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Paulo Gomes Neto e Eu, amigos de cadeia, amigos para sempre. Ao fundo, entre nós, o secretario de
Direitos Humanos Antonio Carlos Biscaia, grande batalhador da reparação e do
reconhecimento do valor de nossas lutas modestas, agora sim cobertas com alguma
glória.
Quem sabe deste incidente aventureiro? É filme? É teatro? Não, foi fato. Foi sim. É que
memórias são fios que se desfiam de um rolo para se embaralharem irremediavelmente,
até não serem jamais meada nem medida, até não poderem mais ser enrolados em rolo
algum.
Arquiteturas de Arquivos
Velhas construções sempre inacabadas
Dizem numa destas crônicas históricas mais curiosas e inusitadas (destas que os desvãos
da história oficial nunca sacramentam) que o prédio da antiga Casa da Moeda do Brasil
(hoje abrigando o Arquivo Nacional no Rio e Janeiro), com suas largas escadarias
guarnecidas por leões vigilantes escapou do quase fatal destino de ser bombardeado pela
aeronáutica do sanguinário ditador chileno Augusto Pinochet.
Duvidam do que bem poderia ser uma lenda urbana, não é? Pois, eu não. É que faz
muito sentido. Difícil não ser verdade.
Ocorre que o ‘nosso’ orgulho latino americano, brioso de coisas banais como esta de
não questionar nem mesmo os menores equívocos da metrópole de plantão, envolvidos
que sempre estivemos neste nacionalismo de aparências (‘para inglês ver’) que ainda
nos governa, talvez jamais se sujeitasse à humilhação de reconhecer tamanha
subserviência perante a coroa inglesa, então no auge de sua hegemonia de super
potencia mundial no final do século 20.
A arquitetura dos ingleses teria sido fraudada em sua destinação meticulosa numa
simples troca de rolos de papéis que nenhum funcionário, em ambos os países, Brasil e
Chile teria tido a coragem sequer de questionar. Ah! O governo do Chile que se
arranjasse naquela construção fabril de cômodos monótonos. Ah! A casa da moeda do
Brasil que se virasse instalando as suas gigantescas máquinas de impressão de cédulas e
promissórias (por si sós já também inglesas) nas suntuosas salas do quase castelo
imperial.
Mas nem tudo é verdade: Neste blog aqui, contudo, a história é cabalmente desmentida.
Os prédios foram construídos em datas muito diferentes, uma lenda histórica, portanto,
com alguma trilha de escape para se restabelecer alguma verdade.
A Reparação do irreparável
Para nós os rebeldes, a encruzilhada radical
É que estive hoje cedo no Arquivo nacional, um dos prédios desta história não contada.
É isto! Fui como um dos 160 ex-presos políticos da Ditadura que neste 27 de Abril –
depois de mais de 8 anos de espera – fomos homenageados (e com uma quantia
simbólica indenizados) como reparação e reconhecimento por parte do governo do
Estado do Rio de Janeiro de que foi criminosa, desmedida e injusta a nossa detenção em
cadeias e presídios do estado entre os anos de 1964 e 1979 por termos cometidos o que
eles julgavam ser ‘subversão da ordem pública’, ‘delitos de opinião’.
…”Em solo, o avião com cerca de 50 pessoas entre passageiros e tripulantes foi
cercado por tropas militares. As exigências dos seqüestradores eram a libertação de 40
presos políticos e a saída deles do país. As negociações começaram às 9h da manhã e
se estenderam por horas. Enquanto os estudantes aguardavam notícias, esguichos de
espuma impediam que eles vissem o que acontecia do lado de fora.
Lembrei da crise de identidade dos prédios de nossa história ali, na hora, exatamente
durante a fala de uma das autoridades que discursaram para nós as suas empoladas
homenagens, ora nos chamando de vítimas, ora de heróis.
A gente se sente assim, estranho como um daqueles prédios, nestas horas. Se sente
velho arquivo nacional vivo, mas num prédio-cabeça fora do lugar. As memórias
sessentonas todas vadiando por ali pelos jardins do Arquivo, ‘lelés’, vagando por
dimensões estranhamente, umas límpidas outras confusas, entre o passado tenso e o
presente encanecido, barrentas de todos os barros do caminho como as enxurradas.
A voz e os rostos dos hoje velhos conhecidos acesos em nós num clarão emotivo – logo
assim que os vemos – nos chegam com os nomes apagados, borrados em paralisadas
brumas, ou preto ou branco (sem cinza) como as fotografias mais velhas de um fundo
de baú com traças jovens, traças sórdidas, ativas e operantes agentes de um Dops de
apagamento de flagrantes lembranças.
…Ai!Quem será aquele que me acena agora? Como se chama? Quem será, meu Deus?
Belisario – que… olha que incrível! … conheci agora mesmo – asilou-se em Angola e
vive lá até hoje. Cumpriu todas as etapas de uma revolução de sonho, da luta aqui á
vitória certa lá, do ideal socialista conquistado, mas logo perdido no inescapável abraço
–redemoinho do capitalismo hegemônico de nosso tempo.
Jessie Jane, a moça com aquele nome de bandoleira de faroeste (Jane Calamity mais
Jesse James), aquela do sequestro do avião – que eu, ainda preso, conheci como uma
lenda revolucionaria – estava lá nos jardins. Ela é agora uma senhora como eu estou
senhor, alegre e orgulhosa, sorrindo feliz de ter sido o que é até hoje: alguém que fez o
que achou imperativo fazer, contra tudo e contra todos os nãos, até mesmo o não
impositivo da morte no avião da qual, escapou.
Colombo falou também, melhor ainda da arquitetura de nossas memórias ainda mais
profundas. Evocou a lembrança da antiga Casa de Detenção da Capital Federal, prédio
de estilo neo clássico segundo ele erigido em 1915, exclusivamente para ser o centro da
repressão política do Brasil, soturno prédio da Rua da Relação, o famigerado Dops onde
eu e tantos outros presos amargamos as experiências mais dilacerantes das nossas vidas.
Um museu-arquivo para outros tantos doidos heróicos como Marighela, abatido a tiros
naquele fusca-arapuca, doidos-heróicos como aquele Capitão Lamarca esquálido
fuzilado nos cafundós do Judas da Bahia. Sim, um museu-arquivo para a memória de
todas as derrotas passadas de todos nós os pequenos loucos, nossas falsas derrotas que
hoje, cada vez mais vivas de importancia para os nossos filhos e netos, se agigantam em
fulgor, se afigurando como as brilhantes pequenas vitórias no tijolo a tijolo de nossa
democracia que está aí, quase impávido colosso da pátria amada Brasil.
É que este Alzheimer político de nosso tempo precisa ser curado enfim com o sumo
destas lembranças perpetuadas. Para que quando alguém nos acenar com aquele olhar
marejado de quem viu o galo cantar e sabia muito bem onde era, mas não lembra mais,
alguém puder dizer, logo em seguida, consultando o nome do local ou da pessoa escrito
junto à foto, ao filme, ao panfleto digitalizado:
_” É o Paulo Gomes Neto, gente! É o Jesus Gaúcho! É Lúcio Flávio! É o Paulo Cesar
Bezerra! É o Antônio Barbeiro! É o Luiz ‘Padre’! É o Belisario! É o Colombo! É…é a
Jessie Jane, gente!
Se querem saber, a minha geração quando jovem, registrou a música de Cartola antes
que ela se desvanecesse! Exista ou não Ele entre nós, comunistas unidos e convictos que
seremos para sempre… Deus não dá mesmo asa á cobra.
Spírito Santo
Abril 2011