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FRANCISCO JULIÃO

Luta, paixão e morte de um agitador


Copyright © Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco
www.alepe.pe.gov.br

Diretor Geral
Luiz Carlos Mattos

Diretor de Comunicação Social


José Tomaz Filho

Coordenação do Projeto Perfil Parlamentar Século XX


Angela Nascimento

Comissão Especial
Antonio Corrêa (Consultor)
Carlos Bezerra Cavalcanti
Manuel Correia de Andrade
Marc Jay Hoffnagel
Marcus Accioly
Mário Márcio de Almeida Santos

Divisão de Arquivo e de Preservação do Patrimônio Histórico do Legislativo


Cynthia Maria Freitas Barreto

Pesquisadora
Sônia Carvalho

Foto da Capa
Álbum de família de Francisco Julião

Revisão
Thema Comunicação

Capa
Manuel Pontual de Arruda Falcão
Rafael de Paula Rodrigues

Editoração Eletrônica
Mauro Lopes

Impressão
Comunigraf editora
PERFIL PARLAMENTAR
SÉCULO XX

FRANCISCO JULIÃO
Luta, paixão e morte de um agitador

Texto: Vandeck Santiago

Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco


Recife, 2001
MESA DIRETORA Eudo Magalhães
Fernando Lupa
Garibaldi Gurgel
Romário Dias Geraldo Barbosa
Presidente Geraldo Coelho
Geraldo Melo
Afonso Ferraz Gilberto Marques Paulo
1º Vice-Presidente Gilvan Costa
André Campos Guilherme Uchôa
2º Vice Presidente Helio Urquisa
Henrique Queiroz
João Negromonte
Israel Guerra
1° Secretário
João Braga
Antonio Mariano
João de Deus
2º Secretário
João Negromonte
Manoel Ferreira
Jorge Gomes
3° Secretário
José Augusto Farias
Jorge Gomes
José Marcos
4º Secretário
José Queiroz
Lula Cabral
14ª LEGISLATURA 1999-2002
Malba Lucena

Afonso Ferraz Manoel Ferreira


André Campos Marcantônio Dourado
Antônio de Pádua Nelson Pereira
Antônio Mariano Orisvaldo Inácio
Antônio Moraes Paulo Rubem
Augustinho Rufino Pedro Eurico
Augusto César Ranilson Ramos
Augusto Coutinho Roberto Liberato
Beto Gadelha Romário Dias
Bruno Araújo Sebastião Rufino
Bruno Rodrigues Sérgio Leite
Carlos Lapa Sérgio Pinho Alves
Diniz Cavalcanti Teresa Duere
Elias Lira Ulisses Tenório
SUMÁRIO

Perfil Parlamentar Século XX ....................................................................................... 6


Prefácio ........................................................................................................................... 7
Cambão .......................................................................................................................... 9
Nota ao leitor ................................................................................................................ 10
Introdução ..................................................................................................................... 11
Da SAPPP às ligas ....................................................................................................... 12
Nascido na casa-grande ............................................................................................... 14
Os aliados: a Bíblia e o Código Civil ........................................................................ 18
No país dos rurícolas ................................................................................................... 22
A chegada de Lampião ao inferno ............................................................................. 23
De como o açúcar e JK ajudaram no crescimento das Ligas ................................. 24
Os camponeses vão às ruas ........................................................................................ 25
Vitória em Galiléia ...................................................................................................... 27
“Na lei ou na marra” ................................................................................................. 29
Julião, o homem ........................................................................................................... 32
O escritor que poderia ter sido ................................................................................... 34
Cabras marcados pra morrer ...................................................................................... 36
O deputado Julião ....................................................................................................... 39
As Ligas na luta armada ............................................................................................. 42
Arraes, Jango, o PCB – e, à margem de tudo e de todos, as Ligas ..................... 43
A queda ........................................................................................................................ 45
Deu no The New York Times ........................................................................…….. 47
Fuga e prisão ............................................................................................................... 50
O outono do patriarca ................................................................................................ 58
Cronologia ................................................................................................................... 61
Bibliografia e Fontes .................................................................................................. 67
Dados biográficos do autor ................................................................................. 69
Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX

A edição Perfil Parlamentar Século XX, pela Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, com
apoio dos Diários Associados, é significativa, sobretudo, porque representa o destaque de nomes, da obra e da vida
daqueles que, por sua atuação política nesta Casa e fora dela, se sobressaíram no Estado e no País.
A Assembléia Legislativa mostra às novas gerações, com esta publicação, a ação parlamentar de alguns de
seus mais ilustres deputados ao longo de seus 166 anos.
A seleção dos parlamentares representativos do século XX foi realizada pela Academia Pernambucana de
Letras, que indicou o acadêmico Mário Márcio de Almeida Santos, o Conselho Estadual de Cultura, representado
pelo conselheiro Marcus Accioly, a Fundação Joaquim Nabuco, que indicou o professor Manuel Correia de
Andrade, a Universidade Federal de Pernambuco, representada pelo professor Marc Jay Hoffnagel, e o Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, que se fez presente pelo pesquisador Carlos Bezerra
Cavalcanti. Este grupo de notáveis constituiu a Comissão Especial, a qual teve a consultoria do ex-deputado e
presidente em exercício da Academia Pernambucana de Letras, Antônio Corrêa de Oliveira.
As reuniões que antecederam a divulgação do resultado final definiram os critérios para a seleção: que o
parlamentar já tivesse falecido; atuação na Assembléia Legislativa; atuação política e profissional.
Os nomes escolhidos foram Agamenon Sérgio de Godoy Magalhães, Antônio Andrade Lima Filho,
Antônio Souto Filho, Carlos de Lima Cavalcanti, Davi Capistrano da Costa, Estácio de Albuquerque Coimbra,
Francisco Augusto Pereira da Costa, Francisco Julião Arruda de Paula, Gilberto Osório de Oliveira Andrade, João
Cleofas de Oliveira, Joaquim de Arruda Falcão, José Antônio Barreto Guimarães, José Francisco de Melo
Cavalcanti, Mário Carneiro do Rego Melo, Nilo Pereira, Nilo de Souza Coelho, Orlando da Cunha Parahym,
Oswaldo da Costa Cavalcanti Lima Filho, Paulo de Figueiredo Cavalcanti, Paulo Pessoa Guerra, Ruy de Ayres
Bello, Walfredo Paulino de Siqueira.
O Parlamento é o espaço democrático onde os cidadãos são representados pelos deputados. Esta
publicação é uma homenagem àqueles que tornaram ainda mais importante o Poder Legislativo.
Serão publicados três mil exemplares de cada um dos 22 volumes, os quais serão distribuídos,
majoritariamente, nas escolas e bibliotecas. A redação destes Perfis está a cargo de jornalistas profissionais, aos
quais esta Casa não impôs restrições, confiando-lhes o livre exercício dos seus estilos e características pessoais.
Esta coleção interessa a estudantes, a políticos, a pesquisadores e à sociedade de um modo geral, pois nela
estão contidas novas informações sobre a História de Pernambuco e do Brasil.
A iniciativa da atual Mesa Diretora da Casa de Joaquim Nabuco concretiza a determinação de que vamos
deixar uma Assembléia Legislativa que seja motivo de orgulho para a sociedade que nela se vê representada.

Deputado Romário Dias,


Presidente da Assembléia Legislativa
do Estado de Pernambuco

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 6


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

PREFÁCIO

Luta, Paixão e Morte de um Agitador, ensaio biográfico de Vandeck Santiago, nos traz um sucinto e
convincente perfil de Francisco Julião, sem favor, um dos mais emblemáticos líderes políticos do século XX com
dimensão nacional e internacional, talvez só comparável a Joaquim Nabuco.
Defendendo a causa da reforma agrária com denodo e coragem, Julião soube manter-se sempre à altura do
seu tempo, parecendo, em certos momentos, mais um utópico do que uma figura quixotesca. Coerente em seu ideal,
sem transigir ou capitular diante das dificuldades ou adversidades foi, além do mais, um raro exemplo de homem
honesto, quer no exercício dos mandatos de deputado estadual e federal, quer no desempenho das funções de líder
máximo das Ligas Camponesas.
No plano político manteve-se fiel aos princípios programáticos do Partido Socialista Brasileiro,
comportamento raro, diga-se de passagem, dado que nossos políticos, na maioria dos casos, nos dias que correm,
não só negligenciam a defesa de seus ideais políticos, mas se esquivam de assumir as responsabilidades para as
quais foram eleitos pelo voto popular, preferindo as vantagens do cargo em detrimento dos sacrifícios que a
representação parlamentar naturalmente lhes atribuem.
Para muitos a finalidade da política é o Poder. Para poucos, pouquíssimos, a política abarcaria nas ações de
seus agentes aqueles fundamentos básicos que se relacionam com o sentido etimológico da palavra política, isto é, a
doutrina do Direito e da Moral, a Teoria do Estado, a arte ou a ciência de governar, o estudo das relações dos
comportamentos humanos que são capazes de criar um sistema de política positiva. Se há quem entenda a política
como arte e ciência, também há quem a considere apenas uma arte. Arte, aliás, não muito recomendável, como
escreveu D´Alembert, quando disse que a política é arte de enganar os homens. Essa idéia negativa se aproxima do
que disse Shakespeare: “a política é algo que paira acima da consciência”. Ou o completo desinteresse de Voltaire
pela política, pois argumentava que, em vez de preocupar-se com ela, preferiu lutar no sentido de tornar os homens
menos tolos e mais respeitáveis. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Há políticos que dignificam a política. E
Julião foi um deles.
A vida de Francisco Julião apresenta, entre tantos aspectos destacáveis, a vantagem de nos dar o retrato de
um político que não se deixou seduzir pelo Poder. O sentido de sua luta sem trégua em favor da reforma agrária,
afirmou-se, antes de tudo, por meio de sua pertinaz determinação de transformar o Brasil num país rico e promissor,
onde todos os seus filhos tivessem a oportunidade de satisfazer suas reais necessidades de trabalho, educação,
saúde, habitação etc. Um sonho, portanto, sobretudo quando se trata de um país como o Brasil, em que a Justiça
Social ainda soa como algo inatingível para a maioria de sua população.
Ao longo dos cinco séculos de nossa História o ideal de Justiça Social foi a bandeira levantada por aqueles
“derrotados” de nossos embates políticos. Desde a época colonial aos tempos presentes da República o diapasão
não registra outra tonalidade. As poucas conquistas sociais são contabilizadas como concessões ou favores dos
dirigentes de plantão.
Todas as vozes que se levantaram e agiram com a intenção de exigir mais além do oficialmente permitido,
foram caladas. No Brasil, a implementação de reformas políticas fundamentais, capazes de provocar mudanças
significativas, sempre representou algo difícil de ser assimilado pela classe dirigente. Talvez seja por isso que
arrostamos os mais baixos e humilhantes índices de qualidade de vida, só comparáveis a outros países da América
Latina e da África.
No momento em que a Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco resolve trazer a público um
pouco da vida daquelas figuras que, no passado remoto ou recente, honraram e dignificaram os mandatos que o
povo lhes conferiu, cremos que as novas gerações têm condições de avaliar com maior isenção de ânimo o papel
desempenhado por seus mais respeitáveis representantes. Eles, de alguma maneira, simbolizam as valorosas ações
do povo pernambucano. Espelham o perfil de uma terra marcada pela coragem, pelo martírio e pela atitude heróica
de grande parcela de seus filhos. Diante dos mais difíceis momentos de nosso caminhar histórico eles não baixaram
a cabeça e resistiram à opressão, à repressão, à ditadura, à falta de liberdade. Em diversas fases, seus brados
levantaram-se em revoluções libertárias, como as de 1817, 1824 e 1848. As derrotas sofridas não foram capazes de
apagar da memória a hombridade e o destemor dos pernambucanos. Aqui se provou que o futuro de um povo não se
posterga indefinidamente ao sabor da vontade do poderoso do dia. Por isso, Pernambuco foi alcunhado de o Leão
do Norte.
Ao falarmos do passado e do presente – cenário temporal do acontecer histórico – somos tentados a traçar
um paralelo entre Joaquim Nabuco e Francisco Julião, como sugerimos no início destas palavras. Essa comparação
torna-se mais clara se, despidos de certos juízos ideológicos, a tomamos pelas semelhanças e diferenças existentes
entre estes dois políticos pernambucanos. Ambos defenderam causas fundamentais com profundas conseqüências
para o destino político do Brasil: Nabuco, a libertação dos escravos nas últimas décadas do século XIX; e, Julião, a
reforma agrária por volta do meado do século XX. Ambos, inteligentes e cultos, revelaram-se excelentes advogados
e grandes oradores. Ambos foram egressos de classes opostas aos interesses dos escravizados e dos camponeses

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 7


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

sem terra, ou seja, não tinham nenhum compromisso com suas condições de filhos de senhores donos de terra.
Ambos desprezaram o acúmulo de riquezas como forma de ostentação ou prazer pessoal. Entre eles, porém, houve
uma grande diferença: Nabuco foi vitorioso na defesa de sua nobre causa, enquanto Julião, aos olhos de seus
inimigos, um simples agitador social “derrotado”. E mais do que isso: perseguido, preso, torturado e exilado de sua
Pátria durante a ditadura militar instaurada a partir de 1964.
Sempre há na historiografia das idéias políticas de um dado povo a possibilidade de entendermos melhor a
forma de agir de nossos políticos. E mais. As novas gerações, a partir de tais registros históricos, tomam
conhecimento dos passos das principais figuras de nossa História. E assim se preserva a nossa memória.
Lamentavelmente, boa parte de nossos historiadores de idéias políticas tem ignorado ou tratado superficialmente
este curioso filão das lutas agrárias no contexto da vida brasileira. A verdade é que o movimento social das Ligas
Camponesas constituiu-se no principal móvel ou catalisador de reações adversas capazes de dar ao Brasil novo
destino institucional a partir do golpe militar de 1964. Até quando se analisa o movimento camponês brasileiro ao
lado das chamadas “reformas de base” de João Goulart, em 1963, não se pode desconhecer o papel exercido por
Julião. O mesmo se diga em relação a um certo protagonismo desenvolvido pelos afãs socialistas e nacionalistas de
algumas correntes partidárias integrantes do espectro político brasileiro daquela época. Tão vivos e profundos são
os apelos provocados pela questão agrária no Brasil que, nos dias de hoje, não se pode negar o vínculo histórico das
Ligas Camponesas com o Movimento dos Sem-Terra – MST, que, com seus erros ou acertos, apresenta-se como a
força capaz de mediar o assentamento das bases positivas de um processo de reforma agrária no Brasil.
Essa indiferença por parte de nossos historiadores parece arrimar-se na velha tendência que levam estes
estudiosos a escreverem a História na perspectiva do positivo e não na do negativo, como nos lembra Benedetto
Croce em seu ensaio La historia como hazaña de la libertad. Noutras palavras: é melhor e mais rentável escrever-se
sobre os vitoriosos, pois, falar dos “derrotados” constitui um incômodo.
Um outro curioso aspecto que salta nesta vibrante biografia de Francisco Julião é o sentido irreprimível de
um certo ar utópico na sua trajetória. Em vários momentos, suas crenças e justificativas beiravam ao quixotesco,
mas nunca deixavam de apoiar-se numa visão utópica. Uma das mais notáveis, sua incondicional confiança no
potencial revolucionário da classe camponesa, ao contrário dos comunistas que defendiam ser a classe operária a
responsável pela revolução brasileira. Como se fora um Bakunin à brasileira, Julião escudou-se no campesinato e
tentou, com todas suas forças, organizá-lo em busca de uma “reforma agrária na lei ou na marra”. Aqui, sem
dúvida, mais do que os sinais do revolucionário apareciam os de um visionário ou utópico. Ficou claro neste lúcido
ensaio que ao líder das Ligas faltaram condições que lhe proporcionasse qualquer tentativa revolucionária, isto é,
aquela ação que corresponderia à palavra de ordem: na marra. A organização das massas, camponesas ou operárias,
em todos os tempos, dependeu de um complexo quebra-cabeça que nem Lenin nem Mao nem Fidel Castro
conseguiram ficar imunes aos erros e equívocos de avaliações deterministas que a História mais tarde viria
desmentir.
Ficou, também, ressaltada neste ensaio biográfico uma característica especialíssima de Julião: a sua
honestidade. Essa qualidade, aliás, rara entre a maioria dos nossos políticos, no caso do autor de Até Quarta,
Isabela marcou de maneira profunda sua vida de advogado dos humildes, de parlamentar e de líder dos camponeses
brasileiros. Sem apego à riqueza material, viveu toda sua existência numa postura franciscana, sempre dividindo o
pouco que possuía com o primeiro necessitado que o procurasse.
O que vale como realidade histórica, por fim, que a bandeira por ele defendida – a luta pela terra – décadas
depois do seu ocaso como líder dos camponeses brasileiros, foi retomada e levantada por outra geração,
confirmando-se, assim, a atualidade da questão agrária no Brasil. Por isso, em certo sentido, pode-se dizer que
Julião permanecerá montado na História, circunstância que nos faz lembrar aquela imagem de Leibniz, que diz: “O
tempo presente encontra-se cheio de futuro”.

Cláudio Aguiar
Escritor, autor de Caldeirão, entre outros.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

“Agitador, sim! Como é possível conceber a vida sem agitação? Porque o vento agita a planta, o pólen se
une ao pólen de onde nasce o fruto e se abotoa a espiga que amadurece nas searas. O gameto masculino busca o
óvulo porque há uma causa que o agita. Se o coração não se agita, o sangue não circula e a vida se apaga. Que
dizer da bandeira que se hasteia ao mastro e não se agita? É uma bandeira morta. Qual é, por excelência, o mérito
tão grande de Bartolomeu de Las Casas? Haver agitado de maneira extraordinária o problema do índio durante
sua larga e fecunda existência. É agitando que se transforma a vida, o homem, a sociedade, o mundo. Quem nega a
agitação, nega as leis da natureza, a dialética, a ciência, a justiça, a verdade, a si próprio. Sabe o físico que para
manter a água cristalina tem de agitá-la antes de lhe derramar o sulfato de alumínio que toma as partículas de
impureza e desce com elas para o fundo. Manda o médico que se agite certos remédios no momento de tomá-los e o
farmacêutico chega a escrever nas bulas este aviso: ‘Agite antes de usar”.
O crime não está em agitar, mas em permanecer imóvel. Uma sociedade que não se agita é como um
charco, suas instituições se estagnam e apodrecem. Inútil, portanto, é tentar reprimir a agitação, envolvendo-a nas
malhas do libelo acusatório. Tudo passa sobre a face da terra e debaixo das estrelas, os impérios, as tiranias, os
carrascos. Mas a agitação nunca passará. Nem que haja a consumação dos séculos de que falam os profetas
bíblicos.
É que ela, a agitação, se nutre de uma paixão. A paixão da verdade.”

Francisco Julião, Cambão

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

NOTA AO LEITOR

As frases de Francisco Julião utilizadas neste livro foram extraídas das suas entrevistas e dos textos que
escreveu. Os diálogos reproduzidos partem também de outras publicações. Todas as fontes estão mencionadas na
bibliografia. Sobre Julião e as Ligas Camponesas há um vasto material escrito, e nele, às vezes, não se tem
concordância sobre determinados fatos ou datas. Daí adotei o critério de publicar o que surgia em duas ou mais
fontes – valendo-me para isso não só de livros, mas de discursos inéditos e entrevistas com seus familiares.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade dos anos 50, um movimento surgido nos canaviais pernambucanos atraiu a
atenção do Brasil. “Ligas Camponesas”, era assim que se chamava. “Reforma agrária na lei ou na marra”, este era o
seu lema mais conhecido. O movimento organizava os camponeses na luta pela terra mas, implicitamente, impelia-
os a conquistar algo que, em toda a História do Brasil, nunca tiveram: cidadania. Ao lutar pela terra, organizados, os
camponeses reunidos em torno das Ligas ganhavam dimensão política, adquiriam condições para se libertar do jugo
que os oprimia havia séculos. Era algo completamente novo no Brasil. Por isso arrebatou o imaginário dos que
sonhavam com transformações no País. E assustou aqueles que preferiam que tudo continuasse como sempre
estivera.
À frente desse movimento, como o principal responsável por sua criação, direcionamento político e
organização, estava um deputado pernambucano de 40 anos: Francisco Julião. Filho e neto de senhores de engenho,
ele fizera a opção contrária às suas origens. Deixou a comodidade da casa-grande e colocou-se ao lado dos
camponeses. Entregou-se completamente à causa deles. Uma entrega completa. Apaixonada. Daquelas que, em se
tratando dos líderes de dimensão nacional, raramente se vê no Brasil. “Quem assume um compromisso com o povo
não deve fazê-lo pela metade, quem toma o seu partido não pode limitar os passos, fixar condições, restringir a
ação, parar no meio do caminho. Quem, finalmente, decide-se a abraçar a sua causa, ou a faz de maneira radical, ou
finda por atraiçoá-la, cedendo ao inimigo, conciliando com ele, transigindo, pactuando. Numa palavra:
capitulando”, dizia ele. Foi em virtude dessa entrega, em virtude do seu conhecimento da causa que abraçara, em
virtude do momento histórico em que viveu, em virtude de tudo isso que se pode dizer, sem nenhuma dose de
subjetivismo na afirmação, que nenhum partido, nenhuma liderança, fez tanto pelo movimento camponês brasileiro
quanto Francisco Julião. O golpe militar de 64 extinguiu as Ligas e cassou o mandato de deputado federal que
Julião exercia.
Até chegar aí, porém, muita coisa acontecera.
Ele fora, por duas vezes, deputado estadual. Escrevera livros – dois deles de ficção, e, como contista, foi
elogiado por Gilberto Freyre. Era constantemente acusado de “comunista”, mas vivia às turras com o Partido
Comunista Brasileiro (PCB), então a principal força de esquerda. Amigo de Fidel Castro e de Che Guevara, amava
a revolução e queria que os camponeses tivessem nela lugar de destaque. A definição que mais gostava de utilizar
para si era a de agitador – o último do Brasil, já que hoje ninguém mais quer ser chamado assim. Era um homem
valente e namorador – teve seis filhos, com três mulheres diferentes. Uma delas era camponesa, e morava na
propriedade da família dele, como agregada. Casar, de papel passado, com toda a pompa, ele só casou uma vez:
com Alexina Crêspo, uma ex-aluna dos seus tempos de professor particular, com quem teve quatro filhos. No seu
trabalho de conscientização nas Ligas, a Bíblia foi uma de suas armas – mas ele mesmo era ateu (fato que,
evidentemente, uma vez que isso só iria dar munição aos adversários e criar problemas no movimento, ele nunca
confessou de público). Sofria de enxaqueca, e nas crises da doença trancava-se num quarto, colocando um pano
escuro sobre o rosto. Não fumava, não jogava e não bebia. Era advogado, e dos bons. Além de defender os
camponeses, pegava causas que todos recusavam – como a das prostitutas do Recife, que um delegado de Costumes
proibira de fazer ponto no Bairro do Recife. Ganhou a questão com o argumento, ainda atual, de que todos –
inclusive as prostitutas – tinham o direito de ir e vir. Para o grande público, ele e Miguel Arraes eram amigos e
aliados – os dois, porém, sempre tiveram mais divergências que convergências. Só se uniram na prisão, quando
tiveram que dividir a mesma cela e até traduziram um livro do Francês para o Português. O golpe militar encontrou-
o na Câmara, onde fez um discurso que entrou para a antologia dos pronunciamentos mais importantes do
Congresso. Para não ser preso, fugiu de Brasília disfarçado de migrante nordestino. Lançou um manifesto,
publicado numa revista uruguaia, conclamando – em vão – o povo a partir para a resistência armada ao novo
regime. Ficou escondido durante meses, morando numa cabana, numa área rural próxima a Brasília. Graças à
delação de um pernambucano, a polícia o localizou. Não foi, porém, reconhecido. Os policiais olharam suas mãos,
calejadas, e estavam quase se convencendo de que ele era mesmo um camponês. Foi quando um deles, mais
desconfiado, teve a idéia de mandar que tirasse as botas. Matou a charada: “As mãos são de camponês, mas o pé é
de deputado”. Libertado por habeas corpus, em 1965, exilou-se no México, depois de ter o pedido de asilo negado
pelas embaixadas da Iugoslávia e do Chile. Voltou em 1979, com a anistia. Filiou-se ao Partido Democrático
Trabalhista (PDT). Em 1986, candidatou-se a deputado federal e surpreendeu a todos ao apoiar o candidato das
forças conservadoras, José Múcio Monteiro, contra Miguel Arraes. Foi duplamente derrotado: teve uma votação
insignificante para deputado e Arraes ganhou com folga. Acabou retornando ao México. Nunca se preocupou com
dinheiro. Passou os últimos dias de sua vida morando num apartamento alugado, minúsculo, de má qualidade,
construído sobre uma bodega na periferia de uma cidadezinha mexicana, Tepoztlán. Morreu lá, como um
personagem de García Márquez, pobre, quase na penúria, distante do dia-a-dia da política brasileira. Tinha 84 anos.
Era o dia 10 de julho de 1999.
É essa história toda que vamos contar aqui.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 11


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

DA SAPPP ÀS LIGAS

A HISTÓRIA CHEGA A CAVALO

Num dos últimos dias de dezembro de 1954 um grupo de camponeses atravessou a Avenida Caxangá, no
Recife, para um encontro com a História.
Eles não sabiam disso.
A pessoa com quem iriam encontrar, também não.
Não havia nenhum indício, nada que mostrasse que aquele dia, aquelas pessoas, aquele encontro, pudessem
ter algo de especial.
O que havia era o de sempre: o calor, que nos jornais da década de 50 muitas vezes era chamado de
“infernal”, e um grupo de camponeses vítimas de injustiças, fato que nem merecia a atenção dos jornais.
Os camponeses estavam em uma carroça puxada a cavalo. Em dias anteriores já haviam batido em várias
portas, em busca de ajuda, sem nada conseguir. Alguém lhes dera um nome e um endereço. Era para lá que estavam
rumando. Talvez não fossem bem recebidos. Talvez tudo não passasse, mais uma vez, de uma esperança frustrada.
Talvez tivessem que voltar para casa sabendo que, na luta em que estavam envolvidos, não poderiam contar com
ninguém além deles.
Talvez até estivessem pensando numa dessas coisas quando chegaram a uma rua lateral que dá acesso ao
bairro da Várzea e encontraram o endereço que procuravam. Rua Cruz Macedo, 99. Era um casarão em estilo
colonial, rodeado de plantas e fruteiras, parecendo um sítio.
Do grupo faziam parte camponeses cujos nomes depois iriam aparecer na Imprensa e nos livros: Zezé da
Galiléia, Manuel Severino, Amaro do Capim e o irmão, que se comportava como o líder, José Ayres dos Prazeres,
um sujeito alto, de discurso fácil, concatenado. Entraram na casa. Prazeres carregava um monte de papéis debaixo
do braço, amarrados por um cordão barato. Adiantou-se e viu dois homens sentados, um deles lendo jornal.
– O que é que você quer? – indagou o que estava sem ler. O tom era firme, mas não agressivo. Naquela casa
entrava muita gente à procura de auxílio. Todos estavam acostumados à presença de estranhos.
– Preciso falar com o deputado – respondeu José dos Prazeres.
– Eu sou o deputado – disse o que estava com o jornal.
Era Francisco Julião.
E desse encontro, escondido num subúrbio recifense, teve início o que um autor especializado no assunto
classificaria de “o capítulo mais importante da história contemporânea do campesinato brasileiro”.

AS ROSAS QUE, TIRADAS DE UMA CUIA, ANUNCIARAM O SONHO

José dos Prazeres, aquele sujeito alto, de discurso bem articulado, que entrara na casa de Julião, não era um
camponês comum. Tratava-se de um experiente ex-militante do PCB, no Recife. Era filho de uma camponesa com
um senhor de engenho – que nunca reconheceu a paternidade. Adulto, deixou o campo e foi morar na Capital.
Tornou-se ferroviário. Entrou para o PCB. Teria, inclusive, participado da chamada “Intentona Comunista de
1935”. Na década de 40, o PCB fundara em Pernambuco algumas organizações rurais que foram chamadas de
“Ligas Camponesas”. Frágeis, elas nunca conseguiram consolidar-se e tiveram vida curta. No período 1946-47
existiu no Recife a “Liga Camponesa da Boa Idéia”, que congregava plantadores de verduras do bairro da Iputinga,
uma área rural-urbana do Recife da época. José dos Prazeres foi um dos seus dirigentes. Tendo retornado ao campo,
e a essa altura não mais pertencendo ao PCB, Zé dos Prazeres, como o chamavam, era uma das principais
lideranças do Galiléia.
Era nessa condição que ele comandava aquele grupo que estava diante de Julião. E era ele quem carregava
os papéis nos quais estava a explicação da ida deles ali. Tratavam da criação de uma intitulada Sociedade Agrícola
e Pecuária de Plantadores de Pernambuco – (SAPPP. Era uma entidade que reunia 140 famílias de camponeses do
Engenho Galiléia, de Vitória de Santo Antão. O engenho estava de fogo morto, ou seja, não produzia mais açúcar.
O proprietário, Oscar Arruda Beltrão, já nem morava mais lá. Ele permitira, no entanto, que as 140 famílias – cerca
de 500 pessoas – de camponeses da área continuassem morando no engenho, onde cultivavam mandioca, legumes e
hortaliças em geral. A contrapartida era que, mensalmente, eles deveriam pagar o foro – espécie de aluguel pelas
terras. Mas nos últimos anos, o valor do foro havia subido com muita rapidez, queixavam-se eles. Pagá-lo consumia
praticamente todo o dinheiro arrecadado com as plantações. Muitos já estavam até com o pagamento em atraso. Foi
aí que, a partir de idéia de José dos Prazeres, resolveram fundar uma associação que, reunindo uma contribuição
mensal de cada um deles, em dinheiro, pudesse vir a atender à necessidade de todos e trazer melhorias para a
comunidade.
Os objetivos da SAPPP muitas vezes aparecem descritos de forma equivocada em alguns livros e
reportagens sobre o período. Há uma versão, romântica, de que ela surgira apenas com o fim de criar um fundo para

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 12


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

comprar caixões. Sem recursos para quase nada, os camponeses mortos eram levados até o cemitério dentro de um
caixão fornecido pela Prefeitura. Chegando lá, o cadáver era colocado na cova – sem o caixão, que era trazido de
volta, ficando à espera de nova entrega. Só quem escapava do caixão emprestado eram aqueles que se associavam a
“sociedades mortuárias”. Pagavam uma pequena quantia por mês e, quando morriam, tinham um ataúde próprio e
sepultura garantidos. Essa poupança fúnebre, segundo Julião, “era a aposentadoria deles”.
A versão romântica da criação da Sociedade seria desmentida a partir da análise dos seus estatutos e dos
depoimentos das pessoas que participaram de sua organização, como o próprio Julião. Dos objetivos da SAPPP
constava – além, sim, da tentativa de angariar fundos para comprar caixões – também o de obter recursos para
construir escola e garantir assistência médica e jurídica para os camponeses. Também se pretendia formar uma
cooperativa de crédito para a compra de sementes, adubos e instrumentos agrícolas. E ajudar a pagar a dívida dos
que estivessem com o pagamento do foro atrasado. Possuía, de qualquer forma, um caráter assistencialista, e não
político. Não fora criada para lutar pela terra, mas para atender a outras necessidades dos camponeses.
Pois bem, era em virtude de problemas com a SAPPP que os camponeses estavam ali na casa de Julião.
O proprietário do engenho queria extinguí-la. No início, ele fora a favor. Gostara tanto da idéia que aceitara
até ser o presidente honorário da sociedade. No dia da inauguração, ele esteve lá, no meio da festa. Mas pouco
depois mudou de idéia. E o entendimento deu lugar ao conflito.
O problema havia começado com o herdeiro de Beltrão, o seu filho, que morava no Recife. Ele tinha
projetos para o Galiléia. Queria transformá-lo em uma fazenda para criação de gado – o tipo de atividade que
exigiria a expulsão daqueles que estavam ocupando as terras. Deduziu o filho que, estando organizados, mesmo que
fosse numa entidade de caráter aparentemente tão inofensivo, seria mais difícil expulsá-los. A preocupação chegou
a outros proprietários, amigos dos Beltrão. Camponês se organizando, indo à Justiça? – aquilo nunca acontecera
antes, não era bom que fosse estimulado, poderia acabar (se é que já não o era...) se tornando algo subversivo. O
melhor era que a SAPPP fosse extinta, aconselharam todos.
A primeira coisa que Oscar Beltrão fez foi renunciar ao cargo de presidente honorário. Depois, procurou os
camponeses para lhes dizer que a Sociedade não era boa idéia, deveriam desfazê-la. Submetidos a um jugo secular,
sem patrimônio algum, sem recursos sequer para comprar os próprios caixões com que enterravam os
companheiros, os camponeses, com certeza, iriam seguir a recomendação. Quantas vezes já não se haviam dobrado
às vontades dos mais fortes?
Daquela vez, porém, foi diferente.
A maioria dos camponeses recusou-se a desfazer a Sociedade. Decidiu resistir.
O proprietário tentou expulsar alguns deles das terras. Em vão. Vendo que a disputa iria recrudescer, os
camponeses foram atrás do que consideravam “gente poderosa”. Chegaram até, num gesto de ingenuidade de quem
parecia não conhecer o que representavam as forças políticas do Estado, a procurar o governador, general Cordeiro
de Farias, aliado dos proprietários. Foram recebendo um não atrás do outro. Findaram em Julião.
– Eu os defenderei. Sou um deputado. O Estado me paga. Vocês não terão de me pagar coisa alguma –
respondeu Julião à solicitação deles para que os representasse perante a Justiça.
Os papéis precisavam ter firma reconhecida e serem registrados, orientou ele. E a Sociedade precisava eleger
uma diretoria o mais depressa possível – ainda naquela semana. Tudo foi providenciado. A Sociedade Agrícola e
Pecuária de Plantadores de Pernambuco foi legalizada como uma entidade para fins beneficentes.
No dia 1o de janeiro de 1955, Julião foi pela primeira vez ao Galiléia. Era o desdobramento do encontro
que tivera em sua casa. Os camponeses fizeram festa para recebê-lo. Contavam agora com um advogado para
defendê-los. E um advogado que, para completar, ainda era deputado. Uma cena desse dia marcou Julião: enquanto
ia passando em direção ao local da reunião, camponesas idosas lhe jogavam pétalas de rosas que tiravam de cuias
de alumínio.
Rosas tiradas de uma cuia – não poderia haver começo melhor para um sonho.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 13


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

NASCIDO NA CASA-GRANDE

PAI E AVÔ DE JULIÃO ERAM SENHORES DE ENGENHO

A presença de camponeses dentro de casa, e as dificuldades que eles passavam, não eram acontecimentos
estranhos para Julião. Nascido em 16 de fevereiro de 1915, no engenho Boa Esperança, em Bom Jardim, era filho e
neto de senhores de engenho. Foi batizado como Francisco Juliano Arruda de Paula. Sua mãe, católica fervorosa,
colocou nos cinco filhos homens nomes de santos, e nas três filhas o nome de Maria. No caso dos homens, entre o
nome e o sobrenome ela pôs também o nome do santo do dia – e daí o Juliano, pois em 16 de fevereiro se
comemorava a festa dele.
Julião, portanto, é um nome que foi dado pelo próprio a si mesmo, desde que aprendeu a escrever. O Juliano
– do qual ele não gostava – foi o que sempre constou do seu registro civil. O assunto lhe interessou a ponto de
empenhar-se em pesquisas, já adulto, e descobrir que o santo cujo nome ele carregava não nascera no dia 16 de
fevereiro: “Juliano é o apóstata, o imperador romano. Desconheço a data do seu nascimento, mas é certo que não
foi a 16 de fevereiro. A hagiografia fala de outro Julian, o Hospitaleiro, mas não Juliano, como estava grafado na
folhinha, segundo o testemunho tranquilo, tantas vezes repetido pela minha mãe, sempre que se levantava dúvida
sobre isso. A festa de Julian, o Hospitaleiro, venerado na Espanha, se comemora a 12 e não a 16 de fevereiro. Não
há de ser por uma questão de grafia, Juliano para Julian, nem por uma diferença de data, 12 para 16 de fevereiro,
que eu vá me deter aqui até que deixe esse assunto suficientemente esclarecido. Um padre católico, professor de
teologia, a quem perguntei sobre a questão, limitou-se a dizer que o dia 16 de fevereiro é consagrado a São Julião e
aos cinco mil mártires”.
O nascimento de Julião deu-se no mesmo ano em que morreu o seu avô paterno, Francisco de Paula, de
quem dizia ter herdado “o nome e os sonhos”. O avô fora partidário do abolicionista Joaquim Nabuco. Enfrentando
reações dos demais proprietários, chegara mesmo a recebê-lo em casa uma vez, quando Nabuco esteve de passagem
por suas terras.
O Engenho Boa Esperança era um dos mais modernos do Estado, no período em que Julião nasceu. Tinha
uma caldeira importada da Inglaterra e terras de ótima qualidade. O capitão Francisco de Paula, como era
conhecido o seu avô, gozava da fama de homem “bom para os pobres” e tolerante com os escravos e moradores.
Como era comum ao senhores de terra de então, ele andava acompanhado por um pajem (criado que acompanhava
alguém em viagem a cavalo), encarregado de segurar os estribos do cavalo e “executar outras tarefas que sua idade
e condição social lhe proibiam”, conforme relato de Julião.
Um desses pajens contou para Julião que, certa vez, ao voltarem para a casa-grande, depois de terem
percorrido terras do engenho, viu um homem cortando cana. Não era período de safra, logo o homem só podia estar
roubando o cultivo.
– Capitão, fulano está roubando cana – denunciou.
Com a voz baixa, sem virar o rosto, o capitão respondeu:
– Faça que não veja. Aquela cana foi ele mesmo quem plantou.
Do pai, Adauto Barbosa de Paula (filho do capitão Francisco de Paula), Julião diz ter recebido de sua
personalidade influências que o marcaram para a vida inteira, e até determinaram traços do seu caráter. O major
Adauto, como era chamado, não era homem de admitir verdades pela metade. Uma coisa era ou não era. Para ele
não havia meios termos. Nesse sentido, era intransigente. Essa forma de ser do pai, admitiria Julião, “deve ter
influído para que eu me tornasse um radical”.

DE MENINO DE ENGENHO A DONO DE COLÉGIO

A infância de Julião foi típica de um menino de engenho: “Acostumara-me à vida dura do campo e disputava
com os filhos dos rendeiros e assalariados os mesmo jogos e as mesmas fainas, tais como subir a uma árvore para
derribar um arapuá com um facho aceso em uma das mãos e a foice na outra, tombar canas para as moendas ou
deixar-nos conduzir a toda velocidade pelos cavalos sem sela e sem cabresto, até precipitar-nos das barrancas ao
açude sobre as águas”.
Aos 13 anos, tudo o que ele queria ser na vida era carreiro, aquele sujeito que carrega a cana no carro de
boi. Seu pai, no entanto, queria que ele fosse doutor – um médico, o primeiro da família. E o enviou para o colégio
em que estudavam filhos de proprietários de terra: o Instituto Carneiro Leão, no Recife. Sem família na Cidade, ele
estudava e morava no colégio. Para um menino de engenho, o internato não poderia ser outra coisa – uma prisão:
“Durante um ano vivi como um pássaro engaiolado, de uma grade para outra, buscando a liberdade. Custou-me a
adaptação a essa nova vida de que não guardo lembrança grata, pois foi naquela prisão onde, paradoxalmente, o
meu espírito se muniu das asas necessárias para voar mais longe, que eu conheci certas formas de torpeza e de
egoísmo”.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 14


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

No Carneiro Leão ele passou quatro anos. O período era o do final da década de 1920. O presidente era
Washington Luís (1927-1930). O preço do café, principal cultura de exportação do Brasil, estava em baixa. Havia
grande insatisfação política. Logo eclodiria a Revolução de 30. E, na economia nordestina, os engenhos (incluindo
o do pai de Julião) entravam em decadência. A economia em que o engenho tinha papel de destaque já não era a
mesma: se alterara com a abolição da escravatura, depois com a proclamação da República e, talvez o golpe de
morte, com o surgimento das usinas. Estas possuíam equipamentos incomparavelmente mais modernos: produziam
em horas o que, nos engenhos, demorava meses. A qualidade do produto das usinas também era superior. Seu
açúcar era refinado, branco, podia ser exportado, tinha apoio do governo. Já o açúcar dos engenhos, preto, rústico,
era vendido apenas nas feiras. Tornou-se, segundo Julião, em “açúcar de gente pobre, da cocada e do arroz doce das
festas populares”.
O diretor do colégio em que Julião estudava fora um dos atingidos diretamente pela mudança: “(era) um
desses bacharéis inconformados com a decadência da família, toda composta de senhores de engenho arruinados.
Viera das várzeas da Paraíba trazendo no subconsciente um feito sempre predisposto a romper o verniz acadêmico
para mostrar a sua cólera. Por sua vez, os alunos internos, filhos, na sua maioria, de donos de terra, sentiam
necessidade de desafiar aquele bacharel, e levá-lo ao paroxismo da violência. Esta se manifestava em gritos,
insultos, bofetões e noites inteiras de vigília. Viveu pouco esse diretor. A cólera arrebentou-lhe o coração”.
Do seu período de internato, Julião menciona um que lhe pareceu o que melhor definiu o tempo em que
esteve ali, e que já aponta para o rebelde no qual iria transformar-se: “Sempre que pelas sete horas da manhã a
sineta anunciava o café, os alunos, como se fossem movidos por uma só mola, levantavam-se de súbito de suas
bancas de estudo e partiam todos de uma vez em direção às portas e janelas do amplo salão que se comunicava com
o refeitório. Esse reflexo pavloviano tinha um único objetivo: a escolha da melhor xícara e do melhor pedaço de
pão previamente dispostos em duas extensas mesas. Restavam no salão três ou quatro internos que se dirigiam
tranqüilamente à sala de comida. Eu estava entre eles. A nós, portanto, tocava a xícara menor, às vezes, de beiço
partido, rachada de cima a baixo, sem asa, e, naturalmente, o pior pedaço de pão, mirrado, mole ou queimado.
Tinha vergonha de uma disputa tão mesquinha, mas não podia me conformar com essa desigualdade de tratamento.
Pus, então, a cabeça para funcionar, e concebi um plano que executei com obstinada paciência: todas as manhãs
recolhia duas a três xícaras e atirava-as para o quintal vizinho. Quando vieram a dar pelo desfalque, não restavam
senão as grandes. Então o diretor foi notificado da sabotagem, e como ninguém pôde denunciá-la, mandou
substituir todas as xícaras por outras ainda maiores, mas o café que passou a servir era uma água rala e morna.
Acabou-se, assim, o arranco da boiada, pois tanto fazia um bom pão como um ruim, para aquele péssimo café”.
Ao fim do internato ele transferiu-se para o Ginásio Pernambucano, onde concluiu o curso secundário, aos
18 anos. Com essa idade, e querendo tornar-se independente financeiramente do pai (“ele tinha uma família
numerosa”), uniu-se a um colega (Antônio Alcoforado de Almeida, hoje falecido) e comprou uma pequena escola
primária para meninas, o Instituto Monsenhor Fabrício, que ficava na Rua Bernardo Vieira de Melo, em frente ao
Seminário de Olinda. O problema era que a escola tinha poucas alunas, boa parte delas de famílias pobres, e destas
ele e o amigo dispensavam a mensalidade. Para compensar, dava aulas particulares de Matemática, Inglês e
História. Uma de suas alunas particulares foi Alexina Crêspo, que recebeu aulas dele quando se preparava para
fazer o curso de Admissão (o equivalente à atual 5ª série). Ela tinha 11 anos. Julião, 22. Os dois casaram-se anos
depois.

MARX, O CULPADO PELA PRIMEIRA PRISÃO

Pronto para entrar na faculdade, Julião viu o seu desejo coincidir com os planos que o pai tinha para ele:
quis ser médico: “Minha vocação era a cirurgia, extrair um tumor, abrir a barriga de um camarada”. A realidade não
deixou. Em virtude das aulas que dava no seu colégio, não tinha o tempo necessário para fazer o curso de Medicina.
Optou pelo de Direito porque neste a presença era facultativa; poderia faltar muitas aulas e só ir fazer as provas.
Ao entrar na faculdade ele já era de esquerda, leitor iniciante de obras marxistas e admirador de Engels.
Apesar disso, dada a sua falta de tempo, não participou da política estudantil. Foi um aluno quase anônimo, sem
fazer nada que o destacasse. Como ele mesmo reconheceria, passou pelo curso universitário “como uma sombra”.
O período agora é final da década de 30, vésperas da Segunda Guerra Mundial. O Brasil estava sob a
ditadura de Getúlio Vargas, iniciada em 10 de novembro de 1937. Era o chamado Estado Novo. Parlamento,
Assembléias Legislativas, Câmaras Municipais, partidos políticos, todos foram fechados. Os Estados passaram a ser
governados por interventores, nomeados pelo presidente-ditador. Os meios de comunicação foram colocados sob
censura. E, nesse torvelinho, Julião sofreu sua primeira prisão por motivos políticos.
Um colega da faculdade, de férias, lhe escrevera uma carta imensa elogiando Marx. Não se sabe bem como,
a carta foi interceptada pela polícia. Julião foi detido e levado para o Departamento de Ordem Política e Social –
DOPS.
Os policiais revistaram sua casa. Estantes, colchões, gavetas, tudo foi remexido. Como “prova” da
“subversão” dele, encontraram dois livros: Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Jesus Cristo é um Mito,

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

de J. Balmes. Mesmo considerando a fama de esquerdista que Freyre possuía na época, e a provocação do título do
livro de Balmes, os livros não eram provas suficientes para condenar ninguém. Julião passou apenas um dia e uma
noite preso. Era um estudante com idéias exóticas, não um subversivo perigoso, considerou a polícia.

ADVOGADO DE CAMPONESES, PROSTITUTAS, FILHOS BASTARDOS...

Julião formou-se em 16 de dezembro de 1939. Pensando no que fazer dali por diante, teve uma idéia que
tentou partilhar com alguns colegas:
– Por que a gente não monta um escritório de advocacia e vamos defender camponeses?
Aos ouvidos de qualquer advogado recém-formado, a proposta soava, para dizer o mínimo, como um
disparate. Não entrava nos planos de ninguém que pensasse em fazer carreira no Direito e ganhar dinheiro e
notoriedade. No caso de Julião, pensavam os colegas, o disparate era maior ainda: não era ele filho e neto de senhor
de engenho? Que diabo de pensamento era aquele de defender camponês?
Mas, na cabeça de Julião, a idéia nada tinha de maluca. Era quase como pagar uma dívida com as suas
origens: “Nasci e passei toda a minha infância no engenho, meus melhores amigos eram os filhos dos moradores, e
eu notava que muitos desses tipos eram muito mais inteligentes do que eu, pela forma que fabricavam um boi de
barro, porque calculavam mais rapidamente de cabeça. Pensei: “Esses tipos tão se perdendo aqui, não podem
estudar, mas eu posso porque sou filho de dono de engenho. Então disse pra eles: ‘Vou estudar, viu?, mas depois
vou dar o grito por vocês’ ”.
No primeiro ano de formado, em 1940, ele começou a colocar em prática sua proposta – a princípio sozinho,
porque nenhum colega aceitou acompanhá-lo.
Foi no trabalho como advogado que o ex-menino de engenho descobriu algo que provocava um ódio surdo
nos camponeses: o cambão, dias em que o camponês trabalhava de graça para o proprietário, como forma de
pagamento pela utilização que fazia da terra. Julião começou por ali a defender os direitos dos camponeses. “Eu ia e
dizia: ‘Olha, aqui está a lei, o Código Civil, que diz que todo trabalho deve ser remunerado, e vocês não estão
recebendo a remuneração’. Explicava o que era remuneração, né? ‘Vocês devem receber uma quantia em dinheiro
pelo dia de trabalho que dão. A lei diz que não pode haver mais trabalho de escravo, não se pode trabalhar de graça
para ninguém. Isto é um crime e vocês estão sujeitos a ir pra cadeia porque a lei proíbe. O proprietário também
pode ir pra cadeia porque a lei proíbe.’ O camponês era muito legalista, respeitava muito a lei. Alguns foram
valentes e negaram-se a dar o cambão, e aceitaram que eu os defendesse. A história toda começou aí, com o
cambão”.
O difícil era ganhar uma causa. A Justiça, no Interior, e ainda mais se considerando que o queixoso era um
camponês, pendia quase sempre para o lado do mais forte: “Às vezes passava anos defendendo um camponês já
sabendo que ia perder a causa porque a lei tinha muitas armadilhas que no fim acabavam beneficiando o mais
poderoso, mas as circunstâncias do camponês poder passar um ou dois anos na terra, lutando para receber suas
benfeitorias, já lhe davam uma certa segurança. Antes o sujeito era expulso de uma terra onde vivera 40 anos, onde
fizera a casa, fizera o barreiro, a cerca, plantara árvores, e dentro de 24 horas perdia tudo”.
Essas histórias de expulsão Julião presenciara quando ainda era criança. Não por parte do seu pai e do seu
avô, que, no meio daquele mundo conservador dos proprietários de terras, eram liberais. Mas pela sua porta ele vira
passar famílias expulsas das terras em que moravam havia anos: “Quantas vezes passava uma família camponesa
correndo de outros engenhos, correndo porque tinha que correr mesmo, tinha 48 horas para desaparecer... O sujeito
pegava a mulher, os filhos, os trastes e desaparecia depois de ter morado num engenho durante 10, 20, 30 anos. A
passo rápido porque temia que viesse o capanga atrás pra fazer a justiça do senhor. Vi esses espetáculos
deprimentes. Camponeses eram assassinados e nunca buscavam juiz, nem sabiam onde era a casa da justiça – que
para o camponês era um soldado com um fuzil. Muitas vezes nem um soldado, bastava um capanga que fosse à sua
casa e desse as ordens (para trabalhar domingo ou feriado, por exemplo) e se o camarada se negava era despedido”.
O trabalho com os camponeses poderia até dar satisfação a Julião – mas dinheiro, com certeza, não dava. A
sobrevivência do escritório ele garantia tratando de desquites e investigação de paternidade – neste último caso, os
pais costumavam ser ricos proprietários que engravidavam as filhas dos seus trabalhadores ou moradores, numa
tradição que vinha desde o tempo da escravatura. Se hoje o reconhecimento da paternidade é assunto dos mais
conflituosos, imagine-se como era a situação nas décadas de 40 e 50, na zona rural de Pernambuco, e tendo como
protagonistas pessoas de classes sociais tão distantes uma da outra. Imagine-se mais: Julião começou levantando
esse tipo de causa dentro da própria família: “A Justiça boa começa em casa. Havia tios, primos, parentes ricos que
se davam a esse luxo de ter filhos fora da família, e alguns deles consegui reconhecer. Um deles se parecia tanto
com o pai que ele disse: ‘Não é possível, tenho que reconhecer esse’.”
No que tange aos desquites, atendia mais mulheres de gente rica, que tradicionalmente eram ludibriadas
nesses casos. A tática utilizada por ele para garantir o direito delas é extraordinariamente atual. Em determinado
momento do processo se procedia a uma devassa nos bens e nas finanças do marido, para que, a partir dali,
houvesse a distribuição do que a mulher teria direito: “Quando se tratava da mulher de um industrial ou de um

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comerciante eu sabia onde era o ponto fraco deles. Era o momento em que deveria começar a devassa. Eles tinham
duas escritas (para suas empresas), uma para o sócio, uma para o fisco, enganando o governo. O momento de fazer
uma devassa geralmente era perto de encerrar o ano, quando se fazia o balanço, e quanto era fácil de fazer com que
o camarada se dobrasse. Não era o medo da mulher, mas do fisco, porque ia-se descobrir que ele tinha lesado o
fisco em milhões e milhões. Aí eles chamavam para um acordo. Eu ganhava bons honorários assim”.
A figura do Julião político e líder de camponeses ofuscou tudo o mais que lhe dizia respeito, como o fato de
que ele foi um grande advogado, aceitando causas que ninguém ousava defender e alcançando vitórias que se
tornaram célebres nos tribunais.
Foi assim, por exemplo, com as prostitutas.
Um delegado de Costumes resolvera acabar com o ponto delas nas ruas do Bairro do Recife. Aquelas que
desobedecessem a ordem seriam presas. Nenhum dos advogados procurados aceitara o caso. Até que Julião, recém-
chegado de uma visita à Europa, em que fora integrando uma comitiva de parlamentares e empresários, foi
abordado ao desembarcar no aeroporto. Ali mesmo ele aceitou entrar na briga. “O Recife”, explicaria, “era uma
cidade com uma quantidade formidável de prostitutas, em geral analfabetas, filhas de camponeses e 90% delas
vindas do campo”.
Para defendê-las ele elaborou um habeas corpus que ficou famoso na Cidade. O argumento principal
baseava-se no direito de ir vir. “Se todo mundo tem este direito, por que não o tem uma prostituta?”, perguntava. O
argumento é utilizado mesmo hoje, quando se tenta retirar prostitutas de uma determinada área. Com ele, Julião
ganhou a causa. As prostitutas ficaram; o delegado de Costumes foi quem saiu – derrotado, pediu transferência para
outra delegacia. Julião não perdeu a oportunidade de fustigar o capitalismo: “Mostrei que a prostituição era um
fenômeno próprio do sistema, e que muitas delas eram camponesas infelicitadas no campo, que haviam sido
expulsas da família por preconceito. E que iam rolando, rolando, até chegar a capital. É o latifúndio, é o sistema
capitalista que gera isso. Acabava de visitar a Europa, passando por países católicos e protestantes, e vi que era um
problema mundial. Em Paris vi uma passeata de prostitutas que iam ao Congresso pedir uma lei para protegê-las.
Levantei todo esse quadro e fiz um habeas corpus que era uma condenação ao próprio sistema, não somente
brasileiro, mas do sistema capitalista em geral, como responsável pela prostituição”.
Entusiasmadas com a vitória, as garotas quiseram fazer uma passeata de agradecimento a Julião, mas foram
dissuadidas. Tudo bem que ele era a favor da agitação, mas aquela não era bem a agitação que ele queria...

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OS ALIADOS: A BÍBLIA E O CÓDIGO CIVIL

COMO AS LIGAS ERAM CRIADAS

Em 1955 praticamente não existiam sindicatos rurais em Pernambuco – embora a criação deles fosse
oficialmente reconhecida pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, na prática isso era quase impossível, dada
a burocracia que precisava ser vencida. No final a entidade ainda precisava obter o reconhecimento do Ministério
do Trabalho – decisão que sofria influência dos rumos políticos do País.
A criação de uma Liga era incomparavelmente mais fácil.
A entidade surgiu como uma sociedade civil de direito privado, e assim bastava registrá-la no cartório mais
próximo, sem a necessidade de reconhecimento do Ministério do Trabalho.
Para criá-la era necessário, apenas, reunir um grupo de cerca de 40 camponeses e, se todos concordassem
com o estatuto, eleger uma diretoria. Depois, preparar uma ata que seria assinada por todos e fazer o comunicado à
Justiça. E estaria fundada a nova Liga, que poderia ser de um só engenho, de um distrito, uma determinada área –
ou seja, era possível criar várias no mesmo município.
Concluído o processo legal, logo a luta assumia caráter político, explica Julião: “Daí por diante começa o
processo de politização da massa camponesa com a assembléia geral, a passeata, a audiência na polícia ou na
Justiça, indo ao extremo da defesa dos seus direitos até de armas na mão”.
Nos primeiros tempos, as Ligas enfocavam apenas duas reivindicações básicas: a abolição do cambão (os
dias de trabalho dados de graça para o proprietário) e o não-pagamento do aumento do foro: “Partimos de premissas
simples e claras, objetivas e bem definidas, antes de falar em outras mais complexas e distantes, como a reforma
agrária, o cooperativismo e a socialização da terra”.
O comando estadual das Ligas, a rigor, não era exercido pelos camponeses – o que é compreensível,
levando-se em conta o estágio de preparação política e ideológica em que se encontravam. O comando irradiava-se
do Conselho Deliberativo, órgão formado por 13 pessoas, a maioria de classe média (intelectuais, parlamentares e
estudantes, ligados a organizações de esquerda) e alguns camponeses de maior projeção. As delegacias (nomes dos
núcleos das Ligas nos municípios) é que tinham a direção composta exclusivamente por camponeses. E embora o
foco de sua luta estivesse no campo, a sede das Ligas ficava sempre na capital do Estado.
Havia uma razão lógica para a forma como a entidade era organizada, conforme explica o sociólogo
Fernando de Azevedo, autor de um trabalho clássico sobre o tema, As Ligas Camponesas: “Essa estrutura orgânica,
montada da cidade para o campo, evitava o isolamento do movimento camponês e a sua ação meramente local, ao
mesmo tempo em que permitia a sua articulação com as camadas e os setores progressistas da cidade, onde as Ligas
iriam buscar e agregar os seus melhores quadros e militantes políticos”.
Além disso, segundo o mesmo autor, “ao localizar a sede estadual das Ligas na capital, assegurava a
sobrevivência das delegacias, neutralizando em parte a ação repressiva dos grandes proprietários e dos
destacamentos policiais locais, que apenas podiam ameaçar e pressionar, de uma forma ou outra, um núcleo
existente em seus domínios. E, quando tal ocorria, e era freqüente, o fato era imediatamente denunciado pelo
Conselho Deliberativo, seja nas tribunas legislativas, seja pela Imprensa”.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

As armas mais utilizadas por Julião para conquistar a simpatia e a confiança dos camponeses foram o
Código Civil e a Bíblia. O primeiro, como condição essencial para lidar com o legalismo arraigado dos
camponeses. A segunda, para aproveitar a religiosidade (eivada de misticismo) deles.
Um movimento que, entre os camponeses, se iniciasse tendo a imagem de “desrespeito à lei” não
prosperaria, entendeu Julião. Mais tarde, com o movimento consolidado e a confiança conquistada, então se poderia
avançar no sentido de contestar e até transgredir a lei – ação que seria adotada, inclusive, no mais famoso slogan
das Ligas: “Reforma agrária na lei ou na marra”. Julião explica sua tática: “Usar a própria lei como primeiro passo
para ganhar a fé do camponês e poder em seguida levá-lo a uma posição mais audaciosa e consequente. Romper o
legalismo com o legalismo”.
Ao falar para os camponeses, ele costumava brandir o Código Civil e mencionar que, de acordo com o que
estava ali escrito, de acordo com o que deveria ser levado em conta em todos os tribunais, de acordo com a
Constituição, de acordo com tudo isso, “todos são iguais perante a lei”. Era uma novidade para o camponês que,
mesmo que alguma vez já tivesse ouvido aquilo, mesmo que soubesse que aquela determinação constava da lei,
sabia que, na frente do juiz, ele não valia a mesma coisa que o proprietário da terra ou o poderoso do lugar. “A lei
diz todos, não diz alguns. Se ela diz todos, então não distingue o pobre do rico nem o camponês do latifundiário”,
pregava Julião.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Nas disputas judiciais que se travavam entre camponeses e proprietários, no entanto, estes quase sempre
eram vitoriosos: “Ainda assim porfiávamos e lográvamos ganhar a estima e a confiança dos camponeses. Mesmo
perdendo a causa. A nossa vitória era de outro tipo. Ela consistia em mostrar ao camponês que a balança da justiça
não se inclinava jamais para o seu lado, simplesmente porque no prato que lhe tocava só havia miséria, fome,
desamparo, fraqueza, falta de união, abandono, ignorância, atraso, ao passo que no outro, no do poderoso, sobravam
o ouro, a abundância, a força, a astúcia, o egoísmo, a insensibilidade e o desprezo. Perguntávamos: quem move o
braço dessa balança? É um poder invisível? É uma força estranha, acima do bem e do mal? E respondíamos: quem
move o braço dessa balança é o braço do poderoso de carne e osso. E quem manda nesse braço de carne e osso é a
vontade. E quem manda nessa vontade é o interesse. Logo, a justiça de que se trata serve a um interesse, o interesse
do que tem contra o que não tem, isto é, o interesse do que está com o poder”.
As batalhas judiciais – tratando da expulsão dos camponeses da terra, por exemplo – costumavam demorar
anos. Enquanto isso, eles continuavam na terra, cultivando suas roças. Já era uma vitória, dado que antes a causa
sequer chegava à justiça, com a expulsão se consumando imediatamente à vontade do dono da terra. O período em
que o processo se arrastava era ideal para que aquele camponês – e também seus vizinhos, que tomavam
conhecimento da disputa – fosse convencido a entrar nas Ligas e participar de lutas com objetivos que transcendiam
à sua causa específica: “(nesse período) buscamos ganhar (a partir da batalha judicial) a revolta do camponês, a sua
adesão mais firme, a sua consciência para uma luta de outro tipo que não seja meramente judiciária, a luta política e
ideológica, pela reforma agrária radical, por um sistema político e uma legislação social que lhe assegure a posse
definitiva da terra com extinção também definitiva de todas as formas de exploração do seu trabalho”.
Não menos importante era o trabalho com a Bíblia. Os dois maiores episódios de revolta camponesa no
País tiveram forte caráter messiânico: Canudos, no sertão da Bahia (1893-1897) e Contestado, entre o Paraná e
Santa Catarina (1912-1916). Julião, embora não acreditasse em Deus, sabia do valor que a religião teria para que a
luta avançasse.
Muitos pastores protestantes foram membros das Ligas. Um dos atuais líderes do Partido dos Trabalhadores
(PT), Manuel da Conceição (que chegou a candidatar-se ao Governo de Pernambuco, em 1982), foi um deles. João
Pedro Teixeira, de Sapé (PB), que seria assassinado por pistoleiros, também. Alguns dos protestantes chegavam
mesmo a ter um discurso mais radical que o do próprio Julião: “Eles radicalizavam muito, baseando-se nos profetas
que disseram coisas tremendas. Usavam expressões muito fortes, como quando citavam Isaías. Eu até pedia para
que moderassem um pouco a linguagem. Como o protestante se sentia oprimido e perseguido, tinha uma tendência
para sectarizar sua linguagem”.
A pregação de tom religioso que costumava permear os discursos dos líderes da organização, porém, não era
suficiente para impedir as acusações que, no mesmo tom, lhe eram feitas. Um bem-sucedido proprietário de terras,
parente de Julião, ao tomar conhecimento que alguns dos seus moradores haviam se filiado à Liga, recorreu a uma
inusitada medida para tentar reverter a decisão deles. Mandou chamar todos, eram pouco mais de cem; chegaram
acompanhados de mulheres e filhos. Na mesma hora, ele fez uma procissão com o santo do qual era devoto.
O proprietário, de acordo com relato de Julião, “marchou à frente da procissão, desfiando um rosário e
recitando em voz alta o Padre Nosso e a Ave Maria até o pátio da casa-grande. Ali pediu em nome de Cristo que
eles se ajoelhassem e fez um longo sermão, cuja tese central era a seguinte: ‘A terra em que vocês vivem eu herdei
do meu pai. E vocês, que herdaram? Nada. Portanto, nem eu tenho culpa de ser rico nem vocês de ser pobres. Tudo
foi previsto por Deus. Ele sabe o que faz. Se a mim me deu terra e a vocês negou, todo aquele que não se conformar
com isso se rebela contra Deus. Essa rebelião é um pecado mortal. Que todos aceitem a decisão de Deus para não
cair na sua ira e não perder a alma. Vocês terão de aceitar a pobreza na terra para ganhar a vida eterna no céu. O
pobre já vive na graça de Deus. O rico, não. Desse modo, vocês são mais felizes do que eu, já que estão mais perto
do céu, então por que vocês se desviam do caminho, se negam a pagar o cambão e o aumento do foro? Não é esse o
nosso trato? Acaso eu inventei essas obrigações ou elas já existem desde que Adão e Eva foram expulsos do
Paraíso? Ouçam o que eu digo e sigam o meu conselho: quem já entrou na Liga, saia dela. O mesmo demônio que
tentou a Cristo, tenta o cristão. A Liga tem parte com o diabo porque está com o olho na terra que não é dela. Quer
desviar o pobre do caminho que leva à salvação da alma...’ Duas semanas depois, como nenhum dos moradores já
inscritos na Liga se abalasse com o seu sermão, o meu parente conseguiu que o delegado metesse todos eles no
xadrez. Tive de impetrar um habeas corpus para liberá-los”.
Durante toda sua existência, as Ligas sempre enfrentaram resistências dos setores hegemônicos da Igreja
Católica. Resistência que, segundo Julião, era extensiva ao próprio camponês: “O padre (no Interior do Estado) era
muito ligado ao latifúndio, ao coronel, ia comer buchada na casa dele aos domingos, rezava a missa lá, casava a
filha dele. O camponês ia para a igreja e era tratado com muito desprezo. Ai da pobre camponesa que batesse numa
cadeira no momento em que o padre estivesse celebrando!”.
Mas não só os padres contestavam o movimento. O bispo da diocese de Pesqueira, dom Severino Mariano
de Aguiar, um dos mais conhecidos do Estado naquele período, acusava Julião de, com as Ligas, estar “perturbando
a paz no campo”. Ele lhe respondeu com uma carta aberta, na qual afirmava, entre outras coisas:

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 19


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

“Há paz nos campos, Excelência. Eu bem sei disso. Odeio essa paz com o mesmo ódio que dedico à
escravidão, ao atraso, à fome, à miséria e ao latifúndio. De que é feita essa paz? Essa paz é feita do silêncio de
milhões de anjinhos que, ao invés de se agasalharem em casas higiênicas, com o tecido cobrindo-lhes a nudez e o
leite nutrindo-lhes o estômago, vão pelos caminhos e veredas, estendidos em toscos caixõezinhos, em busca dos
cemitérios das vilas e cidades, todos eles simplesmente aniquilados pela fome. Essa paz é feita do silêncio que a
mulher camponesa, envelhecida aos 30 anos, tece com as contas d’água que lhe saem dos olhos diante da procissão
macabra dos seus anjinhos de mãos entrelaçadas e olhos fundos, que a morte, sem piedade, vai ceifando. Essa paz é
feita do silêncio do camponês, expulso pelo capanga, pela polícia e pela justiça do pedaço de terra onde nasceu, e
que é carne, sangue e osso do seu corpo esquálido, vida de sua vida perdida, porque levantou, um dia, a voz contra
o cambão, o aumento do foro, o exagero da vara, o vale do barracão e mil outras formas cruéis de espoliação do
seu trabalho. Sou contra essa paz. Por isso tenho agitado os campos de Pernambuco, na mais nobre das intenções.
Escrevo, falo, doutrino. Leia, Vossa Reverendíssima, os meus escritos. Venha dar-me a honra de ouvir de perto a
minha pregação. E se houver uma palavra que fira as escrituras sagradas, eu também entrarei em silêncio”.
O bispo nunca respondeu.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

Os argumentos mais comuns levantados contra as Ligas, no campo, era que se tratavam de “coisa do diabo”
e – dependendo do lugar, acusação ainda mais grave – “de comunista”. Há um episódio que, inicialmente publicado
na imprensa internacional, foi depois reproduzido em livros e tornou-se o exemplo mais simbólico do que Julião
classificou de “grau de politização e senso agudo do camponês”. Envolve um protestante integrante das Ligas,
chamado João Evangelista, e um proprietário de terras em Jaboatão, que era também vice-prefeito do município
(início dos anos 60). Era costume todas as vezes que se inaugurava uma delegacia das Ligas em um município,
convidar as autoridades locais para participarem do ato. Fazia parte da tática de dar ao movimento o mais amplo
caráter de legalidade. Convidado, o vice-prefeito disse que não iria e explicou o porquê:
– É negócio de comunista.
João Evangelista retrucou afirmando que estava tudo dentro da lei, as Ligas possuíam estatuto registrado, era
coisa legal.
– Você sabe o que é comunismo? – perguntou o proprietário.
– Não sei não. Minha lei é outra. Eu sou da lei de Nosso Senhor Jesus Cristo.
– Então eu lhe explico. Comunismo é tomar o que é alheio, ofender a mulher e a
filha dos outros e empatar nossa religião. É essa a lei do comunismo.
A resposta de João Evangelista, talvez romantizada nas reproduções que dela se fizeram, talvez mero
produto do radicalismo em que se vivia, talvez apenas a versão de um dos lados da história, mas de qualquer forma
emblemática da situação vivida naqueles dias, foi a seguinte, de acordo com relato de Julião, que a teria ouvido do
próprio Evangelista:
– Pois se essa é a lei do comunismo, então já estamos nela! Se o pobre tem uma
filha jeitosa não falta um capataz, um senhor de engenho, um gerente de usina para ofendê-la. Eu sou protestante e
a dona da terra onde moro é católica. Não posso fazer o culto na minha casa nem cantar os hinos da minha seita
porque ela não quer. Então, ela está empatando minha religião. E outra coisa: a gente planta o pé de café, a
bananeira, a manga, faz uma casa, uma cerca, um barreiro e um dia o patrão se zanga com ele, bota ele pra fora e
não paga nada. Toma o que é da gente. Então, já é o comunismo!

CONHECIMENTO DA ALMA DO CAMPONÊS

Junto com o Código Civil e a Bíblia, Julião possuía mais um instrumento que lhe facilitou a conquista das
mentes e corações dos camponeses: seu conhecimento, orgânico, do mundo deles. Não há exagero em afirmar que
nenhum outro líder político do Brasil conheceu tão bem o cotidiano dos camponeses como ele. Um conhecimento
que ia além das necessidades deles para a sobrevivência; enveredava pelo imaginário, pelo cultural, pelo
sociológico. “Não basta pensar no camponês e oferecer a solução correta para libertá-lo”, alertava. “É preciso, antes
de tudo, conviver com ele, participar intimamente de sua existência, aceitá-lo exatamente como ele é, com o seu
individualismo, o seu imediatismo e o seu misticismo, como condição indispensável para conquistar sua adesão”.
Julião queria a revolução, e queria que os camponeses estivessem nela, mas – aos que sempre colocavam o
operariado em primeiro plano num eventual processo revolucionário, tese ardorosamente defendida pelos partidos
comunistas em toda a América Latina – ele contrapunha o exemplo de que em Cuba e na China não fora assim. E
explicava: “O camponês pensa de maneira diferente do operário. O seu mecanismo de ação se ajusta à sua maneira
de viver. Isolado com a mulher e os filhos, traz o pensamento voltado para a terra que absorve as suas energias,
limita os seus passos e dita a sua conduta. Se a terra lhe pertence, luta desesperadamente para não perdê-la, e, em
caso contrário, sempre alimenta a esperança de chegar um dia a possuí-la. É que a terra é a sua vida. O operário, ao

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 20


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

contrário, trabalha ao lado de dezenas e centenas de outros companheiros de igual categoria. A fábrica não é o seu
objetivo imediato, mas o salário e outros direitos, como o horário de trabalho, o repouso semana remunerado, as
férias, a estabilidade e a aposentadoria. Seu pensamento está dirigido para os demais companheiros com os quais
convive diariamente e de cuja solidariedade necessita para não perder os direitos que ganharam juntos”.
Numa compreensão que não fazia parte de nenhum trabalho teórico das esquerdas, afirmava: “O
individualismo do camponês, fruto do seu isolamento e do contato direto e permanente com a terra, faz dele um
ente desconfiado e retraído. Para amortecer este individualismo não basta o contato superficial e ligeiro que muitos
têm com ele, nos fins de semana, numa espécie de weekend revolucionário, muito em voga entre jovens estudantes
românticos e sectários, ainda que as suas ambições sejam puras e os seus objetivos, legítimos. Torna-se
indispensável uma convivência continuada e uma participação estreita com o seu mundo. Descobre-se, então, que
ele não é somente individualista, mas imediatista, como resultado do estado em que vive, isolado e inseguro, pois o
seu destino não lhe pertence, mas aos dias incertos, às safras pendentes, aos caprichos e às sentenças do
latifundiário. Com esse individualismo e esse imediatismo, ele pode ir de um extremo ao outro, passando do
inconformismo à revolta, sem qualquer estágio intermediário”.
E explicava como: “Atrasado e jungido à terra, numa sujeição que não se altera, o camponês é como a
dinamite que se atira contra a rocha e não explode. Se, porém, se mete um estopim dentro dessa dinamite e se lhe
chega a mecha, então ela explode e arrebenta a rocha. Esta operação, porém, não é fácil, porque exige paciência. É
que não se vence o mutismo do camponês, a sua desconfiança, apenas com palavras. Se às palavras e às promessas
não se seguem os atos e as ações, ele permanece retraído, distante, imóvel, esperando, como espera pela chuva, pelo
sol, pela colheita”.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 21


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

NO PAÍS DOS RURÍCOLAS

A DESAPROPRIAÇÃO DOS SUBSTANTIVOS

Na segunda metade da década de 50, não havia camponeses no Brasil. Havia “rurícolas” – esta era a palavra
adotada para definí-los. Era com esta qualificação que eles apareciam na grande Imprensa, no Legislativo, nos
debates sobre agricultura, nas conversas da alta sociedade. “Camponês” era uma palavra proscrita; só se
pronunciava entre gente de esquerda.
Na Assembléia Legislativa, em 1955, o deputado Francisco Julião foi quem primeiro passou a utilizar o
termo em larga escala, repetidamente, a ponto de causar mal-estar entre muitos dos seus colegas – boa parte deles
proprietários de terra.
O assunto chegou a ser debatido em plenário, durante discurso de Julião. Em aparte, a deputada Maria Elisa
Viegas de Medeiros, uma respeitada educadora, solicitou que ele utilizasse outra palavra menos “contundente”.
Julião quis saber qual ela sugeria.
– Rurícola! – respondeu a deputada.
Julião replicou que não podia fazê-lo. Primeiro, porque o camponês desconhecia o termo “rurícola”;
segundo, porque era “uma palavra esdrúxula, difícil de ser pronunciada”. E completou, sarcástico:
– A sua sugestão, nobre deputada, revela que a senhora nunca foi uma professora rurícola...
Depois, em conversa reservada, a deputada propôs que ele procurasse outro termo, mas evitasse usar
“camponês”. O nome tinha uma carga política e ideológica forte demais.
– Estou vendo a hora lhe darem um tiro aqui dentro – avisou.
A batalha vocabular aconteceria com o próprio nome “Ligas Camponesas”. Ao contrário do que se pensa,
não foi Julião nem os camponeses que batizaram assim o movimento; foi a Imprensa conservadora do Estado. No
período 1945-1947, o PCB havia criado algumas organizações rurais que receberam o nome de “Ligas
Camponesas”. Estas nunca se consolidaram, porém. Quando as entidades criadas por Julião começaram a aparecer,
e todas sob a denominação de Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (que era o nome
surgido no Engenho Galiléia), a Imprensa conservadora passou a chamá-las de “Ligas Camponesas” – era uma
tentativa de vulnerabilizá-las, vinculando-as às organizações comunistas da década de 40.
O nome pegou – mas sem a conotação pejorativa que se pretendia lhe dar. E Julião apropriou-se dele,
incorporando-o ao movimento. As Sociedades passaram a se chamar, então, Ligas Camponesas.
A preocupação com a palavra aparece em outro momento inicial da história das Ligas, quando se discutia
como deveriam ser chamados os núcleos da entidade em cada município. A sugestão dele, que permanece sendo
utilizada pelos sindicatos rurais: “Delegacia”.
Os conflitos dos camponeses eram tratados por todos como assunto de polícia – inclusive pela Imprensa,
que os noticiavam nas páginas policiais. A delegacia era o local em que, tradicionalmente, eram solucionadas estas
disputas – sempre com decisão favorável aos mais fortes econômica e socialmente. O camponês tinha medo da
delegacia – era a representação de um poder que se lhe afigurava hostil. Denominar a representação das Ligas nos
municípios de “delegacias” era uma forma de “descondicioná-lo”, entendia Julião. Assim, haveria agora uma
delegacia de polícia, mas também outra, dele, camponês: “Todos nós estamos sujeitos a um condicionamento
permanente desde que nascemos. O homem é um ser condicionado pelo meio, pela necessidade de sobreviver. A
gente se submete consciente ou inconscientemente”.
Antes de se apropriarem das terras, Julião e as Ligas começaram se apropriando das palavras.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO

...OU A LUTA DOS CAMPONESES CONTRA O LATIFÚNDIO

Homem de formação intelectual, conhecedor dos clássicos, admirador de Anatole France, Julião foi pioneiro
na análise ideológica e na utilização e valorização da cultura popular – assunto que nas cidades, salvo em uma ou
outra área, era considerado “coisa de pobre”.
O movimento, desde o início, sempre se deparou com dificuldades para transmitir suas mensagens. Os
camponeses não possuíam televisão. Nas poucas emissoras de rádio existentes, ligadas aos poderosos do lugar, não
se abria espaço para tratar dos problemas deles. E, para completar, mal sabiam ler. O índice de analfabetismo no
campo, em determinadas áreas do Nordeste, alcançava 97%.
“Buscando, naqueles primeiros anos, o meio mais eficaz de difundir a idéia das Ligas entre a massa
camponesa”, diz Julião, “atentamos para a força de divulgação e de participação da poesia popular”. A apresentação
de violeiros e cantadores e os folhetos de cordel, lidos nas feiras, tiveram papel destacado no proselitismo do
movimento. O próprio Julião escreveu vários folhetos dirigidos aos camponeses, explicando o que eram as Ligas,
dando recomendações, conclamando à organização: “Essa pitoresca literatura poética, que muito agrada ao homem
do campo, é o que há de mais autêntico e mais divulgado no folclore das populações rurais do Nordeste”. Com os
folhetos, o impacto do analfabetismo era atenuado: quem sabia ler, fazia a leitura para os companheiros.
A poesia popular, percebeu Julião, não tinha conteúdo político, mas era dotada de “um acentuado caráter
ideológico”. Nela aparecia sempre a luta do rico contra o pobre, do camponês contra o latifundiário, do fraco contra
o forte. Era a manifestação cultural ideal para os trabalhos das Ligas. “O poeta camponês, para despistar,
transplanta o cenário da peleja. A Luta de Manoelão do Paraná com o Seringueiro do Norte é uma história que se
passa no Nordeste, mas o poeta a coloca noutra região”. Personagens constantes dos folhetos, os cangaceiros
apareciam neles como heróis que os camponeses gostariam de imitar, segundo Julião. “Todos eles deixaram uma
tradição que é grata ao camponês – tomar do rico para dar ao pobres. Lampião (nos folhetos), quando conquistava
uma cidade, prendia o delegado, o prefeito, o coletor de imposto, libertava os presos, abolia as dívidas, dividia com
os miseráveis o dinheiro da coletoria e da prefeitura e dava esmolas às instituições de caridade”.
Um dos mais famosos folhetos produzidos no Nordeste, A Chegada de Lampião no Inferno, é analisado por
Julião como “um exemplo típico de literatura e caráter ideológico”. Segundo ele, o inferno aí descrito – com vigia,
cerca, portão, depósito de algodão, vidraça e casa de ferragens – não é outra coisa senão “a fazenda do
latifundiário”. Lampião, por sua vez, “representa o próprio camponês que deseja conquistar tudo aquilo”.
Outro combate célebre na literatura de cordel, A Eleição de Lúcifer e a Posse de Lampião, evidenciaria “a
revolta dos camponeses contra as eleições”. A maioria deles não votava, porque não havia ainda o direito do
analfabeto ao voto. Os que votavam o faziam quase sempre seguindo a recomendação do coronel do lugar. Em A
Eleição... Lampião contesta o resultado de um pleito no inferno e sai matando todos os diabos que encontra pela
frente, findando por tomar posse do governo. “A idéia de inferno”, dizia Julião, “o camponês sempre associa a de
latifúndio”.
Muitos violeiros, cantadores e escritores de folhetos colaboraram com as Ligas. Eram, no meio da massa
camponesa, os repórteres que levavam as notícias do movimento: “Com a ajuda desses profissionais, saímos do
grande cerco da Imprensa, vencemos o silêncio, quebramos o isolamento. Com isso não só era mais fácil o trabalho
do proselitismo junto ao campesinato, como também a penetração da notícia sobre as Ligas nas fazendas onde o
agitador político não podia entrar, dada a vigilância do latifundiário”.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

DE COMO O AÇÚCAR E JK AJUDARAM


NO CRESCIMENTO DAS LIGAS

O AÇÚCAR SOBE DE PREÇO, O CAMPONÊS É EXPULSO, A LUTA COMEÇA

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) trouxe um efeito benéfico para usineiros e senhores de engenho: o
aumento do preço do açúcar, causado pela escassez do produto no mercado. O desdobramento desse efeito recaiu –
e aí sem nada de benéfico – nas costas do camponeses. Isso porque os produtores precisavam de mais terra para
plantar e, para isso, começaram a expulsá-los da terra que ocupavam. Os que ficavam tinham que destruir o que
cultivavam para que no lugar se plantasse apenas cana. No livro A Terra e o Homem no Nordeste, indispensável
para quem deseja conhecer a Região, o geógrafo Manuel Correia de Andrade afirma: “Foi grande a área outrora
ocupada por foreiros, que foi conquistada pela cana-de-açúcar e grande o número de foreiros que teve de afastar-se
da atividade a que se dedicava”. Foreiros eram os camponeses que pagavam o foro aos proprietários.
Outro autor, José de Souza Martins, no livro Os camponeses e a política, diz que os “foreiros que não foram
expulsos ou despejados acabaram transformando-se em moradores de condição, sujeitos a dar um crescente número
de dias de trabalho ao canavial, sob pagamento de salário inferior ao dos trabalhadores de fora da fazenda”.
Este processo se acentuaria nos anos 50 e 60, de acordo com pesquisa do sociólogo Fernando Azevedo, no já
citado As Ligas Camponesas. Tornou-se, então, “uma prática generalizada em toda a área do sistema canavieiro”. O
que ocorreu, afirma ele, foi “uma expulsão em massa do morador e a expropriação dos lotes arrendados aos
foreiros. (...) Esses contingentes expropriados ou se deslocaram paras as terras menos férteis e afastadas da Zona da
Mata, nas linhas limítrofes com o Agreste, recriando assim um campesinato marginal com a sua dupla função de
produtor de alimentos e exército agrário de reserva; ou se proletarizam de maneira irreversível, migrando para as
cidades e vilas circunvizinhas e usinas, onde se tornaram trabalhadores volantes”.
O terreno, portanto, estava fértil para o surgimento de uma entidade que viesse defender os camponeses,
organizá-los, dar-lhes condições de enfrentar uma situação contra a qual não tinham proteção alguma.

JK, O NOVO CENÁRIO POLÍTICO E O BRASIL, ÁVIDO POR MUDANÇAS

Estamos na segunda metade da década de 50. No campo, expulsava-se camponês. Na política, no caso do
Nordeste, uma “crise regional”, que levaria ao surgimento de novas reivindicações, alianças aparentemente
contraditórias e a criação de um espaço para as lutas populares avançarem. Nessa época é criada a Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE. Uma aliança de comunistas com a União Democrática Nacional
(UDN), até então impensável, ganha as eleições para a Prefeitura do Recife, em 1955, com Pelópidas da Silveira,
do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Torna a ser vitoriosa na disputa para o Governo do Estado, com a eleição de
Cid Sampaio (UDN) – um usineiro que chegou a incorporar ao seu discurso reivindicações das Ligas e dos
comunistas.
Em escala nacional, o presidente Juscelino Kubitschek representava, de certa forma, uma ruptura em favor
da burguesia industrial, contrária à prática das oligarquias agrárias, extremamente fortes no Nordeste. Para Julião,
que o criticava por considerar que ele abrira as portas para o capitalismo multinacional, foi Juscelino quem,
“querendo ou não querendo, provocou o crescimento das Ligas”.
Em entrevista à pesquisadora Eliane Moury Fernandes, da Fundação Joaquim Nabuco, em 1982, como
parte do projeto A história oral do movimento político-militar de 1964 no Nordeste, Julião diz que “ele foi um
homem que provocou uma grande euforia na burguesia industrial, e isso favoreceu o movimento camponês, porque
enquanto os grandes senhores de terra queriam que não se tocasse no problema do campo, com a indústria de
transformação as lutas políticas começaram, a cidade começou a predominar sobre o campo (...) Essa gente
começou a observar que era preciso democratizar as relações de trabalho no campo, (essa gente) pensava que era
preciso criar uma classe média camponesa para vender os seus produtos, pois competir no mercado internacional
com os países europeus ou com os Estados Unidos, era mais difícil do que criar um mercado interno para tratar de
adquirir os produtos nacionais. Juscelino alimentou essa euforia na burguesia industrial”.
No Governo de JK, reconheceria Julião, a reforma agrária, “que sempre fora um tabu”, passou a ser
discutida abertamente.
A sociedade brasileira, ou pelo menos uma parte considerável dela, estava amadurecida para uma luta que
visava tornar o Brasil um país justo para o seu povo. Personagens de destaque dessa luta, as Ligas – nascidas na
região que, segundo Celso Furtado, “apresentava-se como a maior mancha de miséria do hemisfério ocidental” –
cresciam e se consolidavam.
O combate já estava com tudo pronto para começar.

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OS CAMPONESES VÃO ÀS RUAS

AS LIGAS, PRECURSORAS DAS MARCHAS DE CAMPONESES

Hoje em dia, as passeatas realizadas por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra –
MST tornaram-se uma cena comum nas grandes cidades brasileiras. Ninguém se surpreende mais, também, com a
realização de um Encontro ou Congresso de sem-terra ou trabalhadores rurais.
Não era assim na década de 50. Para o cotidiano das grandes cidades, os camponeses formavam uma classe
invisível. Individualmente, muitos deles, tangidos em busca de uma vida melhor, até moravam nessas cidades; mas,
coletivamente, a história era diferente.
Foram as Ligas, por idéia de Julião, que fizeram as primeiras passeatas de camponeses numa capital. Com
essas manifestações ele lhes deu o que todo movimento precisa para ampliar sua influência, e que nos dias atuais é
um conceito muito difundido no marketing político: visibilidade.
Em 3 de setembro de 1955 as Ligas organizaram na cidade o I Congresso Camponês de Pernambuco, com
cerca de três mil participantes. O local: o estádio dos Aflitos, pertencente ao Clube Náutico. Pela primeira vez na
história de Pernambuco os camponeses se reuniam, no Recife, para discutir os seus problemas e elaborar suas
reivindicações. Ao final eles fizeram uma marcha pelas ruas da Cidade, carregando foices, enxadas e facões. Era,
também, a primeira vez que um ato dessa natureza acontecia na capital pernambucana.
“Daí por diante”, conta Julião, “essas marchas se tornaram freqüentes, não só sobre o Recife, mas pelas
cidades do interior onde as Ligas já possuíam núcleos mais fortes, sempre para comemorar uma data histórica e
manifestar apoio a um acontecimento regional, nacional ou internacional”.
Em 1958, num período de três meses, as Ligas organizaram 80 atos públicos no Recife.
No final de setembro de 1960, durante as eleições presidenciais, os camponeses das Ligas protagonizaram
outro ato inédito: em caravanas vindas de vários Estados do Nordeste, participaram do comício de um candidato a
presidente, no Recife, o general Henrique Teixeira Lott. Segundo o diário comunista Folha do Povo,
aproximadamente cinco mil camponeses estiveram presentes ao ato. Nos cálculos de Julião foram 20 mil.

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Quatro anos antes, Julião havia procurado o ministro da Guerra – pasta que reunia as Forças Armadas – para
solicitar que as Ligas não fossem reprimidas pelo Exército. O encontro foi no Rio de Janeiro, então a capital do
País. O ministro era o marechal Lott. O diálogo que se segue foi reproduzido por Julião, em entrevistas dadas logo
após e em seu livro Cambão, a face oculta do Brasil, e nunca desmentido:
– Eu sei o que é não ter um pedaço de terra e ser expulso dele. Quando eu era criança vi a minha mãe passar
por esse transe. Nunca o esqueço. Compreendo por isso suas intenções – disse o Lott.
Momentos antes ele havia comentado que “pelo que sabia”, Julião era “tido e havido no Nordeste” como
comunista. Julião desfez a impressão.
– Sua Liga tem registro? – tornou o marechal.
– Tem. É legalíssima. Está conforme a Constituição, o Código Civil e a Lei de Registro Público. O juiz que
despachou o processo chama-se Rodolfo Aureliano. É um católico intransigente e conservador...
Dito isso, Julião lhe passou edição do Diário Oficial do Estado, que publicava uma síntese dos estatutos da
entidade e a autorização do juiz.
O ministro leu e devolveu o jornal, pronunciando a frase que iria aparecer todas as vezes em que se falava
da repressão policial às Ligas:
– Bem, a Liga tem tanto direito de existir como o Clube Militar.
E, em seguida:
– Que deseja o senhor do ministro da Guerra?
– Já que o senhor fala no Clube Militar, o que desejo é que o Exército se comporte em relação aos
camponeses do mesmo modo que o fez em relação aos negros e escravos, quando se negou a ser capitão-do-mato
dos latifundiários e escravocratas.
– Se é apenas isso, o senhor pode voltar em paz. O Exército respeitará a Liga.
O testemunho de Julião sobre o que aconteceu daí por diante: “O ministro cumpriu ao pé da letra com a
palavra empenhada”.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

Mas, nas eleições presidenciais de 1960 Lott foi derrotado por Jânio Quadros – e no Governo deste,
denunciou Julião, as Ligas “sofreram a revanche”. As cabanas dos camponeses eram alvo de batidas do Exército,

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 25


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

que estaria à procura de metralhadoras, fuzis e outras armas supostamente destinadas a ser utilizadas numa
revolução da qual a entidade faria parte: “Essas batidas se tornaram freqüentes, não obstante jamais ter o Exército
encontrado uma única arma de seu uso exclusivo, mas uma ou outra espingarda pica-pau, de caçar passarinho, além
da foice, do facão ou da enxada indispensável a quem lida com a terra. Não ficou nisso. O Exército passou a
prender também os líderes camponeses mais ativos.”
A repressão não impediu as manifestações – que se expandiam cada vez mais, e tendo entre suas
reivindicações não apenas questões específicas da classe. Quando em 1961 houve o episódio conhecido como o da
“Baía dos Porcos”, em que mercenários apoiados pelos americanos tentaram invadir Cuba, os camponeses –
liderados por Julião – fizeram uma grande passeata no Recife. Na frente, como uma espécie de estandarte, eles
carregavam retratos de grandes proporções de Fidel Castro, Che Guevara e Mao Tsé-tung, pintados por Abelardo da
Hora. Publicada na revista americana Life, foto da passeata correu o mundo.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

VITÓRIA NA GALILÉIA

AS REPORTAGENS QUE ABALARAM O NORDESTE

A luta dos Galileus chegou em 1958 ao ponto mais favorável – para eles. As Ligas, que já haviam
conquistado status político, haviam apoiado a candidatura do usineiro Cid Sampaio (UDN) ao Governo do Estado –
e quando ele ganhou a expectativa era de que o problema do Engenho Galiléia seria, enfim, resolvido.
Àquela altura, o conflito já era conhecido nacionalmente. O jornalista e escritor Antonio Callado estivera na
região, enviado pelo Correio da Manhã (RJ), então o jornal de maior prestígio do País, fazendo reportagens
especiais sobre a situação da seca no Nordeste e o conflito pela terra – era aí que entravam os acontecimentos do
Galiléia. As publicações alcançaram grande repercussão – pela primeira vez a “indústria da seca” era abordada em
profundidade, em um grande jornal, por um jornalista de prestígio. E também, pela primeira vez, com as mesmas
características, o problema dos camponeses de Pernambuco era revelado, nacionalmente, em toda sua crueza.
Políticos ligados aos “industriais da seca” protestaram no Congresso. Os proprietários de um dos engenhos
pernambucanos mencionados nas reportagens entraram na Justiça requerendo o enquadramento de Callado na Lei
de Segurança Nacional e a sua prisão preventiva. A acusação era que nas matérias ele teria feito “proclamações
incendiárias e inflamantes”. O pedido não foi acatado pela Justiça.
Nas reportagens, Callado comparava o regime de trabalho em que viviam os camponeses com a escravidão.
A denúncia vinha logo no primeiro parágrafo:
“Se uma agência responsável solicitasse das Nações Unidas uma investigação sobre as condições de trabalho
no Nordeste do Brasil íamos passar por uma grande vergonha. As Nações Unidas nos incluiriam entre as zonas do
mundo onde ainda permanece em vigor o trabalho escravo”.
Na despedida, mais contundência:
“Além da boa recepção de amigos pessoais, o Nordeste deixa um gosto de cinza na boca da gente. A
exploração do homem pelo homem é ali igual à de que não importa que região torpe do mundo. Antes da Abolição
havia no Brasil um requisito indispensável para se ser escravo: a cor preta. O Nordeste acabou com o preconceito.
Qualquer um pode ser escravo que este país é livre, ora essa”.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

O que pouca gente sabe é que as reportagens de Callado sobre o Nordeste faziam parte de uma articulação
cujas origens estavam no Governo de Juscelino Kubitschek – fato que só vem dar mais consistência à análise de
Julião, sobre a influência de JK, “querendo ou não querendo”, no crescimento das lutas dos camponeses. O caso é
contado em detalhes pelo economista Celso Furtado, mentor e primeiro superintendente da SUDENE, em um dos
seus livros de memórias, A Fantasia Desfeita.
Em 1959, Kubitschek havia convocado Furtado para preparar a “Operação Nordeste”, destinada a enfrentar
o atraso da Região, e que iria ter como um dos seus resultados a criação da SUDENE, logo depois. Ele ocupava
uma das diretorias do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE.
Para deslanchar a “Operação”, o governo tentou conquistar, segundo relata Furtado, “o apoio do Correio
da Manhã, então o jornal de mais influência na capital da República”. Para isso foi procurado o seu diretor, Paulo
Bittencourt: “(ele) era homem que adorava bater-se por grandes causas, tinha consciência do poder que exercia.
Quando lhe expus em que consistia o novo projeto, ele se entusiasmou e dispôs-se a apoiá-lo de imediato.
Rompendo uma tradição, o jornal inseriria na sua primeira página uma entrevista comigo, antecipando as linhas
gerais da nova política. Em seguida publicaria uma série de editoriais dando ênfase a certos pontos e aprofundando
outros. E mandaria um jornalista de primeira linha – Antonio Callado – para observar in loco a situação da região e
as consequências desastrosas da política que vinha sendo seguida pelo governo”.
Diria, ainda, Furtado: “A atuação do Correio da Manhã foi decisiva para transformar um simples embrião
de projeto (uma nova política para o Nordeste), ainda em minha cabeça, em um dado novo e de peso no debate
político nacional”.
As reportagens de Callado foram publicadas em livro, em 1960, pela Editora Civilização Brasileira, com o
título Os industriais da seca e os Galileus de Pernambuco.

O ENGENHO GALILÉIA É DESAPROPRIADO

Em 12 de julho de 1957, Julião apresentou o primeiro projeto na Assembléia Legislativa, solicitando a


desapropriação do Engenho Galiléia. Argumentava, entre outras coisas, que “a Constituição do Estado declara, no
seu artigo 155, que “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social’”. O projeto foi desconsiderado
pelo Governo Cordeiro de Farias. Dois anos depois, já no Governo Cid Sampaio, outro deputado do PSB, Carlos

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Luiz de Andrade, apresentou projeto com o mesmo teor – e este foi bem-sucedido. Cid assinou o decreto de
desapropriação na sacada do Palácio do Campo das Princesas (sede do Governo), diante de uma multidão de
camponeses.
Era um fato inédito na História pernambucana. Os camponeses festejaram sua primeira grande vitória; os
proprietários e os conservadores, alarmaram-se.
O ato repercutiu em todo o País. O jornal Estado de S. Paulo, na edição de 18 de fevereiro de 1960, depois
de, em dias anteriores, também ter abordado a questão, afirmava em um editorial sugestivamente intitulado
Demagogia e Extremismo: “Ao criticarmos, não faz ainda muitos dias, a absurda iniciativa do governador Cid
Sampaio, de desapropriar as terras do Engenho Galiléia para, num ilícito e violento golpe no princípio da
propriedade, distribuí-las aos empregados daquela empresa, prevíamos o que disso poderia resultar. A violência
seria, como foi, considerada uma conquista das Ligas Camponesas, e acenderia a ambição dos demais campesinos
assalariados, desejosos de favores idênticos (...). O movimento ganhará novas proporções, atingindo as classes
proletárias das cidades, com invasão de oficinas, com o apossamento violento das fábricas, com assaltos a casas de
residências, com depredações de bancos e estabelecimentos comerciais. A revolução é assim. E o que, com sua
cegueira, o Governo pernambucano incentivou foi a revolução”.
O escancarado exagero do editorial era a tradução do pensamento de muita gente. Isso porque, naquele caso,
não era só a terra de um engenho que estava em jogo – era o simbolismo do gesto, o valor político da
desapropriação. Nunca, antes, na história do Nordeste, os camponeses tinham tido tanta força e levado tão adiante
suas reivindicações. As classes dominantes consideravam que a desapropriação “abria um precedente perigoso” em
relação à propriedade privada. Temiam que o ato se tornasse um estopim para novas reivindicações. Para estes, ao
ceder em relação ao Galiléia, o Governo permitia que as Ligas e Julião usassem o ato como um fermento para
crescerem – o que, de fato, acabou acontecendo.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

A desapropriação em si, porém, não era ainda a reforma agrária que Julião desejava. Esta, considerava ele,
teria que ser radical para merecer o nome de reforma agrária. A Constituição (que era a de 1946) nem de longe
permitia isso. Para fazer a desapropriação “por interesse social”, a Constituição determinava que o proprietário
deveria receber, em dinheiro, “uma indenização prévia e justa”.
No caso do Galiléia, o preço estipulado para a compra teria sido alto demais na opinião dos defensores da
desapropriação. Para Julião, aquela desapropriação não deveria ser um modelo a ter aplicação generalizada: “Não
aconselho as desapropriações em todos os casos, dado que tal procedimento acarretaria despesas fora do alcance do
erário de qualquer estado. Em Pernambuco, tenho desaconselhado colegas meus, da Assembléia, que,
entusiasmados com o êxito de Galiléia, desejam novas desapropriações”.
Ele sabia bem do que estava falando. Alguns proprietários chegaram a procurá-lo para que ele fizesse
“algum movimento” nas terras deles, na esperança de que elas fossem desapropriadas – e, claro, eles recebessem
uma “indenização justa, prévia e em dinheiro”...

ASCENSÃO E QUEDA DO VELHO COMUNISTA, JOSÉ DOS PRAZERES

Quando o Galiléia foi desapropriado, José dos Prazeres só tinha motivos para estar feliz. Era a coroação de
uma luta iniciada a partir do encontro dele e seus companheiros com Julião, naqueles dias finais de 1954. Sua
liderança crescera. Não era mais apenas o líder de uma associação de verdureiros, num bairro do Recife. Em 1955
obtivera outra conquista, tornando-se presidente do I Congresso dos Camponeses, realizado no Estado. Agora,
vinha a conquista do Galiléia. Mas, por aquilo que se costuma traduzir como ironia da História, a desapropriação do
engenho acabou provocando o fim da carreira de José dos Prazeres no movimento camponês. E levando ao
rompimento dele com Julião.
O projeto que o governador Cid Sampaio tinha para o engenho previa a relocação de uma parte das 140
famílias de lá para outras áreas. As terras do Galiléia, do ponto de vista da produtividade, não eram suficientes para
contemplar todos, afirmava o Governo. José dos Prazeres apoiou a proposta de Cid, de transferência de algumas
famílias. Julião foi contra. E bem ao seu estilo, sem transigências:
– Não saiam daqui. Agarrem-se a esta terra, ainda que seja apenas um hectare, mas fiquem aqui! –
recomendou.
Na disputa que se seguiu, José dos Prazeres – acusado de ter sido cooptado pelo Governo de Cid – foi
derrotado. Antes daquela disputa, antes da desapropriação, segundo o próprio Julião, “houve momento em que ele
teve o Galiléia nas mãos”. Mas sua liderança não resistiu àquele embate. Os Galileus, em massa, resolveram ficar.
Desgastado, visto como traidor pelos companheiros, foi expulso por eles do engenho. Mais do que isso: foi proibido
de entrar na área.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Era uma derrota violenta demais mesmo para um velho comunista, acostumado – dadas as suas origens
camponesas e sua opção ideológica – a enfrentar reveses. Abandonou as Ligas. Afastou-se de Julião. Voltou para o
Recife.
Os dois só iriam encontrar-se cerca de quatro anos depois. A intermediação do encontro foi feita pelo irmão
de Prazeres, Amaro do Capim, que também fora do PCB, e igualmente estivera no grupo que fizera aquela primeira
visita à casa de Julião.
No reencontro, Prazeres fez um pedido: queria visitar o Galiléia. “Eu vou lhe levar”, respondeu Julião.
Avisou os Galileus e marcaram a data para a visita. O que aconteceu, nas palavras de Julião: “Foi uma festa
maravilhosa. As pessoas receberam José dos Prazeres de tal forma que o velho chorava. Ele tinha uns bigodes
grandes, parecia um cossaco russo. Disse: ‘Estou compensado’ ”.
Não voltou, porém, a atuar no movimento camponês. Continuou morando no Recife. Sofreu um derrame
cerebral. Não se sabe a data de sua morte.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

“NA LEI OU NA MARRA”

A PALAVRA DE ORDEM QUE DERROTOU OS COMUNISTAS


E AS DIVERGÊNCIAS DE JULIÃO COM ELES

O início da década de 60 encontrou as Ligas Camponesas em fase de acelerada expansão. Atingiram,


praticamente, todo o Estado, embora suas lutas mais intensas fossem na Zona da Mata. Em determinado momento
de 1961, chegaram a ter 10 mil associados e 40 sedes municipais, das quais as mais fortes eram as de Água Preta,
Bom Jardim, Cabo, Escada, Goiana, Igarassu, Jaboatão, São Bento do Una e Vitória de Santo Antão. De 1960 a
1962 as Ligas estavam presentes em 13 dos 22 Estados brasileiros. Tornara-se o maior movimento agrário realizado
no País. Os camponeses, que até então só tinham tido líderes de atuação geograficamente muito restrita, e
exclusivamente messiânicos, como Antônio Conselheiro, de Canudos, contavam agora com uma liderança de perfil
completamente diferente – o advogado e deputado Francisco Julião. Seu nome e sua foto apareciam em revistas e
jornais dos Estados Unidos e da Europa. Homem de cultura, admirador dos clássicos da literatura, marxista,
apaixonado pela causa que abraçara, conhecedor profundo da vida do camponês, carismático, tinha ele o perfil
talhado para estar à frente daquela luta.
Luís Carlos Prestes, o maior líder comunista do País, percebeu a força das Ligas e de Julião. No início de
1961, chamou-o para um encontro no Rio de Janeiro. Propôs a fusão das Ligas Camponesas com a União dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil – ULTAB, entidade que fora criada pelo PCB, em 1954. Prestes
considerava que, com a junção das duas o movimento agrário adquiriria mais força e teria mais condições de
espalhar-se nacionalmente. Julião seria o líder da nova entidade que surgiria dessa unificação – mas ele não aceitou
a proposta. Unificado nessas condições, acreditava, o movimento acabaria ficando sob o controle do PCB.
No tocante à inserção no campo, e ao número de associados, as Ligas estavam muito à frente da entidade
criada pelos comunistas, comparava Julião. A ULTAB tinha a vantagem da máquina do partido, abrangência
nacional, mas não chegava ao camponês, dizia ele: “Era uma coisa muito vaga porque, em geral, os seus presidentes
e os seus membros não eram camponeses – havia até promotores públicos. O presidente nacional da ULTAB era
um alfaiate. Não conheci um só dirigente dela que fosse camponês, é possível que houvesse, porque ela se estendeu
pelo país. Mas não tinha nenhuma força, pois não congregava a massa camponesa. Só as Ligas em Pernambuco
congregavam muito mais camponeses do que a ULTAB em todo o Brasil”.
A relação de Julião com o PCB, que nos primeiros anos das Ligas fora de muita aproximação, iria deteriorar-
se a ponto de entrarem em choque. Um dos pontos dessa ruptura foi o I Congresso Nacional de Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas, realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte (MG). Era um evento organizado
pela ULTAB, que compareceu com a grande maioria dos 1.400 participantes. As Ligas tinham 215 representantes,
liderados por Julião.
A inferioridade numérica foi compensada pela proposta que os camponeses das Ligas defendiam, e que já
eram a palavra de ordem do movimento: “Reforma agrária na lei ou na marra”. Com ela conquistaram o plenário –
e aprovaram a proposta de reforma agrária radical, derrotando as posições da ULTAB e do PCB. A linha do partido
– que definira isso no seu V Congresso, realizado naquele ano – era a de conquistar a reforma agrária por etapas,
sem radicalismos. Fazia parte de sua nova estratégia de “frente única”, que estimulava a aliança com a burguesia e
até com latifundiários. O inimigo, entendia o PCB, era o “imperialismo americano”. A nova estratégia dos
comunistas descartava a revolução pelas armas; clamava, agora, pela chamada “via pacífica”.

POLÊMICA COM OS COMUNISTAS

Julião teve, pelo menos, duas famosas polêmicas com integrantes do PCB, ambas em 1962. A primeira foi
com um dos principais nomes do partido, Giocondo Dias, pelas páginas do semanário comunista Novos Rumos
(RJ), em 10 e 17 de agosto. Nesta, o líder das Ligas mostrava-se convencido da possibilidade “de uma revolução
socialista, tendo por base inicial o campesinato e a luta armada, a partir do campo, queimando ‘etapas’, tal como
tinha se passado na China e em Cuba”, conta Fernando Azevedo no livro As Ligas Camponesas. Para Dias, este
posicionamento de Julião era “estreito e dogmático”.
A segunda polêmica deu-se com o escritor pernambucano Paulo Cavalcanti (1915-1995). Os textos foram
publicados nas edições de 15 e 29 de setembro do jornal comunista A Hora, do Recife. Cavalcanti criticava, entre
outras coisas, a postura de Julião em fazer campanha em “faixa própria”, nas eleições em que Miguel Arraes
disputava o Governo do Estado (contra João Cleofas, da UDN). A tática iria “isolá-lo”, levar ao “enfraquecimento
da luta comum” e abrir espaço para que os camponeses sofressem “golpes violentos, dificultando a solidariedade da
classe operária”, dizia Cavalcanti.
Julião respondeu com dureza. Afirmava que, sim, era em “faixa-própria” que estava participando das
eleições, mas que sua participação e a dos camponeses era “em favor da candidatura de Miguel Arraes”. E

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

acrescentava: “Você sabe, como conhece todo o Brasil, que os meus objetivos não se confinam às eleições. Tanto
isso é exato que, já no dia seguinte a cada pleito eleitoral, eu prossigo na minha campanha pelo País da reforma
agrária radical, que só virá no âmago da revolução social redentora, isto é, na marra, porque a oligarquia dominante
não permite que se faça na lei”.
As divergências com o PCB seriam mais explicitadas por ele 22 anos depois: “Os comunistas não tiveram
um papel destacado, nem predominante, na luta pela organização do camponês brasileiro. Isso é explicado porque
eles partiam de teorias leninistas de que a revolução social deveria ser conduzida, sistematicamente, pela classe dos
trabalhadores urbanos, pelo homem da fábrica. Embora eu considere que essa é uma teoria que não tem tido
constatação naqueles países que não estão ainda legalizados, onde a grande massa do trabalhador, o proletariado, se
encontra no campo e não na cidade. A China demonstrou o contrário: a revolução se fez do campo para a cidade;
Cuba também; a Nicarágua acaba de mostrar”.
Para ele, “essa teoria que ficou na cabeça dos comunistas durante mais de 50 anos de existência no Brasil e
em outros países da América Latina, explica o fracasso dos partidos comunistas. Os PCs, em vez de meter isso na
cabeça, querem transplantar de outros países essa teoria de que somente a classe obreira pode conduzir uma
revolução social”.
Em um dos livros de memórias que escreveu, A Luta Clandestina, publicado em 1985, Paulo Cavalcanti
daria sobre as divergências uma opinião amadurecida pelo tempo: “De lado a lado, havia despeito e veleidades
feridas de liderança. Na verdade, Julião fizera pela conscientização em torno da reforma agrária, em dois anos, o
que o velho PCB não conseguira em 40”.
Um ano antes, durante o lançamento do livro de Fernando Azevedo, no Recife, ato do qual participou o
próprio Julião, Paulo Cavalcanti já havia utilizado o modelo dessa frase, ao afirmar: “Julião fez mais pelo
movimento camponês, em cinco anos, do que o PCB em 50, desde a sua fundação”.
Em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (Nacionalismo e Crise
Social: O Caso da Frente de Recife), o sociólogo José Arlindo Soares (atualmente secretário estadual de
Planejamento) também dá destaque ao assunto: “A organização do movimento camponês no Nordeste foi, sem
dúvida, o acontecimento que mais abalou as instituições políticas nacionais e mais pânico provocou nas classes
dominantes. Este vai provocar importantes transformações, quer no desenlace dos pactos políticos nacionais, quer
nas relações internas do movimento popular. Sem dúvida, foi o acontecimento que mais impacto provocou e mais
questões colocou para as direções das classes populares. (...) a criação e expansão das Ligas Camponesas fizeram
aflorar os conflitos estruturais além do permitido pelo jogo político institucional”.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

JULIÃO, O HOMEM

O DESAPEGO AO DINHEIRO

Francisco Julião viveu empenhado em melhorar as condições de vida dos outros, mas na sua própria vida
esteve sempre perseguido pela falta de dinheiro. Foi assim na juventude, como deputado e como exilado – ao
morrer, por exemplo, não tinha sequer casa própria.
Já deputado com atuação reconhecida, ele, às vezes, atrasava o pagamento das mensalidades da escola dos
filhos. A mesma coisa acontecia com o aluguel da casa – que vivia cheia de camponeses, aos quais ele dava auxílio
jurídico, político e, não raras vezes, financeiro e até médico. No livro Até Quarta, Isabela!, escrito em 1964,
quando estava na prisão, ele comenta: “Poderia ter tido tudo e pouco tenho. Ou quase nada. Ninguém, entre os que
caíram e os vitoriosos, ousaria permutar os meus bens pelos seus”.
A razão de ser desse comportamento em relação ao dinheiro poderia estar em uma das lições que recebeu
do pai, considerava Julião: “(dele) guardo a imperecível lembrança do caráter reto e da firmeza de princípios. Eis
uma das lições que nos ministrava, quando ainda nos tinha a todos pequenos em volta da mesa larga do chalé: “Se
um de vocês encontrar no seu caminho uma carteira de dinheiro, não deve sequer apanhá-la, pois este gesto pode
acender a cobiça de ficar com ela. Passe adiante”. Aos 8 anos de idade, quando se é como a argila dócil, o bom
modelador pode imprimir-lhe as formas mais delicadas e definitivas. Hoje, quando recordo essa lição da carteira,
pergunto a mim mesmo, com justificada razão, se ela não contribuiu, decisivamente, para ter como sempre tive,
tanto desprezo pelo dinheiro”.

A FILHA COM UMA CAMPONESA

Julião teve seis filhos. Um deles, uma menina, Moema de Paula, foi com a filha de uma camponesa que
trabalhava na propriedade de sua família. O fato nunca foi revelado publicamente.
Mais tarde, em 1o de abril de 1943, ele casaria com Alexina Crêspo, uma ex-aluna particular, 11 anos mais
jovem do que ele. O casal teve quatro filhos: Anataílde, Anatilde, Anatólio e Anacleto. Aos 15 anos, Moema foi
morar com eles. Depois, casou-se e deixou a casa para ir viver com o marido, um engenheiro. Vive hoje em Minas
Gerais.
Quando ainda estava casado com Alexina, Julião iniciou um romance com a advogada Regina de Castro.
Do relacionamento nasceria outra filha, Isabela. Em 1963, ele separou-se de Alexina. Depois de alguns anos no
México, ele conheceu Marta Rosas, a mulher com quem viveu até morrer. Com ela não teve filhos.
Tomado pelas tarefas da política, Julião mal tinha tempo para a família. Esteve longe de ser um pai
exemplar. O caçula, Anacleto, lembra de ter saído com ele apenas uma vez, para tomar sorvete. A única festa que
fazia questão de participar com os filhos era o São João. Chegava, trazia fogos, soltava o primeiro – e ia embora de
novo, de volta ao trabalho. Prisioneiro da urgência, Julião havia decidido entregar-se por completo à sua causa.
Tudo o mais poderia ficar para depois.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

Com Alexina ele passou os anos de maior agitação política. Além das tarefas de casa, ela também teve
atuação política (foi candidata a vereadora do Recife, pelo PSB) e nas Ligas, das quais chegou a ser dirigente
nacional. Quando Julião recebia desconhecidos em seu gabinete, o que acontecia sempre, ela escondia-se por trás
de cortinas, com um revólver na mão. Temia que o desconhecido fosse praticar algum atentado contra ele, e
preparava-se para reagir, caso isso acontecesse. Fez parte do grupo das Ligas que tentou organizar a luta armada no
país, participando de alguma operações para a aquisição de armas. Acompanhou os filhos no exílio, primeiro em
Cuba, depois no Chile e na Suécia. A saga dos filhos de Julião e da mãe deles, que os acompanhou, daria um livro à
parte. Fugindo das ameaças de violência dirigidas à família, primeiro saíram as meninas, que, graças à intervenção
de Fidel Castro, iriam estudar na União Soviética. Mas não se adaptaram ao chegar lá. Alexina, que viajara só para
deixar as duas e voltar, não suportou o choro das filhas. Decidiu trazê-las de volta, enfrentando a reação irritada dos
rígidos funcionários soviéticos, que não compreendiam aquele vai-e-vem. Alexina e as filhas acabaram ficando em
Cuba. Depois chegaram os dois garotos, Anatólio e Anacleto.
Fidel Castro, de vez em quando, aparecia na casa deles, e ficava fazendo uma pergunta atrás da outra. Queria
saber, por exemplo, como se fazia aquela saia plissada que Anataílde usava. Uma vez, estando os Julião brincando
na rua, Fidel passou de carro, parou, e perguntou se eles não queriam ir passar alguns dias no Brasil. Ora, se
queriam. Vieram. Foi no Natal de 1963, o último que passaram com o pai. Na segunda quinzena de março de 64,
Alexina embarcou para Cuba, onde iria participar do casamento de Anataílde e, depois, voltar ao Brasil. Acabou

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

tendo que ficar com os filhos definitivamente: com o golpe militar de 31 de março, ela não podia mais retornar ao
Brasil, sob risco de ser presa.
Os quatro filhos fizeram universidade em Cuba. Em 1973 estavam – com exceção de Anatilde, que ficara em
Cuba – todos no Chile, quando estourou o golpe militar do general Pinochet, que derrubou o Governo de Salvador
Allende. Anataílde chegou a ser presa; foi solta graças, principalmente, à atuação do embaixador da Suécia, Harald
Edelstam.
Depois disso, Alexina mais os três filhos exilaram-se na Suécia. Voltaram com a anistia de 1979. Dos cinco,
Anatilde mora em Curitiba; os demais vivem no Recife. Alexina está com 75 anos.

O DIA EM QUE DESAFIOU UM CAPITÃO PARA UM DUELO À BALA

A fama de valente de Julião corria os canaviais pernambucanos. Sucediam-se as histórias, verdadeiras ou


imaginárias, de cidades ou engenhos em que o “coronel” ou chefe local ameaçava “se ele entrar aqui, morre” – e
cedo ou tarde Julião aparecia no local, entrava, saía, e prometia voltar. Nos atos de que participava no campo, fosse
um comício ou reunião com camponeses, havia sempre a possibilidade de ocorrer algum conflito violento. Em 17
de novembro de 1956, em Vitória de Santo Antão, aconteceu um caso desses. Ele estava na sede da Liga local
quando entrou o delegado da cidade, um capitão PM, acompanhado de oito soldados e quatro policiais civis.
Segundo Julião, o capitão passou a agredí-lo e aos camponeses presentes com “uma linguagem ofensiva”.
Houve discussão e os policiais colocaram os camponeses para fora da sede, “a socos e pontapés”. Em seguida,
trancaram as portas. Julião – que estava no segundo ano do primeiro mandato como deputado estadual – ficou com
eles lá dentro. O capitão tornou a discutir com ele e os dois se atracaram. “Houve um corpo a corpo, tendo sido eu
desprendido do capitão pelos outros elementos que ali estavam”, relataria durante discurso que fez na Assembléia
naquele mesmo dia. “No ardor desse combate arrebataram-me a arma (um revólver) e procuraram subjugar-me, não
respeitando os protestos que eu fazia no sentido de respeitarem as imunidades parlamentares de deputado”.
Nesse momento, Julião fez um desafio que, se aceito, poderia ter mudado o curso da história dele. Desafiou
o capitão para um duelo, à bala. Era uma forma de acabar com aquela situação, resolvendo de homem para homem
o conflito: “Pedi a restituição de minha arma, sem o conseguir e insisti pelo duelo dentro da sede ou fora dela, mas
ele, com surpresa para mim, riu-se e disse que não havia necessidade do duelo. Eu disse: ‘O senhor não aceita o
duelo porque é um covarde, não respeita a farda que veste’ ”.
Como resposta, foi colocado à força num automóvel da polícia e trazido para o Recife, onde acabaria sendo
libertado por ordem de um assessor militar do governador Cordeiro de Farias. O caso teve grande repercussão em
Pernambuco. A Assembléia cobrou a abertura de inquérito para apurar a violência sofrida por Julião. Mas o capitão
– Jesus Jardim de Sá era o seu nome – não sofreu punição alguma. Ao contrário: no ano seguinte seria promovido a
major, passando à frente de 10 outros policiais militares que estavam melhor colocados do que ele, conforme
pronunciamento feito por Julião na Assembléia, em 1o de julho de 1957.
Ele sofria de um problema, porém, contra o qual sua valentia não adiantava de nada: enxaqueca. A doença
conseguia abatê-lo, fazendo-o recolher-se a um quarto escuro, exigindo que todos em casa fizessem silêncio. Teve
enxaqueca durante toda a vida: “É um suplício do qual posso falar de cátedra. Conheço-a em todas as suas nuanças.
Tem mil causas, mas uma só forma de atingir o paciente. É como se um par de tenazes fosse apertando as têmporas,
enquanto um estilete de aço se enfiasse nuca adentro. As extremidades gelam. Vem a dispnéia. E o vômito
irreprimível. O coração fica opresso. E o rosto de uma palidez esverdeada. O doente procura um quarto escuro. E
não se contenta com isso. Quer um pano preto nos olhos. Recorre à água quente. Usa todos os sedativos. Mas ela
não cede. Vai quando quer. Tem um ciclo. Pode durar uma hora. Pode durar três dias”.

UM ATEU QUE TRABALHAVA COM A BÍBLIA

Julião era um homem pequeno, com 1m64, franzino, pálido, de olhos castanhos e com uma cabeleira vasta,
que se assanhava com facilidade. Era ótimo orador e em seus atos públicos estava sempre cercado de camponeses.
Nesses momentos, às vezes parecia uma “figura bíblica” – foi esta, por exemplo, a impressão que teve dele, nos
anos 60, ao vê-lo num comício no centro do Recife, o hoje governador Jarbas Vasconcelos. Foi a impressão que
tiveram, também, algumas pessoas que o viram numa passeata de camponeses em Pesqueira, na qual os
participantes agitavam ramos verdes. Julião ia na frente, ladeado pelos manifestantes, como um pregador
acompanhado de fiéis. Sabedor do forte espírito religioso dos camponeses, ele teve na Bíblia um dos principais
aliados para conquistar a confiança deles. Muitos pastores protestantes integraram-se às Ligas nos primeiros anos.
Ele próprio costumava referir-se a histórias da Bíblia, como as de Jesus Cristo, o Sermão da Montanha, entre
outras. Conhecia tão bem o assunto que, depois do golpe de 64, ao fugir, passou um tempo disfarçado de pastor.
Mas a verdade é que Julião era ateu. Perdera a fé religiosa aos 18 anos e nunca mais a recuperaria. Tornara-
se marxista. Sua convicção materialista nunca foi publicamente revelada – se fosse, com certeza não seria
compreendida pelos camponeses e traria problemas para toda a organização.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

O ESCRITOR QUE PODERIA TER SIDO

A FACE MENOS CONHECIDA DO AGITADOR

Caso não tivesse dedicado sua vida à política, Julião poderia ter sido escritor – e dos bons. Publicou seis
livros, sendo que dois foram de ficção: Cachaça, de contos, lançado em 1951, e Irmão Juazeiro, romance, de 1961.
Os outros quatro tinham vinculação direta com a sua militância: Até Quarta, Isabela!, escrito em forma de carta
para sua filha, quando ele estava na prisão, em 1964; O que são as Ligas Camponesas, de 1962; Brasil, antes y
después (este uma coletânea de cartas, artigos e ensaios curtos, publicado em apenas no México), em 1968, e
Cambão, inédito no Brasil mas publicado em vários países, incluindo Portugal, em 1975.
Os dois livros de ficção seguem um estilo regionalista, retratando a vida de moradores pobres do campo.
Irmão Juazeiro trata de um conflito envolvendo um latifundiário e um camponês. Cachaça reúne seis contos; em
todos a bebida (um dos problemas que afligia os camponeses da Zona da Mata) é o tema principal. Teve prefácio de
Gilberto Freyre.
“Li os contos do sr. Francisco Julião”, escreve Freyre, “com a atitude de leitor que pede ou exige desse
gênero de literatura que lhe desperte a emoção, a sensibilidade e o gosto de descobrimento: descobrimento de
pequenos aspectos ignorados ou pouco conhecidos da natureza humana. Embora um tanto caricaturescos em
algumas páginas, creio que em nenhum dos seus contos o snr. Francisco Julião desaponta o leitor”.
E acrescenta: “Não é comum encontrarem-se contos assim entre os muitos que hoje escrevem e publicam
no Brasil principiantes e mesmo veteranos. No snr. Francisco Julião talvez esteja surgindo alguém capaz de dar ao
conto brasileiro, ou regional, novo interesse, nova atração, novo sabor.”
Depois de Irmão Juazeiro, Julião nunca mais escreveu ficção. “Eu tinha certas pretensões literárias que
abandonei para me dedicar exclusivamente ao problema do camponês. Depois de ler José Lins do Rego e
Graciliano Ramos, pensei: ‘Que nada, não vou estar à altura dessa gente’ ”.

Trecho do romance Irmão Juazeiro

“A coisa que mais prendeu a atenção das meninas não foi o seu vestido de seda. Nem a pulseira. Nem os
brincos. Nem a volta. Nem o penteado do cabelo. Nem o rapaz alvo, de cabelo partido ao meio, que saltou do
caminhão com ela. O que deixou as meninas
encantadas foi o dente de ouro brilhando quando ela sorria. Entrou em casa como se fosse a luz da manhã
quando se abre a porta. Vinha perfumada como uma rosa. Até a fala mudara. Tudo. Quem ficou de olhos cheios
d’água, sem poder dar uma palavra, foi Donzinha. Deixou-se abraçar e beijar, no meio da sala, sem atinar como
retribuir. Não estava acostumada àquilo. O rapaz acompanhava tudo com os olhos e não deixava um sorriso que
as meninas não sabiam se era de mangação ou de alegria. Diante dele Donzinha despertou.
– Quem é esse moço, Naninha?
– Meu marido, mamãe. Casei-me...
– Tu?
– É uma história muito comprida. Depois eu conto.
Mostrou a aliança na mão esquerda. O rapaz também. Não era preciso mais nada.
Tinham casado mesmo.
Sentaram-se em tamboretes. O rapaz tirou um cigarro de uma carteira de metal que fechou com um estalo e
acendeu na fosforeira.
Tinha relógio de pulso. Estava bem vestido.
– Como se chama o teu marido, minha filha?
– Alfredo. Tem o apelido de Fefeu.
As meninas tiveram que vir pro copiar. Vieram mesmo descalças, com o vestido sujo e velho, mortas de
vergonha. Naninha ia dizendo o nome de cada uma. Alfredo corria as meninas de cima a baixo, gulosamente”.

DISCO PARA (SÓ) OUVIR EM CASA

Durante seu período de militância nas Ligas, Julião também escreveu muitas cartilhas, que eram utilizadas
como material de informação e conscientização. Entre elas estão o Guia do Camponês, ABC do Camponês, Recado
do Camponês e a própria Cartilha do Camponês, que trazia o Hino do Camponês, escrito por Julião e musicado por
Geraldo Menucci.
“Tenho uma boa notícia para te dar”, dizia ele na Cartilha do Camponês. “Teu inimigo cruel – o latifúndio –
não anda bem de vida. E eu te garanto que a moléstia é grave. Não há remédio para ele. Morrerá espumando de
raiva como um cão danado. Ou como um leão velho que perdeu as garras. Morrerá como morreu na China, um país

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

muito parecido com o nosso Brasil. Morrerá como foi morto em Cuba, onde o grande Fidel Castro entregou a cada
camponês um fuzil e disse: ‘Democracia é o governo que arma o povo’. Eu fui lá e vi tudo, camponês. Em Cuba
não há mais cambão, nem meia, nem terça, nem vale, nem barracão e nem capanga. Lá naquela ilha libertada
ninguém arranca mais lavoura. Nem põe a casa abaixo. Nem bota o gado no roçado. Nem cobra por um quadro de
terra 150 quilos de algodão”.
Há outra produção de Julião que, por culpa da censura, é praticamente desconhecida do público. Trata-se do
LP Julião, verso e viola, gravado em 1981. Trazia três longos poemas dele, em estilo de literatura de cordel, falando
dos sindicatos, dos direitos da mulher e do nacionalismo (este intitulado Por que sou nacionalista). É acompanhado
ao violão pelo compositor e violonista Francisco Mário, irmão de Betinho (ambos já falecidos). A censura vetou a
sua transmissão pública. “A irradiação dos poemas pode reavivar certas coisas que é hora de esquecer. Quem quiser
que oiça em casa”, dizia o despacho do censor. Foram prensadas 500 cópias do disco, que viraram artigos de
colecionador. No final de sua vida, no México, Julião dedicou-se a escrever suas memórias, às quais pensava dar o
título As utopias de um homem desarmado, e outro volume em que analisava o movimento que o celebrizou, A saga
das Ligas Camponesas. Este, segundo seus filhos, estaria concluído. Os originais encontram-se com a mulher com
quem vivia no México, Marta Rosas.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

CABRAS MARCADOS PRA MORRER

O CAMPO NUNCA ESTIVERA TÃO VIOLENTO, QUEIXAVAM-SE


OS PROPRIETÁRIOS. MAS SÓ MORRIAM CAMPONESES

A fase de maior expansão das Ligas Camponesas, no período 1960-1963, não se fez sem vítimas.
Na noite de 2 de abril de 1962, um pastor protestante estava indo para casa, em Sapé (PB), na Zona da Mata
paraibana, quando foi assassinado por quatro homens vestidos de vaqueiros. Levou três tiros de fuzil nas costas.
Chamava-se João Pedro Teixeira, pai de 10 filhos, presidente da Liga do município, a maior do País, com cerca de
10 mil associados.
Um dos seus filhos, de oito anos, fez um juramento que se espalhou pela região: “A morte de meu pai eu
vingarei”. Tornou-se alvo da mira dos assassinos, que o balearam com um tiro no rosto, quase o matando.
A filha mais velha, Marluce Teixeira, esperou um ano inteiro que os pistoleiros e mandantes do assassinato
do seu pai fossem punidos. Completado esse prazo, suicidou-se ingerindo veneno. Tinha 16 anos. Deixou um
bilhete: “Me mato porque não houve justiça com o meu pai”.
Os homens que o assassinaram eram três policiais e um vaqueiro, que agiram a mando de proprietários e
políticos da região. Chegaram a ser presos, mas foram soltos logo depois. Nunca foram condenados.
A viúva, Elizabete Teixeira, assumiu o lugar do marido nas Ligas. Mas veio o golpe militar de março de
1964 e ela fugiu do Estado. Foi morar no Rio Grande do Norte, com identidade falsa. Ficou clandestina até 1981,
quando retornou à Paraíba, indo morar em Patos.
A violência contra os camponeses – secular, e constante mesmo agora no século XXI – não atingia só os
líderes das Ligas.
Em 7 de janeiro de 1963, faltando três semanas para o governador eleito de Pernambuco, Miguel Arraes,
assumir o cargo, cinco trabalhadores rurais da Usina Estreliana, em Ribeirão, foram reivindicar o pagamento do 13o
salário e nunca mais voltaram. Quatro eram da mesma família: Ernesto Batista do Nascimento e o filho, João, e os
irmãos Israel e Zacarias Batista do Nascimento. O quinto: Antonio Soares de Farias. Foram todos mortos, a tiros,
pelas costas. No livro O caso eu conto como o caso foi , 1o volume, o autor, Paulo Cavalcanti, diz que eles foram
“metralhados pelo usineiro José Lopes de Siqueira Santos e seus capangas”. E acrescenta: “Na base de inquérito
feito pelo célebre delegado Romildo Leite, a Justiça absolveu por fim os covardes e frios matadores de Ribeirão”.
Em agosto do mesmo ano, os trabalhadores do Engenho Oriente, em Itambé, igualmente não recebiam o 13o
salário havia tempos. Um jovem a quem todos conheciam como Jeremias, mas cujo nome verdadeiro era Paulo
Roberto Pinto, trabalhava na organização dos camponeses do local. Tinha sido gráfico em São Paulo e fora enviado
de lá para Pernambuco pela organização clandestina em que militava, de orientação trotskista. Jeremias não fazia
parte das Ligas, tinha até divergências com Julião, que o considerava “sectário”. Os camponeses, porém, aceitavam
sua liderança. E foi assim que ele organizou um movimento para que todos recebessem o dinheiro a que tinham
direito. Paulo Cavalcanti conta como o caso foi:
“Um dia, foram todos avisados de que, indo ao engenho, o 13o lhes seria pago. Mas o que os esperava, no
entanto, era uma emboscada dos proprietários José Borba e Pompeu Veloso Borba e seus ‘cabras’. Do cerrado
tiroteio, resultaram feridos 15 lavradores e morto o seu líder, Jeremias, com um tiro no coração. Seu crânio foi,
depois, esmigalhado a coronhada de rifle.
Apurados os fatos por ordem de Arraes, os criminosos viram-se submetidos a processo, sendo denunciados
pelo promotor público Murilo Barbosa da Silva.
Com o advento da ‘revolução redentora’, as testemunhas do processo desapareceram e o juiz foi levado, sem
provas, a absolver os réus, passando-se, em represália, a enquadrar o promotor numa ação penal, por denunciação
caluniosa. Ainda por cima, demitiram-no do cargo pelo Ato Institucional, como ‘subversivo’ ”.

VELAS, FLORES E ORAÇÕES NO TÚMULO DO TROTSKISTA

O sepultamento de Jeremias aconteceu no cemitério de Itambé, e contou com todo o apoio das Ligas.
Um dia, alguns camponeses foram lá, depositaram flores, acenderam velas, rezaram. O gesto acabou se
repetindo outras vezes. Jeremias, o trotskista, estava sendo adorado pelos trabalhadores rurais. A imagem que
ficara dele era a de um jovem que viera de São Paulo e se sacrificara pelo movimento, segundo Julião, e em torno
desse “sacrifício” começou “a criar-se uma espécie de mística”, que acabaria estimulando a criação de uma Liga na
área.
A visitação ao túmulo de Jeremias acabou porque os trotskistas e a família vieram a Pernambuco para levar
o cadáver. Julião era favorável a que ele continuasse enterrado ali, onde morrera lutando pelos camponeses:
“Miguel Arraes encomendou um caixão de chumbo e o mandou embora porque não queria problemas. Achei
errado, porque ele já pertencia, pelo seu sacrifício, aos camponeses daquela região e, se estivesse ali, seria muito

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

mais significativo, para que o camponês fosse fazer suas orações, levar suas flores, porque era uma forma,
inclusive, de ampliar o movimento”.
Embora materialista, Julião compreendia o caráter místico de que se revestia o pensamento dos moradores
do campo: “Sempre considerei que o movimento camponês não era puramente político e simplesmente social, tinha
um fundo místico, toda herança messiânica dos grandes movimentos camponeses e sociais da região, que têm como
símbolo, como expressão maior, Canudos. Eu achava que tudo isso era herança histórica, que a gente tinha
naturalmente que saber aproveitar para ampliar o movimento camponês”.

ENQUANTO SE DIRIGE PARA MATAR JULIÃO, O HOMEM OUVE UMA VOZ: “NÃO FAÇA ISSO”

Contra Julião havia também muitas ameaças. Em 1961 uma delas era de que o seu filho caçula, Anacleto, de
10 anos, iria ser seqüestrado. Foi quando ele enviou os filhos para fora do País. Acabaram todos indo morar em
Cuba.
(Junto com eles seguiram mais duas crianças: Luiz Albino, filho de um caminhoneiro que era vizinho de
Julião; e Isaac Teixeira, filho do líder das Ligas assassinado na Paraíba, João Pedro Teixeira. A incorporação de
Luiz à comitiva deu-se a pedido dos filhos de Julião, que eram amigos deles. O pai – que tinha uma dezena de
filhos e vivia em grande pobreza – não fez nenhuma objeção. Já Isaac foi uma escolha do próprio Julião: “Lembrei-
me que deveria tentar salvar pelo menos um dos filhos de João Pedro.” A mãe, Elizabeth Teixeira, decidiu qual dos
filhos deveria ir.
Luiz Albino continua vivendo em Cuba, onde trabalha na Marinha; Isaac Teixeira tornou-se médico. Vive
em Pereiro, no Ceará. Dos quatro filhos de Julião com Alexina, três moram no Recife e uma, Anatilde, em Curitiba.
As crianças foram embora, mas as ameaças contra Julião não cessaram.
Dispostos a pôr um fim na agitação promovida por ele em Pernambuco, 20 latifundiários reuniram-se para
decidir o que fazer. Um dos participantes propôs “comprar” Julião. Os outros discordaram; era capaz de ele utilizar
o dinheiro para adquirir metralhadoras e distribuí-las aos camponeses. Melhor seguir um método mais seguro:
matá-lo. A proposta foi aprovada e um dos presentes à reunião se prontificou a fazer isso, pessoalmente. Planejava
atirar nele dentro da Assembléia, enquanto estivesse discursando. No dia marcado para o crime, este homem
dirigiu-se para a Assembléia, em seu carro. O revólver na cintura, carregado. No meio do caminho, porém, seu
pensamento começou a agitar-se. Já não estava tão convicto de que deveria praticar o crime.
Foi quando julgou ouvir uma voz interior, que lhe dizia: “Não o mate. Não faça isto”. Deu meia volta e
retornou em disparada para casa. No dia seguinte procurou Julião e contou tudo.
Julião ficou agradecido, mas colocou os nomes dos 20 num papel e entregou a lista aos seus companheiros
da Liga. Com uma recomendação: “Se qualquer coisa acontecer comigo, quero me encontrar com estes vinte no
inferno”.
Este episódio é contado – com a ressalva de que ‘contém partes iguais de verdade e mito”– no livro A
revolução que nunca houve, do escritor e professor universitário americano Joseph Page. Ele fez várias viagens a
Pernambuco no período 1963-1964. Para escrever o livro – que analisa a situação do Nordeste no período de 1955 a
1964, tratando da política americana para a região e dos acontecimentos que resultaram no golpe militar – ele
recorreu, entre outras fontes, a documentos e entrevistas, algumas delas com Julião (feitas em Pernambuco e no
México, quando ele já estava exilado) e companheiros dele.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

Não era mito, no entanto, que os casos de violência contra os camponeses e seus aliados se sucediam.
Vivia-se na expectativa de que, a qualquer instante, Julião pudesse ser vítima de um atentado. Um economista da
SUDENE, amigo dele, uma vez lhe disse: “Todo sujeito tem um anjo da guarda, mas você tem dois, e já estão com
a língua de fora de tanto te proteger”.
Além dos dois anjos da guarda, Julião contava com outras duas proteções: a primeira era um revólver
calibre 38, que carregava num coldre, daqueles que se coloca sob o braço; a segunda era de alguns homens que,
seduzidos pelo seu carisma, cuidavam de sua segurança. Um deles era Laurindo Brito, um pequeno proprietário que
tivera uma disputa de terras com um vizinho e fora defendido na Justiça por Julião. Branco, forte como um armário
e com a reputação de uma valentia capaz de enfrentar qualquer perigo, Laurindo costumava acompanhá-los nas
viagens e nos comícios. Também andava armado, disposto a reagir contra qualquer tentativa de ataque ao seu líder.
Em algumas situações – como nos comícios, em que não era raro o pipocar de alguma confusão – a tensão era tanta,
conforme Laurindo, que se alguém que estivesse perto do palanque colocasse a mão no bolso para tirar uma carteira
de cigarro ele, precavido, tratava logo de colocar a sua no cabo do revólver. Muito adoentado, ele mora hoje no
Recife.
O clima de violência que se verificava no Nordeste contra os camponeses levou Julião a escrever uma carta
para o ministro da Guerra, marechal Segadas Viana: “Sabe-se quem são os mandantes e os mandatários. Exibem

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

metralhadoras e mosquetões, portam armas de calibre 45, passeiam por toda a parte enquanto se toma a espingarda
pica-pau de cano de chapéu de sol, que o camponês carrega pela boca com um dedo de pólvora e cinco caroços de
chumbo. Breve tomar-lhe-ão até as foices e enxadas e arrancar-lhe-ão as unhas para que ele não tenha mais nada
com que cavar a terra”.
Mais adiante, falava da possibilidade de, “recorrendo ao direito de legítima defesa que se reconhece até
para os animais”, os camponeses revidarem à violência, “fazendo justiça com as próprias mãos”.
Isso nunca aconteceu. Não houve um só caso de um proprietário que tivesse sido morto ou sofrido atentado
de camponeses nesse período.

Canaviais em chamas

Uma das denúncias mais comuns contra a ação das Ligas era a de que elas promoviam o incêndio dos
canaviais. Infiltrava seus homens dentro das plantações para que eles tocassem fogo em tudo. A denúncia era
repercutida na Assembléia Legislativa, encontrava eco na polícia, chegava à Imprensa nacional. De acordo com
notícia de O Globo (RJ) de 7 de outubro de 1960, o proprietário do Engenho Divina Graça, Zair Pinto do Rego,
acusou integrantes das Ligas de terem incendiado o seu canavial. Julião negava a acusação – mas o fazia de uma
forma que, se o objetivo era procurar acalmar a situação, acabava por torná-la tensa:
– Se eu alimentasse a idéia de incendiar as propriedades rurais, garanto que não.
ficaria um só canavial em Pernambuco. Tenho condições para arrasá-los todos em 24 horas – exagerava ele, em
entrevista ao jornal.
Descartava a participação de integrantes das Ligas afirmando: “É preciso que ele seja um piromaníaco para
que incendeie plantações que lhe deram trabalho para cultivar”. Não acreditava que eles tivessem ocorrido por
“combustão espontânea”, mas afirmava que “uma ponta de cigarro e a fagulha desprendida da chaminé de uma
locomotiva (havia trilhos próximos a alguns canaviais) podem produzir incêndios”.
Outra possibilidade levantada por ele era a de que os próprios donos das terras recorriam ao incêndio para
“apressar a colheita, uma vez que é mais econômico cortar a cana depois de queimada toda a palha”. Havia casos
também, denunciava, em que os proprietários dos engenhos, estando em dificuldades, determinavam eles mesmos
os incêndios: “Assim, recorrem às usinas e vêem o seu produto colocado em primeiro lugar”.
O fato é que nunca ficou provada a participação de integrantes das Ligas nos incêndios. Na Assembléia,
Julião vivia solicitando, sem sucesso, a formação de uma comissão formada por “deputados de todos os partidos
com assento nesta Casa para, devidamente assistida por agrônomos e outros técnicos, inclusive do gabinete de
identificação da Secretaria da Segurança Pública, investigar as verdadeiras causas dos incêndios de canaviais”.
Naquele mesmo período em que “a Liga aparecia em grandes títulos como o fantasma que fazia arder os
canaviais”, ele contava uma história que ouvira de um colega deputado, ligado aos proprietários de terra. Este
parlamentar estava viajando para o interior, em seu automóvel, quando viu um grande incêndio em um canavial.
Parou o carro e aproximou-se para ver de perto o que estava acontecendo. Encontrou com um homem montado a
cavalo e outros que, a pé, também observavam as chamas. Puxou conversa com o cavaleiro.
– Estou fiscalizando o incêndio – disse ele.
– Fiscalizando? - espantou-se o deputado.
– Sim, fiscalizando. Sou o chefe de campo da usina...

“LATIFUNDIÁRIO”

A violência era o método mais brutal utilizado para combater as Ligas e Julião, mas não era o único. Outro,
aparentemente mais astucioso, tentava desmoralizá-lo. Seus inimigos espalhavam, por exemplo, que, na verdade,
ele era um grande latifundiário e só queria dividir a terra dos outros, mas recusava-se a fazer o mesmo com as suas.
Diziam que chamara a polícia para retirar camponeses que haviam entrado no engenho dele e da família, o Boa
Esperança (que todos só conheciam por “Espera”). Embora esse tipo de denúncia tenha sido publicado na Imprensa
nacional e até estrangeira, a tática não conseguiu prosperar porque, Julião, entre outras coisas, conforme observa
Joseph Page, “não sucumbira a uma fraqueza compartilhada por muitos luminares políticos da América Latina –
não utilizava sua posição para ficar rico”. E o Engenho Espera estava longe de ser um latífundio: tinha apenas 280
hectares. Julião, na realidade, era dono de apenas 40 hectares. O pai dele fizera a divisão das terras para os filhos e
esta fora a parte que lhe coubera.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

O DEPUTADO JULIÃO

PRIORIDADE PARA A QUESTÃO AGRÁRIA

Julião estava no Interior de Pernambuco, tratando da questão de um camponês, quando, ao entrar numa casa,
alguém lhe deu a notícia:
– Você foi eleito deputado.
Ele não acreditou:
– Não é possível, esta coisa não se faz por milagre.
Era possível, sim. Candidato pelo PSB, partido do qual fora um dos fundadores, ele se elegeu deputado
estadual com 495 votos – uma votação inexpressiva, onze vezes menor do que a do mais votado daquele pleito, o de
outubro de 1954. O número de eleitores em Pernambuco era de pouco mais de 780 mil. Julião foi o único eleito do
PSB. Para a Assembléia Legislativa elegiam-se, na época, 65 deputados (são 49, atualmente).
A supresa de Julião tinha razão de ser. Primeiro, ele já se candidatara duas outras vezes, a federal e estadual,
respectivamente, sem sucesso. Segundo, sua campanha dera-se, praticamente, entre amigos e camponeses – estes,
em sua maioria, eram analfabetos; não tinham direito a voto.
Mas o fato é que, naquele outubro de 1954, a história fora diferente. Estava eleito. Quatro anos depois se
reelegeria com folga (teve mais de 16 mil votos). No pleito seguinte, concorreu a deputado federal e obteve nova
vitória.
Em duas legislaturas foi um dos mais atuantes deputados estaduais de Pernambuco. A luta dos camponeses e
pela reforma agrária foi o principal assunto de sua atuação – em mais uma de suas ações pioneiras, foi o primeiro a
ter um mandato dedicado prioritariamente à questão agrária, tema que, sob o ponto de vista dos camponeses, vivia
excluído do Legislativo. Em sua preocupação com o tema, procurava ocupar todos os espaços que surgiam. Em
maio de 1957, por exemplo, realizava-se em Caruaru a III Semana de Estudos Jurídicos da Magistratura
Pernambucana. O deputado Francisco Julião não teve dúvidas: apresentou requerimento na Assembléia para que
fosse feito “um caloroso apelo aos magistrados componentes da III Semana para incluir na agenda dos seus
trabalhos o debate sobre a reforma agrária e extensão da legislação trabalhista ao homem do campo”. Não há
registros de que o seu apelo tenha sido atendido.

NEM SÓ DE TERRA VIVE O HOMEM

Mas nem só da questão agrária tratou o deputado Julião. Foram de autoria dele os primeiros projetos
criando os municípios de Machados e Chã de Alegria. A sua justificativa para a elevação dos então distritos à
condição de municípios, feita em 1957, é que ambos “oferecem condições necessárias para se emancipar e ter vida
autônoma, uma vez que possuem os requisitos legais e indispensáveis para esse fim, conforme provaremos,
oportunamente, perante a Comissão de Negócios Municipais”. Sobre Chã Grande ele diz: “A vila possui cerca de
850 casas, com uma população superior a 4 mil almas”.
Também é dele solicitação de voto de congratulações com o bispo de Garanhuns, d. Expedito Lopes,
apresentado em 20 de agosto de 1956, “pela sua digna e corajosa circular, de 31 de julho próximo findo, dirigida
aos fiéis daquela Diocese, condenando com veemência o jogo de azar que campeia em suas mais diversas
modalidades, por toda parte, arrastando milhares de pessoas, desde os menores aos adultos, de todas as
categorias sociais, aos antros de corrução e do crime”.
Juntamente com a bebida (da qual muitos camponeses eram dependentes), o jogo era outro vício que Julião
combatia com fervor. Em 1958, ao apresentar requerimento solicitando que o Governo do Estado informasse a
situação do jogo no Estado (número de casas que exploravam o jogo e qual a contribuição financeira delas para
Pernambuco, número de pessoas que eram empregadas no setor e o que o Estado poderia fazer quando alguma
dessas casas recusava-se a pagar o prêmio de algum apostador), ele faz uma radiografia da situação:
“Ninguém ignora que, não somente nesta capital, como em todas as demais cidades do Estado de
Pernambuco, campeia a jogatina. Cada vez que alguém se levanta para denunciar essa calamidade em que se
afundou o Estado, seja desta Assembléia ou através da imprensa diária, escrita e falada, a denúncia tem o condão
mágico de fazer multiplicar novos antros de tavolagem. Pode-se dizer que, em Pernambuco, a indústria do jogo
cresce à medida que outras indústrias, tão vitais ao soerguimento econômico e social do Estado, se desmantelam e
entram em colapso”.
A defesa dos direitos humanos, que, na época, não eram chamados assim, mereceu dele também uma
atenção especial – até porque os direitos humanos dos camponeses eram constantemente desrespeitados. Por meio
de solicitação encaminhada em 25 de fevereiro de 1960, ele pede que a Assembléia crie uma comissão
suprapartidária, composta dos líderes de todos os partidos representados na Casa, para tratar do assunto. A
comissão teria a função de receber “as queixas do povo, relativas à violabilidade dos direitos assegurados pela

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Carta Magna do País, em seu artigo 141, quer tenha como agente o poder de polícia ou não, devendo cada queixa
ser encaminhada à autoridade competente a fim de que se faça pronta e correta aplicação da lei”.
Os ambulantes do Recife também estiveram entre suas preocupações. Em abril de 1955, o então prefeito da
Cidade, Djair Brindeiro, mandou retirar os ambulantes das ruas – e Julião entrou na luta em defesa deles. Esteve à
frente de comissão que procurou o prefeito para que ele voltasse atrás de sua decisão – a qual classificava de
“desumana” – e, diante da recusa dele em fazer isso, recorreu à lei municipal 22037, que impedia “a apreensão de
mercadorias”. O conflito demorou até ser resolvido; os ambulantes, como sempre, na história do Recife, acabaram
voltando às ruas.
Outra proposição sua, em 18 de dezembro de 1958, sugeria uma medida inédita para ajudar os flagelados
da seca daquele ano. Os parlamentares estavam sob período de “convocação extraordinária”, recurso que consiste
na convocação do Executivo para que os deputados, recebendo vencimentos “extras” para isso, trabalhem no
período de recesso parlamentar. A proposta de Julião: que os deputados doassem os vencimentos extras daquele
período (relativo a um período de cerca de quatro meses) “em favor dos flagelados, já que não enxergo motivo
ponderável e imprescindível para essa convocação, que só serve para onerar cada vez mais o erário público,
combalido e exangue”.
Continuava:
“Se assim fizermos, pelo menos esses subsídios não queimarão as nossas consciências como as pedras que
queimaram as mãos do que tinham culpa, no episódio bíblico”.
E mais:
“Estou absolutamente convencido de que esse nosso gesto não só concorrerá para a maior dignificação
desta Assembléia, já tão malsinada, como mostrará àqueles outros poderes e pessoas aos quais formulamos igual
apelo em favor dos flagelados que o mesmo comportamento deve ser adotado por eles”.
A proposta era endereçada também – e nestes casos abrangendo apenas o mês de dezembro – ao
governador Cordeiro de Farias e seus secretários, prefeitos e vereadores pernambucanos.
Do resto da população ele cobrava um apoio menor: “Também apelo para todos os industriais,
comerciantes, banqueiros, magistrados, promotores, serventuários da Justiça, funcionários públicos e autárquicos
federais, estaduais e municipais, professores universitários, secundaristas e primários, jornalistas, trabalhadores
de todas as categorias, a fim de que sacrifiquem um dia dos seus vencimentos, ordenados e salários para a
aquisição de gêneros de primeira necessidade e vestimentas destinados aos sertanejos que tombam de fome,
envoltos em farrapos, ao longo das estradas e dos caminhos onde se desenrola, neste instante, a negra tragédia de
mais uma seca, entre as piores que nossa história registra”.
O apelo – que para alguns era romântico; para outros, demagógico – não foi seguido pela Assembléia, nem
peloGgoverno estadual, nem pelos prefeitos e vereadores, nem pelas categorias enumeradas por ele.
Mas o marxista e materialista Julião também defendia os que se ocupavam dos assuntos da alma. Em 4 de
outubro de 1960, apresentou projeto determinando que “fica considerada, para todos os fins e efeitos previstos em
lei, como de utilidade pública a Associação Espírita Lar de Silas, com sede à Rua Bolívar, 283, no Arruda”.
No combate ao Governo, Julião valia-se do melhor instrumento existente para dotar de eficácia as críticas
de quem faz oposição: a informação. Por isso, costumava apresentar requerimentos solicitando informações do
Estado a respeito do tema que tratava. Um exemplo dessa preocupação dele com os dados pode ser visto num
requerimento de 14 de maio de 1956, em que pedia:
“1) Relação completa das professoras contratadas pelo Estado com a menção do número do registro do
título de professora, bem como do estabelecimento por onde cada uma dela se titulou;
2) qual o número exato das professoras do interior que se encontram nesta capital, regendo classes;
3) quantas professoras foram nomeadas em caráter efetivo a partir de janeiro de 1954, sem se atender à
exigência de curso ou concurso, previsto tanto pelo Regulamento do Ensino Primário, como pelos Estatutos
dos Funcionários Públicos e ainda pela Constituição do Estado, que prevê essa exigência para os cargos de
carreira.”

FIDEL E CHE: COMPAÑEROS

Foi como deputado que ele viajou aos países socialistas e tornou-se amigo de Fidel Castro e de Che
Guevara. Em 1957, integrando uma comitiva formada por deputados e empresários da Paraíba e de Pernambuco,
participou de uma turnê de cerca de três meses por países capitalistas e socialistas da Europa. Conheceu a Polônia, a
então Tchecoslováquia e a União Soviética. Em 1960, esteve na China, que 11 anos antes fizera uma revolução com
forte participação de camponeses. Também em 1960 fez sua primeira viagem a Cuba, numa comitiva liderada por
Jânio Quadros, que o convidara. Tanto o convite quanto a aceitação dele foram inusitados: Jânio disputava a
Presidência da República contra o candidato apoiado por Julião, o marechal Henrique Teixeira Lott. “Vou a Cuba
com Jânio, mas às urnas com Lott”, justificou.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 40


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

De todos os países socialistas, Cuba era o que tinha mais motivos para atraí-lo. Ficava no continente
americano, tinha um largo cultivo de cana e muitos camponeses vinculados a essa atividade, e fizera a revolução em
1959, período que coincidiu com a ascensão das Ligas. Retornaria outras vezes ao país, tornando-se amigo de Fidel
Castro e de Che Guevara. Em 1961, quando participava da Conferência da OEA (Organização dos Estados
Americanos), em Punta del Este, no Uruguai, o então superintendente da SUDENE, Celso Furtado, conversou sobre
o Nordeste brasileiro com Che Guevara – e teve a impressão de que ele fora “influenciado” por Julião. “A conversa
encaminhou-se para o Nordeste e logo pude dar-me conta de que ele havia absorvido a visão mítica que Francisco
Julião transmitia a interlocutores que tudo ignoravam da região”, afirma Furtado em A Fantasia Desfeita. “Ele
imaginava as Ligas Camponesas como vigorosas organizações de massa, capacitadas para pôr em xeque qualquer
iniciativa da direita visando modificar a relação de forças em benefício próprio. Superestimava Julião como líder e
como organizador, e subestimava as estruturas de poder enraizadas secularmente no Nordeste”.
Cuba era um tema muitas vezes presente nos pronunciamentos de Julião na Assembléia Legislativa. Quando
houve a tentativa de invasão de Cuba por exilados cubanos apoiados pelos EUA, em abril de 1961, no episódio que
ficou conhecido como o da “Baía dos Porcos”, Julião fez discurso protestando: “Senhor presidente, senhores
deputados, estou trazendo à consideração desta Casa um requerimento de protesto contra o odioso insulto da
invasão de Cuba, por tropas mercenárias do tirano Batista e dos exilados que não se conformam com a
implantação naquela ilha gloriosa de um regime em que o imperialismo americano sofreu, realmente, um golpe de
morte e em que a propriedade latifundiária foi liquidada para que ali surgisse a cooperativa de tipo superior,
dando ensejo a uma organização em que desapareça para sempre a exploração do homem pelo homem”.
Mais adiante, ele afirmava que havia “uma perfeita união entre as aspirações do povo do Brasil e as
aspirações do povo de Cuba” e que “essa bomba que está caindo em Havana não está caindo somente em Havana,
mas também sobre a cidade do Recife”.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

Como deputado federal Julião não teve muita atuação na Câmara. A luta das Ligas exigia sua presença na
Região e ele compareceu pouco ao Congresso. Seu mandato durou pouco mais de um ano, pois foi cassado pelo
golpe militar de 1964.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 41


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

AS LIGAS NA LUTA ARMADA

MILITANTES FIZERAM TREINAMENTO EM CUBA

Foi das Ligas Camponesas que saiu a primeira tentativa, nos anos 60, de organização da luta armada no
Brasil. Uma facção das Ligas, cujo principal dirigente era o advogado e ex-deputado comunista Clodomir Morais,
foi quem levou o projeto adiante, com apoio cubano.
O relato mais recente dessa “opção armada” das Ligas é contado no livro O apoio de Cuba à luta armada no
Brasil, da doutora em História Denise Rollemberg (RJ), lançado em maio de 2001. “Há informação”, diz a autora,
“de que Clodomir Morais e mais 11 membros das Ligas, alguns ex-membros do PCB, teriam feito o ‘curso de
guerrilhas’ em Cuba, entre 28 de julho e 20 de agosto de 1961”.
O ‘programa’ desse curso incluía aulas desde como fazer coquetel Molotov e bomba incendiária, até
treinamento de tiros ao alvo, manejo de armas, marcha nas montanhas e ‘doutrinação ideológica’.
A maior parte do treinamento dos militantes das Ligas que aderiram à opção guerrilheira, porém, deu-se em
território brasileiro, e também com o apoio direto de Cuba, diz Rollemberg. Conhece-se, pelo menos, um desses
locais: ficava no nordeste de Goiás, na área rural de Dianópolis. Os participantes eram, basicamente, camponeses
(poucos) e estudantes secundaristas e universitários de Pernambuco.
Nunca se comprovou que Julião tivesse tido alguma participação na montagem dessa estrutura guerrilheira.
O próprio Clodomir, que fora seu braço direito até determinado momento e depois tornara-se seu adversário na
disputa pela liderança das Ligas, afirma que ele “jamais entrou em contato com os campos, não tendo sequer idéia
das localizações”. O discurso de Julião costumava estar repleto de ameaças de “revolução”, mas para adversários e
até mesmo para alguns aliados, ele “blefava muito”, prometendo ações que não passavam de “bravatas”. Ficou
famosa sua afirmação, em 1963, de que no caso de os militares tentarem um golpe ele disporia de “100 mil
camponeses” prontos para entrar em ação. No próprio dia do golpe, em 31 de março de 1964, enquanto os tanques
tomavam as ruas sem reação alguma, ele – sem ter conhecimento ainda da dimensão do levante militar – discursava
afirmando que havia “500 mil camponeses” prontos para enfrentar “os gorilas golpistas”.

A SAÍDA PARA O BRASIL: UMA ESTRELA DE CINCO PONTAS

No seu livro, Denise Rollemberg afirma que “Julião manteve uma posição dúbia ou contraditória em relação
à luta guerrilheira. Mantendo relações estreitas com Cuba e radicalizando suas posições nos famosos discursos que
fazia, Julião, entretanto, se opôs à facção favorável à guerrilha”. Na entrevista dada à pesquisadora da Fundação
Joaquim Nabuco, em 1982, e ainda inédita em publicação, ele aborda a questão sem dubiedade alguma: era contra a
luta armada, nunca viu essa opção como a correta para os problemas do Brasil.
“Sempre considerei”, explicou, “que nem sequer podíamos imaginar a possibilidade de guerrilha num país
que teve sempre o sentido da legalidade democrática muito profunda, desde o Império, desde a Constituição de
1922”.
Diz que Clodomir, embora fosse “um homem dinâmico, capaz, que ajudou muito a fundar Ligas
Camponesas por aí”, ao mesmo tempo “criou problemas seríssimos” para a organização: “Foi um dos homens que
causaram muitos danos ao desenvolvimento pacífico do movimento camponês, porque em dado momento inseriu o
problema da guerrilha dentro do movimento”.
Quando, no final dos anos 60, a luta armada foi desencadeada no Brasil, por algumas organizações de
esquerda, Julião, mais uma vez teve que se posicionar sobre a ação – e desta vez com uma decisão que afetaria
diretamente sua família. Um dos seus filhos, Anatólio, que morava em Cuba, resolvera voltar ao Brasil para
participar da luta armada, na Ação Libertadora Nacional – ALN, organização de Carlos Marighela, surgida em
1967. Cuba continuava dando treinamento de guerrilhas para brasileiros e latino-americanos.
O funcionário cubano encarregado de tratar dos assuntos da guerrilha informou a Anatólio que ele precisaria
da autorização do pai para ser “liberado” e engajar-se na luta. Anatólio escreveu para Julião – que rechaçou sua
idéia. Em carta, explicou que a saída para o Brasil era “uma estrela de cinco pontas”, que incluía: 1) anistia; 2)
Constituinte; 3) eleições diretas em todos os níveis; 4) pluripartidarismo e 5) uma “frente ampla” contra o Governo.
Anatólio conta que replicou com uma “carta dura”, em que assinalava que, se ele, Julião, não estava disposto
a partir para o enfrentamento direto com a ditadura, pelo menos permitisse que aqueles que tinham essa disposição
o fizessem. Mesmo assim, não obteve a autorização.
Talvez tenha sido graças a isso que está aqui hoje, para contar a história. Dos brasileiros que participaram
dos treinamentos guerrilheiros em Cuba, ou foram suspeitos disso, poucos escaparam com vida depois de presos.
Os campos guerrilheiros das Ligas no Brasil não prosperaram. As Forças Armadas invadiram e destruíram o
“dispositivo militar” (era assim que ele era chamado, no jargão dos seus integrantes) de Dianópolis. A Liga sofreu
intenso desgaste com o episódio. A tese da luta armada foi abandonada dentro da organização.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

ARRAES, JANGO, O PCB – E, À MARGEM


DE TUDO E DE TODOS, AS LIGAS

UM NOVO CENÁRIO POLÍTICO

A fase mais radical das Ligas coincidiu com a ascensão de Miguel Arraes e de João Goulart, o Jango.
Ambos simpáticos às reivindicações dos trabalhadores. Ambos, em maior ou menor escala, comprometidos com
transformações sociais. Mas nenhum dos dois adeptos da forma de agir das Ligas.
Jango fora candidato a vice-presidente nas eleições de 1960, na chapa encabeçada pelo marechal Henrique
Teixeira Lott. O presidente eleito foi Jânio Quadros, mas o vice foi Jango – na época, votava-se para presidente e
para vice separadamente.
Sete meses depois de tomar posse, em 25 de agosto de 1961, Jânio renunciou. Depois de enfrentar
resistência de setores políticos e militares, Jango assumiu. Uma manobra destinada a reduzir os seus poderes
implantou no País o regime parlamentarista, com a indicação de Tancredo Neves para primeiro-ministro. O Brasil
ficaria sob grande instabilidade política, o novo sistema não vingou. Em 6 de janeiro de 1963, por meio de
plebiscito, o povo decidiu pela volta do presidencialismo. A vitória foi esmagadora: cerca de nove milhões de
votos, num total de 10. Jango reassumiu os seus poderes, e desencadeou a luta pelo que se chamava “Reformas de
Base” (reforma agrária etc.).
As eleições para o Governo dos Estados aconteceram em 1962. Em Pernambuco, o candidato da esquerda
foi Miguel Arraes, que, dois anos antes, fora eleito prefeito do Recife. As Ligas o apoiaram, mas “em faixa
própria”, como explicava Julião, porque não concordava com toda a aliança feita por Arraes, que incluía parcelas da
direita e até “coronéis”, como Chico Heráclio, de Limoeiro. Hegemonicamente, no entanto, era a candidatura do
usineiro João Cleofas que a direita apoiava. Tentando quebrar a bipolarização característica da política
pernambucana, surgiu uma terceira candidatura: a de Armando Monteiro Filho.
Foi a eleição mais disputada para governador de Pernambuco: Arraes ganhou com uma diferença de 13.353
votos, num total de pouco mais de 500 mil votos válidos. Teve 264.499 votos contra 251.146 de João Cleofas.
Longe de ambos, mas com uma votação suficiente para ter definido o pleito, ficou Armando Monteiro Filho: 36.499
votos.
Aos olhos do grande público, Arraes e Julião eram aliados incondicionais, mas nunca foi assim. A
radicalização empreendida pelas Ligas e a obrigação de Arraes em manter a ordem institucional – fora outras
questões de ordem ideológica e política –, fizeram vicejar muitas divergências entre ambos.
Em um dos seus raros pronunciamentos sobre Julião e as Ligas, Arraes afirma: “Ele foi mais um anunciador
do movimento do campo do que organizador. Denunciou a emergência do problema, mas a organização das Ligas
era menor do que a própria expressão que o movimento alcançou no Brasil. A falta de meios, de condições e até
mesmo de quadros que se pudessem dedicar à organização foram as principais causas para tais obstáculos. Porém, é
indiscutível que Julião foi um dos grandes profetas do problema rural e agrário brasileiro”.
E ainda: “Julião é um pioneiro, no Brasil, quando levantou e agitou a questão rural, numa ação concreta que
se desenvolveu em Pernambuco, depois em outros Estados”.

OS SINDICATOS AVANÇAM; AS LIGAS DECLINAM

O Governo João Goulart apoiou a criação de sindicatos de uma forma que nenhum dos seus antecessores
fizera. Desapareceram as amarras burocráticas, o Ministério do Trabalho os reconheciam com rapidez. Em
Pernambuco, o Governo Arraes também os estimulava. Nessa trilha, aberta e guarnecida pelos governos federal e
estadual, entraram o PCB e a Igreja, que vivia um período de temor de perda dos fiéis para os comunistas. Padres e
comunistas meteram-se mato adentro, abrindo um sindicato atrás do outro. O mais forte deles surgiu em Palmares,
que congregava trabalhadores rurais de vários municípios da região. O responsável por sua organização foi o líder
comunista Gregório Bezerra (1900-1983). Pela Igreja tinham papel de destaque os padres Carício, em Quipapá;
Antonio Melo, no Cabo, e Paulo Crespo, em Jaboatão. Os dois últimos, de acordo com livros de autores brasileiros
e americanos, teriam recebido apoio de organizações ligadas à CIA, o serviço secreto americano. .
Do outro lado, à margem dos governos, à margem dos partidos, à margem da Igreja, praticamente sozinhas
– as Ligas.
Julião não era contra os sindicatos; até defendia que eles se completavam com as Ligas, e que os
associados a estas deveriam filiar-se aos sindicatos. Havia, porém, divergências políticas e ideológicas com as
lideranças envolvidas na criação das novas entidades. E, na prática, o clima era de disputa entre todos. Tanto que
Julião chegou a apelar para a “espionagem”: infiltrou um dos seus homens de confiança no grupo do padre Melo. É
o primeiro caso confesso, e conhecido, da infiltração de um “espião de esquerda” em organizações adversárias. “Fiz
com que um camponês da Liga se separasse de nós e fosse ao padre Melo, e dissesse que ficara muito

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

impressionado com a sua pregação, e que havia deixado a Liga Camponesa. Mas era apenas um agente nosso para
saber o que ele pretendia”, revelou Julião. “O padre chegou a depositar tanta confiança nesse camponês que enviava
por ele cartas ao Secretário de Segurança de então, o coronel Costa Cavalcanti. E nessas cartas, que alguém levava
à minha casa, para que eu as lesse e tirasse xerox, o padre Melo entre outras coisas denunciava as reuniões das
Ligas, que era preciso que a polícia estivesse ativa para aquele tal lugar onde a Liga se reunia, que a polícia criasse
dificuldades, porque o movimento começava a estourar em Paudalho. Eu fui guardando essas cartas, porque
pretendia ter uma polêmica com o padre, e colocá-lo numa casca de banana por ele mesmo atirada em seu caminho.
Ele era um homem que estava ligado à polícia. Denunciava a existência de movimentos onde tudo se fazia de forma
legal, mas que poderiam ser vistos de outra maneira. Quando ele quisesse negar isso, eu publicaria simplesmente as
cartas. Mas veio (o golpe de) 64”.
(O padre Melo deixaria Pernambuco anos depois. Voltou em 1982, para disputar o Governo do Estado.
Sua candidatura não foi levada a sério. Derrotado, saiu novamente do Estado. Segundo as últimas informações,
estaria morando no Pará.)
No combate do dia-a-dia, porém, as Ligas foram perdendo terreno para os sindicatos, que eram mais
eficazes no sentido de levar adiante as reivindicações mais imediatas de melhoria da condição de vida dos
assalariados. A reivindicação principal das Ligas – reforma agrária – implicava luta mais prolongada, sujeita a
grandes obstáculos, e sem garantia nenhuma de ser bem-sucedida.
Dessa época surgiu a tese, sem autor definido, mas presente nos debates sobre a questão agrária, de que as
Ligas não tinham mais razão de ser. Suas reivindicações poderiam ser incorporadas pelos sindicatos, no qual todos
poderiam unir-se. Era “uma campanha inteligente”, segundo Julião, visando extinguir as Ligas: “Foi assim que nos
vimos, de repente, entre dois fogos: de um lado o latifúndio, com o seu ódio secular contra o camponês que se
organiza e toma o caminho da luta pela reforma agrária radical, isto é, pela passagem das terras para as suas mãos; e
do outro, o reformista, que defende, em princípio, o latifúndio, mas na realidade se interessa e se bate, antes de mais
nada, pelo salário e todas as demais conquistas sociais trabalhistas, pondo, assim, em segundo plano, a questão da
posse da terra. A Liga lutava pelas duas coisas ao mesmo tempo, terra e salário, mas sobrepondo a terra ao salário,
de maneira a não criar no campesinato a ilusão de que todo aquele que tenha o salário terá a terra. Os salaristas ou
economistas levavam, sem dúvida, uma vantagem inicial sobre os revolucionários, os liguistas, pois tinham em seu
favor uma poderosa máquina, a máquina doGgoverno, conjugada com a larga experiência e a ação ininterrupta que,
nesse terreno, lhes ofereciam os sindicatos operários das cidades. A Liga tinha razões para temer que a luta pura e
simples pelo salário amortecesse ou anulasse o impulso do camponês no sentido de conquistar a terra, que é o
objetivo fundamental”.
A disputa Ligas x Sindicatos foi abordada por Julião em uma de suas famosas cartilhas, Bença, Mãe!,
divulgada três meses antes do golpe militar, no centro do Recife, durante ato público de comemoração ao quinto
aniversário da Revolução Cubana. A “mãe” do título era a Liga; os sindicatos seriam os seus “filhos”. Escrevia
Julião: “A Liga é a mãe do sindicato. Foi de suas entranhas que nasceu esse filho. Por isso ela tem de cuidar dele, e
ele, dela, como a mãe cuida do filho e o filho cuida da mãe. Têm que andar juntos. Sofrer juntos. Vencer juntos. A
mãe que abandona o filho é desnaturada. E o filho que deixa a mãe é ingrato. Por isso a Liga quer estar sempre
perto do sindicato. Para ensinar a ver o bom caminho. Para aconselhar quando ele estiver errado. Para tirá-lo do
mau guia que bota na perdição. E o sindicato para mostrar que é bom filho tem que lhe estender a mão todo santo
dia, e dizer para ela: ‘Bença, mãe!’ E escutá-la com atenção. Sim, porque assim como a mãe quer ver o filho forte e
sadio, a Liga quer ver o sindicato forte e sadio”.
O apelo, porém, não encontrava no campo o eco que Julião queria.
As Ligas, cercadas à direita e à esquerda, entravam em declínio.
E o pior ainda estava por vir.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

A QUEDA

AS LIGAS ENFRENTAM SEU PIOR MOMENTO

Sofrendo ataque em várias frentes, desde a violência impune dos proprietários até o combate pela hegemonia
da organização dos camponeses, as Ligas entraram numa escalada de radicalização política e ideológica que as
isolou ainda mais – isolamento, aliás, do interesse tanto de quem a combatia pela esquerda quanto pela direita.
Politicamente, a organização, mais do que nunca, se posicionava contrária à quase totalidade das alianças e à boa
parte das posições da esquerda brasileira. Em 1963, por exemplo, quando a esquerda em peso apoiou o plebiscito
que decidiria pelo retorno do regime presidencialista, as Ligas ficaram contra.
Os efeitos dessa radicalização se fizeram sentir também no discurso e nas propostas de ação. A cartilha
Bença,Mãe!, que tratava da relação com os sindicatos, é um exemplo emblemático disso. Lançada em janeiro de 64,
ela traz duas dezenas de orientações – no texto classificadas de “conselhos” – para os camponeses. Ao voltar do
exílio, Julião diria que nunca dera qualquer orientação para que o movimento praticasse atos fora da legalidade.
Alguns dos “conselhos” escritos por ele, na cartilha, contradizem isso:
1) “Se um capanga matar um irmão teu, seja ele da Liga, do Sindicato ou da Cooperativa, pode matar o
capanga, porque não é gente, é bicho”.
2) “Mantém a tua foice sempre bem amolada atrás da porta para te defenderes da agressão do inimigo, que é
o capanga e a polícia a serviço do latifúndio”.
3) “Se o latifundiário derrubar a tua casa ou arrancar a tua lavoura, junta os teus irmãos e derruba a casa dele
e arranca a lavoura dele, aplicando a lei de Moisés: dente por dente, olho por olho”.
4) “Faz economias, aperta mais o teu cinturão, compra uma ‘ferramenta’ e esconde, para um dia ajustares
conta com todos aqueles que mataram os teus pais, os teus avós, de fome, que ainda te perseguem e te
humilham todo santo dia, usando até o nome de Jesus Cristo, que foi crucificado por eles”.
5) “Defende com unhas e dentes os canaviais, os cafezais, os cacauais, os arrozais e outras lavouras de largo
cultivo, assim como as fábricas que transformam essas lavouras, porque todos esses bens foram edificados
por ti, custaram muito sacrifício dos trabalhadores e deverão um dia, quando o Brasil for um País Socialista,
passar às tuas mãos, às mãos dos pobres, como ocorreu na União Soviética, na China, em Cuba e outros
países”.

AS LIGAS CAMINHAM PARA VIRAR UM PARTIDO

As Ligas iniciaram em 1963 um processo que, não tivesse sido abortado pelo golpe de 64, iria transformá-las
em um partido, o primeiro partido agrário do Brasil. A primeira etapa desse processo aconteceu em 3 de outubro
daquele ano, com a Conferência do Recife, que reuniu as 64 Ligas então existentes no País. Aí foi criado um
Conselho Nacional do movimento, ao qual todas elas ficariam subordinadas.
Em janeiro de 64, o Conselho aprovou também a criação, na estrutura do movimento, de um núcleo
chamado de Organização Política (OP) – era o embrião do partido, que seguiria a ideologia marxista. O problema
com que as Ligas se debatiam, na vida política, é mais ou menos aquele que enfrenta hoje o MST: os partidos não
contemplavam as reivindicações específicas do movimento. No livro Os camponeses e a política no Brasil, o autor
José de Souza Martins afirma que “fato político dos mais importantes na história brasileira é o de que os
movimentos e lutas populares, sobretudo no campo, caminham mais depressa do que os partidos legais e
clandestinos”. Os partidos têm, diz ele, “dificuldades práticas, teóricas e doutrinárias para acompanhar e incorporar
as tensões sociais e as reivindicações camponesas”.
Com a criação de um partido, Julião acreditava ser possível incluir os camponeses, diretamente, no quadro
político nacional: “Os partidos formados no Brasil consideravam que a luta iria travar-se na cidade, que a classe
obreira, que a gente da cidade, é que iria naturalmente ser os condutores disso. Eu achava que era possível
incorporar a grande massa camponesa ao processo democrático brasileiro. E, por isso, era preciso um partido que
cuidasse especificamente disso. O PSB, que era o meu partido, não quis se comprometer. O PTB e o PCB estavam
muito empenhados na conquista da classe operária. Então era preciso que se formasse um partido agrário nacional,
um partido que pudesse cuidar especificamente, e sobretudo, de arregimentar, organizar e politizar a massa
camponesa”.

DIVERGÊNCIAS INTERNAS

O ano de 1963 e o início de 1964 ficaram marcados também como um período em que floresceram as
divergências internas nas Ligas. O próprio Julião, que sempre foi o nome de maior projeção do movimento,

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 45


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

enfrentava contestação de outros líderes, como o ex-deputado comunista Clodomir Morais, o padre Alípio de
Freitas, português radicado no Maranhão, Assis Lemos, da Paraíba.
O cenário político e social estava em mudança acelerada e, internamente, as Ligas se revolviam na busca de
uma linha de pensamento e ação que se adequasse ao novo momento. Os líderes lançavam suas propostas – as
chamadas “teses” – para serem discutidas e depois submetidas à votação, em um encontro nacional.
A mais radical das “teses” era a de Julião. Foi publicada no jornal A Liga, pertencente à organização, em 12
de junho daquele ano, com o título Unificar as forças revolucionárias em torno de um programa radical. Defendia
a criação de um Movimento Unificado da Revolução Brasileira –MURB, ao qual caberia encabeçar a luta pela
aplicação de uma série de reivindicações nitidamente revolucionárias. Não se contentava só com uma reforma
agrária radical, queria também reforma urbana radical, reforma industrial radical, reforma bancária radical, reforma
de ensino radical...
De acordo com essas “reformas radicais”, os aluguéis seriam reduzidos em 50% e cada inquilino adquiriria
automaticamente a preferência para comprar o imóvel. As grandes indústrias instaladas no País – mesmo que
fossem estrangeiras – seriam encampadas. O sistema financeiro seria nacionalizado. As Forças Armadas teriam os
seus efetivos reduzidos e seriam criadas milícias voluntárias de operários, camponeses e estudantes. A Lei de
Segurança Nacional seria revogada. O voto seria estendido ao analfabeto. Todos os códigos de Direito Público e
Privado seriam revistos.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

A criação de um partido agrário, a votação das “teses” e outras questões internas das Ligas seriam discutidas
em um encontro nacional marcado para junho de 1964.
Não houve tempo. O golpe chegou antes. As Ligas foram fechadas. Uma repressão violenta abateu-se sobre
os camponeses que tiveram participação mais destacada no movimento. Julião, assim como outros líderes políticos
de esquerda, foi cassado e preso.
O sonho, que começara com os prenúncios tão animadores das pétalas de rosas, estava derrotado.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 46


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DEU NO THE NEW YORK TIMES

OS ANOS EM QUE OS EUA SE PREOCUPAVAM SIM,


PREOCUPAVAM-SE COM O NORDESTE

Governador do Rio Grande do Norte, aliado de primeira hora dos Estados Unidos, Aluízio Alves viajou em
1962 para Washington, a fim de tratar de assuntos da Aliança Para o Progresso (programa de assistência para o
desenvolvimento da América Latina, criado um ano antes). Hoje, se um governador do Rio Grande do Norte, ou de
qualquer Estado do Nordeste, for aos Estados Unidos, no máximo vai ter encontro com funcionários de quarto
escalão, ou com diretores de bancos. Alves, porém, encontrou-se com ninguém menos que o presidente John
Fitzgerald Kennedy. A época era diferente: Cuba havia passado por uma revolução (1959) e se tornado o primeiro
país comunista das Américas. Os EUA temiam que o exemplo pudesse ser seguido por outros países. Neste cenário,
o Brasil, com sua propalada dimensão continental, tinha papel de destaque. E, dentro do Brasil, o Nordeste, região
apontada como o lugar mais miserável do hemisfério ocidental, cheio de conflitos sociais, agitado por lideranças de
esquerda de vários matizes. Foi nesse contexto que Aluízio Alves percorreu os corredores da Casa Branca e tratou,
pessoalmente, com Kennedy dos problemas do seu Estado.
Durante a conversa, o presidente americano chamou auxiliares e deu ordens para que as questões fossem
resolvidas. Em seguida, o assunto enveredou pela situação do Nordeste em geral. E aí Kennedy quis saber como
estavam as articulações de Francisco Julião na Região. O homem que estava à frente da mais poderosa nação do
mundo tinha, entre os assuntos do seu interesse, a atuação das Ligas e do seu líder.
O episódio – emblemático da importância que haviam tomado as lutas sociais e políticas no Nordeste – é
contado por Alves, no seu livro de memórias, lançado em maio de 2001, O que eu não esqueci.
O interesse dos EUA pelo Brasil, evidentemente, não surgira com Kennedy. Nem muito menos apenas
depois da Revolução Cubana. Já no Governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), a estratégia americana apontava,
entre outras coisas, para a exploração de nossas matérias-primas, a conquista do mercado interno brasileiro e a
tentativa de ter o Brasil como aliado na Guerra Fria. O assunto é analisado em minúcias em um livro publicado nos
EUA, em 1989, e até hoje não traduzido no Brasil, The Americanization of Brazil – A Study of U. S. Cold War
Diplomacy in the Third World, 1945-1954 (“A Americanização do Brasil – Um Estudo da Diplomacia da Guerra
Fria dos Estados Unidos no Terceiro Mundo, 1945-1954”).
O autor, Gerald K. Haines, foi historiador da CIA e teve vários trabalhos publicados a partir de pesquisas
feitas em documentos do Governo americano. No livro, ele mostra que os EUA não desejavam a “industrialização
excessiva” do Brasil, porque isso poderia levar nossa indústria a competir com a americana em determinados
setores. Na estratégia do Governo americano, diz Haines, a relação entre os dois países (como de resto, dos EUA
com os demais países do Terceiro Mundo) deveria ser “neocolonial”. Assim, “o Brasil (entraria) fornecendo as
matérias-primas e os EUA processando-as, mantendo o Brasil como um grande mercado para os seus produtos
acabados”.
A ação americana no Brasil, nesse período, ainda de acordo com Haines, estendia-se também pela área
política (apoiando a direita) e cultural. No geral, diz ele, a política dos EUA foi uma mistura de “cálculo político,
interesse próprio, paternalismo benevolente e evangelismo”. Tudo isso tendo por base “idéias preconcebidas,
valores, estereótipos e mitos que mostravam uma realidade distorcida”.
Nos anos 60, a invasão americana foi mais ostensiva, dispensando as sutilezas da década anterior.
Reportagens publicadas no The New York Times começaram a mostrar o Nordeste para os americanos. Na
edição de 31 de outubro de 1960, em um texto com chamada de primeira página, o jornal trazia matéria em que se
afirmava: “o surgimento de uma situação revolucionária é cada vez mais nítido por toda a vastidão do Nordeste
brasileiro, golpeado pela pobreza e afligido pela seca”. Para completar, o autor da matéria era uma das estrelas do
jornalismo americano, Tad Szulc (autor, décadas depois, das celebradas biografias de Fidel Castro e do Papa João
Paulo II).
A reportagem ia mais além: “O premier de Cuba, Fidel Castro, e Mao Tsé-tung, presidente do Partido
Comunista da China, estão sendo apresentados como heróis que devem ser imitados pelos camponeses,
trabalhadores e estudantes do Nordeste”. Mais adiante, destacava a importância estratégica da região: “O Recife é a
base de suporte para a cadeia meridional de estações de rastreamento de mísseis teleguiados da Força Aérea dos
Estados Unidos espalhada pelo Atlântico Sul”.
Frase atribuída a “um alto funcionário municipal” (do Recife), sentenciava: “O Nordeste se tornará
comunista e terá uma situação 10 vezes pior do que Cuba se alguma coisa não for feita”.
The New York Times voltaria ao assunto na edição dia seguinte, com uma matéria do mesmo repórter. O
título: “Marxistas estão organizando os camponeses no Brasil”. Tratava das Ligas Camponeses e de Francisco
Julião.

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 47


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Esses dados, e as transcrições dos textos do jornal, aparecem no livro de Joseph Page. É ele quem conta
que, em 15 de julho de 1961, foi a vez de o presidente Kennedy mencionar diretamente a região: “Nenhuma área
tem maior e mais urgente necessidade de atenção do que o vasto Nordeste do Brasil”. Duas semanas depois, o
irmão do presidente americano, Edward Kennedy, durante giro pela América Latina, esteve em Pernambuco,
observando a situação no campo. Visitou o Engenho Galiléia e falou com os moradores de lá. O tradutor foi Celso
Furtado. Kennedy, o irmão, fez perguntas do tipo: “Como desejam ver seus filhos quando crescerem?”. Ao final,
atendendo a uma reivindicação dos camponeses, comprometeu-se em doar um gerador para a comunidade. Cumpriu
a promessa, enviando dos EUA o aparelho. O gerador, agora sem condições de uso, continua no Galiléia.
Um documentário sobre o Nordeste, produzido nesse mesmo ano para a rede de televisão americana ABC,
também serviu para atrair a atenção para a região. O trabalho, feito pela jornalista Helen Jean Rogers, intitulava-se
The Troubled Land (A Terra Conturbada). Enfocava a atuação das Ligas e os conflitos da luta pela terra. O fio
condutor é um camponês, Severino, pai de uma família numerosa, que sobrevive com o equivalente a 25 centavos
de dólar por dia. Seu sonho: ter um pedaço de terra. Há entrevistas com Julião (que prega o fim da miséria no
campo) e com Celso Furtado. As cenas mais fortes, porém, não são protagonizadas por nenhum deles, mas pelo
proprietário Constâncio Maranhão (hoje falecido).
– Não dê ouvidos a essa gente. Aqui todos têm um trabalho e os que querem trabalhar estão satisfeitos – diz
ele à jornalista americana.
Ela retruca falando sobre reações de descontentamento dos camponeses e da possibilidade de a situação
agravar-se.
– Nesse caso eles terão o que merecem, a força – rebate o proprietário, empunhando uma pistola e dando
tiros para o ar, afirma: – Olhe aqui o que terão!
The Troubled Land passou nos EUA, onde alcançou grande repercussão, mas nunca foi veiculado na
televisão brasileira. De acordo com Furtado, que tem em seus arquivos uma cópia do programa, “o Conselho de
Segurança Nacional o julgou inconveniente”. Os relatos aqui transcritos do documentário foram reproduzidos do
livro dele, anteriormente citado, A Fantasia Desfeita.
O principal foco de tensão no Brasil, capaz de provocar uma revolta com fins imprevisíveis, era o
Nordeste, acreditava o Governo americano. “O Nordeste nos anos 50/60”, diz José Arlindo Soares em sua tese,
“polarizou as atenções do país e do exterior, pelo ímpeto com que as massas se lançaram na luta para atender às
suas necessidades mais imediatas e pela influência que isso poderia ter sobre o próprio sistema econômico do país”.
E foi por isso que a região tornou-se escala obrigatória das autoridades e intelectuais americanos que
vinham à América Latina. No Nordeste estiveram, entre outros, o diretor do Programa de Alimentos para a Paz,
George McGovern; Henry Kissinger; o escritor John dos Passos e um jovem que se tornaria depois símbolo da luta
pelo consumidor nos EUA, Ralph Nader; Adlai Stevenson e o diretor do Corpo da Paz, Sargent Shriver.

POR UM PUNHADO DE DÓLARES

A atuação americana na política brasileira deu-se basicamente por meio de duas entidades, o Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais – IPES e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, segundo revela Moniz
Bandeira em O Governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Produzido com base em
documentos dos Governos do Brasil e do EUA, o livro esmiúça a interferência americana nos assuntos internos do
Brasil, no período.
O IPES e o IBAD, afirma Bandeira, agiam “em estreito contato com a CIA, que lhes forneceu orientação,
experiência e mesmo recursos financeiros, abundantemente, no esforço de corrupção e de intrigas, para influir nas
eleições, impor diretrizes ao Congresso, carcomer os alicerces do governo e derrocar o regime democrático”.
Criado em 1959, o IBAD foi o que teve participação mais ostensiva no quadro político brasileiro – em
particular em Pernambuco, trabalhando contra as Ligas Camponesas e contra a candidatura de Miguel Arraes. No
caso das Ligas, diz Bandeira, o instituto deu apoio aos padres Melo e Crespo, tendo financiado “com recursos
ilimitados” as entidades católicas.
O IBAD, conforme Bandeira, “interveio abertamente na campanha eleitoral (brasileira), subvencionando
candidaturas de elementos reacionários, que assumiam o compromisso ideológico de defender o capital estrangeiro
e condenar a reforma agrária, bem como a política externa independente do governo brasileiro”. Com esse
“primoroso trabalho de corrupção, inédito na história do país, a CIA não somente aliciou empresários, vereadores,
deputados estaduais e federais, senadores, governadores, jornalistas, donas-de-casa, estudantes, dirigentes sindicais,
padres e camponeses”.
O tema é tratado ainda em Dentro da Companhia – Diário da CIA, livro do ex-agente da CIA, Philip Agee.
Ele informa que, nas ações de intervenção na política brasileira, teriam sido gastos pelo menos US$ 12 milhões. O
tema da infiltração americana aparece também no livro 1964 – O papel dos EUA no golpe de estado de 31 de
março, da historiadora americana Phyllis R. Parker, igualmente produzido com base em documentos. Segundo ela,

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

o Governo dos EUA considerava que o presidente João Goulart “tolerava as atividades de comunistas, permitindo
sua infiltração no organismo sindical e em postos do governo”.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI realizada para apurar as atividades do IBAD constatou que o
dinheiro recebido pelo Instituto vinha do estrangeiro, por meio do Bank of Boston, do First National City Bank e do
Royal Bank of Canada, e boa parte procedia de multinacionais, como a Texaco, a Shell, a Coca-Cola, a Bayer, a
Souza Cruz, entre outras. Dada a repercussão que as revelações alcançaram, e a pressão de diversos setores, o
Instituto acabou sendo fechado.

-o-o-o-o-o-o-o-o-o-o-

A ação da CIA desenvolvia-se, também, via todos os consulados dos EUA no Brasil, informa Page. No caso
específico do Recife, o cônsul americano na cidade, Douglas McLean, era vinculado à CIA, corrobora Bandeira,
citando o Itamarati como fonte.
A presença física da invasão aparecia nas estatísticas. O número de vistos solicitados pelo Departamento de
Estado americano ao Governo brasileiro deu um salto no início dos anos 60. “Em 1962”, informa Bandeira, “4.968
norte-americanos, conforme as estatísticas oficiais de desembarque, chegaram ao Brasil, batendo todos os recordes
de imigração originária dos EUA e superando quase todos os números registrados durante os anos da 2a Guerra
Mundial” (quando instalaram bases militares no Brasil). Era para o Nordeste que vinha a maioria desses
americanos.
O deputado José Joffily (PB) tratou do assunto em discurso na Câmara, apresentando os números da entrada
de americanos no País e exigindo investigação para que se descobrisse o que estavam vindo fazer.
Julião também reagiu: “Por que infestam nosso Nordeste aos milhares, como uma praga maldita? Pois não
estão aqui como amigos, mas como inimigos”.
O Nordeste foi a única região do mundo, nesse período, a ter uma missão própria da USAID (agência dos
EUA para o desenvolvimento internacional). A região gozava, ainda, da classificação de “alta prioridade” para o
programa Aliança para o Progresso.
A “preocupação” com o destino do Nordeste, ou seja, com a possibilidade de a região virar um território
dominado pela esquerda, era tanta que levou algumas autoridades americanas a se interessarem pela literatura de
cordel. O interesse surgira do fato de que as ações de Julião e das Ligas tinham nos cantadores populares um dos
seus principais meios de transmissão. Para enfrentar essa tendência um dos funcionários do governo americano
encarregado da propaganda teve uma idéia genial: enviar para o Nordeste um cantor folclórico dos Estados Unidos,
com a missão de, também cantando, enfrentar a divulgação que cantadores e autores de folhetos faziam dos atos de
Julião e das Ligas. O artista folclórico americano deveria apresentar-se nos lugares de atuação das Ligas. Sempre,
claro, cantando em Inglês. Mas a proposta – cuja história é contada por Szulc, e reproduzida por Page em seu livro
– não foi levada adiante.
Pena. Com certeza o cantor americano iria fazer muito sucesso nas feiras livres e nos canaviais...

O APOIO IANQUE AO GOLPE

A participação americana no golpe militar de 1964 continua sendo tema de discussão. O embaixador
americano no Brasil naquele ano, Lincoln Gordon, afirma que os EUA não sabiam do golpe. É contestado por
diversos autores, brasileiros e americanos. A historiadora Phyllis Parker mostra em seu livro que os EUA
prepararam uma operação militar (intitulada Brother Sam) que interviria no País para apoiar o golpe, se fosse
necessário – ou seja, caso houvesse resistência. Dessa operação faziam parte um porta-aviões, seis destróiers,
quatro petroleiros, navio para transporte de helicópteros e esquadrilha de aviões de caça. “Ninguém mobiliza porta-
aviões, petroleiros, armas para um país com o qual mantém relações diplomáticas normais sem prévio
conhecimento de que algo sério vai acontecer”, disse (em entrevista à Folha de S. Paulo, edição de 10.9.99) o
doutor em História Ronaldo Costa Couto (ministro do Interior e do Gabinete Civil no Governo José Sarney), autor
de um livro que também aborda o tema (História Indiscreta da Ditadura e da Abertura).
Sabendo ou não previamente do golpe – e todas as evidências sinalizam que sabiam – , os EUA deram
apoio total ao regime militar. Conforme mostra Page em seu livro, durante discurso feito na Escola Superior de
Guerra, em 5 de maio, o embaixador Lincoln Gordon afirmou que a ação do Exército no Brasil “poderá tomar seu
lugar, como um dos pontos críticos de mudança da História no meado do século XX, ao lado do início do Plano
Marshall, do fim do bloqueio de Berlim, da derrota da agressão comunista na Coréia e da solução da crise da base
de mísseis em Cuba”.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

FUGA E PRISÃO

O DISCURSO NO DIA DO GOLPE

O golpe encontrou Julião no Congresso, como deputado federal. Embora estivesse preocupado com a
possibilidade “de alguma coisa acontecer”, como diria no exílio, ele não via condições para o desfecho de um golpe
militar: “Eu tinha minhas desconfianças, mas não admiti a possibilidade de que se desfechasse um golpe porque
havia uma mobilização de massa muito grande. Com tanto entusiasmo, tantas liberdades, o Congresso adquirindo
força, transformando-se num cenário importante na ampliação da democracia no Brasil...”.
Na Câmara, naquele 31 de março de 1964, sem ter informações exatas de como estava se dando o levante
militar, Julião fez o que viria a tornar-se o seu mais famoso discurso. Um pronunciamento duro, comprometido, e
revelador de como as forças de esquerda estavam despreparadas para colocar em prática a linguagem belicosa e
revolucionária que utilizavam. Não dispunham sequer de um esquema de comunicação para se informarem e
informarem uns aos outros do que estava acontecendo. Julião fala nesse discurso que os seus camponeses estavam
prontos para resistir. Alerta para a iminência de uma guerra civil no Brasil, caso fosse deflagrado um golpe militar –
enquanto isso, os militares ocupavam todo o País, sem resistência alguma.
O discurso, na voz do próprio Julião, está hoje reproduzido em CD, e, em texto, no livro Grandes
Momentos do Parlamento Brasileiro, lançado em 1998, pelo Congresso. O pronunciamento que aparece no livro,
porém, não contém o texto integral. Alguns trechos, coincidentemente os mais duros, foram retirados. Julião, que
comparecia pouco ao Congresso, estava lá nesse dia para defender um projeto de anistia, que, entre outros,
beneficiaria dois sindicalistas operários de São Paulo. Por se tratar de uma peça histórica, e esclarecedora como
poucas do pensamento de Julião, a reproduzimos aqui, na íntegra, inclusive com um aparte. Mais do que o discurso
de um deputado, é o testemunho de um rebelde.

Pronunciamento do deputado federal Francisco Julião em 31 de março de 1964 (com aparte),


transcrito do Diário do Congresso Nacional, edição de 1º de abril de 1964:

O Senhor Francisco Julião: Senhor Presidente, senhores deputados. A nós não constitui novidade o que
está ocorrendo nesta Nação. Há muitos e muitos anos nos dedicamos a uma pregação permanente, tenaz, diuturna,
em favor da camada mais espoliada deste País. Há mais de dez anos nós nos levantamos nos campos do Nordeste
para falar precisamente por aqueles que, há séculos e séculos, têm vivido na mais negra escravidão. E advertimos
sempre, através de documentos, em discursos, em artigos de jornal, em conferências, em proclamações, nesses dez
anos, que um dia a Nação brasileira haveria de se encontrar naqueles milhões e milhões de sub-raça, de subgente
que hoje constituem o motivo da inquietação nacional, os milhões de camponeses do Brasil. Pois bem, senhor
presidente, é com alegria que vejo hoje este cenário conturbado, porque já deixamos o diálogo, já deixamos as
promessas feitas nos comícios populares à cata de votos; já deixamos tudo isso e agora o Congresso Nacional, o
senhor Presidente da República, todos os poderes constituídos têm de enfrentar essa realidade e encontrar uma
solução imediata para ela, do contrário este País mergulhará no caos, na guerra civil, no sangue, para se redimir
dos pecados, dos crimes, das omissões de uma camada egoísta, a dos que têm tudo e sempre acometeram
impunemente contra aqueles que nada têm.
A nossa voz, no começo, foi escutada por poucos, mas depois ela foi-se desdobrando e hoje é a Nação
inteira que começa a escutar a voz daquele desgraçado camponês, daquele ser humilde que foi a besta de carga
durante tantos anos de exploração impiedosa, mas que agora não está disposto mais a continuar com o jugo
infamante sobre os seus ombros.
Hoje a questão agrária é, sem dúvida, o fator de toda essa inquietação. No fundamental, o que se discute
no Brasil é a necessidade de se passar de um regime que desconhecia a existência desses 40 milhões de servos
para um regime em que esses 40 milhões participem da vida, dêem a sua opinião a um grupo minoritário que não
quer que isto aconteça. Mas isto acontecerá, isto sucederá, porque é uma contingência histórica. É uma
necessidade imperiosa e ninguém vai poder deter a marcha dos humildes, nessa sua luta pela sua própria
sobrevivência.
Que falem os acadêmicos. Que se digam aqui palavras brilhantes, mas que ninguém desconheça que lá
fora o povo ulula, o povo clama, o povo desperta, o povo se politiza e, na medida em que ele desperta, ulula e se
politiza, vai desconhecendo a existência de um Congresso que tem estado alheio às soluções mais profundas
exigidas pelo povo.
Nós outros, que temos estado em contato com essas camadas mais esmagadas do povo brasileiro, nas
poucas vezes em que aqui chegamos não compreendemos mais a linguagem deste Congresso, não mais sentimos
este Congresso. Ainda que muitas vozes autênticas ocupem esta tribuna, sua ressonância fica neste plenário,
porque não há imprensa, não há rádio, não há nada que transmita a voz daqueles que aqui estão clamando em

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

favor desses desgraçados, dizendo que a Nação brasileira tem necessidade urgente de passar por transformações
profundas. Compreendi isso desde muito cedo e, porque sabia que era uma dessas vozes que não teria jamais a
oportunidade, de falando nesta Câmara, neste plenário, ser escutado pelo Brasil, porque sabia disso, preferi o
diálogo direto com as massas oprimidas, com essas massas que não dão voto porque são analfabetas, que não dão
dinheiro porque são miseráveis, mas que agora estão inquietando aqueles que têm o dinheiro, aqueles que são os
guardiães da fortuna, aqueles que não querem nenhuma transformação, mas sim, o status quo, a permanência de
um Estado que é injusto, que é cruel, que não tem mais absolutamente razão de ser na altura deste século. Senhor
presidente, tenho estado ausente desta Câmara, mas tenho estado presente ao povo, aquele povo que eu me propus
defender. Quando senti, desde muito jovem, o seu clamor, vi os seus farrapos, compreendi a necessidade de fazer
algo por aquela gente, que devia ter encontrado da parte do orador que me antecedeu, um vigário de Cristo, maior
preocupação (o padre Godinho). Causa-me espanto ouvir de um homem, um sacerdote, uma linguagem que não
aquela que ele tinha o dever de transmitir a esta Casa, porque não é a linguagem dos humildes, mas a linguagem
de quem se sente farto, de quem está satisfeito, de quem não tem contas a prestar. Ali não falou absolutamente um
sacerdote, ali falou um deputado que está comprometido com a estrutura arcaica, uma estrutura que derrubaremos
de qualquer forma, porque a vontade do povo prevalecerá, com o Congresso ou sem o Congresso, pois o povo,
afinal de contas, é quem tem de dirigir os destinos deste País.
Gostaríamos que todas essas transformações que hoje se reclamam nas praças públicas e aqui nesta Casa
se processassem de maneira pacífica, mas a resistência oferecida pela reação, por aqueles que têm tudo, que são
os donos das mais extensas terras, dos bancos, das fábricas, do comércio atacadista, daqueles que são os
privilegiados da Nação, a resistência deles é que está levando o povo ao desespero, é que está conclamando o povo
para a revolução.
Por isso continuaremos com a nossa pregação lá fora e esperaremos que, mais cedo ou mais tarde, o
ajuste de contas seja feito.
E aqueles que não tiverem pecado, e aqueles que não tiverem agido no sentido de atrasar o processo
revolucionário brasileiro, aqueles que tiverem conseguido ficar em sintonia com as aspirações das massas, esses
não sejam jamais punidos, mas sim, aplaudidos pelo povo, que está procurando escutar a voz dos seus maiores,
daqueles que têm a responsabilidade de conduzí-los.
Mas estou certo de que o povo na sua justiça, de que o povo no seu desespero haverá de varrer para
sempre da face do Brasil todos os que se opuserem às reformas de estrutura, às reformas radicais que estão sendo
reclamadas em praça pública, porque não podem ser reclamadas aqui senão por algumas vozes isoladas, vozes de
advertência, mas vozes também de bom senso, vozes que querem a transformação pacífica, contra aquelas outras
que estão oferecendo resistência para que essa transformação se faça a golpe, a sangue. Nós queríamos prestar
contas dos nossos serviços, dos nossos trabalhos, junto a essas massas espoliadas, durante aquele ano em que
estivemos ausente desta Casa, num discurso pensado, elaborado, para que a Casa visse que, se não conseguimos
falar nessa tribuna, conseguimos falar para mais de um milhão de pessoas, de gente que não era até agora
considerada, tida como participante do processo de transformação social e econômica do Brasil. Nós falamos
diretamente a essas massas e não estamos arrependidos da nossa ausência nesta Casa, porque ela não significa,
absolutamente, a falta de vigilância, nem de interesse, pela solução dos graves e grandes problemas da Pátria. A
nossa ausência significa que uma voz a mais ou a menos no Parlamento não iria contribuir para que o processo
brasileiro se desenvolvesse pacificamente. Contribuí para esclarecer e para trazer às praças públicas, para os
grandes comícios e concentrações populares, aqueles que não foram convocados, mas que agora estão sendo
temidos pela reação, pelos empedernidos, pelos rebeldes, pelos eternos golpistas, por aqueles que não querem
transigir em coisa alguma, na esperança de que poderão ainda enganar o povo brasileiro.
Senhor presidente, senhores deputados, esta noite, para mim, é como qualquer outra. Não é ainda a
grande noite que o Brasil espera, não é ainda a grande noite que o povo pede, porque a noite que o povo pede é a
noite de sua redenção, e esta não é ainda a noite de redenção das massas espoliadas do Brasil. Nós estamos
esperando que esta noite chegue e queremos que não seja uma noite de São Bartolomeu. Queremos que seja uma
noite cuja aurora não venha mais iluminar os que têm tudo, mas iluminar aqueles que nada têm. Estamos
trabalhando para que esta noite chegue, estamos trabalhando para que esta aurora irradie, e queremos que ela
irradie num País que tem potencialidades, que tem o povo inteligente, capaz de transformar esta Nação na terceira
ou na quarta potência do mundo ainda no fim deste século, mas onde ainda vemos mais da metade de sua
população sem um par de sapatos, vestindo trapos, sem tomar leite, sem escolas, sem assistência, sem coisa
alguma, enquanto muitos gargalham e no processo inflacionário multiplicam por dez e por cem as suas fortunas,
querendo manter este estado de coisas insuportável.
Abençoados os marinheiros, bravos sargentos, camponeses rebelados, operários indômitos do Brasil. A
vós rendo a minha admiração, a minha homenagem pelo sangue que já derramaste neste País e que ainda não foi
redimido, mas que haverá de contribuir para a nossa unidade, pela força de todos nós, em defesa daqueles que
sentem o clamor das massas desesperadas do Brasil.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Deixo aqui, senhor presidente, senhores deputados, para não ser irreverente e atender ao apelo de Vossa
Excelência, meu protesto contra tudo que se tem feito contra as massas espoliadas. Deixo aqui também a certeza
de que talvez encontremos neste Parlamento ou numa trincheira qualquer, na defesa da Pátria, porque a Pátria
não é dos privilegiados; é do povo, dos espoliados, dos camponeses, dos operários, dos pescadores, de toda essa
gente humilde que carrega este País nas costas, para gáudio, para deleite de meia dúzia de privilegiados.
Deixamos aqui nosso protesto e também a certeza de que a madrugada que vai raiar não será a madrugada dos
potentados, dos banqueiros, dos latifundiários possuidores de léguas e léguas de terras, mas será a madrugada dos
humildes, a madrugada daqueles que realmente estão construindo a grandeza da Pátria.
Quero desta tribuna dizer que quem está nas ruas não é a revolução. E a contra-revolução. Porque ela
sempre antecede, ela é a tese. A revolução é a antítese. É a solução dos problemas nacionais. Será, sem dúvida, a
síntese de tudo a que estamos assistindo hoje nos debates memoráveis deste Parlamento e sobretudo lá fora, nos
comícios populares, onde oratória mais inflamada se coaduna com os anseios mais sentidos e mais profundos das
massas trabalhadoras do Brasil.
Quero deixar meu protesto contra esse estado que se pretende criar no Brasil, que não é o estado
revolucionário, mas o estado contra-revolucionário, de regresso, de retrocesso, o qual, porém, não terá. A reação
é sempre capitaneada por um elemento dotado de grandes privilégios, por banqueiro que amealhou fortuna
colossal e não é capaz de sentir os anseios do povo de sua Pátria e de sua terra, daquele povo que tem na figura do
grande mártir, do símbolo do protomártir da liberdade no Brasil, a figura de Tiradentes enforcado pelos seus
tetravós, enforcado por aqueles que ainda hoje vão a Ouro Preto chorar lágrimas de crocodilo no local onde
ergueu a sua forca.
Pois bem, senhor presidente, senhores deputados, não há de ser um banqueiro que vai salvar o Brasil.
Quem vai salvar o Brasil é o seu povo, são os trabalhadores, a sua gente humilde. Estes, sim, hão de salvar o
Brasil e fazer uma madrugada radiosa para as massas brasileiras.
Senhor presidente, senhores deputados, deixo esta tribuna prometendo ocupá-la mais vezes, pois resolvi
que este há de ser para mim o ano parlamentar; resolvi freqüentar mais esta Casa, porque a minha, no Nordeste,
já está arrumada. Se, amanhã, alguém tentar levantar os gorilas contra a Nação, já podemos dispor – por isso
ficamos no Nordeste o ano todo – podemos dispor de 500 mil camponeses para responder aos gorilas como os
gorilas quiserem. Na lei, como desejamos; na marra, se eles quiserem. Estamos com nossa casa arrumada.
Sabemos que no momento em que deflagrarem um golpe reacionário direitista contra o Brasil, haverá guerra civil,
e a guerra civil não será absolutamente em benefício daqueles que querem continuar desfrutando privilégios
odiosos, mas em favor daqueles que querem tirar o Brasil da miséria e fazer deste Brasil um País capaz de
competir com as grandes nações do mundo. Temos a força da inteligência do nosso povo, temos riquezas que estão
aí desafiando essa inteligência. Um Brasil, em suma, que há de ser não dos privilegiados, mas dos humildes. Não
queremos seja deflagrado este processo, mas se ele se deflagrar, não será contra os humildes, será contra os
potentados, contra os poderosos.
Senhor presidente, senhores deputados, cada vez mais eu vejo que Karl Marx tinha razão quando dizia
que quem faz a revolução não são as massas oprimidas, mas a reação. E a intransigência da reação se fez sentir
hoje até mesmo diante de um projeto de anistia que deixou de ser votado simplesmente porque a gloriosa bancada
da UDN, que tem na pessoa do deputado Adauto Lúcio Cardoso seu eminente líder, não quis, por intransigência,
por capricho, estender a anistia a dois líderes sindicais, dois operários brasileiros, dois representantes dessa
classe que é sem dúvida responsável pela construção, pela edificação deste Brasil; não quis estender a esses dois
líderes. Ele que é um civil, foi benevolente para os militares, mas não quis absolutamente que esses dois operários
fossem beneficiados pela anistia, anistia que é perdão geral, que é perdão total, anistia que não pode
absolutamente sofrer diferenciação, que se deve aplicar a todos, quando todos estão envolvidos pela mesma causa,
como foi o caso, por exemplo, daqueles dois operários de São Paulo.
Não compreendo essa intransigência, e essa intransigência é que está levando o País ao caos, essa
intransigência é que está levando o País à guerra civil. Não é absolutamente o debate, o esclarecimento, o diálogo
que se procura travar neste Congresso por aqueles deputados que estão sentindo e compreendendo que o Brasil
não pode mais, absolutamente, marchar por esta senda que o pode conduzir a um processo revolucionário
irreversível.
Senhor presidente, eu gostaria de ouvir o nobre deputado Adauto Cardoso, no aparte que ele me solicitou.

O Sr. Presidente (Ranieri Mazzili) – É certo que Vossa Excelência já excedeu de muito o seu tempo. Por
isso, o aparte do nobre deputado Adauto Cardoso deverá ser breve.

O Sr. Adauto Cardoso – Serei breve. Expliquei bem que aquilo que a UDN não faria nunca é anistiar os
promotores da desordem, os promotores da anarquia. Está pronta a anistiar as vítimas, aqueles que inocentes que
foram conduzidos à agitação, ao motim, à revolta. Mas aqueles que agitaram e que ainda hoje procuram agitar a
Nação, esses não, a esses a UDN não está disposta a conceder anistia. E por trás do nome de civis não estão

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

somente os dois líderes operários, aqueles que o ilustre orador chama de líderes operários e que nós nos
obstinamos em chamar de pelegos, não somente eles; por trás deles estão outros civis e civis poderosos, não
simples operários, civis altamente colocados nas escalas do poder. Esse, por obra nossa, por mão nossa, não
deixarão de ajustar contas com a justiça criminal (palmas).

O Sr. Francisco Julião – Senhor presidente e senhores deputados. Diante dessa intransigência de um
partido que quer “salvar” a Nação, de um partido que não compreende a História deste País, de um partido que se
encontra ausente das aspirações do seu povo, diante dessa intransigência, o que vai acontecer amanhã ou depois?
É a aceleração desse processo, é a polarização dessa força, é um cavar de trincheiras. Mas eu deixo aqui desta
tribuna não uma advertência, mas deixa nesta tribuna apenas um aviso – é de que nesta altura dos acontecimentos
é inútil querer obstaculizar, é inútil querer impedir o avanço do povo brasileiro, porque com UDN ou sem UDN,
com intransigência ou sem intransigência, o povo brasileiro já tomou decisão de conquistar sua emancipação
econômica, sua emancipação social. E ela será conquistada como nós costumamos dizer nos nossos encontros com
as massas camponesas do Nordeste e do Brasil, será conquistada na lei ou na marra, será conquistada
pacificamente ou através da revolução, da rebelião das massas inconformadas do Brasil (Muito bem. Muito bem.
Palmas. O orador é cumprimentado.)

A FUGA, DISFARÇADO DE CAMPONÊS

Juntamente com outros parlamentares, nos primeiros dias do golpe Julião passava manhã e tarde na Câmara
e só saía para dormir. O Primeiro Ato Institucional, que permitiria as cassações dos parlamentares, já estava
preparado e estimava-se que sua publicação seria no dia 9. No dia 7, ao entrar na Câmara, ele foi avisado pelo
senador Aarão Steibruck de que sua prisão era iminente.
– Procure uma Embaixada. O seu e o mandato de outros parlamentares serão cassados logo mais. Não há
garantias! – disse-lhe o senador.
Julião ainda foi ao plenário, pediu um aparte ao orador do momento, o deputado Tenório Cavalcanti, criticou
o golpe e declarou-se marxista. Queria que tudo aquilo constasse dos anais da Casa.
Ao sair, apressado, foi esperar um táxi quando passou o colega Adauto Lúcio Cardoso – o mesmo líder da
UDN que o aparteara no discurso do dia 31 de março, e que fora um dos participantes da elaboração do golpe: “Eu
estava na saída quando o Adauto se aproximou de mim perguntando se eu tinha transporte. ‘Adauto, tô esperando
um táxi’. ‘Por que você não vai comigo. Como sou líder da Maioria tenho um carro que pertence à Câmara’. Eu
disse: ‘Ainda que fosse seu. Você sabe que temos uma velha amizade’. Nossa amizade foi feita numa viagem juntos
a Cuba, quando Jânio Quadros foi conhecer a Revolução Cubana. Fez tudo para que eu apoiasse o Jânio, mas acabei
apoiando o Lott. Então, fui atrás com ele e, na frente, o motorista e outra pessoa”.
No carro, ao admirar o final da tarde, Adauto falou:
– Esta cidade deveria chamar-se Belo Horizonte.
“No mesmo instante”, contaria Julião mais tarde, “fui assaltado pela idéia de deixar Brasília e rumar para
Belo Horizonte”. Ainda no carro, Adauto escreveu algo em um jornal e repassou para Julião. A frase escrita: “Está
tudo perdido”.
No dia seguinte, Julião iniciou a fuga. Para deixar Brasília, cujas vias de acesso estavam sob patrulhamento
do Exército e da Polícia Militar, disfarçou-se de camponês. Um amigo o levou, de carro. Em algumas barreiras
eram parados e o amigo se identificava assim: “Sou fulano de tal. Tenho propriedade aqui e vou levando meu
capataz, seu Antonio, a pessoa que cuida de minha propriedade”. Às vezes precisavam sair do carro e falar com os
policiais: “Eu disfarçava, ficava falando a linguagem errada de camponês. Ninguém desconfiou”.
Passaram por várias barreiras até que o amigo o deixou em um local, no interior de Minas Gerais, afirmando
que outra pessoa iria apanhá-lo: “Mas essa outra pessoa não teve coragem, retrocedeu, e tive que caminhar a pé, já
noite escura. Eu estava pensando: ‘Vou entrar no mato, amarrar meu cinturão numa árvore e dormir’, quando
escutei o latido de um cachorro, e onde há cachorro há homem. Fui até a casa, que era de um camponês velho,
sujeito de família, casarão velho. Ele chamava-se Antonio, eu também me agarrei ao nome de Antonio (com o qual
passara nas barreiras), e era xará pra cá, xará pra lá.”.
Dormiu lá e de manhã seguiu para Belo Horizonte – exatamente a cidade de onde fora deflagrado o golpe.
Chegou a tempo de presenciar a grande manifestação promovida pelos vitoriosos do momento: o general Mourão
Filho e o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. Com um chapéu que lhe cobria toda a testa, um
esparadrapo em forma de cruz numa das faces e um lenço amarrado no pescoço, Julião assistiu à festa dos que o
haviam derrotado.
Ficou hospedado numa pensão durante três dias. Lá escreveu um manifesto contra o golpe, que depois foi
publicado em uma revista uruguaia, Marcha, editada pelo escritor Eduardo Galeano. No texto, ele convocava os
brasileiros à resistência armada contra o novo regime: “O manifesto caiu no vazio, porque ninguém estava,
absolutamente, preparado para tomar as armas. Todos nós acreditávamos que as eleições de 64, em outubro, iriam

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 53


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

se realizar. E todos estavam preparados para enfrentar as urnas. Daí a razão por que caiu no vazio o meu manifesto
com um apelo ao povo para que se unisse e defendesse a Constituição com armas na mão”.
Julião considerava que o presidente João Goulart deveria ter resistido ao golpe, pois tinha condições de fazê-
lo: “O comportamento de Goulart foi débil. Não chamaria de pusilânime, mas diria que foi débil. Não era a primeira
nem a segunda nem a terceira vez que se tentava dar um golpe de direita no país. Considero que Jango cometeu um
erro quando deixou a Presidência sem oferecer resistência. Afinal de contas, ele era o chefe supremo das Forças
Armadas. E era dever dele permanecer no palácio lutando pelo mandato que o povo lhe concedera. Ele deveria ter
seguido o caminho que Salvador Allende posteriormente adotou no Chile como presidente: preferiu sacrificar-se e
oferecer resistência às Forças Armadas para defender o mandato, em vez de entregá-lo e aceitar simplesmente o
exílio ou escapar ou fugir do país. Um presidente não pode desertar numa hora como aquela, porque o seu mandato
é mais importante que sua vida”.

A MORTE DO PAI

Ao deixar Belo Horizonte, ele voltou ao interior, à casa do camponês Antônio, que o acolhera dias antes:
“Era um homem descarnado e triste como todos na região, a prole numerosa, a comida escassa e a roupa mais
escassa ainda. Aos poucos, no curso das longas conversas ao redor do fogo que afugentava o frito cortante do
cerrado, xará pra cá, xará pra lá, descobri essa coisa espantosa: o camponês de Minas é ainda mais desgraçado que
o do Nordeste”.
O homem mal sabia o que estava acontecendo no país. Bebia muito, passava boa parte do tempo
embriagado. Um dia, porém, em um momento de sobriedade, falou para Julião:
– Olha, xará, você não é camponês. Tá se vendo que não é do campo. Você não tá metido nessa coisa aí de
revolução? Parece que existe por aí uma tal de revolução...Se fala muito, passa muita gente, é caminhão pra cá,
caminhão pra lá...
Julião cedeu. Chamou o homem para trás da casa, a fim de que a mulher e filhos dele não escutassem, e
conversaram baixinho:
– Olha, xará, o que eu contar a você, você aqui enterra?
– Aqui enterro.
– Vou contar, mas como como vou ficar aqui, você vai ter que se cuidar, porque realmente estou metido
nessas coisas. Mas não é a favor, não. É contra.
O homem não se assustou, mas, por segurança, resolveu levar Julião para um lugar próximo dali: “Na tarde,
já querendo escurecer, atravessamos um caminho e daí a uns três quilômetros ele me deixou numa miserável e
desabitada casa, onde passei uns 20 dias”.
O dinheiro que Julião tinha era pouco, mas suficiente para algumas compras – que o camponês Antônio ia
fazer, cumprindo orientações:
– Olha, compra de pouquinho que você é pobre e nunca comprou muito. Compra, por exemplo, meio quilo
de carne num lugar, dois quilos de farinha noutro, compra o gás em outro. Não compre tudo na mesma venda.
Os alimentos eram distribuídos com Antonio e a família dele, àquela altura já amiga de novo morador.
Julião conseguiu que um sobrinho de Antônio, num episódio até hoje não contado em detalhes, entrasse em contato
com “uma pessoa amiga” em Brasília. Esta pessoa foi ao local em que ele estava escondido.
– Estão te buscando por toda parte – avisou. – Os amigos todos aconselham que você deve se meter numa
embaixada para fugir do Brasil.
– Não, eu fico. Você leva isso e trata de publicar – respondeu Julião.
O “isso” a que ele se referia era o manifesto que escrevera contra o golpe, em
Minas, e que acabou sendo publicado no Uruguai.
Dias após, recebeu outra visita. Era um amigo de Pernambuco que viajara 10 dias para encontrá-lo. Trazia
notícias – e uma delas, na verdade a que fizera o homem viajar até ali, era muito ruim. Os dois abrigaram-se na
sombra de uma gameleira para conversar.
– Como deixou meu pai? – perguntou Julião.
– Enfermo.
– Coisa grave?
– Sim, foi hospitalizado.
– E o seu aniversário?
– Não assisti. Parti antes.
Julião sempre estivera com o pai nos aniversários dele. Mas, naquele de 15 de maio de 1964, quando seu pai
completaria 86 anos, não pôde comparecer. Estava em fuga.
– Mas nesse dia eu escrevi aqui, debaixo dessa gameleira, um poema para ele. Estava pensando em como
mandá-lo. Vou ler pra você.
O homem escutou a leitura sem interromper.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

– Você vai ser o portador deste presente – disse Julião.


– Chegará tarde...
– Então é assim tão grave o estado dele?
– Seu pai está morto desde o dia 10. Esta é a missão que me trouxe aqui.
A morte do pai dele foi provocada por uma notícia falsa, divulgada pelo regime Militar. Adauto Barbosa de
Paula, o Major Adauto, do Engenho Espera, estava assistindo ao noticiário da TV quando foi anunciado que Julião
havia sido morto, em confronto com a polícia. O impacto da notícia foi forte demais para o coração dele. Ainda
chegou a ser levado para o hospital, mas não adiantou. Morreu sem saber que o filho estava vivo, escondido no
mato, escrevendo-lhe versos: “Que faltava mais a ‘revolução’ me tirar? Faltava meu pai. E levou, também, o pobre
velho. Não pude enterrá-lo, como sempre pensei que pudesse fazê-lo. Como fiz com a minha mãe: no pequeno e
maltratado cemitério de Bom Jardim”.

MÃOS DE CAMPONÊS, PÉS DE DEPUTADO

O plano de Julião era estabelecer-se em outra área e iniciar algum trabalho de resistência ao novo regime.
Para isso precisava de dinheiro. E, para obter o dinheiro, havia que retornar a Brasília. Apesar dos riscos que a
decisão implicava, ele resolveu seguí-la. Iria deixar para trás, desta vez para sempre, o camponês Antônio e sua
família.
– Queria levar uma lembrança sua – disse Julião para Antônio, antes de partir.
– Mas o que é que eu posso dar, xará?...Sou um pobre homem, não tenho nada...
– O tenente...
“Tenente” era o nome do cachorro da família. Um vira-latas pequeno, com sarna:
“Este cachorro me ajudou de maneira extraordinária. Cachorro de campo, porém inteligente e sagaz. Tive a
comprovação disso num dia que saímos para caçar e meu companheiro abateu uma ema na perna. O cachorro
correu atrás e segurou a ema até que pudéssemos chegar. Passamos vários dias comendo peito de ema”.
É com o disfarce de camponês, o nome Antonio e o cachorro “tenente” debaixo do braço que Julião retorna
para Brasília. Ficou na casa do jornalista Flávio Tavares – onde todo mundo acabou pegando a sarna do cachorro,
inclusive a mulher de Tavares, que estava grávida.
De lá ele viajou para um lugar conhecido como Bauzinho, a três quilômetros de Brasília, próximo a uma
área de confluência com os Estados da Bahia, Goiás e Minas Gerais. Foi onde terminou sendo preso.
Quais eram seus planos: “Minha idéia era passar ali um tempo para obter algum dinheiro e (com um amigo)
ir para as margens do Araguaia, num ponto que já havíamos determinado, e ali viver. Bíblia debaixo do braço,
deixar a barba crescer, e começar a formar algo para dez anos depois”.
Com uma bíblia, um rádio transistor que lhe permitia escutar as notícias, vivia com o amigo e dois
camponeses em Bauzinho, passando-se por um pastor. Estava sendo procurado no País inteiro. Na véspera de ser
preso, Julião sonhou que era cercado pela força da Paraíba. Preocupado com o sonho, resolveu não dormir mais na
cabana em que estava, localizada no meio de um descampado. Andou alguns quilômetros até avistar uma árvore e
decidir que, a partir do dia seguinte, iria dormir ali todas as noites, numa rede. Era mais seguro. De dia, com o sol
claro, voltaria para a cabana.
Não teve tempo.
De madrugada – que ele pretendia fosse a última a dormir ali – 15 policiais cercaram o local. A data: 3 de
junho de 1964.
Acordou ouvindo gritos:
– Estamos com a casa cercada! Os que estão aí saiam com as mãos para o alto!
– Ninguém pode escapar, temos aqui granadas e metralhadoras de mão!
As quatro pessoas que estavam na casa saíram com as mãos para cima.
– Quem é Julião aqui?
– Aqui não tem nenhum Julião!
Foram todos levados para dentro da casa, de novo, e interrogados. Um dos policiais aproximou-se de Julião:
– Você, quem é?
– Me chamo Antonio Ferreira da Silva, sou do Ceará – respondeu Julião, que passou a falar carregando no
sotaque nordestino.
Revistaram suas coisas, apalparam suas mãos calejadas e fizeram mais algumas perguntas, até que um deles
falou:
– Esse daqui tem mesmo mão de camponês.
Outro concordou:
– Não é o homem que estamos procurando.
Um terceiro, porém, foi mais esperto. Olhando para os pés de Julião, ordenou:
– Tire as botas!

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Ao ver os pés dele, o policial exultou:


– A mão é de camponês, mas o pé é de deputado!
Em seguida, amarraram-no em um tronco no centro da sala da cabana, que era de palha, e foram todos para
fora, deixando-o sozinho lá dentro. Julião ouviu os policiais falarem em tocar fogo na cabana. “Vou morrer aqui,
incendiado nessa cabana”, pensou. Do lado de fora, os camponeses que moravam com ele eram pressionados a
contar o que sabiam.
– Esse homem é um pastor! Tá aqui porque lá no Ceará roubou uma moça de um fazendeiro. Veio se
esconder aqui e pediu pra gente guardar segredo – diziam os camponeses. Era a história que Julião lhes havia
contado.
Com as metralhadoras apontadas para os camponeses, os policiais gritavam:
– Vocês têm que dizer quem é ele, senão acabam aqui! O homem que estamos buscando é ele e queremos
saber o nome dele!
– É seu Antônio, pastor protestante!
Vendo que a situação estava ficando cada vez mais tensa, e temendo que os policiais perdessem o controle e
atirassem, Julião gritou:
– Vocês não façam nada com essa gente! Não façam nada com essa gente!
Os ânimos continuaram agitados e um policial que revistava a carteira de Julião encontrou uma nota de 10
pesos mexicanos. Era mais uma prova de que ele não era quem dizia ser.
– Como é que pode ser? Um camponês com dinheiro do México? Como é que você conseguiu esse dinheiro
do México?
Julião havia guardado como suvenir ao visitar o México, em fevereiro de 1964.
– Eu sou Francisco Julião. Deixem esses homens, que nem sequer me conhecem.
Da cabana até o veículo em que iriam transportá-lo para Brasília, os policiais e Julião tiveram que andar
vários quilômetros. E aqui o cachorro “tenente” entra mais uma vez na história: “Ele nos acompanhou durante um
pedaço grande. Os companheiros que ficaram na cabana disseram que o cachorro nunca mais voltou lá. A
impressão que tenho é que quando me viu entrando no transporte foi embora em direção à casa do seu antigo dono,
a mais de 300 quilômetros. Me liguei muito a esse cachorro e cheguei a pensar em escrever uma história com o
nome “Tenente”, mas sem ninguém saber que era a história de um cachorro, quer dizer, só iam saber no fim. Mas
abdiquei de ser escritor. Não quero ser”.
Um pernambucano teria sido o autor da delação responsável por sua prisão: “Sei quem me denunciou, foi
um camarada que fez parte da campanha do (João) Cleofas (derrotado nas eleições de 1962, por Miguel Arraes),
que ia ser secretário e trabalhou muito, mas quando Cleofas perdeu, não fez nada por ele, que estava em Brasília
passando certas dificuldades. Foi o homem que me entregou, um homem muito amargurado porque esperava ser
algo em Pernambuco. Guardemos o nome dele. Se se trata de anistia, vamos esquecer”.
Aliados de Julião quiseram “justiçar” (matar) o delator, mas ele foi contra e impediu que isso acontecesse:
“Na vida de todo homem sempre há um Judas. Quiseram fazer justiça a esse renegado, mas não permiti porque sou
contra pena de morte. Desde muito jovem que a minha filosofia foi a de acreditar que o homem é um ser
recuperável. Acredito na recuperação, na regeneração até dos bandidos”.

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Os policiais o levaram, inicialmente, para o Batalhão de Caça Presidencial – BCP, em Brasília. Perfilado, o
sargento que liderara o grupo que o prendera apresentou-o ao subcomandante do Batalhão:
– Apresento-lhe o deputado Francisco Julião.
E o subcomandante, sério, sem olhar para Julião:
– Ex-deputado. Cidadão Francisco Julião.
No BCP ele ficou cerca de três semanas. No dia 23 de junho foi encaminhado para o Recife, onde esteve em
vários quartéis. O tratamento não foi o mesmo de Brasília, onde não sofrera agressão física: “No Recife, na
primeira vez que me meteram numa cela me deram umas pancadas tão violentas na cabeça que caí sem sentidos.
Foi na Segunda Companhia de Guardas”.
Foi aí que ele escreveu um livro que se tornaria sua obra mais conhecida e leitura reverenciada na esquerda:
Até Quarta, Isabela!. Ele havia conseguido costurar na bainha da calça uma cédula de dinheiro e, certa vez, ,
quando o soldado lhe trouxe a comida, a pôs na bandeja.
– Papel e lápis! – falou baixinho.
No almoço do dia seguinte, bem embrulhados, lá estavam o papel e uma caneta
esferográfica.
A tarefa recebeu o auxílio de uma de suas irmãs, Zita. Todos os dias ela lhe enviava uma garrafa de leite –
na qual vinha escondido um novo pedaço de papel. Ele passava o que havia escrito na véspera e ficava com o novo:
“Metade do livro foi escrita nessas condições, mas para a outra metade tive a felicidade de receber uma boa

PERFIL PARLAMENTAR SÉCULO XX – FRANCISCO JULIÃO 56


Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

quantidade de papel de um capitão. Havia um capitão bom que dizia: ‘Olha, não sou seu carcereiro. Nossa missão é
outra. No dia que estou aqui pode reclamar da comida, se quiser ler alguma coisa, diga que trago um livro. Acaba
de sair a última novela do Jorge Amado, quer ler? Agora, de tarde venho buscar porque não sei quem virá aqui
amanhã’.”
Até Quarta, Isabela! é um testemunho dele sobre o período em que esteve preso e sobre os motivos de sua
opção política e ideológica. Foi escrito em forma de uma carta para Isabela, a filha que tivera com a nova mulher,
Regina Castro. Quando o escreve ele ainda não tinha visto a menina, que nascera em 31 de maio. Os militares
consentiram que ele a visse, mas apenas durante 10 minutos, e sob as vistas do oficial do dia. A visita é marcada
para uma quarta-feira, e daí o título do livro.

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Da Segunda Companhia de Guardas ele foi transferido para o quartel do Corpo de Bombeiros, onde também
estava Miguel Arraes. No cárcere os dois traduziram, do Francês, um livro de Sergei Tchakotine, chamado A
Politização das Massas Através da Propaganda Política, publicado pela editora Civilização Brasileira: “Foi uma
tradução muito difícil, porque o livro já era traduzido do Alemão para o Francês. Foi o primeiro que Hitler mandou
tirar das livrarias quando invadiu Paris. 700 páginas, uma maravilha. Tchakotine foi o maior discípulo de Pavlov e
ali está tudo sobre reflexo condicionado, problema dos símbolos, das imagens, essa coisa toda. Criou as três setas
para combater a cruz gamada de Hitler, representando os camponeses, a classe obreira e a intelectualidade, as três
forças que considerava capazes de combater o nazismo. Mesmo se quisessem pintar a cruz gamada sobre as setas
estas continuariam cortando-a. Com esse símbolo ganhou eleições em vários lugares onde o nazismo estava
penetrando”.
Na cela ao lado da que ficou, Julião viu passar quatro outros prisioneiros políticos: um economista da
SUDENE, um guarda fiscal de Quipapá, um jovem gaúcho discípulo de Bakunin e um marceneiro de Caruaru. Este,
segundo Julião, parecia uma criança. Fora preso porque estava organizando o sindicato dos marceneiros. Estava
detido pela segunda vez, e não sabia bem por quê. Iria estudar quando deixasse a prisão.
– Você já ouviu falar de Álvaro Lins? – perguntou-lhe Julião, numa das conversas.
– Não. A minha desgraça tá nisso. A Comissão (nos interrogatórios) me pergunta
por tanta gente que não conheço! Deve ser por isso que estou aqui. Quem é esse homem? Se perguntarem por ele já
saberei de quem se trata.
– Álvaro Lins é um filho de sua terra. Entre vivos e mortos, vocês ainda não
tiveram ninguém maior do que ele – respondeu Julião. – É um grande escritor, admirado aqui e lá fora, mas acima
de tudo é um grande caráter. Um dia, dará o seu nome a uma rua, em qualquer parte do Brasil, e terá uma estátua de
corpo inteiro na praça principal de sua cidade.
– E é vivo?
– Muito mais vivo do que nós que estamos aqui, enterrados, falando como duas sombras.
Ao tomar conhecimento de tudo aquilo, o marceneiro caruaruense ficou aliviado:
– Pelo menos já não me enrasco com esse...

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Passaram-se mais alguns meses, Arraes conseguiu um habeas corpus e partiu para exílio na Argélia. Julião
era defendido pelo já famoso advogado Sobral Pinto. Era quase certo que ele também seria beneficiado por um
habeas corpus. Foi quando recebeu a visita do deputado Adauto Lúcio Cardoso – o mesmo da carona em Brasília,
o mesmo que o aparteara em seu último discurso, o mesmo que era líder da UDN na Câmara. Queria saber se Julião
se comprometia a deixar o Brasil caso fosse posto em liberdade. A resposta foi sim – mas ele queria mesmo era
ficar no Brasil. Articulou uma operação para ficar no Mato Grosso: “Preparei um dispositivo para ficar. Tinha um
Cessna me esperando no aeroporto, tinha o macacão de mecânico da Varig, com bonezinho e tudo, para poder
entrar no aeroporto, e esse avião me levaria para Mato Grosso”.
O habeas-corpus em seu favor passou apertado no Supremo, por cinco votos a quatro. Ele tinha, agora, 24
horas de liberdade para decidir sua vida – era o prazo acertado com Cardoso para deixar o País. Não foi possível
acionar o seu “dispositivo”, porque estava o tempo todo seguido pela polícia. Foi para o Rio de Janeiro e pediu asilo
na Embaixada da Iugoslávia. O pedido foi negado. O argumento da Embaixada foi que muita gente estava se
utilizando da Iugoslávia como uma ponte para outros países. Recorreu à embaixada do Chile. Nova negativa. Só foi
aceito na embaixada do México. Chegou lá escondido no Volkswagen de Antonio Callado, que dirigia o automóvel.
Em 28 de dezembro de 1965 viajou para o exílio no México.
O Brasil nunca mais lhe seria o mesmo.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

O OUTONO DO PATRIARCA

DIFICULDADE FINANCEIRA, AUTOCRÍTICAS, MÉXICO – O EXÍLIO

O período que Julião passou no México é o menos conhecido para o público. Assim como outros brasileiros
que defendiam o socialismo, ele não quis ir morar em Cuba, apesar do bom relacionamento que tinha com Fidel
Castro, e de ter enviado os filhos para lá.
No início, ele ficou na Cidade do México, mas depois fixou residência em Cuernavaca, conhecida como a
cidade das flores.
No exílio, ele fez, pelo menos, duas autocríticas em relação à sua atuação no Brasil pré-64.
A primeira: “Naquele tempo eu via os problemas do Brasil e da América Latina através das Ligas
Camponesas, através do Nordeste, através da minha região conflitiva, atrasada e dominada pelas forças oligárquicas
mais retrógradas. Hoje, tenho uma visão mais distinta, porque vejo Pernambuco, o Nordeste e o Brasil através do
mundo. A minha visão se universalizou. É essa a primeira crítica que faço a mim mesmo: ter tido uma visão local,
estreita e regional”.
A segunda autocrítica: “Eu me ative tanto ao problema camponês que cheguei a entrar em choque até com
pequenos e médios agricultores – que eram aliados naturais do movimento camponês. Então, os pequenos e médios
agricultores, pelo temor de perder os seus pedaços de terra – o que era bastante explorado pela imprensa burguesa –
, buscavam aliança junto ao grande latifúndio. E o latifúndio é inimigo do pequeno e médio agricultor. Então,
perdemos aliados importantes entre os pequenos e médios agricultores. Hoje, considero que estes pequenos e
médios agricultores são aliados incondicionais e necessários para que se lute por uma reforma agrária no país e se
melhore a situação do próprio camponês que não tem trabalho”.
No México, Julião levou uma vida sem luxo, espartana, premida por dificuldades financeiras, sobretudo nos
primeiros tempos de sua chegada ao país. Foi ajudado por amigos, que lhe conseguiram trabalho. Organizou um
curso sobre Consciência Social e Ideologia Camponesa. Escreveu o livro Cambão, a face oculta do Brasil,
publicado em vários países, incluindo Portugal, mas ainda inédito no Brasil. Publicava artigos regularmente no
jornal El Dia e na revista semanal Siempre. Recebia uma pensão de cerca de 100 dólares, que depois a transferiu
para a filha Isabela. Uma amiga conseguiu a edição em espanhol de Até Quarta, Isabela!, com dois mil exemplares,
e lhe ofereceu: “Vendi muitos aqui, os amigos me compravam assim como pão quente. Durante alguns anos vivi
dessas coisas. Me ofereceram a possibilidade de trabalhar em algum organismo, ser pesquisador em alguma
universidade, mas não quis me ligar a nenhum. Se tomasse uma iniciativa dessa natureza me sentiria frustrado,
tinha que buscar algo que estivesse ligado aos camponeses para não perder aquele contato e aquela embalagem.
Não estou arrependido de ter passado todo esse tempo com dificuldades”.
Em 1968 recebeu convite para dar palestras em universidades dos EUA. O pagamento seria razoável, e
intelectualmente seria proveitoso – mas ele recusou. Sua explicação, dada em carta enviada ao professor James
Wilkie, autor do convite, foi que, como “político militante de esquerda”, não gostaria de visitar o país que
“estupidamente se lança contra todos os povos, motivado por ambições imperialistas”. Sua permanência por
algumas semanas nos EUA, dizia Julião, “soaria aos ouvidos da gente humildes do meu país, dos despossuídos e
explorados, como uma concessão ao imperialismo ianque”.

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À medida que o tempo foi passando, ele foi se ambientando no México e logo travou contato com o
camponês mexicano: “Cê sabe, deixar o Nordeste, onde havia uma mobilização de massas imensa...quando abria a
porta da casa, no Recife, já havia 200 ou 300 camponeses esperando pela justiça, e eu tinha que conversar com cada
um, escutar, ver como iria solucionar seus problemas, que eram os mais variados. De repente, chego a Cuernavaca,
com esse clima, e tive a impressão, pelas flores e a beleza da paisagem, que havia chegado a Shangri-lá. Mas depois
percebi que aqui também existe pobreza, desemprego, todos esses fenômenos de nossos países da América Latina.
Larguei a caminhar por aí, duas ou três horas por dia, até descobrir o camponês trabalhando com sua enxada e ver
que era o mesmo camponês do Nordeste, com os mesmos problemas, a mesma psicologia, a mesma filosofia, o
mesmo mundo. Comecei a conversar com essa gente”.
A partir dessa relação, Julião iniciou uma pesquisa sobre o herói da Revolução Mexicana, Emiliano Zapata
(1879-1919); fez mais de 200 entrevistas com pessoas que haviam combatido com ele. O material, que ele esperava
tornar-se livro, encontra-se, atualmente, numa instituição cultural mexicana, que o contratara para esse serviço.
Ainda não foi publicado em livro.
No exílio, ele participou ativamente de articulações políticas com lideranças brasileiras e latino-americanas.
No período de 15 a 17 de junho de 1979, em Lisboa, esteve presente ao Encontro dos Trabalhistas do Brasil com os
Trabalhistas no Exílio, comandado pelo ex-governador Leonel Brizola, também exilado. Na iminência de retornar

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

ao Brasil, beneficiados pela anistia, eles queriam reorganizar o PTB, aproveitando a força da legenda, a qual
pertencera Getúlio Vargas, e dando-lhe uma acentuada feição esquerdista. No Encontro, entre outras coisas, foi
aprovada a luta pela convocação de Assembléia Nacional Constituinte. A situação no campo brasileiro mudara, e
Julião concordava com isso: “A penetração violenta do capital monopolista no Brasil (...) contribuiu para que o
campo sofresse um abalo sísmico. O camponês que eu deixei no Brasil foi triturado, foi transformado num
assalariado. Hoje, o fenômeno do bóia-fria merece a primazia de todo lutador social”.
Com a anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979, pelo presidente João Batista Figueiredo, o último
general a ocupar o cargo desde o golpe militar, Julião pôde voltar ao Brasil. Chegou em 26 de outubro daquele ano,
desembarcando no Rio de Janeiro, onde ficou alguns dias. Viajou para Pernambuco em 7 de novembro, onde foi
recebido com grande festa.
No Brasil, Julião dedicou-se quase que integralmente à organização do partido, que seria liderado por
Brizola. Em 12 de maio de 1980 eles sofreram um duro golpe político: a posse da sigla PTB foi conquistada no
Tribunal Superior Eleitoral – por um grupo liderado por Ivete Vargas, contrário aos brizolistas e com perfil
conservador. A Brizola não restou outro caminho senão fundar um novo partido, o PDT.

O PACTO DA GALILÉIA

Em 1986 veio o gesto que surpreendeu o mundo político pernambucano: Julião, acompanhando o PDT,
decidiu apoiar a candidatura do usineiro José Múcio Monteiro, do Partido da Frente Liberal (PFL), na disputa pelo
Governo do Estado. O adversário era Miguel Arraes, então no PMDB. O apoio foi firmado por um acordo que
recebeu o nome de “Pacto da Galiléia” – uma alusão ao Engenho Galiléia, onde a luta das Ligas Camponesas
começara. Por esse “pacto”, os usineiros se comprometiam a doar 10% de suas terras para a reforma agrária, caso
José Múcio fosse governador.
No documento do “pacto”, assinado por José Múcio e Julião, afirma-se: “É chegada a hora das grandes
reformas sociais. É inaceitável um país rico com o povo pobre. É inaceitável o desnível de renda entre regiões e
pessoas. É inaceitável a permanência de contrastes sociais que comprometam o futuro do país. A Zona da Mata é
secular abrigo de acentuados contrastes sociais, Por aqui devem começar as grandes transformações. E no começo
de tudo está a questão da terra”.
Dizia ainda: “Para operacionalizar o Pacto contaremos com o apoio do Estado e de cada município da Zona
Canavieira, já que a doação pura e simples da terra não basta para a consecução do seu principal objetivo, que é o
de fixar a família camponesa à gleba nativa através de agrovilas, associações comunitárias, cooperativas e outras
modalidades de organizações sociais, com a ajuda indispnesável de sindicatos de trabalhadores da agricultura e de
todos os homens e mulheres de boa vontade”.
A direita e os liberais comemoraram o apoio de Julião. A esquerda o considerou um “equívoco histórico” e
ainda hoje não o assimilou..
O gesto de Julião foi criticado por antigos aliados e até pelos filhos dele – que se engajaram na campanha de
Miguel Arraes, ficando contra o palanque do qual o pai fazia parte. Ao fazer isso, explicam os filhos, estavam
sendo coerentes com as lições de independência que o pai, pelo exemplo, lhe ensinara.
Na época, floresceram diversas hipóteses tentando explicar a razão do seu gesto, mas até agora nenhuma
adquiriu a reputação de “conclusiva”. Uma delas, mais política, é que as forças organizadas em torno de Arraes
temiam que a abertura democrática, então incipiente, não suportasse uma aliança Arraes-Julião. Seria dar uma
coloração esquerdista demais à chapa da Oposição. Por isso, teriam dificultado sua inserção na aliança de esquerda.
Outra, mais humana, é que Julião vira na união em torno de José Múcio e no “Pacto da Galiléia” uma forma de
realizar o seu antigo sonho: a reforma agrária em Pernambuco. Esta foi a impressão que ele deixou em algumas
pessoas com quem conversou muito antes de anunciar sua decisão. Era como se ele quisesse deixar algo prático,
concreto, palpável, da luta que iniciara havia tanto tempo. Como se o visionário se visse diante da necessidade de
viabilizar perante a História pelo menos uma parte, por menor que fosse, de suas visões.
Em entrevista ao Diario de Pernambuco, cerca de seis anos depois (24 de fevereiro de 1992), ele diria: “Vai
passar mais algum tempo até que se entenda porque procurei o caminho mais difícil”. E explicava: “O ‘Pacto da
Galiléia’ foi um grito que dei com a sincera convicção de despertar a consicência dos empresários da cana para uma
questão que ainda se arrasta, como uma sucuri insaciável, devorando milhares de seres humanos – homens,
mulheres, crianças -, sobretudo estas, na zona mais próspera e menos afetada pelas secas que, periodicamente, nos
flagelam com seu látego de fogo. Essa questão permanece como uma mancha ultrajante, um desafio, um insulto,
uma vergonha para os pernambucanos de vergonha”.
Mas, qualquer que tenha sido sua motivação, o fato é que a decisão lhe custou caro. O “Muro de Berlim”, o
físico e o simbólico, ainda não caíra. A divisão entre esquerda e direita permanecia muito clara. Os sinais do regime
militar continuavam presentes demais para passarem despercebidos. Nesse período, ver Julião aliado com forças
que estiveram ao lado dos seus algozes causava uma estranheza impossível de ser digerida com naturalidade. Para
completar, na reta final a campanha de Múcio adquiriu – nos discursos, nos slogans, na propaganda eleitoral de

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

rádio e TV – um ostensivo perfil anti-comunista. Ao final, Arraes ganhou com folga. Candidato a deputado federal,
Julião obteve menos de 4 mil votos. Não conseguira arrebatar a confiança do eleitorado da direita, e perdera a
simpatia do da esquerda.
A derrota, de certa forma, dificultou sua reinserção na vida política brasileira. Logo depois ele retornou para
o México; ficou vindo ao Brasil esporadicamente. Voltou para nova temporada em 91, atendendo convite de Leonel
Brizola, que se elegera governador do Rio de Janeiro e do qual se tornou assessor especial. Em Pernambuco o
vitorioso ao governo fora Joaquim Francisco, do PFL, o mesmo partido de José Múcio – e Julião acreditou que o
‘Pacto da Galiléia’ pudesse ser ressuscitado. Não foi. Na mesma entrevista citada anteriormente, de 1992, Julião
lamentava: “Lá se vai um ano de gestão e nada... Pergunto eu: será que o PFL vai deixar essa oportunidade de
convocar os empresários canavieiros para cumprirem o ‘Pacto’? Será que esses empresários se negariam a entregar,
agora, os 10% de suas terras, solenemente prometidos, como consta de livro de ouro do ‘Pacto’, em meu poder?”.
Mais uma vez, as terras que Julião queria ver divididas, não o foram. A estrutura fundiária do Brasil lhe
inflingia uma segunda derrota. A primeira fora a da reforma agrária radical, luta da época das Ligas Camponesas; a
segunda, a reforma agrária de consenso, como ele definira a proposta do ‘Pacto da Galiléia’. Nos anos seguintes,
sem mandato, sem tribuna, sem um movimento social para estar à frente, e ainda por cima enfrentando um país
muito diferente daquele do início dos anos 60, Julião viu-se diante de um cenário extremamente adverso. Fazia
parte da executiva nacional do PDT, continuava militando, divulgando suas idéias – mas sua influência estava
muito distante daquela que tivera no passado.
Houve mesmo uma ocasião em que, no Rio de Janeiro, ao subir num ônibus pela porta em que a viagem era
gratuita às pessoas com mais de 60 anos, o motorista o mandou descer. Julião não tinha a carteirinha que garantia o
direito à gratuidade.

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Em 1997, sem alarde, ele partiu para um novo exílio, voluntário, no México. Seria o último.
As dificuldades financeiras, que o acompanharam desde a mocidade, continuavam presentes em sua velhice.
Não possuía nenhum bem. Casa própria, investimentos bancários, fonte de renda garantida, um plano de saúde de
qualidade – nada.
Passou os últimos dias de sua vida longe dos embates políticos, isolado dos figurões da política brasileira,
entregue à tarefa de revirar o seu passado para contá-lo nas memórias que havia anos estava escrevendo (e que
continuam inéditas). Morava com a mulher, Marta Rosas, numa periferia do município de Tepoztlán, em um
pequeno apartamento, sem água encanada, alugado, construído sobre uma espécie de bodega.
Em 10 de julho de 1999 enfrentou sua última batalha. Estava preparando uma macarronada quando se sentiu
mal. Era um infarto. Ainda foi levado para um hospital, mas não havia mais o que fazer.
Aos 84 anos o agitador, enfim, se aquietava.

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CRONOLOGIA

16 de fevereiro de 1915 – Nascimento de Francisco Juliano Arruda de Paula. O “Juliano”, homenagem de


sua mãe a um santo cuja festa era em fevereiro, foi depois transformado em “Julião”.

16 de Dezembro de 1939 – Conclui o curso de Direito na Faculdade de Direito do Recife.

1951 – Publica seu primeiro livro, Cachaça, um volume de contos, elogiado pelo sociólogo Gilberto Freyre,
autor do prefácio.

1954 – Torna-se o primeiro deputado estadual eleito pelo PSB em Pernambuco, depois de duas tentativas
(em 1945 e 1947) fracassadas.

1o de janeiro de 1955 – Faz a primeira visita ao Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, para dar
apoio político e jurídico à Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), que iria tornar-
se a mais célebre das Ligas Camponesas.

1958 – Reeleito deputado estadual.

7 de outubro de 1962 – Elege-se deputado federal.

31 de março de 1964 – Golpe militar. Julião está na Câmara dos Deputados, onde faz discurso exigindo
reforma agrária e criticando os golpistas. .

10 de abril de 1964 – É cassado com base no Ato Institucional Número 1.

3 de junho de 1964 – Escondido na zona rural próximo a Brasília, é preso e levado para Brasília.

27 de setembro de 1965 – Por meio de um habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
é posto em liberdade, mas recebe um prazo de 24 horas para deixar o país .

28 de dezembro de 1965 – Viaja para o exílio no México.

28 de agosto de 1979 – O general João Batista Figueiredo, presidente da República, sanciona a Lei da
Anistia. Julião é um dos beneficiados.

26 de outubro de 1979 – Desembarca no Rio de Janeiro.

7 de novembro de 1979 – Chegada a Pernambuco.

15 de novembro de 1986 – Candidato a deputado federal pelo PDT, em Pernambuco, apoiando a


candidatura ao Governo do Estado de José Múcio Monteiro (PFL), obtém menos de 4 mil votos e não se elege. José
Múcio é derrotado por Arraes.

10 de julho de 1999 – Morre em Tepoztlán (México), aos 84 anos, de infarto.

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Álbum de Família

Francisco Julião, na foto de formatura em


Direito, em 1939

Álbum de Família

Casamento com Alexina Crespo, no Recife, em 1º de abril de 1943.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Álbum de família

Em casa, no Recife, no final dos anos 50, com a mulher, Alexina, e os


quatro filhos do casal: Anatólio, Anacleto, Anatilde e Anatailde.

Diario de Pernambuco

Julião, advogado, defendendo


uma de suas causas.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

Álbum de família

Deputado, revisa requerimentos apresentados à Assembléia Legislativa.

Diario de Pernambuco

Com camponeses, na desapropriação do Engenho Galiléia, em 1959.

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Álbum de família

O casal Francisco Julião e Alexina, ao lado de Fidel Castro,


aplaude a exibição do Circo Moscou, em Havana, em 1961.

Álbum de família

Julião com a mulher e os filhos, em Havana, em fevereiro de 1964. Na foto


aparecem, ainda, Luiz Albino da Silva (olhando para a câmera) e Isaac
Pedro Teixeira, filho do líder camponês paraibano João Pedro Teixeira,
assassinado em 1962.

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Diario de Pernambuco

Recepção a Francisco Julião, na volta do exílio.

Diario de Pernambuco

Em foto do final dos anos 80, dando entrevista, no Recife.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

BIBLIOGRAFIA E FONTES

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em Sociologia apresentada na UFPE, em 1989.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

ENTREVISTAS FEITAS PELO AUTOR

Com Alexina Crêspo (mulher de Julião) e filhos do casal: Anacleto Julião, Anataílde e Anatólio, em setembro-
outubro de 2001.

ENTREVISTAS CONSULTADAS DE FRANCISCO JULIÃO

À pesquisadora Eliane Moury Fernandes, do Cehibra (Centro de Documentação e Estudos de História Brasileira.

Rodrigo Mello Franco de Andrade), pertencente à Fundação Joaquim Nabuco. Julião concedeu essa entrevista em
1982, no Recife.

PASQUIM. Edições de 5 e 12 de janeiro de 1979.

Ao jornalista Geneton Moraes Neto, em 1983. Publicada no livro Cartas ao Planeta Brasil, do autor (Editora
Revan, Rio de Janeiro, 1988).

OUTRAS FONTES

- Discursos e requerimentos apresentados na Assembléia Legislativa por Julião no período (1955 – 1962) em que,
por duas vezes, exerceu o mandato de deputado estadual.

- Edições do Diario de Pernambuco de 31 de março e 3 de abril de 1991 e 24 de fevereiro de 1992.

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Luta, paixão e morte de um agitador - Vandeck Santiago

DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR


Vandeck Santiago é jornalista. Iniciou a carreira no Diario de Pernambuco, em 1985. Em
seguida trabalhou na Veja, TV Pernambuco (como Coordenador de Programação), Jornal do Brasil e
Folha de São Paulo. Atualmente é repórter especial do Diario de Pernambuco.
Nasceu em Pesqueira (PE), em 11 de janeiro de 1962.

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