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2046 - OS SEGREDOS DO AMOR

2046
(25 e 26 de Junho)

China, França, Alemanha, Hong Kong, 2004. Drama, 129’


Direção e roteiro: Wong Kar-Wai
Fotografia: Christopher Doyle
Música: Shigeru Umebayashi
Elenco:Tony Leung Chiu Wai, Li Gong, Takuya Kimura, entre outros.

Indicado para maiores de 14 anos

O amor é uma droga pesada, por Arnaldo


Jabor*

O verdadeiro amor é impossível, logo só o amor impossível é o verdadeiro amor.


Saí do cinema onde fui ver 2046, do chinês Wong Kar-Wai, pensando nisso. Saí do
cinema como de um sonho barroco, manchado, molhado por uma grande massa de
cores e sons, de rostos, gestos, mãos, gemidos, dores e gozos. Saí como um
drogado, viajando ainda num LSD, uma mescalina da pesada, saí de um milagre
alucinado. Vi uma coisa rara: um filme que é o que ele conta. Explico: 2046 seria,
no filme, o ano futuro onde tudo seria imutável, lembrado. E agora, quando
escrevo, vejo que o tal lugar em 2046 é a própria obra.
Entramos neste filme como numa utopia, um lugar úmido, denso, esfumado,
chuvoso, cambiante, onde estaríamos no lugar, na terra da paixão. Kar-Wai é um
grande artista que faz uma súmula de influências do melhor cinema ocidental e
realiza um filme híbrido como Hong Kong, oriental para o ocidente, diferente do que
esperamos de um filme chinês. E por ele, como pelo primeiro Zhang Ymou, vemos
que a cultura erótica chinesa atravessou cinco mil anos incólume, mesmo depois
das revoluções maoístas e da China recente dos escravos globalizados. Muito mais
sofisticado que europeus e americanos.
É um filme fragmentário sobre o fragmentário das emoções de hoje. Ali estão
pedaços de Blade Runner, ecos dos Krells do Planeta proibido (lembram, cinéfilos?),
ali está Jupiter de 2001, ali estão emblemas e ícones dos filmes noir da Warner, ali
está Godard na descontinuidade narrativa, ali estão confusos cacos de Ocidente e
Oriente, uma Hong Kong da alma, músicas tropicais, Nat King Cole e ópera,
“Siboney” e a “Norma” de Bellini. Que banho... que cineasta admirável!
Em 2046, tema e matéria se misturam numa massa indissolúvel. Tudo neste filme
é uma exposição da “parcialidade” do erotismo contemporâneo. (Exemplo
brasileiro: a bunda substituindo a mulher inteira) A primeira vista parece uma
louvação da perversão, do fetichismo, do erotismo das “partes”, do “amor em
pedaços”. No entanto, Kar Wai está além do fetichismo, além da perversão. Ele
retrata (sem teses, claro) a imagerie do erotismo contemporâneo que “esquarteja”
o corpo humano. Vejam as artes gráficas, fotos de revistas de arte, como “Photo”
(ou em Tarantino), onde tudo é (reparem) decepado, dividido, pés, sapatos,
escarpins negros, unhas pintadas, bocas vermelhas, paus, seios, corpos imitando
coisas, tudo solto como num abstrato painel. Tudo evoca a impossibilidade saudosa
de um “objeto total”, da pessoa inteira.

Uma das marcas do século XXI é o fim da crença na plenitude, na inteireza, seja no
sexo, no amor ou na política. Aí, chega o Kar-Wai e, poeticamente, intui esse novo
mundo afetivo e sexual. Kar-Wai não sofre por um tempo sem amor, como nos
filmes que “acabam mal”, sem happy end. 2046 não lamenta a impossibilidade do
amor. Não, ele a celebra. Para Kar-Wai (e para muitos de nós), só o parcial é
gozoso. Só o parcial nos excita, como a saudade de uma plenitude que não chega
nunca. Kar-Wai assume essa parcialidade, a incompletude como única possibilidade
humana. E acha isso bom. E, num filme romântico, nostálgico e dolente, goza com
isso. Nada mais delicioso que o amor impossível. E, como canta o samba, “quem
quiser conhecer a plenitude, vai ter de sofrer, vai ter de chorar...”. Ou, “O amor é
uma droga pesada”, título de livro de Maria Rita Khel.
Kar-Wai nos apresenta a droga pesada do século XXI: a paixão. Ele é o quê? Um
romântico-punk, um pierrô pos-utópico? É por aí... um chinês neurótico dando aula
para ocidentais. O amor em Kar-Wai, para ser eterno, tem de ficar eternamente
irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a prise não pode
passar. Aí, a dor vem como prazer; a saudade, como misticismo; a parte, como o
todo; o instante, como eterno. E, atenção, não falo de masoquismo: falo de um
espirito do tempo.
Hoje em dia, não há mais uma explícita, uma clara noção do que seria felicidade,
como antigamente. O que é ser feliz? Onde está a felicidade no amor e sexo? No
casamento? Em 2046, o ano mítico do filme? Kar-Wai não lamenta o fim da
felicidade, mas o saúda. Como diz a musica do Vinicius, “é melhor viver do que ser
feliz...”, coisa que muito careta não entende.
Este filme mostra que hoje, sem sabermos com clareza, achamos que é bom ansiar
por um gozo desconhecido, é bom sofrer numa metafisica passional, é bom a
saudade, a perda, tudo, menos a insuportável felicidade. Assim, o amor vira uma
maravilhosa aventura de utopia, uma experiência religiosa, como a fé, que resiste a
todos os massacres e terremotos e guerras. Em vez da felicidade, o gozo, o gozo
rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor. Como no filme, não há mais
felicidade, só as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, hotéis desertos, luzes
mortiças, a chuva, o nada.
Como esse filme aponta, o amor hoje é um cultivo da “intensidade” contra a
“eternidade”. Toda a cultura do cinema tende para a idéia de redenção, esperança,
mas 2046 não lamenta o fim do happy end . Não. É bom que acabe esta mentira
do idealismo romântico americano, para animar o otimismo familiar e produtivo,
pois na verdade tudo acaba mal na vida. Não se chega a lugar nenhum porque não
há aonde chegar.
Tudo bem buscarmos paz e sossego, tudo bem nos contentarmos com o calmo
amor, com um “agapê”, uma doce amizade dolorida e nostálgica do tesão, tudo
bem... Mas a chama da droga pesada amor só vem com o impalpável. E isso é
bom. Temos que acabar com a idéia de felicidade fácil. Enquanto sonharmos com a
plenitude, seremos infelizes. Só o amor impossível nos põe em contato com um
arco-íris de sentimentos desconhecidos. A felicidade não é sair do mundo, como
privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a
trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo.
E tem mais... este artigo não é pessimista. Temos de ser felizes sem esperanças.

*publicado originalmente no jornal O Globo em 10/01/2006.

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