1.1- ARTE E REALIDADE: IMITAÇÃO E Na Grécia Antiga não havia a idéia de artista no REPRESENTAÇÃO sentido que hoje empregamos, uma vez que" a arte estava integrada à vida. As obras de arte dessa época Cada época, cada cultura, tem o seu padrão de eram utensílios (vasos, ânforas, copos, templos etc.) ou beleza próprio. Já houve até quem dissesse que "gordura instrumentos educacionais. Assim, o artífice que os é formosura". Da mesma forma, as manifestações produzia era considerado um trabalhador manual, do artísticas têm sido bastante diversas e, por vezes, até mesmo nível do agricultor ou do ferramenteiro. Ele era um desconcertantes no curso da história. Essa diversidade se artesão numa sociedade que considerava indigno o deve a vários fatores, que vão do político, social e trabalho manual. econômico até os objetivos artísticos que cada época ou Nesse período (sécs.V e IV a.C.) foram cultura tem se colocado. desenvolvida, técnicas com a principal motivação de Ao longo dos séculos, surgiram várias correntes produzir cópias da aparência visível das coisas. A função estéticas que vieram a determinar não só as relações da arte era criar imagens de coisas reais, imagens que entre arte e realidade, porém, mais importante ainda, o tivessem aparência de realidade. Há várias anedotas que estatuto e a função da obra de arte. Discutiremos aqui ilustram bem isso, embora poucos exemplares da pintura algumas dessas correntes mais importantes que grega tenham chegado até nós. Dizem que Apeles pintou marcaram a produção artística, sendo, por isso, um cavalo com tanto realismo que cavalos vivos fundamentais para a compreensão da história da arte. relincharam ao vê-lo. Outra história conta que Parrásio pintou uvas tão reais que passarinhos tentavam bicá-las. Na verdade, talvez essas pinturas só possam ser CONCEITO DE NATURALISMO consideradas realistas em relação à estilização da pintura O naturalismo constitui uma noção fundamental que a precedeu ou à pintura egípcia, por exemplo. Por que marcou profundamente grande parte da arte outro lado, temos de admirar a fidelidade anatômica das ocidental: a arte grega antiga e, após uma interrupção esculturas gregas, tais como a Vitória de Samotráeia e o durante a Idade Média, da arte renascentista até o final do Discóbolo. século XIX. Essa atitude perante a arte está fundada sobre o O naturalismo, segundo Harold Osbome, pode ser conceito de mimese. definido como a ambição de colocar diante do observador Embora mimese seja normalmente traduzida por uma semelhança convincente das aparências reais das "imitação", para os gregos ela significava muito mais que coisas. A admiração pela obra de arte, nessa perspectiva, isso. Para Platão (séc.V a.C.), no Crátilo, as palavras advém da habilidade do artista em fazer a obra parecer "imitam" a realidade. Neste caso, a tradução mais correta ser o que não é, parecer ser a realidade e não a para mimese talvez fosse "representar", e não "imitar". representação. Para Aristóteles (séc.IV a.C.),a arte"imita"a De acordo com a atitude naturalista, podemos natureza. Arte, para ele, no entanto, englobava todos os distinguir algumas variações, dentre as quais as mais ofícios manuais, indo da agricultura ao que hoje importantes são o realismo e o idealismo. chamamos de belas-artes. Por isso, a arte, enquanto O realismo mostra o mundo como ele é, nem poiésis, ou seja,"construção","criação a partir do nada", melhor nem pior. Já o idealismo retraía o mundo nas suas "passagem do não-ser ao ser", imita a natureza no ato de condições mais favoráveis. Na verdade, mostra o mundo criar. Por outro lado, também aqui poderíamos entender como desejaríamos que fosse, melhorando e mimese com o sentido de "representar". Para Aristóteles, aperfeiçoando o real. E o padrão da arte grega, que não "todos os ofícios manuais e toda a educação completam o retraía pessoas reais, mas pessoas idealizadas. Foram os que a natureza não terminou". gregos que elaboraram a teoria das proporções do corpo Ainda segundo Aristóteles, a apreciação da arte humano. vem do prazer intelectual de reconhecer a coisa Depois da Idade Média, a ruptura com a atitude representada por meio da imagem. Desse modo, ele naturalista ocorre na segunda metade do século XIX com resolve o problema do feio. O prazer, no caso, não vem os impressionistas, que passam a dar primazia às do reconhecimento da coisa feia, mas da habilidade que o variações da luz e não aos objetos representados. artista demonstra ao representá-la. Essa mudança de atitude se deve, em parte, ao E no sentido de cópia ou reprodução exata e fiel que a aparecimento do "bisavô" da máquina fotográfica o palavra mimese passa a ser adotada pela teoria daguerreótipo, que fixa as imagens do mundo de forma naturalista. E as obras de arte, nessa perspectiva, são mais rápida e mais econômica do que a tela pintada. Por avaliadas segundo o padrão de correção colocado por essa razão, os artistas, principalmente os pintores, Platão: "Agora suponhamos que, neste caso, o homem tiveram de repensar a função da arte e o espaço também não soubesse o que eram os vários corpos especifico da pintura. representados. Ser-lhe-ia possível ajuizar da justeza da obra do artista? Poderia ele, por exemplo, dizer se ela mostra os membros do corpo em seu número verdadeiro e natural e em suas situações reais, dispostos de tal Fale conosco www.portalimpacto.com.br forma em relação uns aos outros que reproduzam o Vimos que a estética é um ramo da filosofia que agrupamento natural - para não falarmos na cor e na se debruça sobre as questões ligadas à arte, inclusive as forma - ou se tudo isso está confuso na representação? teorias da criação e percepção artísticas. Poderia o homem, ao vosso parecer, decidir a Ao analisar o belo artístico, apresentamos as questão se simplesmente não soubesse o que era a teorias desenvolvidas pelos filósofos ao longo dos criatura retratada?". séculos, alguns privilegiando seu caráter objetivo, outros, o subjetivo, até chegar à posição da estética 1.2- O BELO E A QUESTÃO DO GOSTO fenomenológica para a qual o belo é qualidade de certos A questão do gosto não pode ser encarada como objetos que nos são dados à percepção. O problema do uma feio é considerado dentro da mesma ótica, afirmando-se preferência arbitrária e imperiosa da nossa que não há obra de arte feia. Em seguida, discutimos a subjetividade. Quando o gosto é assim entendido, nosso questão do gosto, como a capacidade de fazer julgamento estético decide o que preferimos em função julgamentos estéticos sem preconceito, e defendemos do que somos. E não há margem para melhoria, que a educação do gosto se dá dentro da experiência aprendizado, educação da sensibilidade, para estética. crescimento, enfim. Isso porque esse tipo de subjetividade refere-se mais a si mesma do que ao LEITURA COMPLEMENTAR mundo dentro do qual ela se forma. O NASCIMENTO DO GOSTO Se quisermos educar o nosso gosto diante de um Sempre é difícil, e por vezes até mesmo objeto estético, a subjetividade precisa estar mais impossível, datar com toda segurança o nascimento de interessada em conhecer do que em preferir. Para isso, um conceito [...]. Contudo, uma coisa é certa: foi por volta ela deve entregarse às particularidades de cada objeto. de meados do século XVII - inicialmente na Itália e na Nesse sentido, ter gosto é ter capacidade de Espanha, depois na França e na Inglaterra, e mais julgamento sem preconceitos. É deixar que cada uma das tardiamente na Alemanha [...] - que o termo [gosto] obras vá formando o nosso gosto, modificando-o. Se nos adquiriu pertinência na designação de uma nova limitarmos aquelas obras que já conhecemos e sabemos faculdade, capaz de distinguir entre o belo e o feio e de que gostamos, sejam elas música, cinema, programas de apreender pelo sentimento (aisthêsis) imediato as regras televisão, quadros, esculturas, edifícios, jamais nosso de uma tal separação – dessa krisis que logo iria se tomar gosto será ampliado. É a própria presença da obra de arte apanágio [atributo] da critica de arte. Também foi a partir que forma o gosto: toma-nos disponíveis, faz-nos deixar da representação de tal faculdade que ingressamos de lado as particularidades da subjetividade para definitivamente no universo da chegarmos ao universal. "estética moderna" (de resto, a justaposição dos dois Mikel Dufrenne, filósofo francês contemporâneo, termos " é quase pleonástica [repetitiva]). Este ponto explica esse processo de forma muito feliz, e por isso merece consideração. [...] vamos citá-lo. Diz que a obra de arte "convida a O nascimento da estética como disciplina subjetividade a se constituir como olhar puro, livre filosófica está indissoluvelmente ligado à mutação radical abertura para o objeto, e o conteúdo particular a se pôr a que intervém na representação do belo quando este é serviço da compreensão em lugar de ofuscá-la fazendo pensado em termos de gosto, portanto, a partir do que no prevalecer as suas inclinações. À medida que o sujeito homem irá logo aparecer como a essência mesma da exerce a aptidão de se abrir, desenvolve a aptidão de subjetividade, como o mais subjetivo do sujeito. Com o compreender, de penetrar no mundo aberto pela obra. conceito de gosto, efetivamente, o belo é ligado tão Gosto é, finalmente, comunicação com a obra intimamente à subjetividade humana, que se define, no para além limite, pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou de todo saber e de toda técnica. O poder de fazer justiça pelos sentimentos que suscita em nós. ao objeto estético é a via da universalidade do julgamento Uma das questões centrais da filosofia da arte do gosto". será, evidentemente, a dos critérios que permitem afirmar Desse modo, a educação do gosto se dá dentro da ou não que uma coisa é bela. Como chegar, nessa experiência estética, que é a experiência da presença matéria, a uma resposta "objetiva", uma vez que a tanto do objeto estético como do sujeito que o percebe. fundamentação do belo se realiza na mais íntima Ela se dá no momento em que, em vez de impor subjetividade, a do gosto? Mas como, também, renunciar os meus padrões à obra, deixo que essa mesma obra se a visar a uma tal objetividade, quando o belo, como todos mostre a partir de suas regras internas, de sua os outros valores modernos, pretende poder dirigir-se a configuração única. todos e agradar ao maior número de pessoas? Problema Em outras palavras, no momento em que entro no terrível com o qual a estética encontra inevitavelmente, mundo da obra, jogo o seu jogo de acordo com suas mas a priorí e em seu estado mais essencial, as questões regras e vou deixando aparecer alguns de seus muitos análogas colocadas ao individualismo no campo da teoria sentidos. Isso não quer dizer que vá ser sempre fácil. do conhecimento (como fundamentar a objetividade a Precisamos começar com obras que nos estejam mais partir das representações do sujeito?) assim como no próximas, no sentido de serem mais fáceis de aceitar. E campo da política (como fundamentar o coletivo nas dar um passo de cada vez. O importante é não parar no vontades particulares?): a priori e no estado essencial, já meio do caminho, pois o universo da arte é muito rico e que a história da estética é por excelência o lugar da muito enriquecedor. Através dele, descobrimos o que o subjetivação do mundo, ou melhor dizendo, desse mundo pode ser e, também, o que nós podemos ser e retraimento do mundo que caracteriza, ao final de um conhecer. Vale a pena. longo processo, a cultura contemporânea. ( FERRY, Luc. Homo Aestheticus: a formação do gosto democrático. São Paulo, Ensaio, 1994. p. 36-37)