A Exploração Criativa da Linguagem Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade, Das canseiras, da bebida... A poesia é uma forma de manifestação artística Triste da mulher perdida que tem a palavra como material de expressão. Que um marinheiro esfaqueara! Todo texto poético é resultado de um trabalho de Vieram uns homens de branco, linguagem feito com o objetivo de produzir Foi levada ao necrotério. determinados efeitos: Observe, por exemplo, como E quando abriam, na mesa, o poeta Oswald de Andrade trabalha a palavra neste O seu corpo sem mistério, poema: Que linda e alegre menina Relógio Entrou correndo no Céu?! As coisas são Lá continuou como era As coisas vêm Antes que o mundo lhe desse As coisas vão A sua maldita sina: As coisas Sem nada saber da vida, Vão e vêm De vícios ou de perigos, As horas Sem nada saber de nada... Vão e vêm Com a sua trança comprida, Não em vão Os seus sonhos de menina, Os seus sapatos antigos! Numa leitura em voz alta, percebe-se Mário Quintana, Prosa & verso - Porto Alegra, Ed. Globo claramente que o poeta não só falou do relógio como fez com que o ritmo dos versos lembrasse a idéia do relógio. Nesse texto, a forma dos versos é tão A linguagem poética em textos narrativos importante quanto o seu conteúdo. O poeta explorou o Uma obra literária é fruto da criatividade e imaginação significante para enriquecer o significado. Explorando de seu autor; por isso pode apresentar seres ou situações que criativamente o ritmo dos versos, a forma e o conteúdo não existem na vida real. Pode ocorrer, por exemplo, que, das palavras, o poeta constrói um objeto artístico. para chamar a atenção sobre determinados aspectos da vida, A LITERATURA E A REALIDADE um escritor crie uma história em que aconteça algo absurdo ou fantástico, que dá ao texto uma dimensão simbólica que A literatura é uma forma artística de provoca o leitor e o faz refletir sobre o significado daquela representação da realidade. Por isso, não devemos transfiguração da realidade. Para exemplificar a situação confundir o conteúdo de uma obra literária com fatos vamos ler este conto de Marina Colasanti: da vida real. O escritor, ao criar seu texto cria uma outra realidade - a realidade artística, que não pode ser Apartamento 605 analisada como se estivéssemos diante do nosso mundo Sempre chegando em casa à noite, ela o desafiava com concreto. Para compreendermos bem como ocorre a sua força, centro de atenção e de todo afeto, televisão-fulcro representação da realidade na literatura, vamos da família adorante. Ninguém o olhava, ninguém considerar dois textos que tratam do mesmo assunto. O reverenciava sua chegada de chefe, lutador do sustento. Mal primeiro, é uma notícia de jornal; o outro, um texto do viravam a cabeça em sua direção, petrificados por prefixos e poeta Mário Quintana. jingles. E não havia alternativa que não se agregar ou ser desprezado. Mulher assassinada Uma noite, cansado do repúdio, ergueu a espada e entre Policiais que faziam a ronda no centro da cidade gritos e prantos, zapt, cortou a televisão ao meio. Soluços encontraram, na madrugada de ontem, perto da Praça da Sé, cercaram as duas partes inertes no tapete, sem que alma o corpo de uma mulher aparentando 30 anos de idade. piedosa arrancasse a tomada inutilmente cravada na parede. Segundo depoimentos de pessoas que trabalham nos bares Foi dormir aliviado, dono do reconquistado silêncio. Não próximos, trata-se de uma prostituta conhecida por Nenê. haveria, porém, de receber em paz o novo dia. Antes do Ela foi assassinada a golpes de faca. A polícia descarta a amanhecer vozes o arrancaram do sono e do pijama. Correu hipótese de assalto, pois sua bolsa, com a carteira de abotoando compostura. Na sala, loquazes e uníssonas, dinheiro, foi encontrada junto ao corpo. O caso está sendo desabrochavam duas televisões. Que no gume e na ponta investigado pelo delegado do 2º Distrito Policial. estilhaçou, respingado de súbitas centelhas. Jornal da Cidade, 10/09/94. Um dia de paz. Não mais lhe concederam os destroços. Nem mais necessitavam para em silêncio recriar suas forças Observe, agora, como o poeta Mário Quintana faz uma e, múltiplas, erguer novas cabeças. Agora, quando chega perdedor sete televisões falam e cantam no centro da recriação da realidade: família. Ele se aproxima de cabeça baixa, puxa a cadeira e senta-se de costas. O espelho da parede lhe devolve a Pequena crônica policial novela. Que ele acompanha sem coragem de perder o Jazia no chão, sem vida, capítulo, sem forças para olhá-las nos olhos. E estava toda pintada Nem a morte lhe emprestara Marina Colasanti, A morada do ser, Francisco Alves. A sua grave beleza...