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2046
(25 e 26 de Junho)
Uma das marcas do século XXI é o fim da crença na plenitude, na inteireza, seja no
sexo, no amor ou na política. Aí, chega o Kar-Wai e, poeticamente, intui esse novo
mundo afetivo e sexual. Kar-Wai não sofre por um tempo sem amor, como nos
filmes que “acabam mal”, sem happy end. 2046 não lamenta a impossibilidade do
amor. Não, ele a celebra. Para Kar-Wai (e para muitos de nós), só o parcial é
gozoso. Só o parcial nos excita, como a saudade de uma plenitude que não chega
nunca. Kar-Wai assume essa parcialidade, a incompletude como única possibilidade
humana. E acha isso bom. E, num filme romântico, nostálgico e dolente, goza com
isso. Nada mais delicioso que o amor impossível. E, como canta o samba, “quem
quiser conhecer a plenitude, vai ter de sofrer, vai ter de chorar...”. Ou, “O amor é
uma droga pesada”, título de livro de Maria Rita Khel.
Kar-Wai nos apresenta a droga pesada do século XXI: a paixão. Ele é o quê? Um
romântico-punk, um pierrô pos-utópico? É por aí... um chinês neurótico dando aula
para ocidentais. O amor em Kar-Wai, para ser eterno, tem de ficar eternamente
irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a prise não pode
passar. Aí, a dor vem como prazer; a saudade, como misticismo; a parte, como o
todo; o instante, como eterno. E, atenção, não falo de masoquismo: falo de um
espirito do tempo.
Hoje em dia, não há mais uma explícita, uma clara noção do que seria felicidade,
como antigamente. O que é ser feliz? Onde está a felicidade no amor e sexo? No
casamento? Em 2046, o ano mítico do filme? Kar-Wai não lamenta o fim da
felicidade, mas o saúda. Como diz a musica do Vinicius, “é melhor viver do que ser
feliz...”, coisa que muito careta não entende.
Este filme mostra que hoje, sem sabermos com clareza, achamos que é bom ansiar
por um gozo desconhecido, é bom sofrer numa metafisica passional, é bom a
saudade, a perda, tudo, menos a insuportável felicidade. Assim, o amor vira uma
maravilhosa aventura de utopia, uma experiência religiosa, como a fé, que resiste a
todos os massacres e terremotos e guerras. Em vez da felicidade, o gozo, o gozo
rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor. Como no filme, não há mais
felicidade, só as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, hotéis desertos, luzes
mortiças, a chuva, o nada.
Como esse filme aponta, o amor hoje é um cultivo da “intensidade” contra a
“eternidade”. Toda a cultura do cinema tende para a idéia de redenção, esperança,
mas 2046 não lamenta o fim do happy end . Não. É bom que acabe esta mentira
do idealismo romântico americano, para animar o otimismo familiar e produtivo,
pois na verdade tudo acaba mal na vida. Não se chega a lugar nenhum porque não
há aonde chegar.
Tudo bem buscarmos paz e sossego, tudo bem nos contentarmos com o calmo
amor, com um “agapê”, uma doce amizade dolorida e nostálgica do tesão, tudo
bem... Mas a chama da droga pesada amor só vem com o impalpável. E isso é
bom. Temos que acabar com a idéia de felicidade fácil. Enquanto sonharmos com a
plenitude, seremos infelizes. Só o amor impossível nos põe em contato com um
arco-íris de sentimentos desconhecidos. A felicidade não é sair do mundo, como
privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a
trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo.
E tem mais... este artigo não é pessimista. Temos de ser felizes sem esperanças.