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Padre António Vieira

Clavis Prophetarum
Apêndice

CLAVIS PROPHETARUM

Tradução feita por Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira,


estudante baiano, do Resumo que dela escreveu o P.e Carlos
António Casnedi, S. J.
NOTA DO EDITOR

O ms. do Fundo Geral da Biblioteca Nacional n.° I74I, de que foi


copiada a presente tradução, tem o seguinte título: Resumo do
Clavis Prophetarum feito pelo Padre Carlos António Casnedi, da
Companhia de Jesus. de ordem do Eminentíssimo Cardeal da
Cunha, Inquisidor Geral dos Reinos de Portugal. Autor o
incomparável Padre António Vieira, da Companhia de Jesus.
Traduzi-lo do latim em português Francisco Sabino Álvares da
Rocha Vieira, estudante baiense, que dedica o seu trabalho a D.
Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, etc., etc., que era
então governador no Brasil.
No Prólogo, o tradutor afirma que as proposições que se contêm na
obra foram censuradas pelo Tribunal da Inquisição de Coimbra,
«quando a emulação e rivalidade levou aos seus cárceres ao nosso
Autor, o incomparável (e até o presente não imitado) Padre António
Vieira, pelos anos de 1666 e 1667».
Lembra a defesa de Vieira, no papel que ofereceu ao Santo
Ofício, e em que mostrou que esta opinião não era sua e sim de
gravíssimos autores, dos quais citou pelos seus nomes trinta, em
cujo número se compreendem muitos santos canonizados e todos
sábios.
A Alexandre VII, que tinha aprovado as censuras. sucede
Clemente X, que, informado do que se tinha praticado com o Padre
Vieira na Inquisição de Coimbra, expediu logo o Breve Dilecte Fili,
que o isenta de qualquer jurisdição que não seja a da Sé Apostólica.
E acrescenta: «...por sua morte se lhe acharam 33 cadernos que ele
tinha escrito-De Regno Christi in terris consummato, e, por outro
nome, Clavis Prophetarum» Correu a noticia, e por ordem régia foram
remetidos todos os seus manuscritos para Lisboa e entregues ao
Eminentíssimo Cardeal da Cunha, Inquisidor-Geral dos Reinos de
Portugal, o qual escolheu ao Padre Carlos António Casnedi, bem
conhecido em Itália, Espanha e Portugal, e por seus escritos em todo
o Mundo, para o informar da qualidade e merecimento da obra, e a
informação é a que se segue, resumindo nela os pontos da mesma
obra, declarando o seu merecimento e até algumas suas proposições.
Foi mandada a dita obra a Roma, onde foi examinada pelo Padre
Mestre Fr. Jacinto de Santa Romana, doutor na sagrada Teologia,
examinador sinodal da Nunciatura de Espanha, da Ordem dos
Pregadores, pelos P.P. M.M. Frei Mário Diana e Fr. Pedro
Platamone, da mesma Ordem, e pelo P. André Semiri, jesuíta, que
lhe fizeram grandes elogios e declararam que se podia imprimir, o
que aconteceu no mês de Agosto de I7I5, e por extenso se podem ver
as censuras dos ditos Padres, no «Livro da vida do nosso Vieira»,
dito Livro V, p. 628 até p. 631 nos números 212, 213, 215 e 216»
Lembra o autor que nas censuras a esta última obra foi unânime
o elogio, e cita do Padre Mestre D. José Barbosa, cronista da Casa de
Bragança, examinador das Três Ordens Militares e sinodal do
Patriarcado, acadêmico-censor da Academia Real, o seguinte juízo
crítico: «Maior dano experimentarão os sábios em ficar imperfeita a
grande obra «CIavis Prophaetarum», porque é certo que ninguém terá
o atrevimento de a pretender concluir, porque para esse fim é
necessário outro António Vieira, e só Deus sabe quando lhe dará
semelhante, para se fazer senhor da grande e imensa ideia daquela
obra, que, para ser admirável, basta que fosse concebida na
vastíssima compreensão, nos dilatados estudos e na profundíssima
erudição sagrada daquele homem verdadeiramente incomparável»
E: conclui o tradutor com esta nota, que faz do seu entusiasmo
de panegirista um caso vulgar na época: tendo solicitado havia perto
de três anos a obra em Portugal, soube que a possuía o convento dos
Capuchos. Pediu uma cópia, mas «tem sido tal o concurso de
pretendentes ao mesmo fim, e a copiar pedaços dela, que, tendo-se
principiado a nossa cópia em Abril de 1813, ainda até o presente
Março de 1818 se não pôde concluir...»
Segue-se a este Prólogo do tradutor o Prefácio do P.e Casnedi
ao seu resumo. Dele extraímos, por mais significativo, o seguinte:
Vieira, pela memória que tudo fielmente conservava, pela eficácia
persuasiva com que alegava os textos, pela óptima maneira como
sabia exemplificar, era um Herói Superior a todo o louvor e aplauso
humano. Aquilo que os outros Heróis de primeira grandeza
desprezavam como estéril e inútil, e o que não entenderam como
envolto nas trevas da obscuridade, tudo o Padre Vieira tem
mostrado abundante de mistérios, de modo que parecem sempre
novas as suas opiniões e que diz cousas que não vem nas Sagradas
Páginas, não sendo contudo senão cousas antigas, ocultas no mesmo
Texto Sagrado e de que os outros não fizeram caso ou não
entenderam [...]. Por esta razão é que o incomparável Autor, assim
como se deveria pôr inferior a todos os intérpretes, se dissesse
cousas que senão contivessem no Sagrado Texto, assim se deveria
elevar acima de todos, por ter descoberto com a perspicácia do seu
engenho e ter publicado cousas que estavam ocultas no Tesouro da
Sagrada Escritura.
O juízo do P.e Casnedi sobre a eficácia da exegese que Vieira
fez dos Profetas, revelando o que neles se ocultava, é esta perfeita
adesão ao seu pensamento: «Parece, pois, justo que o Reino de
Cristo, Senhor nosso, na terra, seja perfeitamente consumado antes
da vinda do mesmo Senhor como Juiz. De sorte que disto se segue
que, fundado nas profecias que ainda se não completaram e
expondo-as literalmente, prognostique muitas cousas que hão-de
acontecer na Igreja Militante, e conceba o Reino de Cristo, Senhor
nosso, na terra tal qual pode convir ao mesmo Senhor, que há-de vir
não como Redentor, mas como Juiz.
De novo no prefácio se louva a luz, a erudição, a enfática e
energia de razões, a harmónica consonância, a extensão do espírito
com que expõe literal e não misticamente o que as profecias
anunciam sobre o futuro estado da Igreja, e termina com estes
informes sobre o livro:
Divide-se este estupendo volume do Reino de Cristo Senhor
nosso, consumado sobre a terra. em três livros, como o declara o seu
mesmo Autor no princípio da sua obra: No 1.° trata da natureza e
qualidade do Reino de Cristo, Senhor nosso; no 2.° da consumação
do mesmo Reino sobre a terra; no 3.° do tempo em que se há-de
consumar e o tempo que deve durar depois da consumação.
Segue-se o texto integral da tradução:

Da imperfeição física da obra

Não falo da imperfeição moral da obra, porque demonstrarei


depois que nenhuma pode haver; falo, sim, da sua imperfeição
física, como a tenho na minha mão, porque se não sabe se ela é
fisicamente imperfeita, como a têm os outros. Da mesma sorte
ignora-se se o Autor a deixou imperfeita; assim mo certificam
algumas pessoas que viveram nos últimos meses antes da sua morte
e nos primeiros depois.
Falarei, portanto da sua imperfeição física como está na minha
mão e como me foi confiada pelo Eminentíssimo Cardeal da Cunha,
da Santa Igreja Romana, Inquisidor Geral de todos os Reinos sujeitos
ao Rei de Portugal. Quanto a mim, depois de a ter lido terceira vez,
acho que é sumamente desordenada e muito confusa, mutilada e
imperfeita.
Ora ainda que se possam facilmente pôr em ordem os primeiros
cadernos, porque não só os capítulos como os parágrafos estão
distintamente numerados, contudo não se pode fazer o mesmo aos
outros cadernos pertencentes ao 2.° e 3.° livros.

Da primeira imperfeição moral ou teológica da obra tirada do


pecado filosófico

Duas imperfeições teológicas ouço que se imputam a este


grande varão: uma sobre o pecado filosófico e outra a respeito dos
sacrifícios da Lei antiga, que se hão-de restabelecer antes do fim do
Mundo. Uma e outra explicarei em poucas palavras, a primeira
neste parágrafo e a segunda explicarei nos seguintes.
No tratado da pregação universal do Evangelho, no segundo
caderno do Autor, pág. 2, leio na margem as seguintes palavras:
«Estas opiniões acerca do pecado filosófico já em outro
exemplar foram riscadas por causa do Decreto de Alexandre VIII,
que as condenou muito depois que elas foram escritas pelo Autor.»
Com permissão, porém, do que notou a dita margem, digo que
este tal imprudentemente se alucina, querendo inferir que a opinião
do Padre Vieira, na qual defende o pecado puramente filosófico
entre os bárbaros americanos, vulgarmente chamados Tapuias, dos
quais a maior parte passa todo o decurso da sua vida em uma
invencível ignorância de Deus, querendo inferir, digo, que esta
opinião do Autor tem semelhança com a que foi condenada por
Alexandre VIII, no, ano de I690.
Eis aqui, pois, a opinião condenada: o pecado filosófico ou
moral é um ato que desconvem à natureza racional; o teológico,
porém, e o mortal é a transgressão livre da divina Lei O filosófico,
ainda que grave, naquele que tem ignorância de Deus, ou não cogita
actualmente do mesmo Deus, é pecado grave, na verdade, mas não é
ofensa feita a Deus, nem pecado mortal que faça apartar a sua
amizade, nem digno de pena eterna. Esta, portanto, foi a opinião
condenada.
Se bem se examinar, ver-se-á que Alexandre VIII condena a
opinião que defende não ser ofensa feita a Deus, nem remover a sua
amizade, nem digno de pena eterna o pecado, ainda que grave,
cometido contra a razão por aquele que não tem conhecimento de
Deus (não diz conhecimento invencível) ou que nada cogita
actualmente do mesmo Deus.
E pelo contrário, defende o Padre Vieira que o pecado, ainda
que grave, cometido contra a razão, por aquele que tem ignorância
invencível de Deus, não é ofensa a Deus.
Ora quanto dista a asserção daquele que diz que o pecado feito
por ignorância invencível de Deus, não é pecado grave contra Deus,
nem desfaz a sua amizade, nem é digno de pena eterna, da do que
afirma que não é pecado grave contra Deus, nem tira a sua amizade,
nem é digno de pena eterna o delito feito por ignorância (não
invencível) de Deus; quanto dista, digo, a asserção de um da do
outro, tanto dista a proposição do Padre António Vieira da
condenada por Alexandre VIII.

Vejamos agora a diferença destas duas opiniões, para do


mesmo modo podermos inferir a discordância que tem entre si a
opinião do Padre Vieira da que foi condenada.
1.°- É pecado grave contra Deus e ofensa do mesmo Deus e faz
apartar a sua amizade e é digno de pena eterna, quando qualquer
delito é cometido por aquele que, não cogitando actualmente de
Deus contudo implícita e virtualmente o reconhece, pela mesma
razão natural, que proíbe qualquer maldade.
2.°- Não é ofensa feita a Deus o pecado cometido por aquele
que nunca teve conhecimento de Deus, antes do mesmo Deus
sempre teve uma ignorância invencível.
A mesma repugnância que há entre estas proposições há
também entre a opinião do Padre António Vieira e a que foi
condenada. Logo, sem motivo no exemplar que foi para Roma se
riscou a proposição do Padre António Vieira, como coincidente com
a condenada, quando dela dista sumamente. Confirmo, portanto, a
opinião antecedente com esta outra que tem entre si uma paridade
irrefragável. E digo que imerecidamente se chamaria herética esta
proposição: - Não peca contra a lei quem, ignorando-a
invencivelmente, a quebranta. Não peca contra a lei quem,
ignorando-a, a viola. Logo, sem razão nenhuma se chama
condenada esta proposição do Autor: -Não peca contra Deus quem
do mesmo Deus tem uma ignorância invencível - porque foi
condenada esta outra: Não peca contra Deus quem o ignora. Pois
pode muito bem ser que tenha de Deus uma ignorância vencível,
que o não livra certamente do pecado.
Acresce ainda mais que, sendo assim, todo o II livro do Autor,
que se funda na asserção do pecado filosófico cometido por aquele
que tem ignorância invencível de Deus, deveria ser anulado. Logo
que não foi, segue-se, portanto que inconsequentemente se reprova
a proposição e não todo o livro, ou inconsequentemente se admite o
livro segundo, e não a proposição.
Ninguém poderá, portanto duvidar da discordância que tem a
proposição do Autor com a que foi condenada, mas sim tão somente
escrupulizar se é verdadeira a proposição em que ele quer admitir
entre muitos dos Americanos, por todo o decurso das suas vidas,
uma invencível ignorância de Deus.
Que é verdadeira, prova ele consolidíssimas razões, e tão
somente o poderá negar aquele, que dos Americanos quiser julgar
da mesma sorte que julga dos Europeus, entre os quais de algum
modo se dá a conhecer o verdadeiro Deus no mesmo ídolo que
invocam, veneram, a quem sacrificam e em cuja presença suplicam
vénia dos seus delitos. Quando, contudo, quisermos falar dos
Tapuias americanos como verdadeira e realmente são, devemos
afastar deles toda a espécie de deus e de Ídolos que os teólogos
reconhecem em todos os homens geralmente, e substituir em seu
lugar outras espécies muito diversas, como próprias e acomodadas à
incomparável estupidez de que são possuídos. Porque muitos há
que não só não conhecem o verdadeiro Deus, porém também não se
ocupam com religião alguma, nem ainda falsa, como seja cultivando
ídolos, invocando-os, sacrificando-lhes e pedindo-lhes vénia. Além
do que, depois de um grande trabalho que tiveram os missionários
em os catequizar, apenas escassamente entendem os mistérios da Fé
santa. São tão estúpidos, que apenas muitos só podem contar até 3 e
tudo o mais que excede a este número chamam eles muitos. E assim
vivem sem saber nem poder dizer quantos anos têm, nem quantos
dedos contêm suas, mãos, nem quantos os seus pés, e para poderem
comunicar aos nossos confessores o número dos seus pecados,
trazem um cordel, no qual dando tantos nós quantos são os pecados,
o entregam deste modo ao confessor.
Além disto, observa o Autor em muitos destes Tapuias, entre os
quais por muito tempo viveu, não só uma ignorância invencível de
Deus, por todo o decurso das suas vidas, mas também ignorância de
todo o Direito Natural. Pois a educação que dão os pais aos filhos,
ainda na mais tenra idade, é induzi-los para os furtos, homicídios e
tomarem vingança, e se nutrirem de carne humana, e a se
exercitarem em tudo quanto é obscenidade.
E tão longe estão de serem punidos por estas suas maldades,
que antes o são, se as deixam de cometer. Se, porém, algum, pelo
mesmo lume da razão, vem no conhecimento que estes crimes são
dissonantes ao Direito Natural e, contudo os puser em execução.
então assevera o Autor que neste caso o delito deste bárbaro
cometido contra a sua razão natural, tendo ele ignorância invencível
de Deus, é pecado puramente filosófico, e não deve ser punido com
pena eterna, nem é ofensa de Deus, não tendo ele conhecimento
algum do mesmo Deus verdadeiro, nem ídolos, pois que está bem
patente que, não poderá também ter religião alguma; e o mesmo
acontecerá a qualquer europeu ou idólatra, que sem dúvida venera a
alguma divindade.
Já tenho assaz provado quanto julgo ser bastante, para justificar
o Autor e escusá-lo da opinião condenada que se lhe imputa, nem
me devo mais demorar. E com isto finalmente concluo que a opinião
condenada fala do pecado filosófico cometido por aquele que tem
conhecimento de Deus e da sua Graça, o que impede que seja
puramente filosófico, e é, pois teológico, porque o mesmo Deus
verdadeiro sempre de algum modo brilha no mesmo lume da razão
daqueles que algum tanto o reconhecem, ainda que implicitamente,
de donde se segue que nestes repugna o pecado puramente
filosófico, e não nos Tapuias, que: nada absolutamente cultivam, e
por este mesmo título se vê que a proposição condenada não vem ao
caso. Porém, a esse respeito, falarei mais a baixo.

Da segunda imperfeição teológica da obra, que trata dos sacrifícios


da Lei antiga, que se hão-de restabelecer:

O parecer do Autor a este respeito é que na consumação da


Igreja, ou no seu 3.° estado, quando todos abraçarem a Lei de Cristo,
Senhor nosso, se hão-de restabelecer os sacrifícios da Lei antiga. É,
pois, este parecer tão mal entendido por alguns, que por isto julgam
indigna de ser publicada aquela admirável obra do Autor, que trata
do Reino de Cristo, nosso Senhor, consumado na Terra.
Eu, porém, lendo-a uma e outra vez e certamente antes com o
ânimo de reprovar do que aprovar, no tratado De templo Ezechielis,
no qual copiosamente disputa a respeito dos sacrifícios que se hão-
de restabelecer, nada absolutamente acho digno de censura, mas
antes a moderação e limitação com que fala o Autor. A este respeito
dá a entender que estas mesmas cousas de que fala são dignas de
admiração e louvor, como constará mais plenamente na minha
Sinopse pertencente a este trabalho.
O que para provar com suma eficácia supõe o Autor, com
autoridade de todos os teólogos, primeiramente, que os sacrifícios,
sacramentos da Lei antiga, se revogaram; em segundo lugar, que
estes se instituíram por multiplicados fins, os quais são o culto de
Deus, e para que os Hebreus se afastassem da idolatria; para
prefigurarem os Sacramentos da Lei nova o sacrifício cruento da
Redenção e o incruento da Eucaristia, e para que por meio desses
sacrifícios de ovelhas e novilhos aprendessem os Hebreus a
consagrar a Deus as paixões das suas almas, em terceiro lugar,
supõe que estes fins são de tal sorte separáveis, que um possa existir
sem outro.
Estabelecidos estes fins, assevera o Autor que, por dispensação
de Deus ou da Igreja, se hão-de restabelecer na consumação da
mesma Igreja os sacrifícios da Lei antiga, não como prefigurativos
dos sacramentos e sacrifícios da nova Lei, pois que estes já estão
presentes, porém retido o outro fim, ou como demonstrativos do
sacrifício e Sacramentos da mesma nova Lei, ou como moralmente
significativos da imolação interior da nossa alma, e tudo isto para
que os Hebreus (dos quais dez tribos estão dispersas por todo o
Mundo, e ainda se ignora aonde estejam) sendo tenacíssimos aos
seus ritos, mais facilmente se reduzam à Fé de Cristo na consumação
da sua Igreja.
E prova este restabelecimento de tantos modos já com textos da
Sagrada Escritura, já com excepcionais autoridades dos Santos
Padres, e com tão poderosas razões, que apenas se pode negar, e de
nenhuma sorte censurar, excepto se houver de censurar também a
dispensação da Igreja nascente.
Certamente consta que a Lei mosaica que proibia a comida
sanguino-lenta e sufocada, se conservou na maior, parte das
províncias da Cristandade por dispensa da Igreja, nos primeiros três
séculos do seu estado. Consta mais que a lei da circuncisão foi
revogada por S. Pedro e outros Apóstolos, e que S. Paulo, apesar de
seguir a mesma doutrina e ter impugnado em Antioquia a sua
necessidade a favor dos Gentios, contudo, por causas urgentes,
circun-cidara a S. Timóteo, nascido de pai ,gentio. E além disto,
consta também que na Igreja grega, e entre os Abissínios, ainda se
conserva no seu vigor a permissão de receber-se a circuncisão
depois do baptismo, não como necessária para a salvação, porém
sim como carácter de antiquíssima nobreza, derivada de Abraão e
Salomão.
Depois, o uso destas cerimónias legais tirado pelos Apóstolos,
como desnecessário, assim mesmo conservou o seu vigor em muitas
províncias convertidas à Fé, e agora mesmo está em uso na Igreja
grega; por que razão na perfeitíssima consumação da Igreja, quando
não só todas as gentes, porém também todos os Hebreus dispersos
por toda a Terra houverem de abraçar a Fé de Cristo, Senhor nosso,
não poderá a Igreja, ao menos no Templo hierosolomitano que se
há-de reedificar, permitir o uso destes sacrifícios? não como
necessários ou prefigurativos, porém como moralmente
significativos da imolação interior da nossa alma, significada por
meio das vítimas exterior-mente imoladas, ou como demonstrativos
dos Sacramentos da nova Lei que prefiguravam, e certamente só por
este altíssimo fim, para que os Hebreus mais facilmente se
convertam à Fé de Cristo, e deles e de todas as gentes, tanto as
convertidas, como as que se houverem de converter, se venha a
fazer um só rebanho e um só pastor.
Na verdade, é tanta a moderação com que o Autor fala neste
uso dos legais, que, podendo os estender a várias províncias e
reinos, fundado na claríssima e excelentíssima exposição dos Santos
Padres e nas muitas razões tiradas da dispensa da Igreja, contudo
ele põe limites no seu dizer e só afirma que este uso se há-de
restabelecer unicamente no Templo hierosolomitano.
Ora, quem fala desta sorte, sem ser por defeito dos divinos
Textos, porque alega muitos que clarissimamente mostram que este
uso se há-de restabelecer; quem assim restringe o seu dizer, sem
para isto ser obrigado pela contrariedade dos Santos Padres, porque,
não tendo nenhum contra si, refere em seu favor muitos e
claríssimos textos tirados deles; quem desta sorte modera a sua
proposição, sem ser por falta de razões, porque alega inumeráveis,
fundado nas histórias eclesiásticas, que referem quanto os Sumos
Pontífices têm dispensado com muitas nações acerca dos ritos dos
Hebreus; quem, digo, assim patenteia o seu parecer, a sua sentença,
ignoro eu que seja digno de censura ou que possa haver cousa
alguma repreensível que se possa objectar contra semelhante
sentença.
É verdade que pode parecer nova a alguém esta sentença, e
portanto ser digna de censura; porém prova-se, pelo contrário,
primeiramente que não pode parecer novo um parecer fundado nas
Sagradas Escrituras e nos Santos Padres, senão, para aqueles a quem
do mesmo modo estas mesmas cousas parecem novas; em segundo
lugar, se toda a novidade se deve desterrar, devem também ser
desterrados todos os antiquíssimos pareceres, excetuando-se os
primeiros a quem eles se opuseram; em terceiro lugar, ouçamos a S.
Antonino, 3 p. História, n.º 33, § 2, que diz de S. Tomás o seguinte:
«No ler era inventor de novos artigos, e de tal sorte produzia nas
determinações as suas razões, que ninguém, ouvindo-o, poderia
duvidar de o ter Deus ilustrado com raios de nova luz.»
Eis aqui pois quantas novidades traz S. Antonino de S. Tomás:
era inventor ,de novos artigos e de novas conclusões; produzia
novas razões, parecia ilustrado com raios de nova luz; tinha novo
modo de definir. E não podemos duvidar que muitos
determinando-se a cavar nos tesouros da Sagrada Escritura e dos
Santos Padres, passam em silêncio cousas que outros com mais
profundidade e meditando-as deram à luz.
LIVRO I

Este livro, que está perfeitíssimo, consta de II cadernos divididos em


12 capítulos e trata do poder de Cristo, Senhor nosso, como Rei.

SINOPSE

No I capítulo prova com muitas razões a existência do Reino de


Cristo, Senhor nosso: 1.°) porque já desde o principio do Mundo foi
figurado; 2.°) porque foi prenunciado nos Salmos; 3.°) porque foi
vaticinado pelos Profetas; 4.°) porque foi declarado no Novo
Testamento.
No II, prova que Cristo, Senhor nosso, como homem não só tem
um reino no Céu, como também na Terra. Dá e explica aquelas
palavras do Senhor:«Que o seu reino não é deste Mundo», - dizendo
que Cristo, Senhor nosso, disse que não era Rei deste Mundo,
porque não viera com aquela ostentação e majestade dos reis do
Mundo.
No III, afirma que, suposto que o Reino de Cristo, Senhor nosso,
seja no tempo posterior às quatro monarquias, pois que começou no
dia em que nasceu; portanto pela ordem sucessiva do tempo seja o
5.° Império do Mundo, contudo, na ordem da dignidade, é superior
a todos os reis e reinos da Terra.
No IV, defende que o Reino de Cristo, Senhor nosso, é não só
espiritual, mas também temporal; e o pensava assim pelas Escrituras
e Santos Padres, como, também, pela razão da união apostólica; e
porque seria grande absurdo o julgar que Cristo, Senhor nosso, não
teve tanto domínio quanto teve Adão. E passando depois a desfazer
o argumento tirado do Papa, como vigário de Jesus Cristo, ter
direito de propriedade em todos os reinos do Mundo, se acaso
Cristo, Senhor nosso, tivesse semelhante reino temporal, diz que,
assim como Cristo, Senhor nosso, não deu ao seu Vigário todo o
poder espiritual que ele tinha, pois que o Pontífice não pode instituir
sacramentos, nem santificar almas sem sacramentos, assim muito
menos lhe devia confiar todo o poder temporal que ele tinha, pois
que o Pontífice não pode instituir sacramentos, nem santificar almas
sem sacramentos, assim muito menos lhe devia confiar todo o poder
temporal que ele tinha, servindo este muito de embaraço ao poder
espiritual. Finalmente, conclui o mesmo capítulo IV, dizendo que o
Reino de Cristo, Senhor nosso, não é só espiritual, mas também
temporal.
No V, examina os títulos pelos quais Cristo, Senhor nosso,
tomou para si o Reino espiritual e temporal. Diz que pela razão da
união apostólica, pelo título de Redentor e dos seus merecimentos,
pelo título de aquisição ou herança, como herdeiro de Adão
inocente e não pecador, pelo título de eleição, quando antes da sua
vinda foi eleito pelos povos e desejado por Rei, o que tudo prova
com admirável engenho.
No VI, examina quando começará o Reino de Cristo, Senhor
nosso; e, expondo os pareceres dos que dizem ter começado no dia
em que foi concebido ou no dia em que foi crucificado, decide
admiravelmente que o Reino de Cristo, Senhor nosso, pelo título da
união, apostólica, de direito hereditário e de doação e por ser filho
de Adão inocente e de eleição por todas as gentes, teve princípio no
dia em que foi concebido; com os títulos, porém, de redenção de
merecimentos, de aquisição e de vitória, do dia em que foi
crucificado.
No VII, examina se Cristo, Senhor nosso, foi legítimo e próprio
Rei dos Judeus. Parece, pois, que não, pela razão de que a Virgem
Santíssima não gozou de direito algum de rainha, e, portanto Cristo,
Senhor nosso, em quanto seu Filho, não teve direito algum para ser
Rei dos Judeus. Ao que responde com suma agudeza que, tendo
Deus prometido a David e a sua Família não só o reino de Israel,
como que o Messias nasceria da sua família, segue-se que,
descendendo a Virgem Santíssima da família de David, e nascendo
dela o mesmo Messias, o reino de Israel pertencia a Cristo, Senhor
nosso, tanto pela natural descendência de David, como pela eleição
divina, que prometera ao Messias o reino de Israel.
No VIII, discute excelentemente as qualidades do Reino
temporal e espiritual de Cristo, Senhor nosso. Decide
admiravelmente que as qualidades do Reino espiritual consistem na
suprema dignidade sacerdotal, porquanto não só se ofereceu a si
mesmo, por si mesmo, como por nós, fundando um Reino espiritual,
e instituindo leis e meios próprios ao culto divino e à salvação da
alma. Acrescenta de mais que este poder espiritual de Cristo, Senhor
nosso, chama-se real, porque, como todo o poder temporal que
excede a todos os mais se chama real, do mesmo modo como o
poder espiritual de Cristo, Senhor nosso, excede, sem comparação, a
todos os outros poderes, por isso se chama real, porque não só é
poder de dar, sacrificar e santificar algum povo, o que tudo compete
a qualquer sacerdote, mas também é poder de instituir república
espiritual, sacramentos, leis, prémio para remunerar o bem que se
obra, e pena para castigar os delitos ou maldades, pelos quais se
poderá corromper a mesma república espiritual. Diz ao depois que
as qualidades do Reino temporal consistem em ter Cristo, Senhor
nosso, um directo e absoluto domínio sobre todos os reinos da
Terra, determinando-os e livrando-os como e quando quer, e que o
domínio de Cristo, Senhor nosso, sendo somente inferior ao do
Padre Eterno, excede sempre a todos os mais.
No IX, examina se Cristo, Senhor nosso, exerceu no Mundo um
e outro poder espiritual e temporal. É de fé que Ele exerceu o
espiritual, porque, diz, santificou ao Baptista, chamou aos magos e
aos pastores, repeliu os demônios e ofereceu-se em sacrifício a seu
eterno Pai. Do temporal diz que, ainda que não o exerceu com
aquele fasto com que o costumam exercer os reis do Mundo, porque
quis ensinar a humildade e misturá-la com o poder régio, contudo
exerceu-o sem este fasto, usando do juramento como seu, secando a
figueira, lançando do templo os mercadores, destruindo as mesas
dos banqueiros , permitindo que os reis o adorassem e que os povos
o aclamassem Rei. Acrescenta que muitas vezes Cristo, Senhor
nosso, exercera um e outro poder, espiritual e temporal, como se vê
do caso da adúltera, a qual absolvendo, mostra o poder espiritual e,
perdoando-lhe a pena de ser apedrejada, estabelecida por Moisés,
mostra o poder temporal.
No X, pergunta se Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o poder
espiritual. Diz que sim, porque exerce o ofício sacerdotal,
oferecendo-se a si mesmo a seu Pai por mãos de qualquer sacerdote,
porque, pela boca do sacerdote, diz que oferece o seu corpo. Torna a
rogar por nós e assiste a todos os pastores das almas. Demonstra,
além disso, excelentemente, que Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu
o seu poder espiritual, não só sobre todos os infiéis, iluminando-os,
ajudando-os, substituindo-lhes ministros espirituais, mas também
sobre todos os homens em geral, tanto fiéis como infiéis, reina e
exerce o seu poder espiritual. Acrescenta, além disto, que Ele o
exerce também sobre todos os condenados como juiz espiritual.
Conclui, dizendo que Cristo, Senhor nosso, exerce o seu poder
espiritual sobre os condenados como membros podres, sobre os
infiéis como membros mortificados, e sobre os justos como membros
reunidos.
Na XI, pergunta se Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o poder
de Rei temporal. Diz que sim, porque Cristo governa o Mundo,
tanto pelo que toca às cousas espirituais, como temporais, do
mesmo modo que o Verbo Divino, com a diferença somente de que
o poder de governar do Verbo Divino é inato a si mesmo, o de
Cristo, porém, como homem, é um poder participativo. Por isto diz
a Escritura que o Pai deu todo o juízo ao Filho, tanto de julgar como
de governar o Mundo, e, portanto Cristo, Senhor nosso, muda reis e
repúblicas, e por meio dos anjos e dos homens exerce no Céu o
poder do Reino temporal.
No XII, pergunta curiosamente se Cristo, Senhor nosso, há-de
governar visivelmente por espaço de 1.000 anos e que há-de haver
duas ressurreições; que na primeira ressuscitarão todos os justos,
que cheios de bens temporais reinarão com Cristo, Senhor nosso.
Mas O P.e Vieira o refuta otimamente, porque seria cousa indecente
que Cristo, Senhor nosso, deixasse o Céu para reinar na Terra com
abundância de bens temporais, e que nem é necessário que para
fazer guerra ao Anticristo e destruí-lo, que Ele desça à Terra a reinar
e a pelejar com ele.
Eis o que se contém no I Livro, que é admirável, erudito e
razoável.
Da perfeita consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso, na
Terra.
Livro II

Este II Livro é sumamente imperfeito, porquanto não tem senão


o primeiro capítulo, e dos sete cadernos falta o segundo. Se os mais
tratados que não estão ordenados por capítulos pertencem ao II ou
III Livros, só pelo contexto da matéria se poderá reconhecer.

SINOPSE

Nesta Sinopse julguei não dever proceder pelos capítulos,


porque, exceto o I, faltam todos os mais; porque, se bem todos os
tratados tenham seu título, contudo faltam todos os capítulos. Mas
devemo-nos regular pelos cadernos do mesmo, suposto falta o II.
Diz, portanto, no I.° caderno que, tendo explicado no I Livro o
poder e domínio de Cristo, Senhor nosso, como Rei, é justo que
neste II Livro exponha as pessoas acerca das quais Cristo, Senhor
nosso, exerce na Terra este poder. Ora, tendo só a Igreja Militante o
Império e o Reino espiritual de Cristo, Senhor nosso, na Terra,
porque a Igreja Triunfante não é o seu Reino na Terra, mas sim no
Céu, e consistindo a sua perfeitíssima consumação não na Fé, porém
na união de Deus, não na Esperança, porque nesta nada resta que
esperar, porém no amor beatífico, segue-se que ele fala tão somente
da Igreja Militante, que é o Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra.
Suposto, portanto, que o Reino espiritual de Cristo, Senhor
nosso, seja na Terra não só a comunidade dos Fiéis, que se chama
Igreja Militante perfeita, formada, actual, enquanto fundada na fé,
esperança e caridade, como também a comunidade de todos os
homens que estão fora da Igreja que se chama Igreja Militante,
informe, potencial e imperfeita; pergunta em que consiste a
consumação e perfeição do Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra,
ou da Igreja Militante ou imperfeita, prometida por Deus nas
Sagradas Páginas, para que com toda a certeza se faça um só
rebanho e um só pastor?
É incrível quanto este admirável Autor excede a si mesmo, para
assim dizer, a fim de provar a sua conclusão: - que o Reino de
Cristo, Senhor nosso, então será consumado e perfeito, quando
todos os homens, ou judeus ou infiéis, abraçarem a Fé de Cristo,
Senhor nosso, e segundo a Lei antiga e nova se formar um só
rebanho e um só pastor.
Do segundo caderno nada me corre dizer, porque falta.
Contudo, pelo que pude coligir do 3.°, 4.°, 5.°, 6.° 7.°, parece-me que
a intenção do Autor é provar, fundado em muitos Doutores, Santos
Padres, figuras e textos, que ainda que haja hoje na Terra muitos
infiéis que são como uma parte informe da Igreja Militante, contudo
todos absolutamente se hão-de converter e passar para a parte da
Igreja Militante, formada e aperfeiçoada pela Fé, pela Lei de Cristo,
Senhor nosso, e que nesta conversão geral de todos os homens
consiste a perfeita consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso,
sobre a Terra ou da Igreja Militante. Não me posso demorar em
referir as engenhosíssimas e muito especiais reflexões que ele forma
sobre os sagrados textos, profecias e figuras, para provar o seu
intento e como para pôr à vista a veracidade da sua proposição.
Tratado da santidade do último estado da Igreja e de que todos os
homens neste tempo hão de ser justos e se hão-de salvar

SINOPSE

Este tratado consta de 3 cadernos. Primeiramente diz que ele


dividirá este tratado em 3 pontos, que vêm a ser: se neste tempo
haverá pecados, se todos serão justos, e se todos se salvarão.
No I caderno prova que no último estado da Igreja ou na
perfeitíssima consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso, não
haverá pecado algum, segundo o que diz Isaías, não se ouvirá falar
na Terra de iniquidade alguma, o que não se tendo ainda
completado em algum estado da Igreja, se há-de completar no
terceiro estado dela. Depois, prova também pela profecia do Arcanjo
Gabriel feita a Daniel que o pecado achará fim e que a maldade será
riscada do Mundo. Logo, não se tendo ainda completado esta
profecia, há-de-se completar no último estado da Igreja, e por isso
acrescenta ainda o Arcanjo Gabriel - para se cumprir a profecia e se
ungir o Santo dos Santos - sobre as quais palavras, diz o Autor, será
ungido o Santo dos Santos com a terceira e última unção , a qual
como representada nas três unções de David, já nós distinguimos no
cap. 2.° deste livro, tratando do Reino de Cristo sobre a Terra.
Confirma o seu dito com o Salmo XCV, que é todo a respeito
das conversões dos povos: Toda a Terra se comove na sua presença,
porque o Senhor reinou, porque estabeleceu o orbe da Terra de sorte
que se não moverá. Eis aqui, diz o Autor, que Cristo, Senhor nosso,
reinará então perfeitissimamente sobre a Terra, quando o Mundo
ficar livre de todo o pecado. Traz também todo o texto do
Apocalipse, que ele interpreta com admirável engenho.
Depois disto, pergunta de que modo se extinguirão todos os
pecados? Responde: primeiro pela conversão de todos os infiéis;
segundo, pela morte antecipada de todos os pecadores que se não
quiseram converter.
No II caderno, pergunta se no Reino de Cristo
perfeitissimamente consumado na Terra, serão todos justos?
Responde que sim, porque, tirada a culpa de necessidade, há-de só
reinar a graça. Expõe depois o capítulo LX de Isaías, no qual, depois
destas palavras: - Já se não ouvirá falar de violência na tua terra -
acrescenta imediatamente estas: - Todo o teu povo será um povo de
justos - as quais palavras, se concordarmos com o texto de Isaías e
outras profecias, devem aplicar-se à Igreja Militante.
O Autor continua no mesmo assunto no II caderno, em que ele
pergunta se então todos se salvarão? Deixou contudo este ponto por
acabar, suposto que do definido pelo Autor no I.° e 2.° ponto se siga
evidentemente que todos se salvarão.
Tratado da Paz do Messias

SINOPSE

Contém este tratado três cadernos, no I dos quais, antes de


decidir se as profecias a respeito do estado do Messias estão já
completas, diz que, se estivermos pela experiência da guerra que
tem havido por todo o século, parecem não estar ainda completas; e,
depois de mostrar o erro dos Anabatistas, em que caiu antes destes o
mesmo Tertuliano, os quais negam ser lícita a guerra, o que é contra
o Direito Natural, que manda cada um defender-se como pode, traz
diversas interpretações. Primeira é que as profecias falam da paz
que reina entre os Bem-aventurados, a qual ele não admite.. A outra
é que falam de paz espiritual, que também não admite. A 3.a é que
falam da paz da Igreja e que neste tempo se completarão as
profecias, o que destrói com muitos argumentos. A 4.a é que falam
da paz que houve no Império Romano tão somente no tempo de
Augusto, a qual ele refuta, tanto porque não foi de modo algum
uma paz segura, como porque foi limitada só a este império; e a paz
prometida não foi antes do Messias e da sua vinda, como foi a de
Augusto. A 5.a é que, depois da vinda de Cristo, Senhor nosso, a paz
é muito maior, porque as guerras são menores do que dantes, a qual
ele também reprova, tanto porque é muito duvidoso se as guerras
foram maiores antes do que depois da vinda de Jesus Cristo, como
porque, se as guerras e os instrumentos bélicos de que usamos, se
compararem com aqueles de que usaram os Antigos, facilmente se
pode supor que são mais sanguinolentas as guerras de hoje do que
as anteriores a Cristo, Senhor nosso. A 6.a é que, se os Cristãos
observarem a Lei de Cristo, haverá maior paz entre eles. Refuta esta
interpretação, porque não concorda com os textos que afirmam que
as nações não tomarão armas contra nações, que a Terra será isenta
de guerras. A 7.a é que, quando Cristo, Senhor nosso, promulgou a
sua Lei, que toda é de paz, deu paz; reprova, porque se não promete
lei de paz, porém sim paz perfeitíssima.
Finalmente, no II caderno, pág. 6, diz que a paz perfeitíssima
prometida pelos Profetas ainda se não completou, porém, que se há-
de completar no último estado da Igreja, isto é, no Reino de Cristo,
Senhor nosso, consumado na Terra.
Prova pelo que diz S.to Agostinho - ainda não vimos o texto
completo -: Levando as guerras até os fins do Mundo. E suposto seja
verdade que a vinda de Cristo, Senhor nosso, aumentará a paz,
porque entre os príncipes cristãos se guardarão com mais fidelidade
os tratados de paz firmados com jura-mentos, do que entre os
Infiéis, e ainda que muitos infiéis convertendo-se à Fé, tenham
deposto o bárbaro costume de se comerem e pelejarem uns com os
outros contudo ainda se não completou a paz geral de todo o
Mundo, que há-de ser tão segura, que qualquer poderá descansar
sem susto e temor de guerra.
Primeiramente, porque esta paz, como diz Isaías, está
prometida à pregação do Evangelho; logo, que se o Evangelho ainda
não está espalhado por todo o Mundo, não está também ainda
completa a paz prometida. Segundo, porque não se há-de consumar
o Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra, senão quando todo o
Mundo se converter à Fé e se unir perfeitissimamente a Cristo,
Senhor nosso; logo, não havendo ainda a paz prometida, há-de ser
muito mais viva a mesma, com a sua luz infundirá um veemente
desejo, e sem esta perfeitíssima sujeição, fé e obediência para com
Cristo, Senhor nosso, não se há-de ainda conceder a paz prometida,
e só se completará quando todo o Mundo se resolver a seguir
inteiramente a Cristo, Senhor nosso. Refere a este assunto muitos
textos, expostos literalmente e com admirável engenho.
No III caderno, desfazendo este argumento - que parece incrível
que só a Fé seja capaz de conseguir esta perfeita paz - responde
mostrando ele neste II Livro que a Fé deste 3.° estado da Igreja é
amor à paz. Além de que diz Isaías que o Espírito Santo fará todos
os seus filhos instruídos pelo Senhor, e depois conduzirá uma
grande abundância de paz - e porque finalmente então haverá um
só coração e uma só alma e todos viverão na graça do Senhor.
No mesmo III caderno suscita esta objecção: A paz é um dos
principais sinais da vinda do Messias; logo que esta não está ainda
completa, ainda não chegou também o Messias. Responde
engenhosamente que os sinais da vinda do Messias, uns são
antecedentes, e estes se haviam de cumprir antes da sua vinda,
conforme o texto que diz que o Messias não viria até que se não
tirasse o cetro de Judá - o que na verdade aconteceu, porque então
apareceu ele, quando o cetro de Judá já tinha passado ao poder de
Herodes; outros são concomitantes, como a sua santidade, pobreza,
sua paixão e pregação; outros subsequentes, que se não haviam de
verificar e completar senão depois da sua ascensão ao Céu, como a
pregação evangélica por todo o Mundo e a paz geral. Por isso diz
David que Cristo, Senhor nosso, depois que se assentasse à direita
de Deus Padre, poria a seus pés todos os seus inimigos.
Continua a mostrar a paz prometida por Deus e diz que assim
como na arca de Noé, que foi a figura da Igreja, os leões e os lobos
formaram aliança e paz com os cordeiros e ovelhas, assim no 3.°
estado da Igreja ou na última consumação do Reino de Cristo,
Senhor nosso, sobre a Terra, os homens que forem opostos entre si
em leis, ritos e costumes, gozarão de uma paz seguríssima e
firmíssima.
Tratado da pregação universal do Evangelho Último estado da
Igreja e consumação do Reino de Cristo, Senhor nosso

Deste tratado não há capítulo algum, exceto um que não está


enumerado, pelo que, para maior inteligência e clareza, disporei a
Sinopse pela série dos dez cadernos.

SINOPSE

No I e II cadernos examina se o Evangelho tem sido pregado


por todo o Mundo. Pela parte afirmativa traz para prova o Apóstolo,
dizendo aos Romanos: A vossa Fé será levada por todo o Mundo - e
o mesmo afirma aos Colossenses; e pela parte negativa, que ele
segue, traz muitos argumentos e com curiosa erudição discorre
excelentemente pelos I7 séculos da Igreja, citando os templos em
que o Evangelho foi recebido em vários reinos do Mundo, o que
prova que ele não foi publicado por todo o Mundo no tempo dos
Apóstolos. Eis aqui a razão por que os intérpretes de S. Paulo
explicaram o texto - de todo o Mundo - entendendo o mundo
romano e outros o mundo então habitado e conhecido.
Depois disto, o Autor demora-se muito em expor o texto: Para
toda a Terra saiu o som das suas vozes - e com admirável e
engenhosa agudeza de espírito diz que uma cousa é sair e outra
chegar. Concede que a voz dos Apóstolos tenha saído para todo o
Mundo, porém, nega o ter chegado a todas as terras. Do mesmo
modo que (diz) se saírem do porto de Lisboa duas naus, uma para o
Brasil, outra para Goa, que é verdade terem ambas saído do porto ao
mesmo tempo, mas que é falso o terem chegado ambas ao mesmo
tempo, porque a que foi para o Brasil chegou primeiro.
Persuade, porém, que o Evangelho se há-de pregar por todo o
Mundo por muitos textos da Sagrada Escritura, que dizem
claramente que o Evangelho se há-de pregar por todo o Mundo.
Logo, se em todo o Mundo se há-de pregar, a voz dos Apóstolos,
apesar de ter saído para todo o Mundo, ainda não chegou a todo o
Mundo.
Finalmente, na 5.a questão do II caderno expõe, com a mesma
agudeza de engenho, os diversos modos da pregação evangélica. A
um chama mudo, que vêm a ser as mesmas criaturas irracionais, as
quais, se se considerarem, são bastantes para que os Gentios
entendam a unidade de Deus; seriam além disto bastantes para
também perceberem a Trindade das, Pessoas e a Encarnação do
Verbo, se não estivessem cegos pelos seus pecados e pelos seus
doutores, os quais como que prendem no cárcere a verdade,
segundo a expressão do Apóstolo aos Romanos: Prendem a verdade
de Deus na injustiça.
Outro modo de pregação evangélica são as vozes e a fama.
Tudo isto trata o Autor com esquisita erudição no I e II cadernos do
tratado.
No III caderno examina o Autor com grande esforço esta muito
árdua questão: Se aqueles que não crêem no Evangelho, porque não
o ouviram, devem ser condenados? Porque, sendo certo que tanto
aqueles que ouviram o Evangelho se hão-de salvar, como os que o
ouviram e não obedeceram se hão-de perder, deve-se determinar,
diz ele, se aqueles que não obedeceram, porque não o ouviram, se
condenarão ao Inferno para sempre.
Defende o Autor: primeiro, que em muitos bárbaros americanos
se dá o pecado puramente filosófico e não o teológico, enquanto ele
parece precisa-mente contra a razão natural, e não contra Deus, pois
que padecem uma invencível ignorância de Deus. Segundo, afirma
que se, dá também em muitos bárbaros invencível ignorância do
Direito Natural, porque muitos têm o furto como uma cousa
sumamente gloriosa, e por isso se aplicam a ele desde meninos,
nutrem-se da carne dos seus inimigos, e de mais, comem os seus
,próprios filhos e cometem outras obscenidades, sem que se lhes
ensine o contrário, antes pela sua omissão são repreendidos e
castigados.
Um e outro assunto prova o Autor com a autoridade dos
historiadores os mais fiéis que estiveram entre os Tapuias, e que
foram encarregados de os civilizar; os quais têm tão rombo
entendimento, que muitos não são capazes de aprender mais que
três números. Por esta razão diz o Autor: se os teólogos da Europa
(que negam ser possível a ignorância de Deus e do Direito Natural
totalmente invencível) praticassem com estes bárbaros, cederiam da
sua opinião.
Suposto, portanto, pelo Autor, naqueles bárbaros, o pecado
paramente filosófico, porque padecem invencível ignorância de
Deus, examina se, porque cometem ou cometeram o pecado mortal
puramente filosófico, deverão ser castigados com a pena eterna.
Nega. E, continuando largamente a mesma matéria no 3.°
caderno, na I.a e 2.a página. do 4.° o prova desta maneira: Todo o
motivo por que se impõe a pena eterna ao pecado mortal, é porque
ele é ofensa de um Deus infinito; dando-se, porém, muitos bárbaros
que não ofendem este Deus infinito, porque ignoram
invencivelmente a sua existência, segue-se que não são dignos da
pena eterna, mas só sim devem ser castigados com uma pena
temporal e arbitrária.
Pelo que deve haver algum lugar onde se devem punir aqueles
que cometem o pecado puramente filosófico. E porque não admire a
novidade da opinião, pergunta em que lugar se há-de punir aquele
bárbaro que morreu sem baptismo, só com o pecado venial?
Não deve ser no Purgatório, porque este lugar é só para aqueles
que morreram em graça e que hão-de gozar da presença de Deus.
Não no Inferno, porque este lugar é destinado aos que morreram em
actual pecado mortal teológico; não no Limbo, porque este estado é
para aqueles que morrem só com o pecado original, sem pecado
venial. Portanto, assim como para aqueles que morreram sem
baptismo com um pecado venial, está determinado o lugar próprio
em que devem ser punidos com a pena dos sentidos, assim para
aqueles que morrem com o pecado mortal puramente filosófico,
deve-se destinar um lugar próprio, que não seja nem o Limbo nem o
Purgatório, nem o Inferno, onde devem ser punidos.
Considerando estas cousas, nunca acabo de admirar como
alguém se atreva a riscar deste tratado a opinião do pecado
puramente filosófico, como condenado por Alexandre VIII.
Primeiramente, pergunto eu se são equivalentes estas duas
proposições: o pecado filosófico, por mais grave que seja naquele
que ignora invencivelmente a existência de Deus, não é ofensa de
Deus nem merece uma pena eterna; o pecado filosófico, por mais
grave que seja naquele que ignora Deus, não é ofensa de Deus nem
digno de pena eterna? Por certo que não. Logo, sem razão alguma
foi riscada do tratado do Autor a doutrina do pecado filosófico
naquele que ignora invencivelmente a existência de Deus.
Demais, se se extinguir a doutrina do pecado filosófico, dever-
se-ia também extinguir quase todo este tratado da universal
pregação do Evangelho, visto estar fundado no pecado filosófico.
Porque é cousa muito singular neste Autor, ver a coerência que têm
as cousas que diz com as que há-de dizer, de modo que as
derradeiras estão fundadas sobre as primeiras e se ligam umas às
outras. Nada, portanto se pode tirar deste, que se não perca todo o
tratado. Logo, para que nada se destrua do que ele tem feito por
muitos cadernos cheios de erudição e engenho, fundado unicamente
no pecado filosófico, nada se deve tirar dele.
Da mesma sorte digo que, de negar nos Cristãos e nos Idólatras
o pecado filosófico, não se segue que se deva também negar nos
Bárbaros americanos. E a razão é porque, nos Cristãos e nos
Idólatras, não há invencível ignorância de Deus, porque adoram
alguma cousa. E ainda que os Idólatras errem no seu culto, contudo
na mesma luz natural da razão que lhes proíbe alguma cousa,
sempre resplandece, ao menos implicitamente, um Deus a quem
adoram, no Bárbaro americano, porém, que nada absolutamente
adora, não existe na sua mesma razão Deus algum, pois que: padece
uma ignorância invencível da existência de um Deus, qualquer que
seja; logo, o pecado dos Cristãos e dos Idólatras contra a razão
natural não é puramente filosófico, mas é também teológico; e, pelo
contrário, o pecado dos Bárbaros, que não adoram divindade
alguma, cometido contra a razão natural, é puramente filosófico; dos
quais e nos quais o Autor defende o pecado puramente filosófico.
No IV caderno pergunta o Autor se Deus ministra a todos os
bárbaros adultos os meios suficientes para a sua salvação? Afirma
com S. Tomás, a quem de boamente concede que os exemplos
referidos por ele - de S. Pedro enviado a Cornélio, S. Paulo aos
Macedónios -, provam que Deus manda pregadores àquele que faz o
que está na sua parte; contudo, querendo mostrar que estes
exemplos não vêm ao caso, diz que de dois casos raríssimos não se
pode inferir universalmente que Deus conceda a graça da pregação
àqueles que fazem o que está na sua parte.
Depois suscita esta grande dúvida e pergunta que meios
tiveram os Americanos em 1.300 anos depois da pregação do
Apóstolo S. Tomé (pois que este foi o tempo que mediou entre a
pregação do Apóstolo e a entrada dos Europeus na América) que
meios, digo, tiveram para conseguirem a sua salvação? Porque eles
não tiveram nem um nem outro meio, isto é, sem a agudeza do
engenho pela qual pudessem . conhecer a Deus naturalmente, pelas
cousas criadas, e nem pregadores que os tirassem da sua estupidez;
logo, não tiveram meio algum de salvação eterna.
Dizer, porém, diz o Padre Vieira, que Deus deu o seu
conhecimento a todos os adultos antes da morte, para que, pecando
mortalmente, pudesse condená-los, é cousa duríssima e contrária à
piedade de Deus, que Ele condenasse a uns homens tão estúpidos e
que não tiveram pregadores por espaço de 1.300 anos. Eis aqui os
apertos em que se viram aqueles que negam o pecado puramente
filosófico; porque condenam a todos estes. Pelo contrário,
admitindo-se o pecado puramente filosófico e outro lugar além do
Céu e do Inferno em que padeçam a pena temporal aqueles bárbaros
que têm invencível ignorância de Deus e que pecam gravemente
contra a razão natural, nada se diz nem se segue que pareça cruel,
nem contra a piedade de Deus.
Para, portanto, desfazer esta dúvida, que ao Autor causa suma
admiração, diz que Deus, não providenciando, providenciou
àqueles bárbaros. E para provar isto, supõe que em Deus, além da
ciência absoluta, se dá também a condicionada, pela qual Ele vê o
que fariam aqueles bárbaros, se se lhes desse um entendimento
agudo ou se se lhes mandassem pregadores. Conhecendo, porém,
que eles haviam de abusar tanto de um como de outro meio,
cometendo o pecado mortal teológico, e que seriam condenados à
pena eterna; e que, negando-lhes um e outro meio, não seriam
punidos com a pena eterna, porém com a temporal, tão somente
depois da sua morte, Deus, que é tão cheio de piedade, negando-
lhes primeiro outro meio de salvação, não os providenciando,
providenciou-os.
Medite, portanto, o leitor que, abolindo-se a doutrina do pecado
filosófico, se deverá também abolir quase todo o tratado, pois tudo o
que se afirma no IV caderno, se funda no pecado filosófico.
Acrescenta o Autor das utilidades que daí se tiram, que vêm a
ser: que Deus, não providenciando, providenciou os dois meios de
salvação àqueles bárbaros, isto é, não lhes dando nem agudeza de
engenho, nem pregadores por onde conhecessem a Deus.
Diz que daí se seguem duas utilidades: Primeira, que,
ignorando invencivelmente a Deus, nunca poderão cometer o
pecado mortal teológico; segunda, que, cometendo só o pecado
mortal filosófico, estão livres da pena eterna.
Confirma primeiramente com S. Paulo e S. Timóteo, os quais,
como diz S. Lucas, querendo pregar a Fé de Deus na Ásia, foram
proibidos pelo Espírito Santo; porque, como explica Beda, sabia que
os Asiáticos haviam de desprezar a palavra de Deus, a qual cousa,
não sendo providência, é providência de Deus, enquanto ela livrará
da pena eterna dos sentidos a todos aqueles que invencivelmente O
ignoram, o que certamente não sucederia, se acaso O conhecessem.
E sabendo Ele que os Asiáticos haviam de resistir à sua Lei, se acaso
a conhecessem, e a Ele mesmo, não providenciando, os
providenciou, proibindo que se lhes fosse pregar.
Prova, em segundo lugar, com o Salmo XVII, que fala do Padre
Eterno, onde se lê das salvações de Seu Filho Jesus Cristo. Não diz
da salvação, mas sim das salvações; porque são dois os modos de
salvação: o primeiro é perfeito, providenciando a Fé e bons
costumes com que se adquira a vida eterna; e outro é imperfeito,
admitindo que vivam numa infidelidade inculpável, e salve ou livre
da pena eterna dos sentidos aqueles que morrem em invencível
ignorância de Deus.
Acrescenta mais do Salmo XXXV estas palavras: Salvarás,
Senhor, os homens e os jumentos. Chama homens aos fiéis que
crêem e obram bem e que se salvam pelas boas obras, e jumentos
aos infiéis, que estão entre os homens e os brutos, porque, vivendo
na sua invencível ignorância de Deus, se salvam da pena eterna dos
sentidos.
Confirma, em terceiro lugar, pelo preceito que impôs Cristo,
Senhor nosso, a S. Paulo, logo depois da sua conversão: Apressa-te-
disse - e sai já de Jerusalém, porque não receberão o testemunho das
minhas palavras. Eis aqui Cristo, Senhor nosso, prevendo que os
Judeus não se haviam de converter; por isso mandou a S. Paulo que
saísse de entre eles e os deixasse na sua ignorância, para que fossem
menos maus, não ouvindo a S. Paulo, e não se fizessem dignos da
pena eterna.
No mesmo caderno, junto do fim, pág. 8 até pág. 9, examina os
meios pelos quais se pode alcançar a conversão de todo o Mundo à
Fé de Cristo: primeiro, pela eficácia da pregação, isto é, dando tão
grande eficácia às palavras dos pregadores, que os Infiéis não lhes
poderão resistir; segundo, pelos milagres; terceiro, pelas inspirações
interiores, sem auxílio dos homens, e isto o prova
elegantissimamente por causa da impossibilidade moral de irem os
pregadores a todas as regiões dos Infiéis.
Depois, continua a declarar os instrumentos de que Deus há-de
usar para a conversão de todo o Mundo. Primeiramente, diz que o
melhor instrumento será o mesmo Cristo, do qual se lêem no Salmo
II estas palavras: Eu, porém, fui estabelecido por Ele Rei, a fim de
intimar os seus preceitos. Não diz - diz o Autor- Rei pregador,
porém sim Rei que prega; porque Cristo, Senhor nosso, nunca se
absteve de pregar. Em segundo lugar, diz que serão os homens
santos, porque, se Cristo, Senhor nosso, fundou o seu Reinado por
meio de homens santos, com muito mais razão se servirá deles para
aperfeiçoá-lo. Em terceiro lugar, diz que será o socorro dos príncipes
seculares. Porque - diz o Autor- assim como as almas não serão
governadas pelos bispos, estando separadas do corpo, mas sim
unidas a ele, assim também entre os príncipes seculares e os
eclesiásticos deve haver esta união, e por isso Deus, no Velho
Testamento, dividiu entre os dois irmãos, isto é, Moisés e Aarão, o
poder secular e sacerdotal, para que entendêssemos que se deviam
unir entre si no amor fraternal. Traz para este fim muitas histórias, e
o que diz Isaías no cap. XLIX, falando sobre a Igreja: Serão os reis os
teus curadores, e as rainhas as tuas amas.
No V caderno, pergunta se antes do fim do Mundo todos serão
cristãos e, refutando o que diz o Padre Soares, - que, ainda que a
Igreja se dilatará por todo o Mundo, nega contudo que todos se
converterão - o Autor afirma que totalmente hão-de ser cristãos,
porque a Sagrada Escritura diz que todas as gentes, pátrias e
famílias de nações o adorarão - isto é, a Jesus Cristo, acrescentando a
mesma :Escritura que até cada um dos indivíduos o há-de adorar.
Logo, por consequência, deve vir tempo em que se convertam não
só as nações, pátrias e famílias, mas ainda mesmo cada um dos
homens
No VI caderno, trata do tempo em que de uma vez ou dos
tempos em que por partes se há-de completar a conversão de todo o
Mundo à Fé, e diz que todos os intérpretes querem que esta
conversão de todo o Mundo à Fé não se completará senão depois da
morte do Anticristo por Elias, que converterá os Judeus, e por
Henoc, que converterá aos Gentios, segundo o que disse Cristo,
Senhor nosso, por S. Marcos, cap. IX: Quando vier Elias restituirá
todas as cousas. O Autor, porém, segue outro parecer, ensinando
que não há-de haver uma só conversão, porém que são duas as
conversões gerais de todo o Mundo: a primeira, pelos sucessores
dos Apóstolos, antes da morte e destruição do Anticristo, e o prova:
primeiro, porque o fim por que Cristo, Senhor nosso mandou aos
Apóstolos, foi a conversão de todo o Mundo, porque diz: Pregai o
Evangelho a todas as criaturas; logo, não se tendo ainda alcançado
este fim, algum dia se alcançará. Segundo, porque, sendo certíssimo
tanto que antes do dia de juízo todo o Mundo se deve converter à
Fé, como que, desde a morte do Anticristo até o dia de juízo, não se
hão-de passar mais que 45 dias, é impossível que em tão breve
tempo todos os homens geralmente se possam converter à Fé de
Cristo por meio de dois homens, Henoc e Elias logo, deve preceder a
vinda do Anticristo outra conversão geral de todo o Mundo.
Terceiro, porque, se antes da vinda do Anticristo todo o Mundo não
fosse cristão, o Anticristo não seria o Anticristo porque Anticristo é
aquele que se opõe aos Cristãos, logo, antes da vinda do Anticristo,
todo o Mundo deve ser cristão. Confirma, além disto, o seu dito
pelas referidas palavras de Cristo, que não diz: Elias, quando vier,
converterá tudo, porém, sim, - restituirá tudo - que quer dizer que
aqueles que por causa de tormentos e enganos do Anticristo se
tiverem afastado da Fé, serão restituídos a ela; logo, se os restituir à
Fé, segue-se que já tinham sido antes cristãos.
Ajunta muitas dificuldades desta conversões. As principais são:
que a conversão precedente à vinda do Anticristo será feita pelos
sucessores dos Apóstolos sem mudança de hábito, que terá por fim
a conversão de todos aqueles que, ou por malícia ou por erro
invencível, não tiverem abraçado a Fé de Cristo, Senhor nosso; que
esta conversão, antecedente à vinda do Anticristo, começou no
nascimento de Cristo, Senhor nosso, e, pelo contrário, a subsequente
à vinda do Anticristo principiará por Henoc na Lei da Natureza e
por Elias na Lei Escrita, e começará outra vez por eles e durará tão
somente 45 dias; que o fim desta conversão é reduzir à Fé tão
somente aqueles que pelos enganos e tormentos do Anticristo
tiverem apostatado da Fé de Cristo, Senhor nosso; que Henoc e Elias
hão-de pregar, vestidos de saco. Depois disto examina se neste
tempo tão somente se completará o oráculo de Cristo, Senhor nosso:
- Haverá um só rebanho e um só pastor. Afirma, porém, contra a
opinião de quase todos os intérpretes: porque Cristo, Senhor nosso,
diz: -Tenho outras ovelhas e é justo que eu as guie, e ouvirão a
minha voz e se fará (não diz - e se fez um só rebanho e um só pastor,
porém, se há-de fazer) um só rebanho... Segue-se que ainda não está
completo este oráculo de Jesus Cristo.
Daí, passando o Autor ao tempo e à ordem por que se há de
formar este rebanho ou congregação de ovelhas, diz que os Hebreus
se hão-de unir com os Hebreus e os Gentios com os Gentios, e
ambos se unirão com os mais. Prova, além disto, a geral conversão
de todos os homens a Cristo, Senhor nosso, e à sua Fé, tanto pelo
cap. XXXI de Jeremias, que diz: todos me conhecerão, desde o mais
pequeno até , ao maior, como pelo cap. XI, de Isaías: Será cheia a
Terra do conhecimento do Senhor, assim como as águas do mar
cobrirão a mesma Terra, ou como outros: Bem assim como as águas
cobrem o mar. E segundo diz o profeta Habacuc: A terra se encherá,
assim como as águas cobrem o mar, para que todos conheçam a
glória do Senhor. Sobre as quais palavras diz o Autor
engenhosamente que, assim como as águas podem cobrir o mar, o
conhecimento do Senhor há-de ser tão grande, que inundará o
Mundo, do mesmo modo que o dilúvio inundou a Terra.
Depois disto, nota a diferença que há entre o dilúvio de Noé e
este, cuja figura foi a de Noé; porque, assim como o dilúvio de Noé
inundou a Terra, assim também a inundará o conhecimento do
Senhor, com a diferença somente de que aquele a inundou para
destruí-la, este porém é para vivificá-la com o dilúvio do baptismo.
No IX caderno, supõe ser tradição antiga, derivada de Adão e
tida por certa entre os mesmos Antigos, que o Mundo não há-de
exceder do espaço de 6.000 anos; porque dizem que, se todo o
Mundo se completou em seis dias, os dias porém na presença de
Deus são 1.000 anos; por consequência não há-de durar mais de
6.000 anos; de sorte que os dois primeiros 1.000 anos são da Lei da
Natureza, os dois intermédios são da Lei Escrita e os dois últimos da
Lei da Graça. Todavia o Autor deixou por acabar todo o IX caderno-
o do tempo em que se há-de acabar o Mundo.
No I, examina se os homens viverão mais tempo naquele em
que se consumar na Terra o Reino de Cristo, Senhor nosso. Afirma
que sim, fundado na profecia de Isaías, cap. LXV, onde se lêem as
seguintes palavras: «Não se verá mais ali menino que viva poucos
dias, nem velho que não cumpra o tempo da sua vida; porquanto
aquele que for menino morrerá de 1OO anos e o pecador de 1OO
anos será maldito.» Da mesma sorte diz Isaías: «Edificarão casas e as
habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu fruto.»
Sendo, portanto, certo por todos os intérpretes que estas
palavras se devem entender a respeito da Lei da Graça, sendo
também certo que, desde que Cristo, Senhor nosso, subiu ao Céu,
ninguém viu menino nem velho que cumprisse os seus dias e anos,
e acontecendo, de ordinário, que aquele que fabrica não habita a
casa que construiu nem come o fruto das árvores que plantou,
segue-se necessariamente que esta profecia se completará um dia.
quando o Reino de Cristo, Senhor nosso, se consumar sobre a Terra,
e tanto mais pelo que se lê no Apocalipse a respeito de Cristo,
Senhor nosso: Eis aqui faço tudo novo, isto é, renovando as idades
passadas.
Será, porém, perfeitamente consumado o Reino de Cristo,
Senhor nosso? Com a última evidência, diz o Autor, e acrescenta
que tem tudo provado, quando todo o Mundo abraçar a Fé de
Cristo, Senhor nosso, e quando houver um só rebanho e um só
pastor.
Diz também que este Reino durará perfeitamente completo por
espaço de 1.000 anos, porque está escrito: Viverão e reinarão com
Cristo pelo espaço, de 1.000 anos; e no Reino de Cristo, Senhor nosso
perfeitamente consumado, ou quando todos forem cristãos, os
homens viverão muitos anos, ainda que todos não vivam os
mesmos, porque alguns morrerão de 100 anos, e nesta idade se
chamarão ainda meninos, outros de duzentos, outros de muitos
séculos, outros finalmente, que tiveram uma vida mais santa,
viverão 1.000 anos, para combaterem com o Anticristo e triunfarem
dele.
Dificuldades dos sacrifícios e cerimónias legais.
Objecta o Autor que, sendo sentença constante ser a Lei antiga
não só morta, mas ainda mortificada, e que jamais deve ser de novo
suscitada, segue-se, portanto que a visão de Ezequiel a respeito dos
sacrifícios legais não pode ser literalmente exposta sem o perigo da
Fé.
Para desfazer, porém, a sua objecção, supõe, em primeiro lugar,
que o antigo sacerdócio e as cerimónias do antigo sacrifício foram
revogadas. Em segundo lugar, que os antigos sacrifícios foram
instituídos, não só para o culto de Deus e para que os Hebreus
fossem retraídos da idolatria, como também para significar o futuro
sacrifício de Cristo, Senhor nosso; o que suposto- diz o Autor - não
sendo os sacrifícios legais intrinsecamente maus, porque, sendo-o,
nunca seriam lícitos pela dispensação de Deus ou da Igreja, bem
poderão segunda vez ser restituídos.
Prova o Autor a primeira parte da sua proposição por meio da
dispensação de Deus e servindo-se do Salmo L, em que se
distinguem três tempos e três géneros de sacrifícios: O primeiro
tempo é o da antiga Sinagoga; o segundo é o da Igreja presente; e o
terceiro é o da Igreja futura, quando a Sinagoga se unir à Igreja e
entregar-se totalmente à mesma Fé, pois por meio destas palavras:
Livrai-me dos sangues, ó Deus, ó Deus da minha salvação! se indica
o tempo da Igreja passada ou da Sinagoga, e os sacrifícios cruentos
desta mesma Igreja, dos quais David se desejava livrar como de
sacrifícios que não conferiam graças.
E por meio destas outras palavras: Porque, se tu tivesses
desejado um sacrifício, eu não teria faltado a to oferecer, mas tu não
terás por agradável os holocaustos, se indica o tempo e a Igreja
presente, no qual cessarão os antigos sacrifícios da Sinagoga. E
ultimamente por meio destas: Então é que tu receberás com agrado
os sacrifícios de Justiça, as oblações e os holocaustos, então é que te
oferecerão os novilhos sobre o teu altar, se indica o tempo e a Igreja
futura, no qual se há-de reedificar o templo de Jerusalém e se hão-de
restabelecer as oblações, etc., não como significativas do sacrifício
incruento ou da eucaristia como futura, porém sim do sacrifício
eucarístico como presente. Portanto, diz o Autor, entendendo
literalmente a expressão de David, segue-se que o Templo se há-de
restabelecer no tempo da Igreja futura, em que os Judeus e todas as
gentes se hão-de reduzir à Fé de Cristo, Senhor nosso.
Prova a segunda parte por meio da dispensação da Igreja ,
dizendo primeiramente que todo o legislador pode ser também
dispensador nas suas mesmas leis e que, portanto, não sendo o uso
das cerimónias legais da antiga Lei proibidas por lei divina, mas
meramente pela Igreja, poderá dispensar e permitir que se
restabeleçam as mesmas cerimónias no seu 3.o, estado.
Depois disto, passa a expor as causas mais graves por que a
Igreja há-de dispensar estes ritos no seu 3.o estado. A principal é a
inata tenacidade dos Judeus para com os seus votos; porque, diz ele,
se os Apóstolos, por causa desta tenacidade dos Judeus,
dispensaram às duas tribos, no tempo da primitiva Igreja, o
poderem conservar alguns dos seus ritos, como é constante (disse
duas tribos, porque se ignora por onde se espalharam as demais),
segue-se, portanto que poderá a Igreja ainda com maior razão
dispensar os Judeus que se houverem de converter no fim do
Mundo, o poderem usar os seus ritos, ao menos no templo de
Jerusalém, não para alcançarem por meio deles a salvação, como diz
Beda, porém para preencherem as profecias daqueles sacramentos.
Logo, satisfazendo aos argumentos do Padre Soares, mostra,
primeiramente, que a necessidade, utilidade, piedade e outras
cousas que o mesmo Padre Soares julga suficientes para a dispensa
da lei, estas mesmas podem concorrer para que a Igreja conceda aos
Judeus que se hão-de converter o uso dos seus ritos no templo de
Jerusalém.
Em segundo lugar, traz aquele memorável exemplo dos ritos
mistos-arábicos, permitidos na Espanha, em alguns templos, pelo
Pontífice, por cuja permissão os Árabes abraçaram a Igreja Romana,
como se vê nas catedrais toletana e granatense, que têm capelas
públicas, nas quais se celebram as missas com o rito chamado
moçarábico ou misto-arábico.
Em terceiro lugar, ajunta com esquisita erudição todos os ritos
permitidos pela Sé Apostólica aos Gregos, Rutenos e aos outros
cismáticos, para que deste modo pudéssemos unir as Igrejas
Orientais à Romana. Permite, diz ele, aos seus sacerdotes o
sacramento do matrimónio, o poderem consagrar em pão
fermentado e comungar em ambas as espécies, o uso da carne aos
sábados, ainda na Quaresma, e a observância dos mesmos sábados
juntamente com os domingos. E todas estas cousas lhes concede,
não para conformá-las com a observância judaica, porém para que
se confundissem os hereges simoníacos nascidos no Oriente, que
diziam não ter Deus criado o Mundo, porque descansava ao sábado,
como adverte o Padre Turriano (Livro VII) nos Cânones dos
Apóstolos. Além disto a circuncisão, que é o principal sacramento
dos Judeus, aí se permite aos Cristãos, não como culto religioso,
porém como carácter ou sinal e brasão da antiga nobreza derivada
de Abraão e Salomão, do mesmo modo com que se esculpem nos
sepulcros os brasões das famílias iguais da sua nobreza, como notou
Guilherme Reginaldo no seu livro contra Calvino, Livro II, cap. 9,
dizendo que os Abexins cristãos baptizam os infantes e logo os
circuncidam, em sinal da sua antiga nobreza, sem respeito algum ao
merecimento e confiança judaica. Logo, diz o Autor, se por
benignidade da Sé Apostólica se uniram em alguns reinos os
domingos com os sábados e o baptismo com a circuncisão, por fim
honesto e ainda político, por que razão não será então licito à Igreja
Nova o permitir que se una o sacrifício da Eucaristia com as
cerimónias naturalmente legais?
Outras muitas provas refere o autor, as quais passo em silêncio.
Termina aqui a tradução manuscrita do Códice da Biblioteca
Nacional adiante inserto. Damos a seguir a tradução por nós
próprios tentada, da parte que o tradutor baiano omitiu:
Prossegue, ponderando a utilidade máxima de tal permissão e
em sua confirmação aduz o recente testemunho do que em 1594 se
passou com a Lituânia. Com efeito, quando, por ordem de Clemente
VIII, reuniu o sínodo para trazer os Rutenos à Fé Católica, foram
nele apresentados os pedidos dos seus bispos respeitantes tanto à Fé
como aos ritos, em cuja observância são tenazes. Respondeu-lhes o
Núncio antes que os pedidos fossem levados a Roma, que, assim
como a Igreja Romana é inexorável em tudo o que respeita à
integridade da Fé, assim tem tolerado dispensas naquilo que é
determinado pelo direito humano e eclesiástico. Portanto, poderá a
Igreja permitir alguns ritos aos Judeus, que tão dificilmente
consentem em abandonar os ritos dos seus maiores.
Em segundo lugar, afirma poder dizer-se que Ezequiel pretende
que os sacrifícios legais se hão-de restabelecer, como significativos
não de Cristo futuro senão de Cristo presente, do mesmo modo que
á Igreja diz de S. João Baptista que não profetizou Cristo, Senhor
nosso, como havendo de nascer, senão que o mostrou já existente.
Consequentemente, os sacrifícios que então puderam ser
permitidos, não serão prefigurativos de futuro sacrifício eucarístico,
mas indicativos da presença do mesmo sacrifício que primeiro eles
tinham prefigurado.
Estabelece a este propósito uma comparação com uma
representação teatral a que na nossa Casa professa assistiu em
Roma, no entrudo de 1650: Em baixo, o templo de Salomão, com os
seus sacerdotes sacrificando no rito nacional; em cima, o pão
eucarístico, a que era dirigida a adoração dos Fiéis.
Eis que nada melhor ilustra - diz o Autor - a concepção do
templo de Ezequiel e seus sacrifícios legais; tal como no teatro
romano estavam presentes a figura e o figurado, a Eucaristia e os
muitos sacrifícios que figuravam, assim no templo de Ezequiel serão
simultâneos os sacrifícios legais que prefiguram a Eucaristia, a par
do que a mostra. Também das Sagradas Páginas aduz, ao propósito,
texto engenhosamente apropriado.
Diz, em terceiro lugar, que os sacrifícios legais indicados por
Ezequiel, rejeitado todo o significado figurativo, poderão ser
admitidos como demonstrativos. Tiveram eles, na verdade, segundo
Santo Agostinho, além da significação figurativa, um sentido moral,
porquanto pela imolação das vítimas aprendiam os Hebreus a
imolar a Deus o corpo e a alma (como ensina o Apóstolo); e com
agudeza diz Orígenes: «Temos dentro de nós várias vítimas que
imolamos: se vences a soberba do corpo, imolas a Deus um vitelo; se
a ira, um carneiro, se a libididez, um bode; se lúbricos
arrebatamentos dos pensamentos, uma pomba ou uma rola.»
Que, em verdade, não foi o sacrifício material a principal
finalidade dos sacrifícios, admiravelmente o prova com o Salmo
L.:«Porque, se tivesses querido um sacrifício, de qualquer modo eu o
teria oferecido; não te deleitarás com holocaustos; 0 sacrifício a Deus
é o espírito atribulado; não desprezarás, meu Deus, o coração
contrito e humilhado»
Eis em Deus - diz o Autor - duas vontades que parecem
opostas: não quer a carne do animal que se sacrifica, quer o coração
do homem, que é o que no sacrifício do animal é sacrificado. O
mesmo se exprime no Salmo XLIX: «Porventura hei-de comer carne
de touros e beber sangue de bodes? Imola a Deus o sacrifício do
louvor»
O mesmo se lê em Isaías: «Não ofereças mais sacrifícios vãos;
abomino o incenso... Lavai-vos, sede limpos... deixai de cometer
perversidades; aprendei a bem-fazer» Eis pois que Deus não quer o
sacrifício puramente material, senão o moral por ele significado.
Consequentemente, com toda a probabilidade se pode afirmar que,
no templo de Ezequiel, haverá os sacrifícios materiais significativos
do sacrifício moral que Deus ordena.
Desenvolve isto eloquentemente, advertindo que Deus ensina
os homens por meio de símbolos exteriores; assim mandou a Oseas
que tomasse como mulher uma meretriz infame que lhe desse filhos,
para deste símbolo compreenderem os Hebreus a injúria feita a
Deus; e mandou a Isaías que caminhasse nu pelas praças, para que
por sua nudez fosse entendida a nudez espiritual do Egipto e da
Etiópia; e isto desenvolve em outros exemplos, como o das
parábolas evangélicas de que Cristo se serviu para ensinar o povo.
É, pois muito provável que os antigos sacrifícios e cerimónias, que
foram como parábolas por que se exprimia a vontade divina, muitos
dos quais os Judeus não entenderam, de novo se hão-de estabelecer,
não só para que os Judeus, que se hão-de converter, atinjam a sua
significação, como também para que se convertam.
É, na verdade, vulgar, diz o insigne Autor, instruir o militar ou
o nauta por instrumentos apropriados a um e a outro; assim
também, para que, na derradeira conversão do Mundo, os Hebreus
se instruam na Fé Cristã, nada mais adequado do que o uso dos
sacrifícios legais, a par do uso do sacrifício evangélico que
moralmente indicaram.
Confirma São Gregório com um bem claro dito e feito, como se
lê no Livro IX, Registri Epistolarum: perguntado por Augustino,
primeiro bispo dos Ingleses, como lhe cumpriria proceder com eles
para dos ritos profanos os chamar a Deus, escreve o santo: Esforça-te
por que não destruam os templos, mas somente os ídolos, a fim de
que mais facilmente concorram aos lugares costumados, aí
adorando a Deus, para que não mais imolem animais ao Diabo;
mantém-nos segundo o seu uso em louvor de Deus , e ao Dador de
tudo refiram as graças em sociedade, de modo que, enquanto se
manifestem os prazeres próprios da vida exterior, na vida íntima
outros possam ser permitidos. Assim Deus se deu a conhecer o povo
israelita no Egipto, mas aqueles sacrifícios que costumava prestar ao
Diabo reservou-os para Si próprio, mandando-lhes imolar animais
em seu sacrifício; até certo ponto o alterando, dele abandonavam e
retinham alguma coisa, e posto que fossem os mesmos animais que
costumavam oferecer, contudo, imolando-os a Deus e não a Ídolos,
já não eram os mesmos sacrifícios.»
Isto escreveu São Gregório, o qual, aproveitando o próprio
exemplo de Deus, inventou um modo pelo qual os povos,
tenazmente aferrados aos seus ritos, em parte os conservassem, em
parte os perdessem e, mudando o uso e o culto dos sacrifícios, não
fosse defraudada a alegria que deles recebiam.
Assim também, diz o Autor, mudando o culto dos sacrifícios
antigos e a fé judaica, 0 povo que deve ser afastado do uso das suas
cerimónias legais, não será privado da alegria que delas recebia,
ingénitas e inveteradas como eram.
Tratado sobre se é lícito perscrutar os tempos das coisas futuras
e delas assentar alguma coisa.
Este caderno parece ser único e nada tem que pertença ao Livro
III, porque apresenta o titulo do I Capitulo. Como. portanto, o livro
primeiro e segundo têm seu primeiro capitulo, deve este pertencer
ao III Livro. Isto ainda porque, além disso, o Autor diz no I
Capítulo: «Parece-me ver no limiar deste livro...» Portanto, como o
Livro I e II tenham seus princípios, segue-se que é neste capítulo que
começa o
LIVRO III

Toda a dificuldade consiste em saber se os tratados Da


Conversão do Mundo, Da paz do Messias Do templo de Ezequiel,
pertencem ao Livro III, porque, no final deste caderno, diz o Autor:
tudo isto cumprirá demonstrar no seu lugar... Não -diz está
demonstrado. Consequentemente, se tudo depois deste caderno
deve ser demonstrado, devem aqueles tratados ser colocados depois
dele.
Quis notar isto e daqui se deve concluir que, por mais que
quem quer que seja aplique seu engenho, é muito difícil saber se os
ditos tratados pertencem ao II ou ao III Livro.

SINOPSE

Examina o Autor no Capítulo I, além do qual outro não há, se é


lícito procurar saber em que tempo se realizarão as coisas
profetizadas e assentar qualquer coisa sobre tais questões, e nega-o
com razões persuasivas: I) Porque Cristo, Senhor nosso, diz: «Não
vos pertence conhecer o tempo nem o momento que o Pai
estabeleceu em seu poder» texto que ilustra com a autoridade dos
Santos Padres. 2) Porque, se a cronologia dos tempos pretéritos é tão
incerta entre os Autores, que dificilmente um concorda com o outro,
pois que da criação do Mundo à Encarnação do Verbo afirmam uns
terem decorrido cinco mil anos, outros seis, outros sete mil, muito
mais incerta é a cronologia do tempo futuro. 3, Porque, se os
Autores discordam acerca do tempo do Dilúvio, do fim das
Monarquias c da duração do Templo, que acordo se pode esperar na
determinação do tempo futuro? 4) Porque se na História Sagrada os
meses e os anos são referidos pelas suas próprias designações, não
sucede assim nas profecias, nas quais apenas encontramos figuras e
enigmas, como se lê no Génesis, em que sete bois gordos e sete
espigas cheias, depois de sete bois magros e sete espigas secas,
significam sete anos de fertilidade e sete anos de esterilidade. E
quem, na verdade, se Deus o não houvesse revelado, teria entendido
que os sete bois e as sete espigas queriam dizer anos? Portanto, só
muito tenuemente das profecias se pode precisar o tempo futuro. 5)
Porque nada mais óbvio na Sagrada Escritura do que o tempo
representado por horas, dias, semanas, anos e séculos, e com tudo
isto nada mais obscuro, pois frequentemente a hora não significa
hora, nem o dia dia. nem os anos anos, como o Autor o mostra com
textos dela extraídos. Portanto, é grande temeridade procurar nos
textos Sagrados e precisar mais ou menos quando será consumado
na terra, com a máxima perfeição, o Reino de Cristo, Senhor nosso.
Para o Autor poder tudo isto resolver sem qualquer dúvida,
expõe pouco a pouco o seu pensamento, dizendo I) Que, quando
Deus faz qualquer revelação e revela ao mesmo tempo quando ela
se há-de cumprir, então com certeza pode ser prognosticado tanto o
acontecimento futuro como o tempo em que se realizará, como se
deixa ver na própria ressurreição de Cristo, Senhor nosso, revelada
como devendo dar-se ao terceiro dia. 2) Que, se Deus alguma coisa
revela e simultaneamente o tempo, não por dias e anos, mas por
circunstancias e sinais, então sobre sinais e circunstâncias se pode
prognosticar o tempo futuro da coisa revelada, como acontece no
advento do Messias, que só devia surgir depois que o cetro da
Judeia houvesse sido transferido a outra nação, ou seja a Herodes,
que não era hebreu. 3) Que, se Deus revela alguma coisa futura em
tempo não determinado, é louvável investigar em que tempo ela se
realizará. Prova-o com o louvor que S. Pedro dá aos Profetas: «que
fizeram profecias sobre a graça em vós, perscrutando em que tempo
e qual tempo ela se manifestaria», (I, IO-II); de maneira que, assim
como entre os homens é digno de louvor resolver os seus enigmas,
assim também o é, tratando-se dos enigmas de Deus: 4) Que
também é louvável investigação o tempo do acontecimento futuro"
mesmo quando Deus declara que se não pode saber; na verdade,
posto que isso determinadamente se não pode saber, quanto ao dia e
ano, pode contudo moralmente prognosticar-se, com maior ou
menor aproximação. Aduz geralmente o Autor o dito de Cristo,
Senhor nosso: «Quanto ao dia e à hora ninguém os sabe, nem os
Anjos do Céu.»
Ora Cristo, Senhor nosso, - diz o Autor - unicamente nega
poder saber-se o determinado dia do Juízo Final; não nega, porém,
que, sem precisar dia nem hora, se possa moralmente indicar com
probabilidade, dentro de maior ou menor espaço de tempo. E prova
este seu asserto, em primeiro lugar, com a resposta dada por Cristo,
Senhor nosso, aos Apóstolos que o interrogavam sobre o Dia de
Juízo: «Dizei-nos quando acontecerão essas coisas e qual o sinal da
vossa vinda e da consumação do século»; neste caso Cristo, Senhor
nosso, calou o tempo determinado, mas deu, contudo os sinais que
mostravam que tal tempo não era distante. Portanto, se bem
ninguém possa saber em que tempo preciso se deva consumar na
terra o Reino de Cristo, Senhor nosso, ou aquele em que o Mundo se
acabará é, contudo possível concluir-se de sinais o tempo
aproximado, tal como o médico, sem prognosticar o dia certo da
morte, pode com frequência predizê-lo com probabilidade, com
maior ou menor aproximação. Prova o mesmo asserto, em segundo
lugar, com copiosos textos dos Santos Padres, que conjecturando
próximos o Dia de Juízo e o fim do Mundo, uns os concebem
anunciados por pestes, outros por guerras, outros por sedições,
outros por outros sinais. Todos eles, se bem tenham errado nos
prognósticos, contudo mostraram com seu exemplo digno de louvor
a conjectura. Portanto, se a eles isso foi lícito, posto que tanto
distassem do fim do Mundo, muito mais a si próprio, diz o Autor, o
pode ser, visto que não é a tão grande distância de tal fim.
Resolve os argumentos opostos, dizendo que aquilo que algum
tempo é inútil, pode não o ser noutra ocasião. Quando Cristo disse
aos Apóstolos: Não nos pertence saber o tempo, então era-lhes
inútil, até mesmo pernicioso saber o que havia decretado acerca do
reino israelítico; se dissesse que nunca mais seria restabelecido, ou
que o não seria senão depois da última conversão dos Hebreus à Fé
Cristã teriam ficado imensamente tristes; e por isso assim como
Cristo, Senhor nosso, aos dois filhos de Zebedeu, que lhe pediam
participação no reinado, respondeu: «Não me pertence o dar-vos»,
assim aos discípulos: «Não vos pertence conhecer o tempo»
Admiravelmente responde ao argumento da paridade da
cronologia dos tempos pretéritos com a que ele deduz. Afirma, na
verdade: Os Autores são nela discordes, porque são em discordância
quanto à computação dos anos desde o começo do Mundo até o
Dilúvio, do Dilúvio a Moisés, de Moisés à edificação do Templo;
portanto, não é de admirar - conclui - que seja muito incerta a
cronologia do tempo passado.
Pelo contrário, não o é a do tempo futuro, porque ele não
começa desde a criação do Mundo, para deste saber o fim, antes
procede retrogradando, ou seja, desde o fim do Mundo até o
advento do Anti-Cristo, e à propagação do Evangelho a todos os
povos e conversão dos Hebreus à Fé Cristã, e deste modo algum
tanto se pode prognosticar com muita probabilidade e maior
segurança a respeito do fim do Mundo.
Eis, por suas mesmas palavras, a admirável cogitação do Autor:
Nós, pelo contrário, encontrando caminho novo procedendo do fim
para o princípio (para desde já começar o meu raciocínio),
seguiremos do fim do Mundo até o Anticristo, do Anticristo até a
universal pregação e aceitação do Evangelho, regressando até a
nossa idade e em tríplice meta estabelecida ao longo dos tempos
futuros, sem fazer tropeçar o leitor, vamos para Cristo, ao mesmo
tempo que tudo iremos demonstrando em seu lugar. Baste por
agora tudo apontar com o dedo para que a força da argumentação
não detenha suspenso o leitor.»
Note-se: tudo iremos demonstrando, não tudo é demonstrado.
Assim, pois, os tratados Da paz do Messias, Da conversão universal
do Mundo, Do templo de Ezequiel, ou não pertencem ao II Livro,
pois escreveria - tudo é demonstrado - ou cumprirá dizer que o
autor, para conjecturar sobre o fim do Mundo, regressa a tratados já
expostos no mesmo Livro II.
Conclui o Cap. I dizendo: «Mas entremos desde já, guiados pelo
verbo do Senhor, no Capítulo I.» E este I Capítulo termina, sem que
se lhe sigam quaisquer outros.

FIM. LOUVOR A DEUS


In “Obras Escolhidas”, Livraria Sá da Costa,
Lisboa, 1953.

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