Não se pode mais nem mesmo retardar este processo de massificação
desenfreada. Tudo nos é imposto sob a égide de uma existência ordinária. Negligenciamos em demasia as lições aprendidas com a Escola de Frankfurt. Como bem nos ensina Michel Foucault, o sistema não tem exterior. Nossas existências estão cada vez mais tomadas pela brutalidade e falta de assombro. A resignação estóica se apresenta como a única alternativa viável para que não sucumbamos. Sêneca e a brevidade da vida. Sêneca e a possibilidade de se ignorar tudo aquilo que seja exterior ao homem. Lamentavelmente estamos assim. Nossas almas combalidas nas sarjetas. O espelho indiferente atesta este nosso extremo barbarismo. Somos por demais conjugáveis em todo e qualquer manual de gramática moderna. Nem os espartanos nas Termópilas e nem muito menos Pilatos num palácio qualquer. Nem um olhar que se perde sem reflexo no espelho e nem muito menos o escorbuto que macera as gengivas de um prisioneiro ensandecido. Não há mais pesadelos noturnos ou o crescente e assustador frio na espinha. A ordem da harmonia dos contrários permanece. Pitágoras se sentia desconfortável em relação aos números irracionais. Temos pouco na ausência tópica para a qual nos remete todo e qualquer demonstrativo instigante. Os amantes do paradoxo se foram. O vazio e a forma cada vez mais distantes um do outro.A náusea alijada de toda e qualquer obra em todo e qualquer lugar. Somos excessivamente relacionais na veneração descabida das analogias. É mister que reencontremos o ruminar de nosso vômito. Não há mais mistérios como a florescimento da arte em Creta. Não ouço mais ninguém falar de Delfos. É isto que nos resta nesta era de quase nada. Não consigo enxergar caráter de transcendência neste ciclo inerte. Os sentidos cada vez mais rasteiros. Onde estarão as constantes sensações de estranhamento? Nietzsche tinha o olhar projetado para o futuro. Inquietava-o a possibilidade do surgimento de gerações medianas. O tempo e o espaço espremidos dentro de nossas concepções tecnocráticas. A tridimensionalidade morna nas preposições que não carregam infinidade alguma. Comer e beber e eliminar o que tem que ser eliminado de nosso corpo, este hardware que ocupa o lugar menor num espaço repleto de inúmeras possibilidades. A criação de um software capaz de resistir à explosão do planeta, esta talvez seja uma discussão cabível. Já não há mais tantos espíritos atormentados. Já não há mal-estar constante. A dor tornou-se apenas um substantivo qualquer em seu comprometimento com a ordem. Mesmo os substantivos abstratos perderam muito de sua vitalidade. Aprisionados pelo estigma da desqualificação, tornaram-se excessivamente funcionais. Vomita-se pouco neste lugar das coisas precisas. O abjeto passou a ser solenemente ignorado. Quer me parecer que a crueldade originária da produção cultural, uma pulsão por excelência, cedeu lugar a uma série de manifestações reativas e desprovidas de si mesmas. Não ouço falar mais tanto de surtos ou acessos de cólera ou de desmaios num processo qualquer de intensa atividade mental. O cérebro completamente tomado por encadeamentos excessivamente lógicos.O cérebro que não se permite o inusitado das visões. Nossa configuração operacional é essencialmente simétrica. A representação do todo nunca esteve em consonância com a manifestação do ser neste mesmo todo. Não se pensa mais como os antigos. Há filósofos em todos os lugares, mas não há mais pensadores legitimamente envolvidos pelo chamamento de uma reflexão sentida. Tudo é extremamente fugaz, estranhamente rápido como um vento pesado que nos devora num dia ensolarado de verão. Não há mais lugar neste mundo para a angústia. Uma alma sensível é sempre jogada às traças pelo fato de ir contra esta chaga reprodutora do cientificismo. Eis a cruel sintaxe de um discurso que se pretende como tal. A técnica sobrepujou o saber. A humanidade vem carregando este fardo desde há muito. As palavras foram esvaziadas até se tornarem inviáveis. Perdeu-se o brilho que as fazia latejar nos tempos imemoriais. Muitos foram aqueles que resistiram penetrando a clareira do abandono e da solidão. Esta constatação é vital para os escolhidos que aqui permanecem. Para não sucumbir como os outros, eles se mantiveram neste precário equilíbrio ao adotar uma postura eminentemente trágica em relação ao todo manifesto. Através de um tremendo esforço, eles recuperaram o espanto oriundo do chamamento artístico e puseram mãos à obra em silêncio. Perceberam que a retidão é o caminho para a libertação das neuroses através de uma transgressão criadora. . Perceberam que poderiam circular livremente como Hermes por entre dois mundos. A flexibilidade os manteve vivos. Eles caminham neste território escorregadio.Do Olimpo ao Hades e vice-versa, enredados na indiferença do infinito, os artistas conseguiram se manter vivos e simplesmente produzir. Estas mentes especialíssimas estão sempre bem próximas à loucura. A intensidade de sua busca os conduz para o ínvio solo de um chacoalhar interior. Entre eles e o real paira o símbolo limitador por excelência. Uma arte definitivamente inovadora, definitivamente inviolável, acha-se comprometida com este morrer. Este termo remete a um mergulhar numa nova possibilidade para os sentidos. Compreender o incompreensível sempre foi uma tarefa muito delicada. Estamos enredados na praticidade das coisas que se apresentam como tais. É preciso que esqueçamos de ser o que achamos que somos e que não somos. Uma nova postura irá devastar nossa percepção das coisas. É necessário que não mais vejamos tudo como antes. É mister que ouçamos o inaudível no silêncio de uma noite escura. Precisamos aprender a tatear o nada com as mãos vazias. Precisamos sentir o odor inusitado no calor de uma febre qualquer. Precisamos sentir o gosto de um agora jamais em nossas almas inquietas. Entre nós e o real jaz a interpolação do símbolo. A representação formal para que tudo se torne realizável. Ao nomear, reconheço- me como tal na minha indigência. O desejo do impossível alimenta a alma artística. Posso negar agora veementemente a interpolação do eu entre o real e o símbolo.O esquecimento que habitava a genialidade de um Artaud.
Para arder como o sol causticante é preciso estar suficientemente
ninguém em qualquer lugar de que se tenha idéia. Próximo a tudo que seja irracional no interior daqueles que resistiram e que também se foram. Para lutar com as palavras é fundamental que estas mesmas sejam esquecidas no frio de uma noite fria. O artista metamorfoseado nas entranhas de toda e qualquer fruição da mente, em toda e qualquer conexão nervosa fora de tudo como um olhar diferenciado..
Relatos Espúrios
O abandono das horas.
A solidão e seus estigmas na alma.
Ouço atentamente o barulho dos ponteiros do relógio na sala de uma
residência qualquer. As horas me dizem que envelheci mais um pouco. Há tantos anos em apenas um ou dois ou cem ou mil: Há muito mais nas palavras que pesam para além dos séculos de procura.
Os antigos sabiam morrer como ninguém.
Os estados hesitantes em sua passagem no interior que precedia a elocução. No abandono das coisas procuro um rumo imprevisto. Procuro o inusitado que me faça esquecer de que sou nem mais nem menos do que uma sombra vazia. Quero me confundir com as palavras e escorrer como as mesmas no assombro do caos. A palavra frio não sente frio como eu sinto. A palavra rio não corre como eu corro na escuridão. Estão todas estas palavras em seu silêncio que se confunde com a physis. Não há música naquilo que emerge ao redor. O silêncio se confunde com a sua substantivação evasiva. A palavra silêncio zunindo em meus tímpanos. O momento da perda em profundo abandono mental. O advérbio de lugar é a razão de meu desterro. O além entrevisto em longe, distante, alhures ou mesmo em ali. Percebo-me ou sou arrebatado por esta sensação de extrema indigência quando me vejo próximo às destruições e cataclismos originários. A crueldade então emerge de forma naturalmente monstruosa.
O pensamento nada mais é do que a vontade de sobrepujar o outro.
Vontade legítima se considerarmos o fato de que a mesma encerra os milhares de anos de tradição homicida. Vontade e potência na boca de todos aqueles que se alimentam de sua derrocada.