspiramos não é Administração Pública, os riscos que resultam da
a reprodução do que dissemos anteriormente (I), capacidade de armazenamento de dados que se
e sim destacarmos as potenciais conseqüências projeta exponencialmente, os riscos que resultam
deste dever de informar imputado à Administra- da velocidade com que estas informações podem
ção Pública. ser difundidas, e por isto exigem atenção sobre o
que se encontra à disposição de acesso.
José Eduardo Figueiredo Dias, a quem
fizemos breve referência na introdução deste O dever de informar proporciona, portanto,
artigo, recorda que a sociedade contemporânea a caracterização de uma sociedade que ao mes-
vivencia um mo tempo em que se ufana desta capacidade de
acesso às informações ainda se identifica pelos
(...) aumento das situações de devassa riscos gerados. Destarte, se devemos reconhecer
da vida privada e da intimidade das o valor das tecnologias de comunicação que
pessoas, potenciado pela consagração levaram aos píncaros o princípio da publicidade
e garantia do direito à informação em como dever de informar – como os sítios (sites)
termos cada vez mais amplos, e facilita- oficiais das Administrações Públicas na internet
do pelas novas tecnologias informáticas –, é fundamental termos a consciência de que são
que aumentam exponencialmente as proporcionados riscos que exigem as devidas
possibilidades de recolha e posterior cautelas para evitar o comprometimento dos
acesso a dados pessoais32. direitos fundamentais.
28
Art. 5o, IV.
29
Art. 5o, IX.
30
Art. 5o, XIV e XXXIII.
31
Op. cit., p. 138
32
Op. cit., p. 616.
33
Op. cit., mesma página.
34
Expressão pertinentemente utilizada por José Eduardo Figueiredo Dias, op. cit., p. 620.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 159


PIRES, L. M. F.

Pois afinal, como nos adverte Jesús Gon- publicidade, o dever de informar da Administra-
zalez Perez 35, a transparência da atividade ção Pública, com os direitos dos administrados
administrativa é um “dever de conteúdo plural” de verem preservadas a sua imagem e intimidade
porque tem duas vertentes: o dever de informar e – sobretudo porque, como exemplificamos no
o dever de calar. E este último – o dever de calar tópico anterior, a internet promove uma vigorosa
–, por sua vez, exterioriza-se por duas formas: o capacidade de divulgação, e porque a Adminis-
dever de segredo que trata de assuntos concretos tração Pública contém sítios oficiais (sites) a
aos quais se atribui o caráter de reservados (trata- potencializarem esta publicidade é preciso então
se de um dever específico) e o dever de sigilo definir o alcance legítimo do cumprimento do
que é o dever pessoal de discrição cuja finalida- dever de informar sem o comprometimento do
de é evitar causar danos desnecessários tanto à direito de proteção à imagem e à intimidade dos
Administração quanto aos cidadãos (trata-se de administrados.
um dever genérico de discrição). A estas indagações esperamos ao menos
Mas cuidaremos deste dever de calar, bosquejar, no tópico seguinte, algumas respostas
no próximo tópico, por outra perspectiva: com que sirvam de linhas condutoras à compatibili-
fundamento no direito de proteção à imagem e dade destas normas constitucionais.
à intimidade.
III. 3 – Casos práticos e soluções possíveis
III. 2 – O direito de proteção à imagem e à diante da teoria dos papéis sociais.
intimidade. José Eduardo Figueiredo Dias assinala
O direito de proteção à imagem e à inti- que
midade, de conhecida estatura constitucional36, A tarefa de harmonização pode igual-
representa, em palavras que tomamos de emprés- mente basear-se na afirmação de um
timo de José Eduardo Figueiredo Dias ao tratar conteúdo prima facie dos direitos funda-
da intimidade e da privacidade, “(...) um ‘direito mentais, que só em concreto podem ser
de personalidade’ que deve ser considerado exactamente determinados, apelando de
como densificação do ‘princípio da dignidade forma mais intensa para a necessidade
da pessoa humana”37. de recorrer à ponderação ao nível do
caso concreto para efectuar a restrição
E que deve ser cuidadosamente conside-
de um (ou dos dois) direito (s)39.
rado diante da prática cada vez mais comum da
Administração Pública de usar a internet como O que pretendemos propor, e o faremos
meio de efetivação do princípio da publicidade. nas próximas linhas, é o labor com a teoria dos
Pois como diz o autor referido38, o desenvolvi- papéis sociais para os casos concretos como
mento da informática, principalmente da internet um dos critérios a serem considerados para a
como “verdadeira auto-estrada da informação”, ponderação referida por este autor de modo a
com as facilidades de armazenamento, acesso alcançarmos a pretensão de correção na solução
e difusão de dados, conduz a proteção da pri- dos princípios em colisão – de um lado, o prin-
vacidade a uma nova perspectiva, a de que nos cípio da publicidade da Administração Pública,
encontramos em uma sociedade do risco e da e de outro o princípio de proteção à imagem e
informação. à intimidade.
A discussão que emerge, por conseguinte, Adotaremos, em última análise, a teoria
é a preocupação em equacionar o princípio da dos papéis sociais no procedimento de ponde-
35
Corrupción, ética y moral em las Administraciones Públicas, p. 93-94.
36
Art. 5o, V e X.
37 Op. cit., p. 628.
38 Op. cit., p. 632.
39 Op. cit., p. 628.

160 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

ração na colisão do princípio da publicidade e possível perceber que, de um modo geral, não
o dever de informar da Administração Pública podem os participantes de uma licitação, que
com o princípio de proteção à imagem e à inti- livremente decidiram aderir a um processo que
midade. deve pautar-se pelo princípio da publicidade,
Exemplifiquemos, inicialmente, com o reclamar da divulgação, pelos sítios oficiais
dever de licitar. É em razão do princípio da (páginas da internet), de que os seus dados da
publicidade junto à licitação que há o direito habilitação e a sua proposta estejam disponíveis
assegurado a qualquer interessado de participar ao acesso de qualquer administrado.
e fiscalizar os atos da licitação: por meio da O não-cumprimento do princípio de pro-
publicidade que se torna possível promover a teção à imagem e à intimidade do interessado
competição do maior número possível de pes- justifica-se pela necessidade do cumprimento
soas, o que efetiva materialmente o princípio da do princípio da publicidade, pois o administrado
igualdade, e ainda amplifica as possibilidades de que participa da licitação assume, ao ingressar
a Administração realizar a seleção e conseguinte no processo de licitação, o papel social de um
contratação mais eficiente às suas necessidades, interessado em substituir o Estado na execução
e quanto à fiscalização é ainda com a publicidade de uma tarefa, e por isto deve à sociedade prestar
dos atos que qualquer pessoa pode averiguar contas, tal como o Estado deve fazê-lo, o que é
se não ocorrem favoritismos e desvios, o que a comprovação definitiva de que o princípio da
contribui – este controle – para a efetivação do publicidade justifica, em razão do papel social
regime democrático40. ao qual adere o participante da licitação, o não-
Pois a teoria dos papéis sociais, ao ex- cumprimento da proteção à imagem e à intimi-
plicitar que o participante de uma licitação dade do participante.
apresenta-se, na relação com o Poder Público, É esperado, como papel social de con-
como uma personagem em interação pública correntes de uma licitação, que os documentos
com outros administrados (isto é, numa área de referentes à sua habilitação jurídica, qualificação
relacionamento que se sujeita aos interesses de técnica, qualificação econômico-financeira, re-
uma coletividade), a sua intimidade e privacida- gularidade fiscal41, que a sua proposta, mesmo
de submetem-se a constrições mais intensas do quando fundada na “melhor técnica” ou “técnica
que em outras relações jurídicas, outros papéis e preço”42, sejam informes disponibilizados, du-
sociais. rante o processo de licitação e em seus momentos
Com a teoria dos papéis sociais, a informar adequados, a qualquer sujeito que queira conhe-
e conduzir o procedimento de ponderação, é cer, pois a transparência é dever que impera no
40
Ainda que não haja a necessidade de expressa menção a este princípio constitucional para que o Poder Público cumpra com o dever de transpa-
rência, a lei de licitações e contratos administrativos é explícita ao reproduzi-lo, em seu art. 3º, caput, como um princípio básico a permear todo
o processo de licitação e o conseqüente momento da contratação com o vencedor. E torna a mencioná-lo em seu art. 4º ao assegurar a qualquer
cidadão o acompanhamento do processo de licitação, e no art. 15, § 2º, ao determinar a publicação trimestral dos preços registrados, no art. 16,
caput, ao prescrever o dever de dar-se publicidade mensalmente à relação de todas as compras feitas pela Administração, no art. 21, § 4º, ao
exigir nova publicação em caso de modificação do edital, no art. 34, § 1º, ao exigir a divulgação do registro cadastral e a sua disponibilidade a
quaisquer interessados, no art. 53, § 4º, ao explicitar que o edital deve ser “amplamente divulgado”, entre outros dispositivos. Claro que durante
as etapas do processo de licitação há momentos em que, pela natureza da própria atividade, é impossível franquear o acesso ou o acompanha-
mento concomitante dos interessados, como é o caso da averiguação dos documentos e o julgamento das propostas. Sem dúvida alguma os atos
anteriores e posteriores, como a abertura de envelopes e divulgação dos resultados com seus critérios e conclusões devem ser públicos, mas os
atos de avaliação de documentos e de julgamento e classificação das propostas demandam o isolamento dos integrantes da comissão responsável.
Igualmente, o princípio da publicidade não abrange o momento de apresentação das propostas, pois se as propostas fossem apresentadas já abertas
não se garantiria a igualdade entre os interessados uma vez que estaria em posição de vantagem quem conhecesse a proposta do outro concorrente
antes de apresentar a sua. Mas com o encerramento da fase de apresentação todos terão acesso às propostas de todos os interessados tão logo elas
sejam abertas e classificadas. É nestes termos, a propósito, que dispõe o art. 3º, § 3º, da Lei 8.666/93. Por isto, a violação do princípio do sigilo das
propostas – da fase de apresentação das propostas – não apenas pode invalidar toda a licitação como ainda tipificar os crimes previstos no art. 94
da própria lei de licitações e contratos administrativos e no art. 326 do Código Penal. Por último, convém registrarmos que as publicações devem
ser resumidas, nos termos dos arts. 21, § 3º, 38, II, 40, § 1º, 61, parágrafo único, todos da Lei 8.666/93, pois a publicação não se confunde com
a publicidade; a publicação resumida, portanto, não viola o princípio da publicidade porque o inteiro teor do edital deve ser disponibilizado na
repartição competente (o que assegura a plena publicidade), e com isto a divulgação (por meio da publicação) atinge o seu objetivo de promover
a publicidade ao se limitar a divulgar os aspectos essenciais do processo de licitação.
41
Art. 27 da Lei 8.666/93.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 161


PIRES, L. M. F.

exercício de qualquer função pública – e de todo a publicidade destas informações específicas.


e qualquer administrado que espontaneamente Exemplificamos: não se justifica, em princípio,
adira ao papel social de participar da pretensão a disponibilidade de acesso, nos sítios oficiais, de
de execução de uma parcela desta função. dados pessoais dos sócios das empresas interes-
Por isto, é legítima a divulgação, pela sadas, como os seus endereços residenciais e nú-
Administração Pública, das razões de recusar meros de registro geral e de contribuintes, ou os
a habilitação de um interessado, ainda que para dados pessoais dos profissionais que compõem
isto informe da existência de ações contra ele, a capacitação técnico-profissional43, pois não se
como é legítima a divulgação de irregularidades pode confundir a personalidade jurídica da em-
na estrutura jurídica da empresa, como é legítima presa que participa como interessada na licitação
a divulgação das razões de não ser a proposta com a dos seus sócios e empregados; como não
técnica do interessado adequada à realização se justifica a disponibilidade, nos sítios oficiais,
daquela atividade, entre outros exemplos mais. dos dados pertinentes à habilitação jurídica,
Pois a tudo isto – à publicidade, à exposição qualificações técnica e econômico-financeira,
– o administrado espontaneamente adere porque de regularidade fiscal dos que não lograram
é o papel social a ser objetivamente assumido, vencer a licitação quando já houve a homolo-
mesmo que não exista a expressa manifestação gação, adjudicação do bem e o vencedor, tendo
de vontade ao ingressar no processo de licita- firmado o contrato, iniciou a sua tarefa. Lógico
ção. Pouco importa, então, a ausência de termo que, neste caso, é preciso compreender que há
escrito no qual o administrado interessado no um prazo a ser aguardado para que a Adminis-
certame expresse a sua concordância com ter a tração Pública retire do site as informações dos
sua imagem e intimidade expostas publicamente, interessados – mas, convém lembrar, ainda assim
pois a adesão a este consentimento é consectário a Administração Pública deverá manter em seus
natural do papel social assumido de interessado arquivos, físicos e virtuais, todas as informações
de participar do processo de licitação. de todos os concorrentes, tanto para sujeitá-las a
oportuno controle por outro órgão público, como
É inerente à transparência que deve perme-
o Tribunal de Contas ou o Ministério Público,
ar a atividade do Poder Público a possibilidade de
controle por qualquer administrado, o que exige, como para apresentá-las a qualquer interessado
por conseguinte, o não-cumprimento do prin- que solicitar, por força do art. 5º, XXXIII, da
cípio de proteção à imagem e à intimidade dos Constituição Federal.
interessados na licitação na medida necessária e É oportuno sintetizar para destacarmos:
pertinente desta participação no certame. a cautela a ser adotada, em última análise, é a
Com estas últimas considerações, podemos exclusão de informações que não interessam
divisar, por outro lado, algumas situações que à licitação – seja porque impertinentes aos in-
passam a deixar de justificar o cumprimento teressados, seja porque a licitação encerrou-se
prevalecente do princípio da publicidade em – apenas dos sítios oficiais, e isto porque, como
detrimento do princípio de proteção à imagem e insistimos durante toda esta exposição, em virtu-
à intimidade, pois enquanto não se trata do inte- de do amplo alcance de difusão de informações
ressado, enquanto não se trata de informação que que se promove com a internet, o que não exclui
interessa à habilitação e ao julgamento das pro- o dever de que todos os informes permaneçam,
postas, e quando não houver mais interesse nas ainda quando encerrada a licitação, junto aos
informações porque se encerrou o processo de arquivos da Administração Pública.
licitação com a sua homologação e adjudicação Outros exemplos, agora sobre a relação
do bem ao vencedor, deve retornar o princípio de entre a Administração Pública e os servidores
proteção à imagem e à intimidade para restringir públicos.
42
Art. 46.
43
Art. 30, § 1º, I.

162 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

Consideremos, à guisa de exemplo, que a no qual se encaixa – leia-se: do que é inerente


pretexto de cumprir o art. 41, § 1º, III, da Cons- ao seu papel social.
tituição Federal a Administração Pública demita Ora, ser submetido a uma avaliação de
servidores públicos após o procedimento de ava- desempenho é absolutamente normal junto a
liação periódica de desempenho. Acresçamos às qualquer atividade laborativa, e trata-se de ex-
reflexões que os servidores demitidos ingressem pediente ainda mais desejável quando se trata do
com ações que reconheçam a ilicitude da demis- exercício de alguma função pública. Se a Admi-
são – sejam quais forem os fundamentos, como nistração Pública falha em sua atuação quanto
a ausência de lei complementar, ou porque não ao procedimento de avaliação de desempenho
houve critérios claros e objetivos para a avalia- que culmina com a demissão do servidor, se
ção, ou porque não houve motivação a preceder esta ilicitude é reconhecida por decisão judicial,
as conclusões lançadas. então a reparação do ilícito é realizada com a
Pois bem. Diante deste contexto engendra- recondução da situação à ordem jurídica vigente
do a ilustrar o tema de estudo consideremos ainda na medida em que o servidor é reintegrado ao
que os agentes públicos reintegrados ao cargo cargo e recebe todos os proventos pelo período
ingressem, então, com ações de indenização em que ficou afastado. Mas este contexto não
contra o Poder Público nas quais pretendem o produz, por si só, o dano moral.
específico reconhecimento do dano moral por E isto porque no papel social do agente
ofensa à imagem. público realmente se encontra o dever de ser
Do quanto exposto é forçoso reconhecer avaliado e ter a sua situação funcional divulga-
que os servidores públicos estão submetidos da pela imprensa oficial. Portanto, a demissão
a avaliações, estão sujeitos, por determinação após a avaliação de desempenho insatisfatória, e
constitucional, a terem o seu desempenho apura- mesmo por outros fundamentos jurídicos, como
do em procedimentos da Administração Pública. a demissão a bem do serviço público – após o
De tal sorte, e ainda que a Administração Pública processo administrativo disciplinar –, ainda
tenha utilizado uma metodologia equivocada ou quando estas decisões administrativas sejam
não tenha fundado seu comportamento em norma invalidadas judicialmente não ensejam o direito à
reconhecida pelo sistema jurídico como apta a indenização por danos morais porque, insistimos,
legitimar a ação, ainda assim, se não houver o direito à imagem do servidor público deve ser
qualquer indício de que tenha procedido de má- conformado com o papel social que ele exerce,
fé ou para dolosamente perseguir os servidores e o papel social desenhado a quem atua em uma
públicos, não há que se sustentar qualquer dano função pública é mesmo a publicidade destes
à imagem ou à intimidade dos servidores rein- atos que, embora viciados (desde que não tenham
tegrados. sido praticados por má-fé), integram a rotina da
Pois sustentar o dano moral em tal hipótese Administração Pública.
é desconsiderar o papel social que o servidor Estas considerações igualmente se aplicam
público exerce. A invalidação do ato de de- a um sério equívoco por parte da Administração
missão não implica lógica e necessariamente Pública que a imprensa nacional deu cobertura
na existência de um dano moral, e não há esta há algum tempo: os cartões corporativos. O em-
relação de inferência porque o dano moral ocorre penho da verba pública, ainda quando os gastos
quando o sujeito é submetido a uma situação que são feitos pelas autoridades que se encontram
rompe com os padrões objetivos que podem ser no ápice da escala hierárquica, não pode ser
esperados como inerentes a uma rotina normal. omitido do controle público, não pode furtar-se
Em outras palavras, o dano moral evidencia-se ao princípio da publicidade. As despesas com
quando a pessoa que se diz ofendida realmente restaurantes, aluguéis de veículos, hospedagem
se sujeitou a uma situação concreta que destoa devem ser divulgadas porque o papel social exer-
de sua rotina possível, dos acontecimentos espe- cido pelo agente público é o da representação do
rados dentro daquele padrão de comportamento interesse coletivo. Não há, portanto, que se argüir

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009 163


PIRES, L. M. F.

o direito à imagem ou à intimidade, a pretensão DROMI, Roberto. Derecho Administrativo. 10a


de resguardar a privacidade, pois enquanto no ed. Buenos Aires – Madrid: Ciudad Argentina,
exercício de uma tarefa pública o sujeito que 2004.
ocupa o cargo é mandatário da sociedade.
FIGUEIREDO, Lúcia Vale. Curso de Direito
Não são suas atribuições públicas que Administrativo. 7a ed. São Paulo: Malheiros
devem amoldar-se aos seus hábitos, seus interes- Editores Ltda., 2004.
ses, às suas particulares leituras de como deve
comportar-se. Ao inverso, é o agente público, GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo.
enquanto detentor do cargo, que deve ajustar-se 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
ao que é esperado como papel social de quem MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrati-
cumpre uma missão pública. É o agente público, vo Brasileiro. Atual. por Eurico de Andrade Aze-
enfim, que deve agir de modo a compatibilizar- vedo, Délcio Balestero Aleixo, José Emmanuel
se com as prescrições normativas, sobretudo – Burle Filho. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
como no caso – com o comando constitucional
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso
do princípio da publicidade da Administração
de Direito Administrativo. 20a ed. São Paulo:
Pública que então impõe e justifica o papel social
Malheiros, 2006.
a cada agente público de atender à transparência
ao divulgar à sociedade como, quando e por que NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários
comprometeu o recurso (público) que lhe foi ao Código de Defesa do Consumidor – Direito
destinado. Material. São Paulo: Editora Saraiva, 2000.
Todos estes exemplos, é claro, não esgo- PEREZ, Jesús Gonzalez. Corrupción, Ética y
tam a matéria. Mas acreditamos que ilustram Moral em las Administraciones Públicas. Ma-
a importância que a teoria dos papéis sociais drid: Thomson, 2006.
representa no procedimento de ponderação do
princípio constitucional da publicidade da Ad- PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações Ad-
ministração Pública. ministrativas à Liberdade e à Propriedade. São
Paulo: Quartier Latin, 2006.
RECASENS SICHES, Luis. Introduccion al
Bibliografia. Estúdio del Derecho. México: Porruá, S.A. 1970.

CRETELLA JÚNIOR, José. Das Licitações Pú-


blicas. 181 ed. Rio de Janeiro: Forense.
DIAS, José Eduardo Figueiredo. Direito à Infor-
mação, Protecção da Intimidade e Autoridades
Administrativas Independentes. Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, in
Studia Iuridica, Coimbra Editora, 2001.

164 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 151-164, junho/2009


Artigo

A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A


INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM

Maria Garcia* RESUMO: Trata-se de uma reflexão relativa aos


efeitos das decisões sobre o cidadão comum que,
não tendo acesso ao conhecimento das teorias e
doutrinas, compõe o povo - sendo o cidadão o
primeiro destinatário das normas constitucionais.
Daí sua importância e do seu entendimento sobre
o que lhe diz respeito.
Palavras-chave: Interpretação. Constituição.
Leis. Cidadania.

ABSTRACT: The matter of the text is a reflec-


tion related to the effects of the decisions upon
the ordinary citizen who doesn’t have access
to the knowledge about theories and doctrines
and composes the people – being also the first
adressee of the constitutional rules. From this we
can extract his importance and the importance
of his understanding about a matter which refers
to him.
Keywords: Interpretation. Constitution. Laws.
Citizenship

1. Constituição e lei

A Constituição, como lei, dirige-se preci-


puamente ao comum dos cidadãos, pretendendo
ser entendida, interpretada e aplicada às circuns-
tâncias humanas, no transcorrer social.
Explicando a concepção de lei em Platão,
Werner Jaeger1 alude ao processo de sua for-
mação:
*
Livre-Docente pela PUC-SP. Professora de Direito Constitucional, Direito Educacional e Biodireito Constitucional na PUC-SP. Vice-Coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP. Procuradora aposentada do Estado de São Paulo. Ex-Assistente Jurídica da Reitoria da
USP. Membro-fundador e atual Diretora Geral do IBDC. Membro da CoBi do HCFMUSP e do IASP. Membro da Academia Paulista de Letras
Jurídicas. (Cadeira Enrico T. Liebman).
1
Alabanza de la ley. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1982; p. 65 (Tradução livre da Autora).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 165-169, junho/2009 165


GARCIA, M.

“Platão, naturalmente, considerava suas


‘leis’ como direito positivo da polis, para 2. A interpretação e o cidadão
a qual as escreveu. Contudo, é evidente Certamente que a Constituição e as lei são
que queria faze-las coincidir com norma feitas para diferentes destinatários; contudo ela
ideal da verdadeira justiça, tal como a se dirige, especificamente, ao cidadão comum, a
concebia filosoficamente. unidade social, compondo o Povo. Trata-se, aqui,
Suas considerações gerais sobre a de princípio fundamental que estrutura o Estado
natureza da lei verdadeira são partes brasileiro, segundo o art. 1º, II: a cidadania e
integrantes do Livro I do seu código, esta, considerada como um plexo “dos direitos e
onde desenvolveu os maiores esforços liberdades constitucionais” e das “prerrogativas”
que lhe são inerentes, bem como a nacionalidade
para fazer derivar a autoridade da lei de
e a soberania (art. 5º, LXXI).
uma fonte que lhe desse suprema vali-
dez. Esta fonte é a ‘reta razão’ (orthos Quais direitos, liberdades e prerrogativas?
logos) e o legislador é o sábio que põe Todos os previstos na Constituição e normas
esta razão por escrito. O consentimento decorrentes.
do povo converte essa palavra escrita O cidadão, portanto, é o primeiro destina-
em lei. A lei é, portanto, pensamento tário da Constituição, sob qualquer qualidade:
racional (logismós) que se converteu em o cidadão-Presidente, o cidadão-Legislador, o
dogma poleos, é dizer, que foi sanciona- cidadão-Juiz e todos os cidadãos, nas suas res-
do pela cidade.” pectivas qualidades, nos diversos estamentos da
Nação, mas, sobretudo, o cidadão comum.
Resulta dizer, a partir daí, que a elaboração Hobbes, mesmo ao cuidar d’O cidadão2
da lei requer a manifestação da cidade, o povo (o empresta-lhe uma condição social muito diferen-
conjunto dos cidadãos) e se assim é, da mesma te do que presumem alguns quando se deparam
forma deve ser considerada a sua interpretação com o pacto Cidadão-Leviatã pois esse pacto
pelo cidadão comum, ainda que esta se efetue prevalecerá se e enquanto o Estado/Leviatã ofe-
pelo aplicador da lei, o juiz. reça segurança, proteção e preservação da vida e
Em tudo e por tudo, não deve ser negli- tudo o que esta compreende, aos seus cidadãos/
genciado o entendimento de quem, afinal, se súditos.
constitui na finalidade objetivada pela própria “O individualismo hobbesiano, esclare-
ce Renato Janine Ribeiro3, exige que o
lei, os indivíduos, as relações humanas.
poder provenha da vontade de cada um,
Daí que as interpretações meramente e que este só obedeça o quanto e enquan-
técnicas, elocubradas pelos juristas, dão por to for racionalmente necessário para a
consequência que a forma, veículo do direito, se sua vida. A obrigação dura apenas se o
sobreponha, como um fim em si mesma. soberano me protege a vida; cessa, não
somente se ele a ameaça, mas também
De instrumento, passa a essência, mesma,
quando deixa, embora malgrado seu, de
da relação jurídica, como se o mármore, por si, garanti-la.”
se pudesse destacar das linhas que compõem
a figura — esta, sim, ensejadora da criação do Martin-Retortillo, por sua vez, explica bem
artista e não aquele, seu portador. a natureza da cidadania quando refere que “o
Embora ambos, forma e matéria, venham a direito fundamental da liberdade é multidimen-
constituir, indissoluvelmente, o objeto de arte — sional”, é dizer, essa liberdade redunda, em nível
como direito e processo se unem, na objetivação político, na cidadania; que consiste no exercício
do relacionamento humano em sociedade. da liberdade pelo indivíduo enquanto membro da
sociedade política4.
2
São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 45 e ss.
3
Ao leitor, sem medo. São Paulo: Brasiliense, 1984; pp. 163-164.
4
MARTIN-RETORTILLO, Lorenzo. Derechos fundamentais y Constitución. Madrid: Civitas, 1988; p. 167.

166 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 165-169, junho/2009


A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM

ser um crime hediondo não é o bastante para


3. A proteção da liberdade transformar a prisão temporária em preventiva,
acrescentou o ministro. Marco Aurélio disse que
Decerto que os ditames constitucionais o Judiciário não pode basear suas decisões em
“liberdade provisória, presunção de inocência eventuais repercussões negativas perante a socie-
etc.” embasam a proteção da liberdade humana. dade. Segundo o ministro, “julgar não pode ser
Já anotamos em outra oportunidade o confundido com justiçar.” Antes de tentarem o
registro de Isaiah Berlin5 dos “mais de 200 sen- habeas corpus no STF, os advogados de Teixeira
tidos dessa palavra protéica”, liberdade. Entre protocolaram um pedido semelhante no Superior
esses vários sentidos, Oppenheim6 usa o termo Tribunal de Justiça (STJ), que foi rejeitado. O
liberdade pessoal ou interpessoal, aproximando juiz foi afastado do cargo em março, após o
a liberdade social ao conceito de “liberdade surgimento de suspeitas contra ele. Teixeira foi
negativa” de Berlin: “a liberdade positiva de preso temporariamente em abril. Também em
auto-realização e a liberdade negativa de não- abril, o juiz e o coronel da Polícia Militar Walter
interferência”; tudo, evidentemente, dentro
Gomes Ferreira foram indiciados no inquérito
de um contexto social e político do Estado de
do Tribunal de Justiça do Espírito Santo sobre o
Direito, ou seja, num Estado — sociedade po-
assassinato, por homicídio qualificado mediante
liticamente organizada — onde existem leis e
pagamento, crime hediondo e corrupção passiva.
no qual, diz Lafer7, “a liberdade adquire, como
Em maio, a prisão do juiz foi transformada em
ensina Montesquieu, uma objetividade e pode
preventiva.”8
ser definida como ‘le droit de faire tout ce que
les lois permettent’” — o que leva ao sentido do Repercutirá, certamente, na sociedade, o
lícito, conforme Bobbio, daquilo que “não sendo fato de tratar-se de crime hediondo e a possibi-
nem comandado, nem proibido, é permitido.” lidade de responder em liberdade ao processo,
Esta é a liberdade protegida pela Consti- circunstância processual que o cidadão comum
tuição, a liberdade do indivíduo integrado na desconhece.
sociedade, jurídica e politicamente. O processo não deve significar o mero
conjunto de atos, passo a passo realizados, como
finalidade em si — o processo se constitui no
4. Um caso penal veículo dos direitos de réus e de vítimas e da
realização da Justiça, tarefa pela qual o Estado
STF liberta juiz acusado de matar colega se substitui ao ofendido — daí a presença ma-
no ES. “O Juiz Antônio Leopoldo Teixeira, jestática do Poder Judiciário.
suspeito de envolvimento com o assassinato
Derivado do latim processus, de procedere,
do colega Alexandre Martins de Castro Filho,
o processo exprime a ação de proceder, ou ação
ocorrido em março de 2003 no Espírito Santo,
conseguiu uma liminar no Supremo Tribunal Fe- de prosseguir, a seqüência de atos, que devem ser
deral (STF), que lhe garante o direito de respon- executados, na ordem preestabelecida, para que
der em liberdade ao processo. Autor da decisão se investigue e solucione a pretensão submetida
favorável a Teixeira, o ministro do STF Marco à tutela jurídica, a fim de que seja satisfeita, se
Aurélio de Mello concluiu que não existiam procedente, ou não, se injusta ou improcedente9.
fundamentos suficientes para a manutenção da Processus = marcha, progresso; na acep-
prisão preventiva do juiz. O fato de o assassinato ção específica causa10, tem finalidade pública e
5
Dois conceitos de liberdade. in Limites da Utopia. São Paulo: Cia. das Letras, 1991; pp. 133 e ss. Berlin detém-se em dois desses sentidos: liberdade
individual ou liberdade institucional, de sentido “negativo”, área de não-interferência e o sentido político ou “sentido positivo”, de auto-determinação.
6
OPPENHEIM, Felix E. Conceptos políticos. Uma reconstrucción. Madrid: Tecnos, 1987; pp. 48,68.
7
LAFER, Celso. Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980; pp. 13 e ss.
8
O Estado de São Paulo, 6/7/2005; p. C3.
9
DE PLACIDO E SILVA. Dicionário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
10
J. M. OTHON SIDOU. Diccionario Jurídico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 165-169, junho/2009 167


GARCIA, M.

visa, segundo Chiovenda11, “a atuação da lei” Estabelecer o ponto de equilíbrio preciso


mediante a sentença do juiz. Em todos os litígios entre esses dois pólos de interesse público con-
há sempre uma norma legal inobservada e a siste exatamente a tarefa do intérprete, atento,
sentença “declara sempre a vontade concreta da porém, ao entendimento do cidadão comum e,
lei, e é aplicando esta vontade da lei, garantin- por consequência, à repercussão social das suas
do-lhe a eficácia, que a sentença protege, por via conclusões.
de conseqüência, o direito subjetivo da parte.”
Francesco Carnelutti12 sustenta também
que a finalidade imediata do Processo Civil é “a 5. O cidadão comum e a
justa composição da lide”, isto é, a composição repercussão social
da lide de acordo com a lei. É erro afirmar-se,
diz ele, que o processo funciona no interesse das O ato de interpretar, atribuir significado à
partes: que seja dada razão a quem tenha não é norma (Kalinowski) a fim de que se possibilite
um interesse das partes, mas um interesse geral.” a sua aplicação ao caso concreto, envolve a pré-
compreensão do intérprete15 e toda uma teoria
Esse interesse geral encontra-se nos prin- de interpretação, métodos e formas de atuação,
cípios fundamentais que entrelaçam o sistema até a norma de decisão: “Isto posto, decido: (...)”
processual consubstanciando o Estado de Direito
Em toda essa operação, contudo, deve exis-
e, conforme sublinha Ada P. Grinover13, “o siste-
tir um momento de indagação: como o homem
ma unitário do ordenamento jurídico, acentuando
comum, ignorante das teorias e dos métodos,
o vínculo entre Constituição e processo: “é esse
veria esta questão?
o caminho, ensina Liebman, que transformará o
processo, de simples instrumento de justiça, em Contudo, não basta que a interpretação
garantia da liberdade.” seja juridicamente correta, devendo ser também
socialmente aceitável.
Daí que o processo não se demonstra
apenas instrumento técnico senão que contém Häberle16, a propósito da interpretação da
norma constitucional, enfatiza bem a circuns-
a essência do jurídico: veículo da afirmação do
tância de uma Constituição (a lei) dirigida à
Direito.
cidadania: “É verdade que o processo político é
E “não apenas instrumento técnico, ressalta um processo de comunicação de todos para com
Ada P. Grinover, mas sobretudo ético.” São dois todos, no qual a teoria constitucional deve tentar
pólos de atenção que se instauram: “trata-se, na ser ouvida, encontrando um espaço próprio e
expressão de Couture, de fazer com que o direito assumindo sua função enquanto instância crítica.
não fique à mercê do processo, nem que venha a (...) A teoria constitucional democrática aqui
sucumbir por ausência ou insuficiência deste.” enunciada tem também uma peculiar responsa-
Por outro lado, afirma ainda a mesma pro- bilidade para a sociedade aberta dos intérpretes
cessualista: “não há liberdades públicas senão da Constituição.
quando se disponha de meios jurídicos que im- (...) Todos estão inseridos no processo de
peçam seu desrespeito e esses meios se exercem interpretação constitucional, até mesmo aqueles
através da função jurisdicional.”14 que não são diretamente por ela afetados. Quanto
11
Instituzioni di Diritto Processuale Civile n. 11. Apud GABRIEL DE REZENDE FILHO, Curso de Direot Processual Civil. São Paulo: Saraiva,
1952; p. 19, n. 17.
12
Sistema Del Diritto Processuale Civile n. 76. Apud GABRIEL DE REZENDE FILHO, op. cit., p. 20.
13
Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky, 1973; p. 4.
14
Apud ADA PELLEGRINI GRINOVER. Op. cit., pp. 6-7.
15
“O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão que vai permitir-lhe contemplar a norma desde certas expectativas,
fazer-se uma idéia do conjunto e elaborar um primeiro projeto necessitado, ainda, de comprovação, correção e revisão mediante uma análise mais
profunda, até que, como resultado da progressiva aproximação à ‘coisa’ por parte dos projetos em cada caso revisados, a unidade de sentido fique
claramente fixada”. (KONRAD HESSE. La interpretación constitucional. In Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionais, 1983; p. 44. Tradução livre da Autora).
16
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio A Fabris Editor, 1997; pp. 55, 32.

168 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 165-169, junho/2009


A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM

mais ampla for, do ponto de vista objetivo e me- Torna-se necessário, portanto, que os indi-
todológico, a interpretação constitucional, mais víduos respondam pelos seus atos integralmente,
amplo há de ser o círculo dos que dela devam na proporção da sua gravidade e com indenização
participar. civil dos danos causados — tal como a Consti-
A unidade da Constituição surge da con- tuição consagrou a indenização de dano moral;
jugação do processo e das funções de diferentes que as penas sejam cumpridas na sua inteireza;
intérpretes.” que as formalidades processuais não se sobrepo-
O caráter, sobretudo educativo, que a pena nham à satisfação dos direitos, à realização da
deve caracterizar, envolve toda a sociedade: Justiça, atentando-se para o cidadão comum ao
escapa dos autos, para repercutir positiva ou qual, igualmente, a decisão judicial é dirigida,
negativamente perante os cidadãos comuns, de de modo educativo e projetivo, repercutindo por
toda idade, de toda classe social. seu intermédio na sociedade, por inteiro.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 165-169, junho/2009 169


170 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009
Artigo

A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE


CONTRA OS ANIMAIS

Paulo Affonso Leme Machado* RESUMO: O artigo traz considerações a Lei


11.794 de 08/10/2008, a qual visa a dar eficácia
ao disposto no artigo 225§1º, VII da Constitui-
ção Federal no sentido da proteção da fauna e
da interdição da prática de crueldade contra os
animais. Observa que mencionada lei poderia ter
previsto a utilização de um procedimento asse-
melhado ao do estudo prévio de impacto ambien-
tal a fim de viabilizar a aplicação dos princípios
de prevenção e precaução para evitar a crueldade
contra os animais, uma vez que, se permitiria a
análise caso a caso, da real necessidade de um
animal ser sacrificado na realização de atividades
de ensino e pesquisas científicas.
A lei trouxe a criação de órgãos para administrar
as atividades em que se utilizem animais, porém
apresentando limitações em sua estruturação,
como por exemplo, a de limitar a represen-
tação da sociedade civil em sua composição,
desconsiderando a possibilidade de serem obti-
das decisões imparciais e em consonância com
pensamento da sociedade.
Palavras-chave: Animais. Crueldade. Proteção.

ABSTRACT: The article brings considerations


on the law n. 11,794 of 10/08/2008, which aims
at to give effectiveness to the article 225 1, VII
of the Federal Constitution in the direction of
protection of the fauna and the interdiction of
the cruel practices against animals. It observes
that the mentioned law could have provided the
use of a procedure resembling to the previous

*
Professor na Universidade Metodista de Piracicaba. Autor do livro Direito Ambiental Brasileiro (16. ed.). Professor Convidado na Universidade
Ecológica de Bucareste (Romênia) – 2008. Prêmio Internacional de Direito Ambiental “Elizabeth Haub” (1985).

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 171-174, junho/2009 171


MACHADO, P. A. L.

study of environmental impact in order to make alheio. A Constituição Federal, ao impedir que
possible the application of the prevention and os animais sejam alvo de atos cruéis, supõe que
precaution principles and to prevent the cruelty esses animais tenham sua vida respeitada. O
against animals, since it would allow the analysis texto constitucional não disse expressamente
in a case by case basis, of the real necessity of que os animais têm direito à vida, mas é lógico
an animal to be sacrificed in the accomplishment interpretar que os animais a serem protegidos
of activities of education and scientific research. da crueldade devem estar vivos, e não mortos.
The law brought the creation of bodies to manage A preservação da vida do animal é uma tarefa
the activities in which animals are used, present- constitucional do Poder Público, não se podendo
ing however limitations in its structuration, as causar a sua morte, sem uma justificativa expli-
for example, to limit the representation of the citada e aceitável.
society in its composition, not considering the A Constituição Federal não proibiu que
possibility of receiving impartial decisions and a alimentação humana seja carnívora. Ao não
in tune with societys thoughts. proibir a alimentação carnívora faz-se uma
Keywords: Animals. Cruelty. Protection. pressuposição de que tal hábito seja ditado por
uma implícita necessidade. É um posicionamento
que tem sofrido críticas, mas o sistema vegeta-
riano não tem um acolhimento constitucional.
1. A Constituição Federal de 1988 e
Entretanto, mesmo os animais que são abatidos
a proteção da vida dos animais
para fins alimentícios, não podem ficar sujeitos
à crueldade.
Preceitua a Constituição Federal: § 1º Para
assegurar a efetividade desse direito, incumbe A questão que o exame da Lei n. 11.794/2008
ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a suscita é a da necessidade ou não de os animais
flora, vedadas na forma da lei, as práticas que serem utilizados para fins de ensino e para fins
coloquem em risco sua função ecológica, pro- de pesquisa.
voquem a extinção de espécies ou submetam os
animais à crueldade.
2. O crime do art. 32 da Lei
Os animais fazem parte da fauna e, portan-
to, incumbe ao Poder Público protegê-los (art.
9.605/1998
225, § 1º, VII). Essa proteção como dever geral
A Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998,
independe da legislação infra-constitucional.
especificamente o art. 32, prevê como crime:
Três tipos de práticas ficaram proibidas e essas “Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou
vedações terão sua maior eficácia “na forma da mutilar animais silvestres, domésticos ou domes-
lei”, ainda que a Constituição Federal já atue a ticados, nativos ou exóticos: pena: detenção, de 3
partir de seu próprio texto. (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º - incorre
A Constituição Federal determinou que nas mesmas penas quem realiza experiência do-
estão vedadas as práticas que submetam os ani- lorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para
mais à crueldade. O Supremo Tribunal Federal fins didáticos ou científicos, quando existirem
vem decidindo, com admirável coerência, pela recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada
proteção dos animais, em casos que se tornaram de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se ocorre
paradigmáticos, como a “farra do boi”, no Estado morte do animal.
de Santa Catarina e a decretação da inconstitu- A experiência em animal vivo que provo-
cionalidade de leis estaduais que permitiram que dor ou manifeste crueldade, nas atividades
rinhas de galos. de ensino e nas atividades científicas, é crime,
Uma das concepções sobre a crueldade quando existirem recursos alternativos. Assim,
mostra-a como a insensibilidade que enseja ter a obrigação legal é a de não ser cruel e nem
indiferença, ou até prazer, com o sofrimento provocar dor nos animais, mesmo no ensino e

172 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 171-174, junho/2009


A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS

na pesquisa. Se existir forma de pesquisar ou ambiente, com proteção constitucional. No art.


de ensinar sem a utilização de animais, através 1º da Lei é feita a distinção de que os animais
de sua mutilação ou de seu abuso, passa a ser serão usados para atividades educacionais e para
criminosa a vivissecção. atividades de pesquisa.
O uso os animais para fins educacionais fica
limitado a estabelecimentos de ensino superior
3. Lei n. 11.794, de 8 de outubro de e a estabelecimentos de educação profissional
2008. técnica de nível médio da área biomédica. Por-
tanto, nenhum experimento pode ser feito em
Os legisladores, e os que colaboraram na outros tipos de escolas que não os expressamente
elaboração dessa Lei, não souberam dar a devida previstos na lei.
eficácia à Constituição da República no sentido A Lei, em seu art.14, § 3º afirma: “Sempre
da proteção da fauna e da interdição da prática que possível, as práticas de ensino deverão ser fo-
da crueldade contra os animais. É incrível que a tografadas, filmadas ou gravadas, de forma a per-
Lei 11.794/2008 não tenha utilizado do estudo mitir sua reprodução para ilustração de práticas
prévio de impacto ambiental, ou de método que futuras, evitando-se a repetição desnecessária de
se lhe assemelhe, para obrigar, em todos os ca- procedimentos didáticos com animais”. Deu-se
sos, a aplicação do princípio de prevenção e do muita liberdade para serem utilizados os animais
princípio da precaução para evitar a crueldade em práticas de ensino, ao dizer-se “sempre que
contra os animais. As alternativas (previstas possível”. É obrigação constitucional, principal-
pela Lei 9.605/1998), que substituam a utiliza- mente, dos professores não serem cruéis com os
ção de animais em ensino e pesquisa, deveriam animais e, portanto, devem procurar não repetir
ter sido objeto de uma obrigatória análise em as práticas que vão mutilar e/ou matar animais.
procedimento preventivo e não ficar à espera Os meios pedagógicos para esse fim existem,
de uma medida a ser decidida pelo Conselho na maioria das vezes. Se não existirem, caberá
Nacional de Controle de Experimentação Ani- ao professor provar a sua inexistência, antes de
mal – CONCEA. fazer a demonstração com os animais.
Não se trata somente de mitigar ou de Todo projeto de pesquisa científica ou
reduzir a dor do animal. Trata-se, muito mais, atividade de ensino será supervisionado por
de averiguar-se em procedimento formal, em profissional de nível superior, graduado ou pós-
cada caso, se o animal deve ou não ser sacrifi- graduado na área biomédica Esse profissional
cado. A ausência desse procedimento na Lei n. deve estar vinculado à entidade de ensino ou
11.794/2008 faz com que a mesma fique conta- pesquisa credenciada pelo CONCEA. O cre-
minada de uma notória inconstitucionalidade. denciamento ou o registro, também, poderá
É lamentável ter que afirmar-se que essa lei, ser exigido por órgãos estaduais, se legislação
mesmo procurando vestir-se de um aparente apropriada for instituída.
humanitarismo, torna a vida dos animais muito
instável e indefesa.
3.2 Os órgãos competentes criados pela Lei
11.974/2008 e a competência comum dos
3.1 O uso de animais para o ensino e para a artigos 23 e 24 da Constituição Federal
pesquisa
A tarefa de administrar as atividades de
Essa expressão é empregada no ementário. pesquisa e de ensino com relação aos animais
“Usar os animais” - não se pode deixar de afirmar diz respeito à função de proporcionar os meios
que é uma expressão crua e rude, ainda que se de acesso à cultura, à educação e à ciência, à
procure suavizar a expressão com o viés de uso proteção do meio ambiente e à preservação da
científico. Os animais não são coisas, como no fauna e da flora. Portanto, conforme o art. 23,
direito antigo, mas seres vivos, integrando o meio incisos V,VI e VII é uma tarefa concernente à

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 171-174, junho/2009 173


MACHADO, P. A. L.

competência comum da União, dos Estados, do Lei não fala se essas comissões fazem parte da
Distrito Federal e dos Municípios. própria estrutura da entidade – de pesquisa ou
A lei 11.974/2008 criou o Conselho Na- de ensino – que pretende fazer os experimentos
cional de Controle de Experimentação Animal ou as demonstrações. Daí se vê que em sendo
– CONCEA e as Comissões de Ética no Uso de possível que a Comissão integre a entidade
Animais – CEUAs. interessada, inexistente ou dificultada ficará sua
imparcialidade.
O art. 12 determina que “a criação ou a uti-
lização de animais para pesquisa ficam restritas, As Comissões de Ética do Uso de Animais
exclusivamente, às instituições credenciadas no – CEUAs serão integradas por I – médicos vete-
CONCEA”. A redação do artigo peca por dois rinários e biólogos; II – docentes e pesquisadores
equívocos: primeiro fala em criação de animais, na área específica e III – 1 (um) representante
quando na Lei não se tratou dessa matéria; segun- de sociedades protetoras de animais legalmente
do pretender dar uma característica exclusiva às estabelecidas no País, na forma do Regulamento
entidades credenciadas no Conselho Nacional de (art. 9º da Lei 11.794/2008). A composição foi
Controle de Experimentação Animal – só elas, prevista de forma astuciosa: os médicos veteriná-
com exclusividade de outras – poderão utilizar rios, os biólogos, os docentes e os pesquisadores
animais para pesquisa. Esse artigo 12 desco- não têm número estabelecido na Lei, mas para
nhece e marginaliza frontalmente o artigo 23 da a representação de uma parcela da sociedade
Constituição Federal. É preciso aclarar-se que civil – a sociedade protetora dos animais, já se
nem o Ministério da Ciência e Tecnologia e nem previu somente um voto na CEUAs. Assim, essa
o CONCEA detêm o monopólio administrativo sociedade protetora dos animais será sempre
da matéria atinente à criação e à utilização dos minoria perante os que forem integrantes da
animais para fins de ensino e de pesquisa. entidade interessada.
Quanto à competência legislativa sobre Não bastasse essa ausência de paridade
a matéria tratada na Lei n. 11.794/2008, tanto de setores dentro da Comissão de Ética – dado
sob o aspecto da proteção do meio ambiente, da importante na ciência da administração – fere-se
pesca, da caça, da fauna e da conservação da na- de morte a gestão democrática da Comissão de
tureza como com referência à educação, cultura Ética do Uso de Animais, pois “os membros das
e ensino a competência é concorrente, conforme CEUAs estão obrigados a resguardar o segredo
o art. 24 da Constituição Federal. Portanto, a industrial, sob pena de responsabilidade” (art.
matéria concernente ao uso dos animais não é 10º, §5º). Facilmente, tudo passará a ser carimba-
da competência privativa da União, podendo os do como segredo! É uma audácia acintosa desfi-
Estados legislar suplementarmente (art. 24, § 2º gurar uma Comissão que poderia tentar funcionar
da Constituição Federal). Os Estados poderão adequadamente, se tivesse possibilidade de ser
acrescentar exigências, instituir procedimento imparcial e de comunicar-se com a sociedade.
formal de prevenção do dano ambiental (animal),
criar também licenças ou autorizações e dar ou-
tras atribuições aos Comitês de Ética.

3.3. Comissões de Ética no Uso de Animais


– CEUAs: a imparcialidade dificultada e o
impedimento de informar
A Lei 11.794/2008 estabeleceu que “é con-
dição indispensável para o credenciamento das
instituições com atividades de ensino ou pesquisa
com animais a constituição prévia de Comis-
sões de Ética no Uso de Animais – CEUAs”. A

174 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 171-174, junho/2009


Discussão

FLORESTAS E JARDINS

Fernanda Alves Vieira1 As florestas e os jardins, quando compa-


rados, dão ensejo a uma forte reflexão sobre os
conflitos atuais que permeiam a seara ambiental.
Tal comparação leva-nos à seguinte meditação:
por que as florestas são tão exuberantes e impo-
nentes, enquanto nossos jardins são tão frágeis,
volúveis a qualquer variação climática, apesar de
ambos refletirem a vida que há na natureza?
Porque as florestas permitem que cada
árvore se desenvolva conforme sua espécie, in-
dependente do seu tamanho, da sua formosura,
da presença de flores ou simplesmente espinhos.
A floresta não seleciona o reino vegetal e reino
animal pela sua aparência, considerando critérios
de formosura, beleza, altura, espessura, aroma,
etc, mas sim pela sua essência, pela sua utilidade,
pela capacidade de servir uns aos outros na ca-
deia alimentar e na proteção do desenvolvimento
das espécies e de todo o ecossistema. Por isso
não achamos as florestas feias, nem sujas ou
bagunçadas, com várias folhas, caules, troncos,
galhos e ramos caídos no chão, precisando de
uma “limpeza”, “faxina” ou jardinagem; porque
para tudo isso existe uma função singular. Tudo
se torna importante para a existência e preserva-
ção da vida.
As florestas são renovadas com o tempo e
possuem a capacidade de revelar utilidade até
mesmo em cada galho que cai no solo. Não en-
tendemos os mistérios que elas reservam porque
estes são revelados apenas para seus íntimos
apreciadores, para aqueles que estão dispostos
a gastar tempo e pagar o preço que for para en-

1
Advogada especialista em Direito Ambiental pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; Ex-consultora jurídica da SUPRAM - Supe-
rintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável TM/AP, ligada ao COPAM – Conselho de Política Ambiental do Estado
de Minas Gerais.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 175


Discussão

tender e preservar a vida, nas suas mais diversas as florestas nunca apresentam a necessidade
formas de expressão. Mas mesmo sem entender de jardinagem. A capacidade que temos de
seus segredos, uma coisa ninguém pode negar: interferir na ordem natural da vida e manipular
que neste contexto, de permitir que cada espécie as formas de expressão desta, ao nosso próprio
se desenvolva conforme sua função existencial, prazer, nos leva ao engano de que conseguimos
sem levar em conta as disputas mesquinhas de reproduzir melhor as expressões da vida, as
beleza ou riqueza, tão comuns nas seleções fei- florestas como no exemplo dos jardins, do que
tas pelos seres humanos, quando consideram as elas próprias, se desenvolvendo naturalmente.
outras formas de vida; o reino vegetal e o reino Nosso engodo, como seres humanos, revela-se
animal juntos numa floresta proclamam a força, muito claro nessa comparação das florestas e dos
a exuberância, a imponência e a magnitude da jardins. Em nossas próprias escolhas de jardins
vida. Uma floresta é capaz de suportar tem- não conseguimos atrair a força, a exuberância, a
pestades, ventos fortes e todo tipo de variação imponência e a magnitude que há numa floresta.
climática, sem perder seu alicerce; podendo até Daí o fato de virem os ventos, as chuvas e as
mesmo ser devastada, porém não destruída, pelo tempestades e os arrasarem, ou, simplesmente o
poder que possui de ser regenerada. próprio ciclo de crescimento natural das plantas
Já os nossos jardins são frágeis e sucessí- torna-se suficiente para colocar em desordem a
veis a qualquer variação climática, por mais sim- nossa pretensa ordem, precisando deste modo,
ples que seja, porque eles são o reflexo do nosso de jardineiros. Tudo isso porque tolhemos as
modo de querer controlar a vida e a manifestação espécies de se desenvolverem conforme a sua
das espécies conforme nossa própria seleção. própria função existencial e, por conseguinte,
Estabelecemos critérios que são julgados por desrespeitamos o tempo e a ordem natural dos
beleza e valoração econômica ao considerarmos fatores. Eliminamos então o que a natureza tem
o reino vegetal e animal. Selecionamos espécies de mais belo – a fortaleza que existe na preser-
para o nosso próprio prazer, porque agrada aos vação da sua biodiversidade, tornando-se riqueza
nossos olhos, porque medimos pela aparência natural, morada e refúgio do reino animal.
e não pela essência. Nossos jardins são nossas
escolhas pessoais das flores que mais gostamos, Colhemos, assim, o espetáculo de apenas
das plantas que mais nos agradam. Assim como parte da vida, mas não toda a vida, que está acima
também selecionamos os animais de que mais do controle humano. Nossos jardins transformam
simpatizamos. Por isso que, ao cultivá-los, pre- o poder e a fortaleza da biodiversidade em mera
cisamos de serviços de jardinagem. Porque eles contemplação para os olhos humanos, sem a
precisam ser podados, nossas gramas cortadas magnitude da expressão da vida, refletindo, ainda
e o espaço onde se situam precisa estar limpo, que involuntariamente, a soberba e a vaidade
demonstrando a nossa tendência de uniformi- humana.
zação, de controle do que está “em ordem”, Essa ilustração retrata também o modo
“limpo”, e do que não está; selecionando aquilo como tratamos o nosso semelhante, quando
que a natureza já disse que deve ser múltiplo, pautamos as nossas escolhas pela aparência. Vis-
diverso, desenvolvido e respeitado conforme lumbramos com esta atitude um mundo carente
sua própria espécie. de essência, de caráter e de vida. Vida plena, tão
Isso explica o fato dos nossos jardins presente e contemplada nas mais diversas formas
precisarem sempre de cuidados, enquanto que de expressão existencial na natureza!

176 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

CRIMINALIDADE DO PODER,
POLÍCIA E IMPUNIDADE

Paulo Queiroz* Suponha que você tenha cometido um deli-


to grave, mas, estranhamente, detenha o poder de
designar e/ou supervisionar a autoridade que irá
investigá-lo, de modo que a você, o delinqüente,
pertence, em última análise, o comando final da
sua própria investigação. É evidente que isso é
um total absurdo, uma farsa.
Mas é exatamente isso que ocorre entre nós
no âmbito das investigações policiais destinadas
a apurar a criminalidade do poder. Com efeito,
compete a um servidor público hierarquicamen-
te inferior (Delegado de Polícia ou Delegado
Federal) investigar crimes praticados por seus
superiores hierárquicos (Presidentes, Ministros,
Governadores, Secretários de Estado) ou autori-
dades de que dependem, direta ou indiretamente,
como Deputados Federais/Estaduais e Prefeitos
municipais. Ou seja: as chamadas autoridades de
alto escalão acabam por investigar a si mesmos
por meio da designação e/ou monitoramento dos
seus investigadores. Dito de outro modo: no mo-
delo policial brasileiro, os investigados/crimino-
sos detêm o controle político das investigações,
apesar de não as presidirem formalmente.
Ora, é evidente que, em que pesem a
competência e boa fé da grande maioria, não
cabe esperar de um Delegado de Polícia, que
pretende fazer carreira, obter promoções, re-
moções etc., e também parecer bem aos olhos
de seus superiores, que investigue de forma
isenta infrações cometidas por aqueles de que
dependem hierarquicamente (salvo em casos
excepcionais e insignificantes), até porque os

*
Professor (UniCEUB) e Procurador Regional da República.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 177


Discussão

eventuais implicados poderão afastá-los a todo os inquéritos policiais, quando efetivamente


tempo. Cuida-se, portanto, de uma investigação instaurados, se arrastam anos a fio por meio de
comprometida desde a sua concepção, isto é, pedidos sucessivos de dilação de prazo; e quando
estruturalmente viciada, podendo pretextar a chegam a ser concluídos, não são realizadas a
perseguição de adversários políticos inclusive. tempo e modo as diligências indispensáveis e
E manter uma estrutura policial que depen- colhidas as provas necessárias à penalização dos
da hierárquica e diretamente do poder executivo, responsáveis. A isso se soma ainda a costumeira
além de implicar uma clara subversão da lógica morosidade dos tribunais de contas.
das investigações, constitui uma manobra para Por essas e outras é que ainda hoje a polícia
acobertar possíveis crimes de certas autoridades judiciária brasileira se limita a apurar, quase que
e assim lhes assegurar a impunidade. Quanto exclusivamente, crimes patrimoniais e similares
ao inquérito do “mensalão”, exceção à regra, (estelionato, furto, roubo), típica criminalidade
caberia lembrar que, além da extraordinária dos grupos socialmente excluídos, e, pois, mais
repercussão na imprensa, nele interveio o Mi- economicamente vulneráveis, deixando impune
nistério Público desde o primeiro momento, o a criminalidade do poder, apesar de bem mais da-
que nem sempre ocorre. nosa, a exigir o quanto antes a sua reestruturação,
Não é de surpreender, por isso, a descoberta quer autonomizando-a relativamente ao poder
na Bahia de mais de 300 (trezentos) procedi- executivo, quer (mais adequadamente) fazendo
mentos e inquéritos policiais envolvendo cerca integrar instituição independente a que está
de 30% dos 417 municípios baianos, que dizem vinculada finalisticamente: o Ministério Público.
respeito a prefeitos, vice-prefeitos e ex-prefeitos É pena que não tenhamos, no entanto,
(Cf. Correio Braziliense, 17 de fevereiro de um Congresso Nacional à altura de tão grandes
2008), sobre homicídio inclusive, os quais es- desafios, que, no mais das vezes, se perde na
tavam “esquecidos” numa sala da Secretaria de discussão de questões de somenos importância,
Segurança Pública desde 1988, todos fadados ao e que ora parece funcionar à semelhança de uma
reconhecimento inevitável da prescrição e, pois, Câmara de Vereadores de uma cidade atrasada
à impunidade dos criminosos. do interior, como uma espécie de anexo do exe-
O pior é que o ocorrido na Bahia é o que se cutivo, ora à semelhança de uma delegacia de
passa em todo o Brasil ordinariamente, se bem polícia, por meio de CPI’s pouco produtivas, e
que a estratégia do “esquecimento” costuma as- que cada vez mais perde espaço para o executivo
sumir forma mais sutil, pois mais freqüentemente e judiciário.

178 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

COLÓQUIO “LA EVOLUCIÓN DE LA


ORGANIZACIÓN POLÍTICO-CONSTITUCIONAL
DE AMÉRICA DEL SUR”
Marcelo Figueiredo* Minha primeira palavra é de agradecimen-
to. Agradeço o honroso convite formulado pelo
Instituto Iberoamericano de Derecho Constitu-
cional, o Centro de Estúdios Constitucionales de
Chile de la Universidad de Talca y la Asociación
Chilena de Derecho Constitucional, y el apoyo
del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la
Universidad Nacional Autônoma de México.

I) De 1964 a 1988:

Podemos dizer que a Constituição de 1988


inaugurou uma nova era no constitucionalismo
brasileiro rompendo com o ciclo autoritário que
dominou o Brasil de 1964 (data da revolução
militar que se implantou no país por mais de
vinte anos), a meados da década de 80.
As eleições dos Governadores em 1982
marcam o início do processo de abertura política
e institucional que culminou com a aprovação da
Emenda Constitucional número 26 (promulgada
em 27.11.1985), convocando os membros da Câ-
mara de Deputados e do Senado Federal para se
reunirem, em Assembléia Nacional Constituinte,
livre e soberana, no dia 01.02.1987, na sede do
Congresso Nacional.
Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada
a Constituição de 1988. No dizer de José Afonso
da Silva1, “um texto razoavelmente avançado. É
um texto moderno, com inovações de relevante
importância para o constitucionalismo brasileiro
e até mundial. Bem examinada, a Constituição
*
Diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP
1
Silva ,José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 29ª edição, 2006, São Paulo, Malheiros Editores, página 89 e 90.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 179


Discussão

Federal, de 1988, constitui, hoje, um documento O Estado brasileiro chegou ao fim do século XX
de grande importância para o constitucionalismo grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de
em geral. corrupção e sem conseguir vencer a luta contra a
Sua estrutura difere das constituições pobreza. Um Estado da direita, do atraso social,
anteriores. Compreende nove títulos, que cui- da concentração de pobreza. Um Estado que
dam: (1) dos princípios fundamentais; (2) dos tomava dinheiro emprestado no exterior para
direitos e garantias fundamentais, segundo uma emprestar internamente, a juros baixos, para a
perspectiva moderna e abrangente dos direitos burguesia industrial e financeira brasileira. Esse
individuais e coletivos, dos direitos sociais dos Estado, portanto, que a classe dominante brasi-
trabalhadores, da nacionalidade, dos direitos leira agora abandona e do qual quer se livrar, foi
políticos e dos partidos políticos; (3) da organi- aquele que a serviu durante toda a sua existência.
zação do Estado, em que estrutura a federação Parece, então, equivocada a suposição de que a
com seus componentes; (4) da organização dos defesa desse Estado perverso, injusto e que não
poderes: Poder Legislativo, Poder Executivo e conseguiu elevar o patamar social no Brasil seja
Poder Judiciário, com a manutenção do sistema uma opção avançada, progressista, e que o ali-
presidencialista, derrotado o parlamentarismo, nhamento com o discurso por sua desconstrução
seguindo-se um capítulo sobre as funções essen- seja a postura reacionária.
ciais à Justiça, com ministério público, advocacia As reformas econômicas brasileiras en-
pública (da União e dos Estados), advocacia volveram três transformações estruturais que se
privada e defensoria pública; (5) da defesa do complementam, mas não se confundem. Duas
Estado e das instituições democráticas, com delas foram precedidas de emendas à Consti-
mecanismos do estado de defesa, do estado de tuição, ao passo que a terceira se fez mediante
sítio e da segurança pública; (6) da tributação e a edição de legislação infraconstitucional e a
do orçamento; (7) da ordem econômica e finan- prática de atos administrativos2.
ceira; (8) da ordem social; (9) das disposições A primeira transformação substantiva da
gerais. Finalmente, vem o Ato das Disposições ordem econômica brasileira foi a extinção de
Transitórias. Esse conteúdo, distribui-se por 245 determinadas restrições ao capital estrangeiro.
artigos na parte permanente, e mais 73 artigos na A Emenda Constitucional número 6, de 15.08.95,
parte transitória, reunidos em capítulos, seções suprimiu o artigo 171 da Constituição, que trazia
e subseções” a conceituação de empresa brasileira de capital
nacional e admitia a outorga a elas de proteção,
benefícios especiais e preferências. A mesma
II) A reforma do Estado no Brasil emenda modificou a redação do art. 176, caput,
para permitir que a pesquisa e lavra de recursos
Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, minerais e o aproveitamento dos potenciais de
ao longo da década de 90, o tamanho e o papel energia elétrica sejam concedidos ou autorizados
do Estado passaram para o centro do debate ins- a empresas constituídas sob as leis brasileiras,
titucional. E a verdade é que o intervencionismo dispensada a exigência do controle do capital
estatal não resistiu à onda mundial de esvazia- nacional. Na mesma linha, a Emenda Consti-
mento do modelo no qual o Poder Público e as tucional número 07, de 15.08.95, modificou o
entidades por ele controladas atuavam como art.178, não mais exigindo que a navegação de
protagonistas do processo econômico. cabotagem e interior seja privativa de embar-
É a lição de Luís Roberto Barroso que ado- cações nacionais e a nacionalidade brasileira
tamos e passamos a transcrever por sua excelente dos armadores, proprietários e comandantes e,
sistematização do fenômeno das reformas. O mo- pelo menos, de dois terços dos tripulantes. Em
delo dos últimos vinte e cinco anos se exaurira. seguida, foi promulgada a Emenda Constitu-
2
Segundo Barroso, Luís Roberto Temas de Direito Constitucional, Tomo II, Editora Renovar, Rio de Janeiro, 2003, página 274 e seguintes.

180 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

cional número 36, de 28.05.02, que permitiu a atividades econômicas como as que prestam
participação de estrangeiros em até trinta por serviços públicos e (b) a concessão de serviços
cento do capital das empresas jornalísticas e de públicos a empresas privadas. No plano federal
radiodifusão. inicialmente foram privatizadas empresas dos
A segunda linha de reformas que modifica- setores petroquímico, siderúrgico, metalúrgico
ram a feição da ordem econômica brasileira foi a e de fertilizantes, seguindo-se a privatização da
chamada flexibilização dos monopólios estatais. infra-estrutura, envolvendo a venda da empresa
A Emenda Constitucional número 5, de 15.08.95, com a concomitante outorga do serviço público,
alterou a redação do § 2º do art. 25, abrindo a como tem se passado com as empresas de energia
possibilidade de os Estados-membros conce- e telecomunicações e com rodovias e ferrovias.
derem às empresas privadas a exploração dos Acrescente-se, em desfecho do levanta-
serviços públicos locais de distribuição de gás mento aqui empreendido, que, além das Emendas
canalizado, que, anteriormente, só podiam ser de- Constitucionais números 05, 06, 07, 08 e 09,
legados a empresa sob controle acionário estatal. assim como na Lei nº 8.031/90, os últimos anos
O mesmo se passou com relação aos serviços de foram marcados por uma fecunda produção
telecomunicações e de radiodifusão sonora e de legislativa em temas econômicos, que inclui
sons e imagens. É que a Emenda Constitucional diferentes setores, como energia, telecomuni-
número 08, de 15.08.95, modificou o texto dos cações, criação de agências reguladoras, mo-
incisos XI e XII, que só admitiam a concessão dernização de portos, concessões e permissões,
a empresa estatal. E, na área do petróleo, a dentre outros.
Emenda Constitucional número 9, de 09.11.95, Afirma Barroso que a redução expressiva
rompeu, igualmente, com o monopólio estatal, das estruturas públicas de intervenção direta na
facultando à União Federal a contratação com ordem econômica não produziu um modelo que
empresas privadas de atividades relativas à pes- possa ser identificado com o de Estado mínimo.
quisa e lavra de jazidas de petróleo, gás natural Pelo contrário, apenas deslocou-se a atuação
e outros hidrocarbonetos fluídos , a refinação do estatal do campo empresarial para o domínio
petróleo nacional ou estrangeiro, a importação, da disciplina jurídica, com a ampliação de seu
exportação e transporte dos produtos e derivados papel na regulação e fiscalização dos serviços
básicos de petróleo. públicos e atividades econômicas. O Estado,
A terceira transformação econômica de re- portanto, não deixou de ser um agente econômico
levo- a denominada privatização- operou-se sem decisivo. Para demonstrar a tese, basta examinar
alteração do texto constitucional, com a edição a profusão de textos normativos editados nos
da Lei número 8.031, de 12.04.90, que instituiu últimos anos.
o Programa Nacional de Privatização, depois De fato, a mesma década de 90, na qual
substituída pela Lei número 9.491, de 9.09.97, foram conduzidas a flexibilização de monopó-
Entre os objetivos fundamentais do programa lios públicos e a abertura de setores ao capital
incluíram-se, nos termos do artigo 1º, incisos I e estrangeiro, foi cenário da criação de normas de
IV: (i) reordenar a posição estratégica do Estado proteção ao consumidor em geral e de consumi-
na economia, transferindo à iniciativa privada dores específicos, como os titulares de planos
atividades indevidamente exploradas pelo setor de saúde, os alunos de escolas particulares e os
público; (ii) contribuir para a modernização do clientes de instituições financeiras. Foi também
parque industrial do País, ampliando sua compe- nesse período que se introduziu no país uma
titividade e reforçando a capacidade empresarial política específica de proteção ao meio ambiente,
dos diversos setores da economia. limitativa da ação dos agentes econômicos, e se
O programa de desestatização tem sido estruturou um sistema de defesa e manutenção
levado a efeito por mecanismos como (a) aliena- das condições de livre concorrência que, embo-
ção, em leilão nas bolsas de valores, do controle ra longe do ideal, constituiu um considerável
de entidades estatais, tanto as que exploram avanço em relação ao modelo anterior. Nesse

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 181


Discussão

ambiente é que despontaram as agências regu- ção republicana e presidencialista em detrimento


ladoras da atuação estatal. à monarquia constitucional.
À ocasião, a decisão dos constituintes
de levar a opção entre sistemas de governo a
III) O sistema de governo3 e os plebiscito foi altamente questionável, pois essa
partidos políticos consulta serve quando o assunto a ser votado é
redutível a quesitos simples, para resolver com
a) O sistema de governo e temas correlatos o “sim” ou “não”, nunca para assuntos extrema-
Com o regime autoritário instalado em mente complexos, sobre cujas opções divirjam, e
1964, afastou-se qualquer perspectiva de recon- muito, os próprios especialistas, como é o caso de
siderar o modelo parlamentarista para o país, sistema de governo. Os delegados não quiseram
pois o pensamento militar rejeitava a idéia de um usar de sua delegação e se omitiram de decidir,
poder compartilhado com o parlamento. Aliás, devolvendo a responsabilidade ao mandante. O
um regime centrado no parlamento era a antítese plebiscito, realizado em setembro de 1993, deu a
do que os então governantes defendiam. vitória ao presidencialismo, por ampla margem.
A redemocratização deu alento aos par- Por que se deu a recusa ao parlamentaris-
lamentaristas, que se animaram com a convo- mo? São várias as causas, são fortes os precon-
cação da Assembléia Nacional Constituinte. A ceitos relativos a esse sistema, que levam à sua
comissão constituída para elaborar o anteprojeto previsível rejeição. Se, no plano da elite, logra
da nova Carta foi presidida por Afonso Arinos o parlamentarismo razoável apoio, seja em sua
de Mello Franco, um conhecido defensor do forma mais pura, seja, crescentemente, sob a
parlamentarismo. forma dos modelos híbridos, esse apoio não se
Na versão final do anteprojeto, prevaleceu repete na opinião pública.
a idéia de parlamentarismo dual. O presidente da Acredita-se que a tarefa de desenvolver o
república seria eleito diretamente, por maioria país, modernizá-lo, romper os bloqueios a seu
absoluta, para mandato de seis anos. Caber-lhe- progresso e desenvolvimento, requeira concen-
ia indicar o presidente do Conselho de Minis- tração de poder em um líder carismático, ungido
tros, após consulta às correntes partidárias que pelo mandato popular para mudar o sistema.
compõem a maioria do Congresso Nacional. O Não se vê, no parlamentarismo, liderança forte.
Presidente da República, por sua vez, poderia Parece um sistema de poder muito diluído, um
exonerar por iniciativa própria o presidente do governo de deputados que fazem e desfazem
Conselho, que também poderia cair por moção governos a seu livre critério. Os parlamentares
de censura ou recusa de confiança votada pela representariam, em contraposição de interesses
maioria absoluta da Câmara de Deputados. circunscritos, paroquiais, em contraposição aos
Neste anteprojeto, previa-se ainda o gabi- presidentes, supostamente mais sensíveis aos
nete duplamente responsável, perante a Câmara, interesses modernos, do país como um todo, pelo
mas também perante o Presidente da República. fato mesmo de se elegerem, em contraposição
Não se contemplavam decretos –leis, medidas aos deputados e senadores, na circunscrição
provisórias ou medidas de urgência. nacional.
Entretanto a opção final da Assembléia Junte-se a tais percepções o desprestígio
Nacional Constituinte foi pelo sistema presi- do Poder Legislativo perante a opinião pública,
dencialista. Prevista na mesma Constituição, problema, aliás, de ordem mundial nas democra-
realizou-se um plebiscito, cinco anos após a sua cias contemporâneas. O governo parlamentarista
promulgação, onde o eleitorado confirmou a op- nos prenderia, portanto, de acordo com essas
3
Nesta seção utilizaremos a argumentação e as conclusões (que encampamos) de Antônio Octávio Cintra, retiradas do seu texto, “O sistema de
Governo no Brasil”, Capítulo 2, da obra, “Sistema Político Brasileiro”- Uma introdução, 2ª edição, Organizada por Lúcia Avelar e Antônio Octávio
Cintra, Konrad Adenaur Stiftung e Editora Unesp, página 59 a 77.

182 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

percepções, ao atraso, aos poderes oligárquicos da distribuição de pastas ministeriais entre os


regionais e à inoperância institucional. partidos de apoio ao governo.
São percepções enganosas e, no seu Os dados de Amorim Neto indicam que o
conjunto, deixam transparecer exigências con- governo de Fernando Henrique Cardoso teria
flitantes sobre nosso sistema de governo presi- estado muito mais próximo de um governo
dencial. Um presidente portador de uma missão de coalizão de estilo europeu do que os de
revolucionária, demiurgo, esbarraria no sistema Fernando Collor e Itamar Franco. Ou seja, o
político cheio de pontos de bloqueio à tomada de presidencialismo de coalizão não constitui um
decisões e, sobretudo, à implementação delas. O modelo estático, mas sim uma situação variável,
presidente brasileiro tem de compor uma base conforme, sobretudo, para esse autor, o grau de
de sustentação em um congresso pluripartidário, coalescência atingido.
sem uma agremiação majoritária suficiente, Estudos mais recentes, do próprio Amorim
sequer, para garantir a aprovação de leis ordiná- Neto e de outros autores, já incorporam os dados
rias. As decisões exigentes de quorum especial do governo Lula. Amorim Neto observa terem os
podem dar, a cada parceiro da coalizão, mesmo ministérios organizados, desde o governo Sarney
às pequenas agremiações, poder de barganha até o de Lula, sido arranjos multipartidários com
incomensurável em votações conflituosas. Ade- maior ou menor grau de fragmentação e hetero-
mais, o Legislativo é bicameral, com o Senado geneidade ideológica. Mas o de Lula e o que mais
equiparado à Câmara em suas competências e ampliou o número de partidos, chegando a nove.
significando mais uma instância legislativa a Quanto à heterogeneidade ideológica, apenas o
superar na aprovação de um projeto. segundo e o terceiro de Collor dela escaparam,
Há um federalismo em que podem prevale- por se concentrarem mais à direita. Contudo, no
cer interesses oligárquicos regionais nos estados caso do governo Lula, como acentua Fabiano
menos desenvolvidos. Ademais, a organização Santos, essa heterogeneidade aumentou bastante.
do Judiciário é descentralizada e o Ministério Há ainda que considerar o poder do Pre-
Público tem ampla autonomia. sidente da República para editar medidas pro-
O presidencialismo brasileiro, segundo visórias. Santos discute as conseqüências dessa
Abranches e Cintra4 trabalha em um sistema de prerrogativa sobre o padrão de relação entre o
composição partidária nos Ministérios. Se nos Executivo e o Legislativo. Se os presidentes
regimes parlamentaristas europeus se tecem as optam pelo governo de coalizão, sendo os pos-
coalizões segundo a regra da proporcionalidade, tos principais distribuídos proporcionalmente
dando-se a cada partido uma fatia do ministério entre os partidos de apoio, tentarão, ao editar as
aproximadamente proporcional a seu peso na medidas provisórias (MPs), observar o interesse
base parlamentar, no caso brasileiro a partilha da maioria governativa e tentarão governar por
dos postos ministeriais nem sempre segue essa meios ordinários. É o caso de Cardoso, com
norma, por terem os presidentes a faculdade gabinetes coalescentes e ideologicamente menos
constitucional de nomear livremente seus minis- heterogêneos, que permitiram que os textos das
tros. Entretanto, o conjunto, a correspondência MPs, nas diversas reedições, sofressem alte-
entre o peso parlamentar dos partidos e sua re- rações negociadas, mas não o de Collor, cujo
presentação ministerial traria solidez legislativa ministério não era inclusivo e que abusou de
ao gabinete. Quanto maior essa correspondência, MPs originais. No governo Collor, o Congresso
tanto maior seria a disciplina dos partidos inte- acenou, num certo ponto, com a possibilidade
grantes do gabinete no apoio às votações de in- de uma lei disciplinadora do uso das MPs pelo
teresse do Executivo. A medida estatística dessa Executivo, de que resultou o arrefecimento
correspondência é o índice de coalescência, tanto de seu uso. No segundo mandato de Cardoso,
maior quanto mais justa a proporcionalidade aprovou-se a Emenda Constitucional 32/2001,
4
Ob.Cit, Cintra, página 67.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 183


Discussão

que impõe nova disciplina ao uso da medida a hipótese de redução de sua representação.
provisória, ao limitar-lhe a reedição a uma só A grande desigualdade regional, dada a força
vez. A não deliberação sobre a MP, decorridos de São Paulo na Federação, dá peso político
quarenta e cinco dias de sua publicação, leva-a ao aos argumentos dos que defendem uma repre-
regime de urgência, sob o qual ficam “sobreesta- sentação, na Câmara, dos Estados menores e
das, até que se ultime a votação, todas as demais menos desenvolvidos, que não seja estritamente
deliberações legislativas da Casa em que estiver proporcional a suas populações. Considera-se
tramitando”. É o chamado “trancamento de pau- insuficiente a compensação federativa obtida no
ta”. Como mostra Santos, em vez de diminuir o Senado, que, por ser ele a “Câmara dos Estados”,
uso das MPs, passou-se a editar mais, e maior dá a todos eles o mesmo peso na representação,
número delas passou a ser rejeitado. independentemente de sua população5.
Por fim, em relação à composição da
“classe política”, são 513 deputados federais.
Em teoria, a Câmara de Deputados representaria b) Os partidos políticos6
o povo, cabendo ao Senado a representação dos O Brasil é uma federação com 26 estados
Estados. Não é bem assim, porém. Em primeiro e um Distrito Federal, com eleições diretas em
lugar, não há deputados nacionais, eleitos na cir- três níveis (federal, estadual e municipal). Tem
cunscrição do país como um todo, mas sim ban- eleições de dois em dois anos não totalmente
cadas estaduais de deputados federais, o que faz coincidentes, e as eleições municipais são de-
que estes também se vejam como representantes fasadas das eleições gerais. Para compreender
das unidades da Federação no plano nacional. o sistema partidário brasileiro atual, temos que
Em segundo lugar, mais importante, a buscar suas raízes no período pós- 1945. Nestes
representatividade popular da Câmara é em últimos quase 60 anos, o sistema partidário so-
parte invalidada por não se respeitar, na fixação freu dois “realinhamentos” forçados pelo regime
do tamanho das bancadas estaduais, a propor- militar, em 1965-1966 e em 1979-1980. Com o
cionalidade com o tamanho das populações retorno aos governos civis em 1985, o sistema
estaduais. Ao contrário, ao fixar um mínimo de partidário passou por uma grande expansão até
oito representantes por Estado, não importa quão 1993, quando se iniciou um certo “encolhimen-
reduzida sua população, e um máximo de setenta, to”. Mas, o sistema fragmentou-se de novo no
a Carta de 1988 apenas deu continuidade ao que final dos anos 90, com 18 partidos, elegendo
tem prevalecido em nossa história republicana. pelo menos um deputado em 1998 e 2002, e 21
Trata-se da desproporção entre representação e em 2006.
tamanho populacional das unidades da Federa- Diferentemente dos outros regimes milita-
ção e, consequentemente, a existência de pesos res no Cone Sul (Chile, Uruguai e Argentina), os
diferentes aos votos dos eleitores, contrária à generais – presidentes brasileiros não fecharam
regra democrática de “um homem, um voto”. o Congresso Nacional nem prescreveram os
Apesar de o problema estar muito claro no de- partidos políticos; mantiveram as eleições em
bate público sobre a matéria, basta compulsar intervalos regulares, embora com várias restri-
os Anais da Assembléia Nacional Constituinte ções autoritárias - num esforço para vender a
que elaborou a vigente Carta, para nos darmos imagem de uma “democracia relativa”. Assim,
conta de que a desproporcional distribuição de a transição (ou transação) para a democracia se
cadeiras entre os Estados passou a representar processou sem rupturas entre 1974 e 1985. Por
na prática, como que uma “cláusula pétrea” de essa razão, com a abertura do sistema partidário
nossa organização política. Os parlamentares e com a liberdade de organizar novos partidos
dos Estados sobre-representados não admitem (ou reorganizá-los), não ressurgiram os partidos
5
Conforme Cintra, Antonio Octávio e Lacombe, Marcelo Barroso “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política”,
Capítulo 6 da obra já citada, “Sistema Político Brasileiro”.. página 143 e seguintes.
6
Segundo Fleischer, David “Os Partidos Políticos”, Idem, página 303 e seguintes.

184 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

tradicionais do período anterior ao golpe militar baixas da América Latina. É é talvez especial-
de 1964- como reapareceram a Unión Cívica mente revelador observar que, no ano de 2002,
Radical e o Partido Justicialista na Argentina, a proporção de brasileiros que declaram não
os Blancos e Colorados no Uruguai e o Partido saber o que significa a democracia ou simples-
Democrata Cristão no Chile, com o fim dos seus mente não responderam à pergunta a respeito é
respectivos regimes militares. destacadamente mais alta que a dos nacionais
No período de 1945 a 1965, o Brasil chegou de todos os demais países latino-americanos,
a ter treze partidos representados no Congresso alcançando 63 por cento (em El Salvador, o
Nacional e dois médios e oito pequenos. Se con- segundo colocado, a proporção correspondente
siderarmos o período de 1980 a 1997, veremos não passa de 46 por cento).
um novo sistema partidário. Nos últimos cinco Tais constatações têm certamente a ver
anos do regime militar (1980-1985), manteve-se com a grande desigualdade social brasileira e
um pluripartidarismo moderado, com seis parti- seus reflexos nas deficiências educacionais do
dos e depois cinco. Com o retorno dos governos país, e pesquisas diversas mostram a clara cor-
civis (Sarney, 1985-1990; Collor, 1990-1982; relação positiva entre o apego à democracia (ou,
Itamar, 1992-1994; e F. H. Cardoso, 1995- 1998), em geral, a atenção e o interesse pela política e
modificou-se a legislação, o que facilitou a o ânimo participante e cívico) e a escolaridade
criação e o registro de legendas novas. Como ou a sofisticação intelectual geral dos eleitores.
conseqüência, em 1991, mais de quarenta par-
De qualquer forma, duas observações per-
tidos estavam registrados no Tribunal Superior
mitidas por outros dados merecem destaque por
Eleitoral (TSE), vinte dos quais representados
sua relevância. A primeira mostra o substrato
no Congresso. Com a nova Lei Orgânica dos
Partidos Políticos – LOPP, sancionada em agosto sociopsicológico com que aparentemente conti-
de 1995, anteciparam-se várias fusões entre 1993 nua a contar o populismo no Brasil, solapando
e 1996, com um certo encolhimento do sistema, a idéia de uma democracia capaz de operar
o que promoveu um pluralismo ligeiramente institucionalmente de forma estável: somente
mais moderado nas eleições de 1998 e 2002. entre os entrevistados de nível universitário não
Hoje temos aproximadamente 9 (nove) partidos se encontrava, nos dados em questão, a concor-
grandes e médios com projeção nacional. dância da ampla maioria com um item de claro
ânimo antiinstitucional, e mesmo autoritário,
Do ângulo do eleitorado, podemos acompa-
em que se desqualificavam os partidos políticos
nhar a análise de Reis7, para quem as estatísticas
e se afirmava que, em vez deles, o que o país
revelam o alheamento de grandes parcelas do
necessitava é “um grande movimento de uni-
eleitorado popular brasileiro perante a política
dade nacional dirigido por um homem honesto
e os assuntos públicos, alheamento este que se
e decidido”, abrindo assim uma margem para
liga com a tendência geral ao desapreço pela de-
mocracia. Pesquisas por amostragem realizadas líderes “fortes”.
em 2002 em 17 países latino-americanos pelo Esse tipo de mentalidade incrementa e
Latinobarômetro, instituição sediada em Santia- incentiva a adoção de programas assistencialis-
go do Chile, mostram o Brasil com o país com tas, como o implementado no governo Lula. O
menor proporção de respostas em que se aponta “bolsa família”, que atinge 11 milhões de pessoas
a democracia como preferível a qualquer outra (aproximadamente 40 milhões de eleitores),
espécie de regime (37 por cento). Não obstante serviu claramente como instrumento poderoso
certa recuperação relativamente a 2001, tam- de reeleição do Presidente, além dos resulta-
bém nas pesquisas de anos anteriores realizadas dos positivos obtidos no cenário econômico
pelo mesmo instituto as proporções brasileiras (baixa inflação, mais acesso ao crédito, menos
de apoio à democracia se situam entre as mais desemprego,etc).
7
Reis, Fábio Wanderley, “Dilemas da Democracia no Brasil”, São Paulo, Ob. Cit. Página 476 e seguintes.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 185


Discussão

O Supremo Tribunal Federal, com sua


IV - O Poder Judicial, Constitucional mais recente composição e principalmente em
e a Defesa dos Direitos razão da omissão legislativa sobre importantes
questões para a vida nacional — em especial
Fundamentais
no tocante a problemas políticos e de eficácia
Como sabemos o Estado Democrático dos direitos fundamentais —, vem se revelando
de Direito é a síntese histórica de duas idéias como um Tribunal com menos receio de assumir
originalmente antagônicas: democracia e cons- um papel politicamente ativo no exercício da
titucionalismo. Com efeito, enquanto a idéia função jurisdicional.
de democracia se funda na soberania popular, Como explica Gisele Cittadino,9 se o ati-
o constitucionalismo tem sua origem ligada à vismo judicial é mais favorecido nos países da
noção de limitação do poder. common law — onde se tem a criação jurispru-
A supremacia da Constituição e a jurisdi- dencial do direito e uma maior influência política
ção constitucional são mecanismos pelos quais do juiz —, nos países da civil law tal ativismo
determinados princípios e direitos, considerados também é adotado, especialmente em razão da
inalienáveis pelo poder constituinte originário, incorporação dos princípios ao texto constitu-
são subtraídos da esfera decisória ordinária dos cional e da fixação dos objetivos fundamentais
agentes políticos eleitos pelo povo, ficando pro- do Estado na Constituição.
tegidos pelos instrumentos de controle de cons- No Brasil, a referida autora menciona que
titucionalidade das leis e atos do poder público. o fortalecimento do ativismo judicial se deve,
Assim, a jurisdição em geral e a jurisdição principalmente, pela incorporação da linguagem
constitucional em particular8 fazem parte da do direito ao debate político e ao ordenamento
administração da justiça que tem como objetivo jurídico, com a emergência do movimento dos
específico a matéria jurídico-constitucional de direitos humanos, nos anos 70, combatendo
um Estado. o regime militar, a luta pela reconquista dos
O Direito prescrito pela Constituição de direitos políticos, na primeira metade dos anos
1988, em vez de manutenção, em muitas passa- 80, a participação, na segunda metade dos anos
gens postula uma transformação do status quo. 80, de setores organizados da sociedade civil no
A lei, sabemos, deixa de ser apenas a simples processo constituinte e as freqüentes denúncias,
reguladora de conflitos intersubjetivos e passa a a partir dos anos 90, das violações dos direitos
assumir também uma feição de um instrumento fundamentais das camadas populares.
político de governo. Além disso, segundo Cittadino, o ativismo
Essa mudança de paradigmas modifica judicial teria se fortalecido também em razão dos
o papel e a função desempenhada pelo Poder seguintes fatores: (a) o reforço das instituições
Judiciário. Em vez de tratar apenas de conflitos garantidoras do Estado de Direito, como a Ma-
intersubjetivos de menor complexidade, agora gistratura e o Ministério Público, após o período
tem o judiciário que resolver litígios coletivos. autoritário; (b) a constitucionalização de valores
As chamadas “class action”, as ações públicas da comunidade, exigindo um compromisso da
(civis públicas), as diversas ações fundadas no Constituição no sentido de concretizá-los; (c) a
direito coletivo e no direito difuso fazem parte conversão dos direitos fundamentais no núcleo
dessa nova realidade. básico do ordenamento constitucional brasileiro
e em critério de interpretação constitucional;
IV.1. O Ativismo do Judiciário Brasileiro e (d) a percepção dos cidadãos não apenas como
seus exemplos destinatários, mas como autores de seus direitos;
8
Temos plena consciência que a rigor não existem duas jurisdições, apenas ressaltamos o aspecto didático-estrutural da justiça.
9
Cittadino, Gisele. “Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes”. In: Vianna, Luiz Werneck (Org.). A demo-
cracia e os três poderes no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ e Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 17-42.
10
BarCellos, Ana Paula A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 215-217.

186 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

(e) o alargamento do círculo de intérpretes da prerrogativas asseguradas constitucionalmente;


Constituição (cidadãos, partidos políticos, asso- (d) as atividades jurisdicionais, além de públicas
ciações, etc.); (f) a ampliação do rol dos direitos e motivadas, encontram fundamento e limites
fundamentais, que exigem não só a abstenção do nas normas jurídicas; (e) as decisões judiciais
Estado, mas, também, um dever de ação estatal; são passíveis de revisão por outros órgãos do
(g) a ampliação das ações coletivas; (h) a inér- Judiciário; (f) o processo jurisdicional, uma vez
cia do Poder Legislativo; (i) o incremento dos que garante às partes amplo contraditório, é mais
instrumentos de controle da constitucionalidade participativo do que qualquer outro processo
das leis e dos atos normativos; (j) o controle da público; (g) os grupos minoritários “sempre
omissão do Estado pelo Poder Judiciário; (k) a terão acesso ao Judiciário para a preservação de
atividade construtiva da interpretação constitu- seus direitos”.12
cional.
Contudo, o protagonismo dos tribunais traz IV. 2. Alguns Casos julgados pelo Supremo
problemas ligados especialmente ao princípio da Tribunal Federal no Brasil
Separação dos Poderes e da legitimidade demo-
crática do Poder Judiciário, ou seja, acerca da a) Mandado de Injunção e o direito de greve
neutralidade política deste órgão estatal. dos servidores públicos
Rebatendo as críticas dirigidas à judicia- No Brasil, o mandado de injunção surge
lização da Política, Ana Paula de Barcellos ad- como um mecanismo de controle difuso da
vertindo, de início, que a separação dos Poderes constitucionalidade por omissão. A Constituição
tem natureza instrumental, na medida em que de 1988, a primeira do ordenamento constitucio-
existe para realizar o controle do poder, evitan- nal brasileiro a prever o mandado de injunção,
do o arbítrio. Dessa forma, não se mostra como estabelece, em seu art. 5º, LXXI, o seguinte:
um obstáculo lógico ao controle pelo Judiciário “conceder-se-á mandado de injunção sempre
das omissões inconstitucionais do Poder Públi- que a falta de norma regulamentadora torne
co.10 No tocante à democracia, a mesma autora inviável o exercício dos direitos e liberdades
acentua que, para além da fórmula majoritária, constitucionais e das prerrogativas inerentes à
é imprescindível o respeito “aos direitos fun- nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
damentais de todos os indivíduos, façam eles
parte da maioria ou não”.11 E, então, conclui Por meio do mandado de injunção, preten-
que o Judiciário tem legitimidade para conferir de-se viabilizar o exercício de um direito previsto
eficácia positiva aos direitos prestacionais pelos na Constituição que, por falta de norma regula-
seguintes motivos: (a) o Judiciário, tendo em mentadora, o impetrante não consegue praticar.
vista que foi criado pela própria Constituição, Contudo, até recentemente não tinha sido
compõe o poder político nacional da mesma esse o entendimento predominante do Supremo
forma que o Legislativo e o Executivo; (b) os Tribunal Federal, que, na maioria das vezes, ao
órgãos de cúpula do Judiciário têm alto grau julgar procedente o pedido formulado em man-
de representatividade, na medida em que são dados de injunção, reconhecia a mora do órgão
formados pela vontade do Executivo e do Le- encarregado de regulamentar o dispositivo cons-
gislativo; (c) os magistrados estão aptos a agir titucional e deferia o writ para que tal situação
com independência, pois, para tanto, gozam de fosse comunicada ao referido órgão.13
11
iBid, p. 227.
12
Ibid, p. 231-232.
13
Mandado de Injunção n. 585/TO, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 15.05.2002. Em casos isolados o entendimento não vinha sido esse, como se pode
verificar das decisões proferidas no Mandado de Injunção 283/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.03.1991; e no Mandado de Injunção n. 562/
RS, rel. Min. Carlos Velloso, rel. do acórdão Min. Ellen Gracie, j. 20.02.2003. Neste último caso, parte da ementa do acórdão tem o seguinte teor:
“Reconhecimento da mora legislativa do Congresso Nacional em editar a norma prevista no parágrafo 3º do art. 8º do ADCT, assegurando-se, aos
impetrantes, o exercício da ação de reparação patrimonial, nos termos do direito comum ou ordinário, sem prejuízo de que se venham, no futuro,
a beneficiar de tudo quanto, na lei a ser editada, lhes possa ser mais favorável que o disposto na decisão judicial. O pleito deverá ser veiculado

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 187


Discussão

Flávia Piovesan identifica três correntes Nas palavras de Luís Roberto Barroso
doutrinárias que buscam explicar os efeitos — no que é acompanhado por grande parte da
da decisão proferida no mandado de injunção. doutrina —, o provimento judicial, no mandado
Segundo essa autora, ao conceder o mandado de injunção, tem “natureza constitutiva, devendo
de injunção, caberia ao Poder Judiciário: (a) o juiz criar a norma regulamentadora para o caso
elaborar a norma regulamentadora faltante, concreto, com eficácia inter partes, e aplicá-la,
suprindo, deste modo, a omissão do legislador; atendendo, quando seja o caso, à pretensão vei-
ou (b) declarar inconstitucional a omissão e culada”.18 Assim, o mandado de injunção deveria
dar ciência ao órgão competente para a adoção ser entendido como uma ação constitucional
das providências necessárias à realização da voltada a tornar viável, no caso concreto, o
norma constitucional; ou (c) tornar viável, no exercício do direito previsto constitucionalmente
caso concreto, o exercício de direito, liberdade e que se encontra obstado por falta de norma
ou prerrogativa constitucional que se encontrar
regulamentadora.19
obstado por faltar norma regulamentadora.14
O art. 37 da Constituição Federal, ao tratar
Admitir que o Poder Judiciário, ao con-
das disposições gerais da administração pública,
ceder o mandado de injunção, elaboraria a
estabelece, em seu inciso VII, que o direito de
norma regulamentadora faltante, suprimindo a
omissão do legislador,15 afrontaria o princípio greve do servidor público civil será exercido nos
da separação dos poderes, previsto no art. 2º da termos e nos limites definidos em lei específica.
Constituição Federal. As decisões do Supremo Tribunal Federal,
Aceitar que o mandado de injunção se pres- há mais de uma década, caminhavam no sentido
taria, simplesmente, a declarar inconstitucional de interpretar o art. 37, VII, da Constituição,
a omissão e a dar ciência ao órgão omisso para como uma norma de eficácia limitada. Nossa Su-
adotar as providências necessárias à realização prema Corte vinha entendendo que o advento da
da norma constitucional, sem possibilidade de lei constituiria requisito de aplicabilidade do art.
imposição de sanção a este, significaria reco- 37, VII, da Constituição Federal. O direito públi-
nhecer a dois instrumentos constitucionais dis- co subjetivo de greve, outorgado aos servidores
tintos — o mandado de injunção e a ação direta civis, só se revelaria possível depois da edição
de inconstitucionalidade por omissão16 — os da lei especial reclamada pela Constituição. “A
mesmos efeitos.17 mera outorga constitucional do direito de greve
Ademais, concordar com a argumentação ao servidor público civil não basta[ria] — ante
de que o mandado de injunção é um instrumento a ausência de auto-aplicabilidade da norma
desprovido de força para viabilizar o exercício do constante do art. 37, VII, da Constituição — para
direito previsto na Constituição é o mesmo que justificar o seu imediato exercício.” (Mandado
negar a esse instrumento a natureza de ação cons- de Injunção 20-4/DF e, no mesmo sentido, MI
titucional, o que também não se pode admitir. 485-4/MT, 585-9/TO e 438/GO).
diretamente mediante ação de liquidação, dando-se como certos os fatos constitutivos do direito, limitada, portanto, a atividade judicial à fixação
do ‘quantum’ devido”.
14
PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, p. 148.
15
Essa é a posição, por exemplo, de GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades, p. 182-4. Esse autor afirma o seguinte: “Uma
solução intermediária seria a de se admitir que, procedente o pedido, o tribunal poderia determinar prazo para que a norma fosse elaborada sob pena
de, passado esse lapso temporal, ser devolvida ao Judiciário a atribuição de fazê-la. É certo que, passado o prazo, retornar-se-ia à segunda alternativa,
ou seja, o tribunal é que deveria fazer a norma. A solução adequada, portanto, parece a primeira, admitida a alternativa de, antes, ser dada a opor-
tunidade para que o poder competente elabore a norma. Se este não a fizer o Judiciário a fará para que possa ser exercido o direito constitucional”.
16
O art. 103, § 2º, da Constituição, ao disciplinar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevê o seguinte: “§ 2º Declarada a inconstitu-
cionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
17
Nas palavras de Barroso, Luís Roberto (in: O controle da constitucionalidade no direito brasileiro
cit. p. 106), essa interpretação seria inadmissível porque aceitaria a existência de “dois remédios constitucionais para que seja dada ciência ao órgão
omisso do Poder Público, e nenhum para que se componha, em via judicial, a violação do direito constitucional pleiteado”.
18
BARROSO, Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 104.
19
Esse é o entendimento, por exemplo, de PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial cit. p. 157 e segs.; TEMER, Michel. Elementos de direito consti-
tucional cit. p. 205; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit. p. 450 e também sempre foi o nosso entendimento, Cf.
Figueiredo, Marcelo “O mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão”, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991,(esgotado).

188 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

Contudo, recentemente, ao julgar os O Supremo Tribunal Federal criou parâme-


Mandados de Injunção 670, 708 e 712, todos de tros aritméticos para a composição das Câmaras
2007, o Supremo Tribunal Federal determinou Municipais, levando em conta o disposto no art.
a aplicação, aos servidores públicos civis, da 29, IV, letras “a” a “c”, da CF. Segundo o STF,
Lei nº 7.783/89, que regulamenta o direito de tais parâmetros preservariam os princípios da
greve para os trabalhadores da iniciativa privada, igualdade e da proporcionalidade (devido pro-
naquilo que não for colidente com a natureza cesso legal substantivo), bem como os princípios
estatuária do vínculo estabelecido entre os fun- da Administração Pública (art. 37, caput, CF),
cionários e a Administração Pública, enquanto como a moralidade, a impessoalidade e a eco-
o Poder Legislativo não promulgar o diploma nomicidade dos atos administrativos.
legal específico, previsto no art. 37, VII, da CF. Na mesma ocasião, o Supremo Tribunal
Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da decisão tomada
Federal passou de um extremo a outro, contra- no controle difuso da constitucionalidade e de-
riando, em ambos os casos, a doutrina majori- terminou que eles seriam produzidos pro futuro.
tária sobre a matéria. Antes, o STF reconhecia a Sob o argumento da preservação da segurança
inconstitucionalidade por omissão e comunicava jurídica, o Município somente teria reduzido o
número de vereadores de 11 para 9 a partir da
o órgão omisso acerca disso. Agora, com os
legislatura seguinte.
Mandados de Injunção 670, 708 e 712, resolveu
a questão não somente para as partes envolvidas, Como nessa decisão do STF, o Tribunal
mas suprimiu a omissão, resolvendo a questão Superior Eleitoral editou, em 2004, as Resolu-
para todos os casos, abstratamente. ções 21.702 e 21.803, por meio das quais fixou
o número de vereadores em todos os Municípios
do Brasil.
b) Número de vereadores proporcional à
população
c) Verticalização das coligações partidárias
Em 2002, o Supremo Tribunal Federal
Em 2002, o Tribunal Superior Eleitoral
julgou o Recurso Extraordinário 197.917, de-
editou a Resolução 20.993 estabelecendo que
corrente de uma ação civil pública movida pelo
os partidos que lançassem, isoladamente ou em
Ministério Público com o objetivo de reduzir de
coligação, candidato a Presidência da República,
11 para 9 o número de Vereadores da Câmara
em 2002, não poderiam formar coligação para
Municipal de Mira Estrela, Estado de São Paulo.
eleição de Governadores, Senadores, Deputados
A alegação do Ministério Público era a Federais e Estaduais, com partido político que
de que a previsão da Lei Orgânica do Muni- tivesse lançado, isoladamente ou em aliança
cípio violaria o art. 29, IV, alínea “a”, da CF,20 diversa, candidato à eleição presidencial.
acarretando prejuízo ao erário local, visto que O Partido da Frente Liberal (PFL) ingres-
o Município tinha menos de 3.000 habitantes. sou no Supremo Tribunal Federal com Ação
Em resposta, a Câmara Municipal de Mira Direita de Inconstitucionalidade (ADIN 2.628),
Estrela alegara que tinha autonomia para fixar o alegando que a referida Resolução do TSE vio-
número de Vereadores, observados os parâme- laria o princípio da anualidade (art. 16, CF),21 da
tros mínimo e máximo fixados pela Constituição. legalidade (art. 5º, II, CF),22 do devido processo
20
Tal artigo da Constituição brasileira estabelece o seguinte: “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o inters-
tício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos
nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] IV – número de Vereadores proporcional à população do
Município, observados os seguintes limites: a) mínimo de nove e máximo de vinte e um nos Municípios de até um milhão de habitantes; b) mínimo
de trinta e três e máximo de quarenta e um nos Municípios de mais de um milhão e menos de cinco milhões de habitantes; c) mínimo de quarenta
e dois e máximo de cinqüenta e cinco nos Municípios de mais de cinco milhões de habitantes”.
21
“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da
data de sua vigência.”
22
“II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 189


Discussão

legal (art. 5º, LIV, CF),23 da autonomia dos parti- O artigo 17 da Constituição Federal de
dos políticos (art. 17, § 1º, CF, antes da Emenda 1988 prevê a liberdade de criação, fusão, incor-
52/2006),24 bem como da competência da União poração e extinção dos partidos, resguardadas:
para legislar sobre direito eleitoral (arts. 22, I, e (a) a soberania nacional; (b) o regime democrá-
48, caput, CF).25 tico; (c) o pluralismo partidário; (d) os direitos
Não havia, na ocasião, previsão constitu- fundamentais da pessoa; (e) funcionamento
cional que se ocupasse diretamente das coliga- parlamentar na forma da lei.
ções partidárias. O STF, por maioria de votos, Portanto, apesar de a Constituição reme-
não conheceu da ADIN, porque a Resolução do ter o funcionamento parlamentar à legislação
TSE seria um ato normativo secundário, de in- ordinário, não faz menção expressa à cláusula
terpretação da Constituição, que apenas poderia de barreira.
violá-la indiretamente. A Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos),
Como resposta às atitudes do Poder Ju- no art. 12, prevê que o “partido político funciona,
diciário (TSE e STF), o Congresso Nacional, nas Casas Legislativas, por intermédio de uma
em 2006, produziu a Emenda Constitucional nº bancada, que deve constituir suas lideranças de
52/2006, que alterou o art. 17, § 1º, permitindo acordo com o estatuto do partido, as disposições
expressamente a coligação sem necessidade de regimentais das respectivas Casas e as normas
respeitar a verticalização: “É assegurada aos desta Lei”. E o art. 13 da mesma lei estabelecia
partidos políticos autonomia para definir sua que o partido teria direito ao funcionamento
estrutura interna, organização e funcionamento parlamentar o partido que, em cada eleição para
e para adotar os critérios de escolha e o regime a Câmara dos Deputados tivesse obtido o apoio
de suas coligações eleitorais, sem obrigatorie- de, no mínimo, 5% dos votos apurados, não
dade de vinculação entre as candidaturas em computados os brancos e os nulos, distribuídos
âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, em, pelo menos, um terço dos Estados, com um
devendo seus estatutos estabelecer normas de mínimo de 2% do total de cada um deles.
disciplina e fidelidade partidária”. Na ocasião, somente 7 dos 26 partidos
políticos brasileiros teriam funcionamento
parlamentar, participando do rateio do saldo do
d) Cláusula de barreira fundo partidário e gozando de 80 minutos por
A cláusula de barreira, também conhecida ano de propaganda eleitoral gratuita em cadeias
como cláusula de exclusão ou de desempenho, nacional e estadual, por exemplo.
é a disposição normativa que nega a existência Em 2006, o PSC (Partido Social Cristão),
ou a representação parlamentar ao partido que um dos partidos que seriam excluídos do funcio-
não tenha alcançado um determinado número ou namento parlamentar em razão da cláusula de
percentual de votos numa eleição. barreira, ingressou com a ADIN 1.354.
Os objetivos de tal cláusula são os de coibir O Supremo Tribunal Federal julgou a cláu-
um número elevado de partidos, evitar o enfra- sula de barreira inconstitucional pelos seguintes
quecimento partidário, impedir as legendas de motivos: (a) seria o fim das minorias políticas
aluguel e evitar que se afete a governabilidade e a consagração do despotismo da maioria; (b)
23
24
“LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A redação do art. 17, § 1º, da CF, era a seguinte: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e
funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.” A Emenda Constitucional 52, de 2006 alterou
tal dispositivo, que passou a ter o seguinte teor: “§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização
e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as can-
didaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.”
25
O art. 22, inciso I, estabelece a competência da União para legislar sobre direito eleitoral: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. O caput do artigo 48 tem a seguinte
redação: “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e
52, dispor sobre todas as matérias de competência da União [...].”

190 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

um dos fundamentos da República Federativa do de se garantir, ao parlamentar, o direito à ampla


Brasil é o pluralismo político (art. 1º, V, CF); (c) defesa (art. 5º, LIV, CF). Estabeleceu, ainda,
a distinção entre partidos fere o direito de asso- que os efeitos da decisão seriam produzidos a
ciação (art. 5º, XVII, XVIII e XIX, CF); (d) ao partir da resposta do TSE à Consulta 1.398, de
reduzir a representatividade dos parlamentares 27/03/2007, com o objetivo de respeitar o princí-
eleitos, cassa os direitos políticos dos que os pio da segurança jurídica, visto que nessa data o
elegeram; (e) haveria violação da cláusula do TSE mudou de entendimento acerca da matéria.
voto igual para todos (art. 14, CF); (f) seria ferido O TSE, então, ampliou o entendimento
o princípio da igualdade de chances e oportuni- sobre a fidelidade partidária aos eleitos pelo
dades, bem como da igualdade de condições no sistema majoritário, em consulta respondida no
exercício dos mandatos; e (g) ocorreria a viola- dia 16 de outubro de 2007. E o mesmo Tribunal
ção da igualdade entre partidos e entre eleitores. editou a Resolução 22.610/07, disciplinando o
processo de perda do cargo eletivo em razão da
desfiliação partidária. Segundo esta Resolução,
e) Fidelidade partidária o parlamentar tem justa causa para se desfiliar
No ano de 2007, o Partido da Frente Liberal de seu partido, sem o risco de perder o mandato,
(PFL, atualmente DEM – Democratas), formulou nos casos de: incorporação ou fusão do partido;
a seguinte a Consulta 1.398 ao Tribunal Superior criação de novo partido; mudança substancial ou
Eleitoral: os partidos políticos e coligações têm desvio reiterado do programa partidário; grave
o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema discriminação pessoal
eleitoral proporcional, quando houver pedido
de cancelamento de filiação ou de transferência
do candidato eleito por um partido para outra f) Interrupção da gravidez de feto anence-
legenda? Em outras palavras, o mandato pertence fálico
ao eleito ou ao partido? No Brasil, há vários anos, discute-se a
O TSE, respondendo à consulta, estabe- possibilidade de realização de aborto quando a
leceu que a Candidatura depende de filiação mulher grávida depara com a má-formação do
partidária (art. 14, § 3º, V, CF) e o princípio da feto, que inviabiliza a vida extra-uterina.
moralidade administrativa (art. 37, caput, CF) Como noticia José Afonso da Silva,26 du-
repudia o uso de qualquer prerrogativa pública rante a última Constituinte, houve três tendências
no interesse particular ou privado. Assim, o man- sobre a questão do aborto: “Uma queria asse-
dato pertenceria ao partido e não ao candidato gurar o direito à vida, desde a concepção, o que
eleito, apesar de o art. 55, da CF, não prever a importava em proibir o aborto. Outra previa que
mudança de partido como causa de perda do a condição de sujeito de direito se adquiria pelo
mandato. nascimento com vida, sendo que a vida intra-
Em 2007, três partidos políticos (DEM – uterina, inseparável do corpo que a concebesse
Democratas, PPS – Partido Popular Socialista ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o
e PSDB – Partido da Social Democracia Bra- que possibilitava o aborto. A terceira entendia
sileira) impetraram os Mandados de Segurança que a Constituição não deveria tomar partido na
26.602, 26.603 e 26.604 perante o Supremo disputa, nem vedando nem admitindo o aborto.”
Tribunal Federal com o intuito de reaver os Com efeito, a Constituição Federal, no
mandatos de parlamentares que foram eleitos caput do art. 5º, estabelece que, entre outros
por eles e depois mudaram de legenda. direitos, é inviolável o direito à vida e à liber-
O STF entendeu que o mandato pertence ao dade, mas deixou para a legislação ordinária a
partido, mas a declaração de vacância depende possibilidade de criminalizar o aborto.

26
Curso de direito constitucional positivo, p. 206.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 191


Discussão

O art. 2º do Código Civil de 2002 prevê em preservação de tal direito. Aliás, o art. 1º,
que a “personalidade civil da pessoa começa do III, da Constituição, também prevê que um dos
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde fundamentos da República Federativa do Brasil
a concepção, os direitos do nascituro”. Por sua é a dignidade da pessoa humana. E não parece
vez, a Parte Especial do Código Penal, decreta- digno exigir que uma mulher grávida, sabendo
da durante a ditadura getulista, pune a prática que dará à luz um natimorto, não possa ter a
do aborto provocado pela gestante ou com seu liberdade de optar pela interrupção da gravidez.
consentimento, bem como o aborto provocado Aliás, em países onde existem restrições
por terceiro, com ou sem a anuência dela. Já o legais à interrupção da gravidez, os abortos
art. 128 do Código Penal prevê que não se pune provocados têm sido apontados como uma das
o aborto praticado por médico se não há outro principais causas de mortalidade materna. Tais
meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez restrições levam mulheres de alta renda a clínicas
é resultante de estupro e o aborto é precedido de particulares, que utilizam técnicas modernas de
consentimento da gestante. interrupção da gravidez, ao passo que induzem
Nota-se que não há permissão legal ex- mulheres de baixa renda a recorrer a práticas de
pressa para a prática de aborto na hipótese de se alto risco à saúde, como procurar um “aborteiro”
constatar a má-formação do feto. Mas a jurispru- ou se automedicar com drogas abortivas de efi-
dência, apesar de alguma divergência, passou a cácia não comprovada e, muitas vezes, vendidas
admitir tal prática, nos últimos anos. em farmácias, sem prescrição médica.
Algumas decisões judiciais, realizando Contudo, houve casos, espalhados por vá-
uma interpretação evolutiva da norma jurídica, rios Estados da Federação brasileira, em que o
consideram que, por ocasião da promulgação do Judiciário não admitiu a interrupção da gravidez,
Código Penal, em 1940, não existiam os recursos mesmo constatada a inviabilidade de vida extra-
técnicos que atualmente permitem a detecção de uterina do feto.
anomalias fetais severas. Assim, não se poderia Em junho de 2004, a Confederação Na-
prever, naquela ocasião, a má-formação do feto cional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)
entre as causas de exclusão de ilicitude do aborto. propôs, perante o Supremo Tribunal Federal,
Alguns juízes também passaram a fazer uma Argüição de Descumprimento de Preceito
uma interpretação extensiva do art. 128, I, do Có- Fundamental (ADFP) com o intuito de fazer
digo Penal, para admitir a exclusão da ilicitude do cessar a divergência de decisões judiciais sobre a
aborto não só quando realizado para salvar a vida possibilidade de gestantes de fetos anencefálicos
da gestante, mas quando se mostrar necessário (ausência total ou parcial do cérebro) interrom-
para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. perem a gravidez.
Como decidiu o Tribunal de Justiça de São Em abril de 2005, o Supremo Tribunal
Paulo,27 se a lei admite o aborto para preservar os Federal admitiu, por 7 votos a 4, que a ADPF
sentimentos da mãe, no caso de gravidez resul- proposta pela CNTS sobre a descriminalização
tante de estupro — mesmo quando o feto é sadio do aborto nos casos de fetos anencefálicos é
e perfeito —, por maior razão deve-se autorizar a um meio hábil para solucionar a divergência de
interrupção da gravidez quando constatada uma jurisprudência, mas ainda não apreciou o mérito
grave má-formação fetal. Com isso, evita-se o da demanda.
sofrimento físico e psicológico não só da gestan-
te, mas também dos outros membros da família. V - Os Mecanismos de Defesa da
Ademais, o art. 5º, caput, da Constituição Constituição
Federal procura garantir a inviolabilidade do
direito à vida, mas, constatada a inviabilidade A Constituição brasileira de 1988 contém
de vida extra-uterina do feto, não há que se falar vários mecanismos para que suas normas pos-

27
Mandado de Segurança n. 329.564-3/3-00, rel. Des. David Haddad, j. 20.11.2000.

192 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

sam, quando violadas, serem o quanto possível “Muito embora os problemas que a nova Lei
restabelecidas. Tem no Poder Judiciário em geral, apresente, importa ressaltar que a argüição de
e no Supremo Tribunal Federal em particular, o descumprimento de preceito fundamental se
guardião de suas normas e valores28. coloca - enquanto direito de acesso à jurisdição
Em primeiro lugar, destaque-se o amplo constitucional - ao lado e como complemento do
leque de legitimados do artigo 103 para propor mandado de injunção, da ação de inconstitucio-
ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) nalidade por omissão e dos próprios mecanismos
ou ações declaratória de constitucionalidade, a de controle de constitucionalidade. Isto porque,
primeira, (por ação- positiva) ou (por omissão enquanto o mandado de injunção é remédio con-
–negativa), a saber: 1) O Presidente da Repú- tra a ineficácia de normas não regulamentadas,
blica, 2) a Mesa do Senado Federal, 3) a Mesa podendo/devendo o Poder Judiciário suprir, no
da Câmara dos Deputados; 4) A Mesa da As- caso concreto, o direito não realizado, a argüição
sembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa de descumprimento de preceito fundamental
do Distrito Federal; 5) o Governador de Estado objetiva compelir o Poder Público a abster-se
ou do Distrito Federal; 6) o Procurador Geral de realizar um ato abusivo e violador do Estado.
da República; 7) o Conselho Federal da Ordem No que se relaciona ao controle de cons-
dos Advogados do Brasil; 8) Partido Político titucionalidade stricto sensu, releva notar que
com representação no Congresso Nacional;9) a argüição de descumprimento de preceito
Confederação sindical ou entidade de classe de fundamental abrange a ambivalência própria do
âmbito nacional. sistema misto de controle de constitucionalidade
Dois são os sistemas de controle judicial vigorante no Brasil, isto é, ao mesmo tempo em
de constitucionalidade de leis e atos normativos que é uma ação autônoma (art.1,caput, da Lei
no Brasil. 9.882/90), é também mecanismo apto a provocar
incidentalmente a constitucionalidade de leis ou
Temos o sistema difuso (de origem norte-
atos normativos difusamente (art.1, parágrafo
americana) pelo qual qualquer juiz e qualquer
único, I).
Tribunal podem suspender a norma tida por
inconstitucional e o sistema concentrado (de Releva notar que a nova ação veio preen-
origem européia) segundo o qual o Supremo cher antiga lacuna existente em nosso ordena-
Tribunal Federal deve, objetivamente, controlar mento ao permitir que o STF examine a cons-
a constitucionalidade de leis e atos normativos titucionalidade de atos normativos anteriores
(via abstrata ou direta). à Constituição de 1988 (inconstitucionalidade
superveniente). Como se sabe, a partir do julga-
Há ainda a chamada ADPF - Argüição
mento das ADIns números 2 e 438,o STF passou
de Descumprimento de Preceito Fundamental,
a firmar posição no sentido de não aceitar ações
prevista no artigo 102, § 1º e na Lei 9.882/99
de inconstitucionalidade de leis anteriores à
tem por objeto na modalidade de ação autônoma,
Constituição. Agora, pelo disposto no inciso I do
evitar ou reparar lesão a preceito fundamental,
parágrafo único do artigo 1 da nova Lei, também
resultante de ato do Poder Público.
os atos normativos anteriores à Constituição são
Até o momento o Supremo Tribunal não passíveis de declaração de inconstitucionalidade.
definiu o que entende por preceito fundamental. Também será possível que se intente argüição
Em algumas hipóteses, disseram o que não é pre- de descumprimento de preceito fundamental
ceito fundamental. A doutrina, entretanto, vem preventivamente. A ADPF terá por objeto evitar
apresentando adequados cenários de encaixe do ou reparar lesão. Ou seja, o sistema passa a ad-
novo instituto. mitir não somente a modalidade repressiva, mas
Lenio Luiz Streck, por exemplo, afirma: também a modalidade preventiva de controle

28
Sobre o tema, confira-se o nosso trabalho: Figueiredo, Marcelo, “Una visión del control de constitucionalidad en Brasil”, Revista Jurídica de
Castilla –La –Mancha, Toledo, número 41, Noviembre 2006, páginas 69 a 135.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 193


Discussão

de atos que possam colocar em xeque preceitos ciário não nulifica o ato, mas apenas verifica se
fundamentais da Constituição. estão presentes os pressupostos para a futura de-
De qualquer sorte, em face das peculia- cretação de intervenção pelo Chefe do Executivo.
ridades que revestem a ADPF, no seu caráter É possível a intervenção da União nos Es-
incidental, tudo está a indicar que a sede privi- tados e dos Estados nos Municípios desde que
legiada desta nova ação será mesmo o controle lei ou ato normativo, ou omissão, ou ato gover-
concentrado. É nessa direção que apontam as namental desrespeitem os princípios sensíveis
ações intentadas até este momento no STF, da Constituição (forma republicana, sistema
podendo ser arroladas alguma delas, como a representativo e regime democrático, direitos da
ADPF número 4, que buscava desconstituir a pessoa humana, autonomia municipal, prestação
Medida Provisória 2.019/2000, que fixou o valor de contas da administração pública; aplicação
do salário mínimo, ainda sem decisão; a ADPF do mínimo exigido da receita na manutenção do
número 1, ajuizada contra ato do Prefeito do ensino e da saúde).
Rio de Janeiro, por ter aposto veto parcial, de Finalmente ressalte-se que a Constituição
forma imotivada, a projeto de lei aprovado na Federal, mercê da Emenda Constitucional núme-
Câmara Municipal, elevando o valor do Imposto ro 45/2004, passou a prescrever a possibilidade
Predial e Territorial Urbano – IPTU, que não foi de o Supremo Tribunal Federal editar súmula
conhecida sob o argumento de que o veto não dotada de efeito vinculante em relação aos órgãos
se enquadra no conceito de ato do poder público do Judiciário e à Administração Pública, nas
de que fala a lei, e a ADPF número 3, proposta esferas federal, estadual e municipal.
pelo Governador do Ceará, contra ato do Tri-
O dispositivo constitucional, no entanto,
bunal de Justiça daquele Estado que deferira o
é claro ao indicar a reserva de matéria capaz
pagamento de gratificações em “cascata”, a qual
de abrigar a edição da súmula: apenas matéria
não foi conhecida sob o fundamento de que não
constitucional.
foi cumprido o esgotamento de todos os meios
aptos a solver o conflito”29.
Entendeu ainda o STF que a ADPF pode VI - Avanços e ameaças à
ser conhecida como Ação Direta de Inconstitu- Democracia
cionalidade.
O sistema político-constitucional brasi-
Portanto, além dos dois possíveis caminhos leiro avançou ao estabelecer, por meio de sua
para se controlar a constitucionalidade de leis e atual Constituição, que a República Federativa
atos normativos (sistema difuso e sistema con- do Brasil constitui-se em Estado Democrático
centrado), com suas variantes, positiva e negati-
de Direito30. Trata-se de um avanço porque de-
va, temos ainda a possibilidade da intervenção.
monstra a escolha pelo Poder Constituinte de um
A ADIN interventiva apresenta-se como caminho revolucionário para o Brasil, à época
um dos pressupostos para a decretação da in- ainda maculado pelo passado ditatorial. È que a
tervenção federal, ou estadual, pelos Chefes do configuração deste novo Estado não se resume à
Executivo, nas hipóteses previstas na Constitui- simples junção de termos (Estado Democrático
ção de 1988. + Estado de Direito = Estado Democrático de
Na ação direta de inconstitucionalidade Direito). Como afirma José Afonso da Silva,
interventiva, o Judiciário exerce, um controle “consiste, na verdade, na criação de um conceito
da ordem constitucional tendo em vista um caso novo, que leva em conta os conceitos dos ele-
concreto que lhe é submetido a análise. O Judi- mentos componentes, mas os supera na medida
29
Streck, Lênio Luiz, “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”,2Edição, revista, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2004, página 817. IV – os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V
30
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. (...)”.

194 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

em que incorpora um componente revolucionário (lei nº 9.709/98), estes serão convocados por
de transformação do status quo”.31 decreto legislativo, por proposta de um terço, no
Atente-se para o fato de que na expressão mínimo, dos membros que compõem qualquer
“Estado Democrático de Direito”, o “demo- das Casas do Congresso Nacional. Se aprovado
crático” qualifica o Estado e não o Direito, o ato convocatório, o Presidente do Congresso
Nacional informará a Justiça Eleitoral, que deve-
diferentemente, por exemplo, da Constituição
rá fixar a data da consulta popular, tornar pública
portuguesa, que instaura o Estado de Direito
a cédula respectiva, expedir instruções para a
Democrático, com o “democrático” qualificando
realização do plebiscito ou referendo e assegurar
o Direito. Essa opção terminológica, que a prin-
a gratuidade nos meios de comunicação de massa
cípio soa como eventual, reflete, na verdade, a concessionários de serviço público, aos partidos
preocupação política em irradiar os princípios políticos e às frentes suprapartidárias organiza-
da democracia por toda a estrutura do Estado e das pela sociedade civil em torno da matéria em
da ordem jurídica.32 questão, para a divulgação de seus postulados
Nesse contexto, é possível depreender referentes ao tema sob consulta. Para aprovação
da Constituição Federal de 1988 os princípios ou rejeição do plebiscito ou referendo, exige-se o
norteadores da Democracia, os quais, de acordo quórum de maioria simples, devendo o resultado
com Dalmo de Abreu Dallari, consistem em três ser homologado pelo Tribunal Superior Eleitoral.
pontos fundamentais: a supremacia da vontade A iniciativa popular, por sua vez, pode ser
popular, a preservação da liberdade e a igual- exercida pela apresentação à Câmara dos Depu-
dade de direitos33. tados de projeto de lei subscrito por, no mínimo,
A soberania popular é lembrada logo no um por cento do eleitorado nacional, distribuído
primeiro artigo da Constituição, a qual dispõe pelo menos por cinco Estados, com não menos
que “Todo o poder emana do povo, que o exerce de três décimos por cento dos eleitores de cada
um deles (art. 61, §2º, CF).
por meio de representantes eleitos ou diretamen-
te, nos termos desta Constituição”.34 Esta norma Outro requisito exigido para apreciação
retrata a democracia semi-direta, que alia a do projeto de lei de iniciativa popular é que seu
democracia representativa à democracia partici- objeto esteja circunscrito a um só assunto. Por
pativa. Nessa ótica, vale destacar os instrumentos outro lado, dispensam-se maiores formalidades,
uma vez que não poderá ser rejeitado por vício
de participação direta eleitos pelo Constituinte:
de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por
o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular,
seu órgão competente, providenciar a correção
consoante o artigo 14, incisos I, II e III, da CF.
de eventuais impropriedades de técnica legis-
O plebiscito consiste numa consulta prévia lativa ou de redação. Com isso, acertadamente,
ao ato legislativo ou administrativo, cabendo ao privilegia-se a legitimidade popular, liquidando-
povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe se obstáculos de ordem meramente técnica.
tenha sido submetido. O referendo, ao contrário, Apesar da enorme relevância desses meca-
é convocado posteriormente ao ato legislativo ou nismos de participação direta, são raras as hipó-
administrativo, de tal forma que a manifestação teses em que vemos sua utilização na democracia
popular consistirá na sua ratificação ou rejeição. brasileira. Basta constatar que durante os quase
Tais instrumentos devem ser utilizados quando vinte anos de vigência da atual Constituição,
estiverem em debate matérias de acentuada re- houve apenas um plebiscito, um referendo e
levância, de natureza constitucional, legislativa três projetos de lei de iniciativa popular que se
ou administrativa. converteram em lei.
De acordo com a legislação que regulamen- O plebiscito a que nos referimos foi rea-
ta o procedimento do plebiscito e do referendo lizado em sete de setembro de 1993, por deter-
31
Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 119.
32
Ibid.
33
Elementos de teoria geral do Estado. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 151.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 195


Discussão

minação do Constituinte, que incluiu no Ato A curiosa diferença do período de tra-


das Disposições Constitucionais Transitórias35 a mitação entre um e outro projeto não é mera
realização de consulta popular para definição da coincidência. Como se sabe, alterações legis-
forma (república ou monarquia constitucional) lativas que visam criminalização de condutas
e o sistema de governo (parlamentarismo ou ou endurecimento do Estado na esfera penal
presidencialismo) que deveriam vigorar no país. tendem a tramitar mais rapidamente em virtude
Já o referendo foi realizado recentemente, de pressões momentâneas da mídia. Por outro
em outubro de 2005, por determinação da Lei lado, proposições que podem resultar em gastos
10.826 de 2003, conhecida como “Estatuo do governamentais maiores e que não atendem os
interesses de grupo restrito da sociedade perdem-
desarmamento”, e consistiu em consulta popular
se no tempo.
sobre a proibição ou não da comercialização de
arma de fogo e munição em todo o território Por fim, o terceiro projeto de lei de inicia-
nacional. É que a referida lei condicionou a apli- tiva popular foi proposto em 1997 e converteu-
cação do seu artigo 35, que continha a proibição se na lei 9.840 de 1999, que alterou o Código
do comércio de armas, à aprovação mediante Eleitoral para incluir disposição que pune com a
referendo popular36. cassação o candidato acusado de comprar votos
durante o pleito eleitoral. O referido projeto foi
Houve grande mobilização no país em
encampado pela Conferência Nacional dos Bis-
torno do debate criado pelo referendo, sendo que pos do Brasil, que lançou o projeto na campanha
59.109.265 eleitores (63,94%) votaram pela “não nacional “Combatendo a corrupção eleitoral”.
proibição do comércio de armas e munição”,
Na tentativa de reverter esse quadro de
contra 33.333.045 eleitores (36,06%) a favor
pouca participação popular nos rumos legislati-
da proibição.
vos do país, a Câmara dos Deputados criou em
O primeiro projeto de lei de iniciativa 2001 a Comissão de Legislação Participativa
popular convertido em lei teve como objeto (CLP) com o objetivo de facilitar a participação
a criação do Fundo de Moradia Popular e do da sociedade no processo de elaboração legis-
Conselho Nacional de Moradia Popular para lativa. Através da CLP, a sociedade, por meio
subsidiar a construção de moradias populares. de qualquer entidade civil organizada, ONGs,
Apresentado no ano de 1992 na Câmara dos sindicatos, associações, órgãos de classe, apre-
Deputados, o projeto tramitou durante 13 anos senta à Câmara dos Deputados suas sugestões
no Congresso Nacional, convertendo-se na Lei legislativas, que envolvem propostas de leis
nº 11.124 de 200537. complementares e ordinárias e até sugestões de
Em 1993 foi apresentado o segundo projeto emendas ao Plano Plurianual (PPA) e à Lei de
de lei de iniciativa popular convertido em lei, Diretrizes Orçamentárias (LDO)38.
tendo resultado na lei 8.930 de 1994. Sua matéria Os outros dois pontos fundamentais da
consistia em transformar o homicídio qualificado Democracia mencionados por Dallari - preserva-
em crime hediondo. ção da liberdade e à igualdade de direitos - são
34
Art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.
35
“Art. 2º No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebisicito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de
governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no país. §1º Será assegurada gratuidade na livre divulgação dessas formas e
sistemas, através dos meios de comunicação de massa cessionários de serviço público. §2º O Tribunal Superior Eleitoral, promulgada a Constituição,
expedirá as normas regulamentadoras deste artigo”.
35
“Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei.
§1° Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. § 2o Em caso
de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral”.
37
Conforme informação disponível no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br) e do Senado Federal (www.senado.gov.br).
38
Conforme informação disponível em http://www2.camara.gov.br/comissoes/clp/comissao.html. IX – é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de
paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (...) XVII – é plena a liberdade de associação
para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (...) XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos fundamentais e liberdades
fundamentais; (...) LIII – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...)”.

196 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

facilmente percebidos no extenso rol de direitos e Vejamos.


garantias fundamentais da Constituição Federal, A Constituição brasileira permite que o
mais especificamente em seu artigo 5º39. É bem mandato eletivo do candidato eleito seja im-
verdade, pois, que não existe governo democrá- pugnado perante a Justiça Eleitoral no prazo de
tico onde não existe respeito aos direitos funda- quinze dias contados da diplomação, na hipóte-
mentais. Nem mesmo espectro de democracia. se de ter ocorrido abuso do poder econômico,
É o que conclui Jorge Carpizo: “Los derechos corrupção ou fraude durante as eleições (art.
humanos possen fuerza expansiva, la democracia 14, § 10, CF). Por meio desta ação, permite-se
goza de esa misma característica y es natural, à população a fiscalização do pleito eleitoral, de
porque no puede existir democracia onde no se modo a preservar a imparcialidade das eleições
respeten los derechos humanos, y éstos realmente e a igualdade entre os candidatos.
solo se encuentran salvaguardados y protegidos Após eleito, o representante da vontade
em um sistema democrático”.40 popular não escapa à atuação fiscalizadora da
Sob uma perspectiva de exercício efetivo população. É que a Constituição assegura a
da democracia, esses valores se expressam como qualquer cidadão a possibilidade de propor ação
garantia da soberania popular, por meio do su- popular que vise a anular ato lesivo ao patri-
frágio universal e do voto direto e secreto, com mônio público ou de entidade de que o Estado
valor igual para todos, consoante o disposto no participe, à moralidade administrativa, ao meio
artigo art. 14, caput41, da Constituição brasileira. ambiente e ao patrimônio histórico e cultural
São esses requisitos essenciais para o desenvol- (art. 5º, LXXIII, CF). Com objetivo de facilitar a
vimento de eleições imparciais e sem qualquer propositura da ação, a Constituição isenta o autor
espécie de coação, preservando o direito de cada de custas judiciais e do ônus de sucumbência,
cidadão em escolher livremente seu candidato e salvo comprovada má-fé.
expressar suas opiniões políticas, sem exclusões Por fim, a Suprema Corte brasileira tem
por sexo, religião, raça, renda etc. admitido amplamente a participação de órgãos
Além dos mecanismos, direitos e garantias ou entidades na qualidade de “amicus curiae”
mencionados, o sistema político-constitucional ao apreciar a constitucionalidade/incostitu-
brasileiro prevê, com o intuito de propiciar cionalidade dos atos legislativos. Certamente,
maior participação popular no desenvolvimento esse fato contribui para a efetivação do Estado
da coisa pública, outros instrumentos capazes Democrático de Direito, vez que possibilita o
de assegurar os princípios democráticos. Essa acompanhamento de maneira mais incisiva pela
atuação popular poderá, por exemplo, resultar na sociedade do exercício da jurisdição constitucio-
impugnação de um mandato eletivo recém inicia- nal. A figura do “amigo da corte” é objeto de dis-
do, na fiscalização da atuação do representante posição legal. De acordo com a lei nº 9.868/99,
durante seu mandato/governo ou, ainda, para que regulamenta o procedimento da ADIn42 e da
auxiliar o Supremo Tribunal Federal na defesa ADECon43, o relator, considerando a relevância
da Constituição. da matéria e a representatividade dos postulan-
39
O art. 5º, caput, possui a seguinte redação: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”.
A título de exemplo, podemos citar alguns incisos do referido artigo que abordam os valores “liberdade” e “igualdade”: “I - homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...) IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(...) IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XV – é
livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com
seus bens; (...) XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (...) XLI – a lei punirá qualquer discri-
minação atentatória aos direitos fundamentais e liberdades fundamentais; (...) LIII – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal; (...)”.
40
Carpizo, Jorge. Concepto de democracia y sistema de gobierno em América Latina. México: Universidade Nacional Autônoma de México, Instituto
de Investigaciones Jurídicas, 2007, p. 100.
41
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei,
mediante:”.
42
Ação declaratória de inconstitucionalidade.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 197


Discussão

tes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, acolham nominalmente em suas Constituições
observado o prazo fixado no parágrafo anterior, modelos institucionais – hauridos dos países
a manifestação de outros órgãos ou entidades. política, econômica e socialmente mais evolu-
Oportuna a manifestação do Ministro ídos – teoricamente aptos a desembocarem em
Gilmar Mendes sobre a figura do “amigo da resultados consonantes com os valores democrá-
corte”: “Evidente, assim, que essa fórmula pro- ticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus
cedimental constitui um excelente instrumento governantes (a) sejam investidos em decorrência
de informação para a Corte Suprema. Não há de eleições, mediante sufrágio universal, para
dúvida, outrossim, de que a participação de di- mandatos temporários; b) consagrem uma dis-
ferentes grupos em processos judiciais de grande tinção, quando menos material, entre as funções
significação para toda a sociedade cumpre uma legislativa, executiva e judicial; c) acolham, em
função de integração extremamente relevante tese, os princípios da legalidade e da independên-
no Estado de Direito. (...) Ao ter acesso a essa cia dos órgãos jurisdicionais, nem por isto, seu
pluralidade de visões em permanente diálogo, arcabouço institucional consegue ultrapassar o
com este Supremo Tribunal Federal passa a caráter de simples fachada, de painel aparatoso,
muito distinto da realidade efetiva”.45
contar com os benefícios decorrentes dos sub-
sídios técnicos, implicações político-jurídicas e Com efeito, para realizar a democracia
elementos de repercussão econômica que possam substancial há apenas uma solução: produzir o
vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”.44 mínimo de cultura política indispensável ao Esta-
do Democrático de Direito. Nos dizeres de Ban-
De maneira geral, são esses os instrumentos
deira de Mello: “... as sociedades de incipiente
disponíveis à sociedade para o efetivo exercício
cultura política para poderem vir a se configurar
democrático, consagrando, assim, a Constituição
como Estados democráticos, demandariam mais
Federal como o grande avanço da democracia
do que apenas reproduzir em suas Constituições
no Brasil.
os traços especificadores de tal sistema de gover-
Contudo, não podemos olvidar as ameaças no. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar
que circundam o sistema político brasileiro. suas instituições básicas de maneira a prevenir
Como demonstrado, se por um lado há um leque ou dificultar os mecanismos correntes de seu des-
variado de mecanismos que buscam assegurar naturamento e, de outro – o que ainda seria mais
os princípios democráticos, por outro lado é importante – empenhar-se na transformação da
preocupante o afastamento do povo brasileiro realidade social buscando concorrer ativamente
do cenário político. Pode-se apontar, assim, para produzir aquele mínimo de cultura política
como grande ameaça à Democracia brasileira a indispensável à prática efetiva da democracia,
ausência de “cultura política” ao país. única forma de superar os entraves viscerais ao
Sem dúvida alguma, é a partir desse fa- seu normal funcionamento”.46
tor – a incipiente cultura política do país – que Surge, portanto, a seguinte questão: Como
tantas outras ameaças podem advir, como o produzir o mínimo de cultura política indispensá-
fortalecimento exacerbado do Poder Executivo. vel à prática efetiva da democracia? Ao contrário
Com isso, corre-se o sério risco de permanecer do que pode parecer, a resposta é conhecida de
em uma democracia formal, mero simulacro da todas. Com o mínimo de renda para desenvolver
democracia substancial. No dizeres de Celso uma vida digna, educação de qualidade e acesso
Antônio Bandeira de Mello, “Estados apenas amplo à cultura e à informação diversificada.
formalmente democráticos são os que, inobstante É que afirma Bandeira de Mello: “Uma vez
43
Ação declaratória de constitucionalidade.
44
Informativo do STF nº 406. ADI nº 2548.
45
Bandeira de Mello, Celso Antônio. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. In: Revista de Direito Administrativo. Nº 212. Rio de
Janeiro, Ed. Renovar, abr/jun. 1998, p. 58.
46
Ibid., p. 60.

198 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

que a democracia se assenta na proclamação e la expedición de una nueva resolveria los pro-
reconhecimento da soberania popular, é indis- blemas en forma mágica”.48
pensável ‘que os cidadãos tenham não só uma Não se pretende com isso postular a im-
consciência clara, interiorizada e reivindicativa possibilidade de reformas da Constituição. Ao
deste título jurídico político que se lhes afirma contrário, será esse mecanismo eficiente para
constitucionalmente reconhecido como direito adequar o sistema político-constitucional à rea-
inalienável, mas que disponham das condições lidade. Aliás, como afirma Carpizo, “... no existe
indispensáveis para poderem fazê-lo valer de ninguna institución ni norma que sea inmutable,
fato. Entre estas condições estão não apenas (a) no la puede Haber. El orden jurídico es, por na-
as de desfrutar de um padrão econômico-social turaleza, dinâmico, cambiante y debe colocarse
acima da mera subsistência (sem o que seria vã a la vanguardia de lãs ideas protectoras del ser
qualquer expectativa de que suas preocupações humano y de sus relaciones sociales”.49
transcendam as da mera rotina da sobrevivência
Contudo, deve-se ter em mente que a
imediata), mas também, as de efetivo acesso (b)
Constituição representa um sistema normativo,
è educação e cultura (para alcançarem ao menos
com todas suas normas interligadas e vinculadas
o nível de discernimento político traduzido em
umas às outras. Deverão permanecer intocáveis
consciência real de cidadania) e (c) à informação,
os princípios e dispositivos caracterizados pela
mediante o pluralismo de fontes diversificadas
imutabilidade - as cláusulas pétreas – sob pena
(para não serem facilmente manipuláveis pelos
de descaracterizar a Constituição e, conseqüen-
detentores dos veículos de comunicação de
massa)’”.47 temente, o sistema político-constitucional e a
Democracia. Nossa Constituição proíbe que seja
Assim, exige-se do Estado uma postura objeto de deliberação a proposta tendente a abolir
ativa, pois a ele cumpre possibilitar aos cida- i) a forma federativa de Estado, ii) o voto direto,
dãos condições mínimas para o exercício da secreto, universal e periódico, iii) a separação de
democracia. Ao levar em conta a Constituição Poderes e v) os direitos e garantias fundamentais,
Federal de 1988, é possível concluir que se trata
consoante artigo 60, §4º, da CF.
de uma boa Constituição. Necessário, contudo,
efetivá-la. Nesse contexto, são valiosas as con- Nessa esteira, qualquer mutação consti-
clusões de Jorge Carpizo, ao ponderar sobre a tucional apenas poderá ocorrer respeitados os
necessidade ou não de uma nova Constituição limites constitucionais impostos pelo Poder
no México: “No es correcto atribuir a la ley su- Constituinte. E nesse ponto residem nossas
prema los vícios y problemas de nuestra realidad preocupações. Tendo em vista a importância da
política, econômica, social e jurídica. Aquellos Constituição para o estabelecimento do Estado
han crecido precisamente por la inaplicación Democrático de Direito e os impactos sociais
de la norma y por la falta de respeto al Estado e legislativos acarretados por uma alteração
de derecho, tanto por parte de los gobernantes constitucional, afigura-nos insuficiente apenas a
como de los gobernados. Ni en México, ni em instância legislativa para aprovações de Emenda
ninguna parte del mundo, los problemas se su- à Constituição.
peran exclusivamente con el cambio de la ley, Considerando a consagração da “soberania
sino primordialmente com la aplicación de la popular” pelo Estado Democrático de Direi-
norma adecuada porque, em caso contrario, se to, parece-nos interessante proposta de Jorge
puede repetir la situación que nuestro país ya Carpizo, guardadas a particularidades de cada
vivió en el siglo XIX: la constante sustitución país (Brasil e México) de submeter a reforma
de Constituciones, al creerse ingenuamente que constitucional a referendo popular posterior.
47
Ibid, p. 60 e 61.
48
Concepto de democracia y sistema de gobierno em América Latina. México: Universidade Nacional Autônoma de México, Instituto de Investi-
gaciones Jurídicas, 2007, p. 130.
49
Ibid., p. 130.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 199


Discussão

Passamos a descrever os argumentos levantados poseen y los limites a esas facultades, así
pelo jurista: como las modalidades de su ejercicio.
“Mis argumentos son: 7) El titular del Poder Constituyente es el
mismo que el de la soberanía. En este
1) El procedimento de la reforma consti- sentido, Poder Constituyente, soberanía
tucional adquiriría mayor rigidez que el
y pueblo son términos intercambiales, y
que actualmente posee. Es por esta razón
la decisión sobre la Constitución y sus
que esta propuesta se relaciona con la de
reformas debe provenir precisamente
la existência de leyes constitucionales,
de ese titular, fuente última del poder y
orgânicas y reglamentarias, y los efectos
creador del orden jurídico.
erga omnes de lãs sentencias de ampa-
ro, respecto a la constitucionalidad de 8) Aunque existen antecedentes – como
normas generales, que fortalecerían la Francia em 1793 y Suiza em 1848 -,
interpretación constitucional de útlima es a partir de la terminación de que las
instancia. Constituciones nuevas y sus reformas
2) El Congresso de la Unión y las legisla- debe ser aprobadas por el pueblo a través
turas locales aprobarían un proyecto de de referendos, como ejercicio directo de
reformas. En este caso se constituirían su soberania”.50
en asamblea proyectista. La aprobación Em suma, deve-se prestigiar a soberania
en cada una de lãs Câmaras sería por popular como estabelecido na Constituição Fe-
mayoría absoluta, no calificada, de los deral, que não hesitou em explicitar que “todo
legisladores presentes, precisamente poder emana do povo”. Sem olvidar, contudo, a
porque se trata de un proyecto, y debido urgente e constante necessidade de propiciar o
a que la experiência demuestra que tan desenvolvimento da “cultura política” no país,
inconveniente es la flexibilidad como la
sem a qual será inócuo qualquer mecanismo que
regidez extrema de la Constitución.
objetive expandir os meios de participação direta
3) La participación de las legislaturas loca- da população.
les en el proyecto es una garantia para la
existência del próprio sistema federal.
4) La reforma constitucional sería más VII – Conclusões
meditada y ponderada por el Congresso
y las legislaturas locales al saber que la 1 - A Constituição de 1988 inaugurou uma nova
última palabra la dirán los votantes. era no constitucionalismo brasileiro rom-
5) Los votantes se beneficiarían de los pendo com o ciclo autoritário que dominou
argumentos favorables y en contra del o Brasil de 1964 (data da revolução militar
proyecto, lo que les auxiliaria a consi- que se implantou no país por mais de vinte
derar los méritos de aquél. anos), a meados da década de 80. Além disso,
6) Una Constitución o sus reformas úni- constitui, hoje, um documento de grande im-
camente deben ser aprobadas por la portância para o constitucionalismo em geral.
sociedad política en ejercicio directo de 2 – Após a Constituição de 1988 e, sobretudo,
su soberania. Los Congresos o Asam- ao longo da década de 90, o tamanho e o
bleas Constituyentes corresponden papel do Estado passaram para o centro do
únicamente a la sociedad política, al debate institucional. As reformas econômicas
pueblo, quien, al decidir la estructura brasileiras envolveram três transformações
político-social básica, está otorgando estruturais que se complementam, mas não
a sus representantes las facultades que se confundem. Duas delas foram precedidas
50
Ibid., p. 158 e 159.

200 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Discussão

de emendas à Constituição, ao passo que a os presidentes a faculdade constitucional de


terceira se fez mediante a edição de legis- nomear livremente seus ministros.
lação infraconstitucional e a prática de atos 6 – Com o retorno dos governos civis, modificou-
administrativos. A primeira transformação se a legislação, o que facilitou a criação e o
substantiva da ordem econômica brasileira registro de legendas novas. Como conse-
foi a extinção de determinadas restrições ao qüência, em 1991, mais de quarenta partidos
capital estrangeiro. Em seguida, a flexibili- estavam registrados no Tribunal Superior
zação dos monopólios estatais. Por fim, as Eleitoral (TSE), vinte dos quais representa-
privatizações. dos no Congresso. Com a nova Lei Orgânica
3 – A mesma década de 90, na qual foram condu- dos Partidos Políticos – LOPP, sancionada
zidas a flexibilização de monopólios públicos em agosto de 1995, anteciparam-se várias
e a abertura de setores ao capital estrangeiro, fusões entre 1993 e 1996, com um certo
foi cenário da criação de normas de proteção encolhimento do sistema, o que promoveu
ao consumidor em geral e de consumidores um pluralismo ligeiramente mais moderado
específicos, como os titulares de planos de nas eleições de 1998 e 2002. Hoje temos
saúde, os alunos de escolas particulares e aproximadamente 9 (nove) partidos grandes
os clientes de instituições financeiras. Foi e médios com projeção nacional.
também nesse período que se introduziu no 7 – O Direito prescrito pela Constituição de 1988,
país uma política específica de proteção ao em vez de manutenção, em muitas passagens
meio ambiente, limitativa da ação dos agentes postula uma transformação do status quo.
econômicos, e se estruturou um sistema de O Supremo Tribunal Federal, com sua mais
defesa e manutenção das condições de livre recente composição e principalmente em ra-
concorrência que, embora longe do ideal, zão da omissão legislativa sobre importantes
constituiu um considerável avanço em re- questões para a vida nacional — em especial
lação ao modelo anterior. Nesse ambiente é no tocante a problemas políticos e de eficácia
que despontaram as agências reguladoras da dos direitos fundamentais —, vem se reve-
atuação estatal lando como um Tribunal com menos receio
4 - A redução das estruturas públicas de interven- de assumir um papel politicamente ativo no
ção direta na ordem econômica não produziu exercício da função jurisdicional.
um modelo que possa ser identificado com 8 – No Brasil, no tocante aos mecanismos de
o de Estado mínimo. Pelo contrário, apenas defesa da Constituição, adotamos o sistema
deslocou-se a atuação estatal do campo difuso, pelo qual qualquer juiz e qualquer
empresarial para o domínio da disciplina Tribunal podem suspender a norma tida por
jurídica, com a ampliação de seu papel na inconstitucional, e o sistema concentrado,
regulação e fiscalização dos serviços públicos segundo o qual o Supremo Tribunal Federal
e atividades econômicas; deve, objetivamente, controlar a consti-
5 – A Assembléia Nacional Constituinte optou tucionalidade de leis e atos normativos.
pelo sistema republicano e presidencialista, Há ainda a chamada ADPF (Argüição de
em detrimento à monarquia constitucional, o Descumprimento de Preceito Fundamen-
que foi confirmado pelo plebiscito de 1993. tal) e a possibilidade da intervenção (ADI
Se nos regimes parlamentaristas europeus se interventiva), segundo a qual os Chefes do
tecem as coalizões segundo a regra da pro- Executivo podem decretar a intervenção
porcionalidade, dando-se a cada partido uma federal, ou estadual, nas hipóteses previstas
fatia do ministério aproximadamente propor- na Constituição de 1988.
cional a seu peso na base parlamentar, no caso 9 – O sistema político-constitucional brasileiro
brasileiro a partilha dos postos ministeriais avançou ao estabelecer, por meio de sua atual
nem sempre segue essa norma, por terem Constituição, que a República Federativa do

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 201


Discussão

Brasil constitui-se em Estado Democrático de pensável ao Estado Democrático de Direito, o


Direito, sendo seus princípios norteadores: a que ocorrerá por meio da garantia do mínimo
supremacia da vontade popular, a preserva- de renda à população para desenvolver uma
ção da liberdade e a igualdade de direitos. vida digna, educação de qualidade e acesso
10 - Apesar da previsão constitucional dos ins- amplo à cultura e à informação diversificada.
trumentos de participação direta, são raras 12 - Tendo em vista a importância da Cons-
as hipóteses em que vemos sua utilização na tituição para o estabelecimento do Estado
democracia brasileira. Basta constatar que Democrático de Direito e os impactos sociais
durante os quase vinte anos de vigência da e legislativos acarretados por uma alteração
atual Constituição, houve apenas um plebis- constitucional, afigura-nos insuficiente ape-
cito, um referendo e três projetos de lei de nas a instância legislativa para aprovações
iniciativa popular que se converteram em lei. de Emenda à Constituição. Considerando
11 – Pode-se apontar como ameaça à Democracia a consagração da “soberania popular” pelo
brasileira a ausência de “cultura política” ao Estado Democrático de Direito, parece-nos
país, fato este propiciador de tantas outras interessante proposta de Jorge Carpizo,
ameaças, como o fortalecimento exacerbado guardadas a particularidades de cada país
do Poder Executivo. Há apenas uma solução (Brasil e México) de submeter a reforma
para realizar efetivamente a democracia: constitucional a referendo popular posterior.
produzir o mínimo de cultura política indis-

202 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


Resenha

LES THINK TANKS: CERVEAUX DE LA


GUERRE DES IDÉES, DE STEPHEN BOUCHER
E MARTINE ROYO

Pedro Guimarães Pires* O que é um think tank? Como age? Quem


o financia? Em 2006, a editora Éditions Le Fé-
lin, de Paris, publicou o livro Les Think Tanks:
Cerveaux de la guerre des idées, de Stephen
Boucher e Martine Royo. O livro responde a
todas essas perguntas. Trata-se de uma análise
ampla acerca das relações políticas entre os think
tanks e os tomadores de decisão dos governos,
principalmente nos Estados Unidos e na Europa.
Os autores explicitam no livro como agem esses
“tanques de pensamento”, como funcionam,
como influenciam o jogo político e como desen-
volvem suas ideias. Com capítulos que abordam
o tema de forma diversificada, os autores traçam
um panorama amplo acerca desse assunto pouco
difundido.
No primeiro capítulo, Boucher e Royo fa-
zem um questionamento sobre a real influência
dos think tanks na política: podem essas entida-
des mudar o mundo? Qual sua real influência
na política mundial? Para responder a essas
perguntas, os autores se valem do exemplo do
Project for the New American Century (PNAC),
um think tank neoconservador financiado pela in-
dústria armamentista que exerceu sua influência
no governo Bush e fez com que o Iraque fosse
invadido. Esse exemplo demonstra a capacidade
dos think tanks em ditar rumos na política de seus
países. Além disso, leva à análise dos autores em
relação à predominância conservadora na dita
“guerra de ideias” nos EUA. No livro, os autores
explicam como se desenvolveram os think tanks
conservadores, e como esse desenvolvimento foi

*
Estudante de Direito da Universidade Federal de Sergipe.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 203


Resenha

capaz de fazer a direita sobrepujar a esquerda no emergentes e em desenvolvimento. Ao contrário


caso americano. do início do livro, em que os capítulos 1 e 2
Les Think Tanks traz uma abordagem bas- parecem trocados de lugar, no final os autores
tante didática acerca do conceito e das implica- acertam o tom da discussão. Retomam as falhas
ções do termo think tank. O que é, o que não é do sistema de desenvolvimento de idéias dos
e para que serve um think tank, como pensam think tanks e mostram o caminho que pode ser
seus associados, entre outras perguntas que são seguido para que elas sejam resolvidas.
respondidas de modo direto e simples pelos au- Uma das maiores qualidades de Les Think
tores. O leitor logo se familiariza com o conceito Tanks é a acessibilidade textual. Escrito em fran-
pragmático de think tank, o que facilita sobrema- cês claro e direto, possui um caráter didático e
neira a compreensão mais fina. No entanto, teria elucidativo acerca da questão pouco divulgada
sido mais inteligente que essa definição estivesse dos think tanks. Cheio de notas explicativas,
no primeiro capítulo, de modo a apresentar ao quadros classificatórios e esquemas para que o
leitor os conceitos abordados já início da leitura. leitor se situe bem no universo dos laboratórios
Os autores tratam também da força da de idéias, o livro se revela um instrumento ins-
União Europeia na chamada “guerra de idéias”. trutivo até para o leitor que não possui conheci-
Segundo Boucher e Royo, a Europa não está mento sobre o assunto. A organização do livro
preparada para vencer os EUA numa “guerra” é, no entanto, ineficaz no sentido de que explora
ideológica. Primeiro porque os países-membros pouco o diálogo entre os capítulos, gerando uma
da UE não se mostram dispostos a defender um falta de coesão confusa para o leitor.
ideário europeu em detrimento de sua soberania Porém, fazendo um balanço geral, Les
nacional. Depois, porque a UE se alinha aos Think Tanks é uma obra imperdível para aqueles
ideais norte-americanos. E ainda por causa da que desejam iniciar seu conhecimento acerca
ineficácia da Comissão de Bruxelas em unificar desses que estão entre os corpos políticos mais
interesses europeus. Nesse sentido, segundo importantes da atualidade. É uma obra muito
Boucher e Royo, falta no Velho Mundo capaci- instrutiva, mas sem os vícios da redação acadê-
dade de contradição, de estimulação do debate mica, e, por isso, acessível a todos.
intelectual.
O livro termina como deveria terminar: BOUCHER, Stephen; ROYO, Martine. Les
com uma análise teórica do futuro político, do Think Tanks: cerveaux de la guerre des idées.
que deve ser feito para aprimorar a ação dos think Paris: Editions Le Félin, 2006.
tanks e como eles exercerão influência nos países

204 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009


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· No máximo, 20 páginas;
PUBLICAÇÃO · Margens direita e inferior com
espaçamento de 2,0 cm;
· Margens superior e esquerda com
espaçamento de 3,0 cm;
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· Alinhamento justificado;
· Espaçamento duplo;
· Fonte Times New Roman 12 para o corpo
do texto;
· Fonte Times New Roman 10 para citações
e títulos para as imagens e gráficos;
· Espaço de 0,6 cm entre os parágrafos.
· Resumo e palavras-chave (máximo 05
palavras) são obrigatórios e devem estar
em português e inglês

Resenhas
· No máximo, 02 páginas;
· Margens direita e inferior com
espaçamento de 2,0 cm;
· Margens superior e esquerda com
espaçamento de 3,0 cm;
· Tamanho do papel é A4;
· Alinhamento justificado;
· Espaçamento duplo;
· Fonte Times New Roman 12 para o corpo
do texto;
· Espaço de 0,6 cm entre os parágrafos;

Imagens
Não há restrição para o uso de imagens. Pede-
se apenas que o articulista seja criterioso no
número de imagens a ser enviada. O material
enviado só será utilizado se as imagens tiverem
boa qualidade técnica e estética para a publi
-cação.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009 205


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206 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

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