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por
JOSÉ GUILHERME DANTAS LUCARINY
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, para
obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
Orientadora:
Professora Vera Portocarrero
Rio de Janeiro
Julho de 1998
2
VERA PORTOCARRERO
(Orientadora, Professora da UERJ, Departamento de Filosofia)
JOSÉ TERNES
(Professor convidado, UFG, PUC-Goiás)
RESUMO
RÉSUMÉ
DEDICATÓRIA
1
LISPECTOR, Clarice, 1925-1977. A Paixão Segundo G.H. 17a., Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1994. ⎯ Referimo-nos ao romance de 1964 da
romancista brasileira nascida em Tchetchelnik (Ucrânia) de uma família russa,
chegada ao Brasil com a idade de dois meses, tendo vivido em Recife até 1937
e depois no Rio de Janeiro. Segundo Nádia B. Gotlib em texto de apresentação,
“Quando G.H., a personagem deste romance, decide seguir seu percurso da sala
ao quarto dos fundos, não é apenas a escultora que, a certa altura, escolhe
um dos seus afazeres domésticos possíveis: limpar o apartamento de cobertura
começando pela parte que deveria ser a mais suja, a do quarto de empregada.
Este caminho de ‘arrumar’ ou de ‘dar a melhor forma’ ao quarto, que acontece
lá no alto de um apartamento de classe alta do Rio de Janeiro, é muito mais
do que uma simples arrumação. Transforma-se, pouco a pouco, no seu contrário.
Torna-se uma lenta, gradativa e dolorosa desarrumação do quarto, da vida, de
tudo. Implica num irremediável e fatal enveredar-se pelos múltiplos espaços
em profundidade em que este cubículo dos fundos vai se transformando, a
partir de um dado de origem social: estar à margem do poder num sistema de
classe institucionalizado. A partir dele, e também por ele motivado, inicia-
se este longo percurso de reconstrução de um mundo pelo seu avesso, que vai
se formando justamente neste não ter forma nem lei, contrariando todo um
sistema cristalizado do que se convencionou tomar por bom, belo e justo.
(...) Ler este livro é, também, seguir este caminho, derrubando os mitos dos
sistemas estereotipados, repressores e falsos em que vivemos, pela difícil
via da desconstrução.”
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
POR UMA FILOSOFIA DA MORTE DE DEUS
E DA MORTE DO HOMEM ................................. 13
PRIMEIRA PARTE
O SOL NIETZSCHIANO
Introdução ........................................... 18
CAPÍTULO 1
O PENSAMENTO TRÁGICO ................................. 19
O Nascimento da Tragédia, 19. ⎯ O mito, 20 ⎯ O
Eterno Retorno e a inocência, 21. ⎯ Da imortalidade
dos deuses: Apolo e Dionísio, 23. ⎯ Sócrates, 26. ⎯
Dionísio e o crucificado, 27. ⎯ Da alegria e do Amor
Fati, 28. ⎯ Do niilismo, 30. ⎯ A morte de Deus, uma
interpretação histórica, 32. ⎯ Zaratustra, 34. ⎯ Do
homem superior e da superação, 34. ⎯ O trágico por
excelência, 36.
CAPÍTULO 2
A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO ...... 38
Pensamento, consciência e linguagem, 38. ⎯
Linguagem, sentimento e moral, 41. ⎯ Conhecimento e
idéia, 41. ⎯ Eu penso, eu quero, 42. ⎯ Verdade e
aparência, 44. ⎯ As palavras e as idéias, 45. ⎯ Uma
bela doidice, 46. ⎯ Um ato de autoridade, 47. ⎯ A
razão na filosofia, 50.
CAPÍTULO 3
A MORTE DE DEUS ...................................... 52
Antecedentes, 52. ⎯ Nietzsche e a morte de Deus, 54.
⎯ A morte de Deus e o super-homem, 56. ⎯ Duas
alternativas, 59. ⎯ O espírito de gravidade, 60. ⎯
A morte do homem, 61. ⎯ A permanência do vício
antigo, 62. ⎯ A morte da divindade, 63.
11
SEGUNDA PARTE
MICHEL FOUCAULT, CRÍTICO DA RACIONALIDADE MODERNA
Introdução .......................................... 64
CAPÍTULO 1
O PROJETO ARQUEOLÓGICO ........................... 69
Enraizamento na epistemologia, 69. ⎯ O primeiro
momento, 73. ⎯ Uma arqueologia do olhar, 78. ⎯ Uma
arqueologia das ciências humanas, 80. ⎯ Uma
arqueologia do saber, 83. ⎯ A démarche de Michel
Foucault, 86.
CAPÍTULO 2
O PROJETO GENEALÓGICO ................................ 87
O poder, 87. ⎯ Genealogia e história, 89.
CAPÍTULO 3
MORTO DEUS, DE COMO PENSAR ........................... 93
A marca da Modernidade, 93. ⎯ O ser da filosofia
moderna, 94. ⎯ A Modernidade, 98. ⎯ Ontologia de
nós mesmos, 102. ⎯ O trabalho filosófico, 104.
TERCEIRA PARTE
A INSUSTENTABILIDADE DO HOMEM
Introdução ......................................... 107
CAPÍTULO 1
A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA ..................... 108
Doença mental e personalidade, 108. ⎯ A história da
loucura, 110. ⎯ A experiência trágica, 112.
CAPÍTULO 2
LINGUAGEM E LITERATURA .................... 115
Tragédia e literatura, 115. ⎯ Nietzsche, Freud,
Marx, 116. ⎯ O século XVI como referência, 117. ⎯
Da ruptura do século XIX e das novas possibilidades,
117. ⎯ Uma tarefa infinita, 120. ⎯ A região
perigosa, 120. ⎯ Da natureza dos signos, 122. ⎯ O
visível e o dizível, 124. ⎯ O ser da linguagem, 125.
⎯ A conjunção linguagem, conhecimento e morte, 129.
12
CAPÍTULO 3
DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM ............... 131
Da morte de Deus, 131. ⎯ Da morte do homem, 132.
INTRODUÇÃO
POR UMA FILOSOFIA DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
2
FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses: une archéologie des sciences
humaines. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
trad. Salma Tannus Muchail. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 402.
14
3
Idem, p. 404
4
Idem, p. 399.
15
5
Idem, p. 403
18
PRIMEIRA PARTE
O SOL NIETZSCHIANO
Introdução
Falar sobre o pensamento de Nietzsche para depois falar dos
pontos de Foucault e do Nietzsche ligado a Foucault, eis o nosso
roteiro, no qual as temáticas da morte de Deus e da morte do homem
aparecem de forma capital. Dentro deste todo, esta parte funciona
como uma preparação, em que nos preocuparemos em fazer surgir o “sol
nietzschiano” que iluminará todo o exame posterior. Aqui, estaremos
particularmente interessados em três temas de Nietzsche, a saber: o
pensamento trágico, a crítica à consciência, à linguagem e à razão,
e a morte de Deus.
Façamos, pois, uma incursão no pensamento deste alemão
8Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900), o filósofo-filólogo
criador de Zaratustra e de outros tantos livros e textos de
filosofia, criador, a bem dizer, de uma nova atitude diante da vida,
de uma nova filosofia, sem deixar, contudo, de demolir umas tantas
outras, razão pela qual passava também por aquele que filosofava com
o martelo.
Busquemos interpretar Nietzsche, penetrando por seu mundo
ainda que de uma maneira provisória, para fazer surgir “o sol da
grande pesquisa nietzschiana” ⎯ assim o escrevera Foucault! ⎯, eis
o trabalho neste início.
20
CAPÍTULO 1
O PENSAMENTO TRÁGICO
O Nascimento da Tragédia
Em 1871, quando Nietzsche tinha 27 anos de idade e já dois
de professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia,
aparece o seu primeiro livro: O Nascimento da Tragédia6. Desde então
constitui-se a definição da natureza do trágico em tema central da
filosofia de Nietzsche, tema este que irá relacionar-se intimamente
com todos os demais, inclusive com o da morte de Deus, conforme
iremos ver.
Reveste-se, pois, de muita importância o nosso ponto de
partida ⎯ interpretar o trágico em Nietzsche ⎯ porque será no
fenômeno do trágico que este percebe a natureza da realidade. Nele,
o tema estético adquire condição de princípio fundamental. A arte, a
poesia trágica, torna-se a chave do mundo. Nietzsche serve-se de
categorias estéticas para formular a sua visão de mundo e isso
confere ao Nascimento da Tragédia uma natureza toda particular em
que o fenômeno da arte é colocado no centro. Para Nietzsche, só com
os olhos da arte consegue o pensador mergulhar o seu olhar no
coração do mundo, e é a arte trágica, a tragédia antiga, que possui
este olhar penetrante.
6
NIETZSCHE, F.. O Nascimento da Tragédia. ⎯ Citarei pela edição Friedrich
Nietzsche Sämtliche Werke, Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino
Montinari, Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, dtv de Gruyter, Dünndruck-
Ausgabe. KSA 1, Die Geburt der Tragödie.
21
O mito
Para chegarmos ao pensamento trágico da forma como
pretendemos, nada mais interessante do que lembrarmos da lenda grega
antiga de Ariadne e Dionísio, lenda a que Nietzsche recorreu com
grande inspiração.7
Diz a lenda que Ariadne, filha de Minos e Pasífae, vendo o
belo herói Teseu encerrado no labirinto para ser devorado pelo
Minotauro, concebeu por ele tão violento amor que não hesitou em
salvá-lo. Deu-lhe um novelo de linha com o qual, desenrolando-o à
medida que avançava, logrou sair das inúmeras voltas do labirinto
depois de haver matado o monstro. Teseu fugiu da ilha de Creta com
sua libertadora e a desposou, mas logo depois a abandonou na ilha de
Naxos. Dionísio, que por ali passava, veio então consolá-la da
infidelidade de Teseu, apaixonando-se pela infeliz princesa. Fez-lhe
presente de uma bela coroa de ouro e pedrarias, obra-prima de
Vulcano, casando-se com ela. Mas Ariadne era mortal, contrariamente
a Dionísio que era imortal, o deus da embriaguez e do desembaraço.
Assim, diz também a lenda que, após a morte de Ariadne, sua coroa
foi lançada aos céus em sua lembrança,8 tendo as pedras da coroa de
Ariadne se convertido em belas estrelas do céu.
7
NIETZSCHE, F.. Ditirambos de Dionisos, Lamento de Ariadne. N.S.W., KSA 6,
Klage der Ariadne, s.398. “Ich bin dein Labyrinth...”
8
V. verbete Baco, In: SPALDING, Tassilo Orpheu. Dic. Mitologia Grego-Latina.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1965, e Dioniso ou Baco: o deus do êxtase e do
entusiasmo, cap. IV In: BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, II.
Petrópolis: Vozes, 1995. p.113.
22
9
Interessante é observar que, presentemente, o eterno retorno tem lugar numa
cosmologia derivada de uma concepção física e matemática do existente como dando-se
em um âmbito fechado, o chamado “espaço-tempo”, um espaço quadridimensional tendo
23
por quarta dimensão o tempo. Este espaço contém todos os acontecimentos possíveis,
acontecimentos esses caracterizados por pontos deste espaço.
10
NIETZSCHE, F.. Considerações Extemporâneas, Da utilidade e do incoveniente
da história para a vida. ⎯ N.S.W., KSA 1, Unzeitgemässe Betrachtungen II, Vom
Hutzen und Nachteil der Historie für das Leben, s.254, Z.6, “So liebt jeder
Handelnde seine That unendlich mehr als...”
11
Nietzsche explica em Ecce Homo que o eterno retorno é a “suprema fórmula
de afirmação que alguma vez se atingiu”, fórmula esta que teria lhe surgido
em agosto de 1881 na concepção do Zaratustra. Há que se considerar, todavia,
que as idéias fundamentais de Nietzsche estão em relação umas com as outras,
razão pela qual fazemos esta menção ao tema neste ponto do trabalho em que
estamos tratando do pensamento trágico.
24
12
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, terceira parte, O convalescente ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, ein Buch für Alle und Keinen, Dritter
Teil, Der Genesende 2, s.272, z. 31, “Alles geht, Alles kommt zurück; ewig
rollt das Rad des Seins ...”
25
capacitado; se alguém era bem sucedido, era porque um deus fora seu
amigo.
Entre os gregos antigos, os homens pareciam querer a vida
daquela maneira transcorrendo eternamente, como para com os seus
deuses. Esses deuses morreram? Sim, morreram. “Morreram de rir ao
escutar um Deus dizer que era o único”13, escreveu Nietzsche.
Dentre os deuses do Olimpo havia Apolo, o deus da bela
figura. Foibos Apolon; o nome procede da raiz fós, “luz” e do
substantivo bíou, “vida”, Luz da Vida. Apolo não era só o deus do
sol, mas o próprio sol. É o mais radioso dos Imortais. Vivifica
todos os seres mas igualmente queima e desseca tudo; deus fecundo e
purificador é, da mesma forma, o deus destruidor dos exércitos,
sempre vitorioso, o deus da morte súbita. Grande curador e médico, é
pai de Esculápio, o deus da Medicina. Apolo proporciona calma às
agitações do espírito e dá paz. Apolo é o deus da harmonia e da
música apaziguante e da inspiração poética. Comanda as Musas, é deus
das profecias, inspira as Sibilas e Pitonisas em Delos, Tênedos,
Claros, Pátara, Cumas, sobre o monte Palatino e ainda em muitos
outros lugares menos importantes. Consultavam-no ao fundar toda nova
colônia, ou ao decretar leis importantes. Apolo estava presente em
todos os atos da vida pública.
Dionísio, por sua vez, o deus de Nisa ⎯ Baco, para os
romanos ⎯ era o deus do vinho, filho de Júpiter e Semele. Criado
pelas Horas e pelas Ninfas longe do Olimpo e da ciumenta Juno, no
monte Nisa, instruíram-no Sileno e as Musas. Ao crescer, empreendeu
a conquista da Índia e do território compreendido entre a Índia e a
Grécia. Consta que passou pelo Egito. Acompanhado de um grande
cortejo de homens e mulheres, armados com o tirso, batendo em
tambores e seguido pelas Ninfas, pelos Sátiros e pelo próprio deus
Pã, deus dos pastores, dos rebanhos, e das florestas, marchava
Dionísio à frente do cortejo como um vencedor triunfante. Submeteu
ao seu império todos os povos, ensinando-lhes a cultura da vinha e o
13
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, terceira parte, Dos renegados ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, Dritter Teil, Von den Abtrünnigen,
s.230, z.4, “Mit den alten Göttern gieng es ja lange schon zu Ende...”
26
14
Cf. SPALDING, T.O., p. 37 e BRANDÃO, J.S., p. 113, Op. cit.
27
Sócrates
Eis que na vida dos gregos haveria de existir Sócrates, o
novo opositor a Dionísio. Não é Apolo que se opõe ao trágico ou
através de quem o trágico morre, mas Sócrates, e este não é apolíneo
nem dionisíaco, mas teórico. Enquanto os instintos eram força
afirmativa e criadora para os homens produtivos de outrora, e a
consciência era força crítica e negativa, em Sócrates ocorre uma
inversão: nele, é a consciência que se torna criativa e os
instintos, negativos. Sócrates torna-se o primeiro grande gênio da
decadência porque opõe a idéia à vida, julga a vida pela idéia,
postula a vida como algo que deve ser julgado, justificado,
resgatado pela idéia. O que ele nos pede é que sintamos a vida como
que esmagada sob o peso do negativo e, assim, indigna de ser
desejada por si mesma, experienciada por si mesma. Sócrates, dessa
15
A teoria da aliança de Apolo e Dionísio na tragédia é apresentada por
Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. ⎯ N.S.W., KSA 1, Die Geburt der
Tragödie.
28
Dionísio e o crucificado
À antítese Dionísio e Apolo, e à complementaridade Dionísio
e Ariadne, e à oposição Dionísio e Sócrates, substitui-se aqui a
mais significativa oposição: Dionísio e o Crucificado, Dionísio e
Cristo, Dionísio e o cristianismo.
16
V. diálogo Fédon, de Platão, em que Sócrates é apresentado na prisão,
conversando sobre a morte. O diálogo relata o caminho socrático, retomado e
desenvolvido por Platão: o conhecimento como reminiscência e a doutrina das
idéias.
17
A questão do Socratismo é apresentada por Nietzsche em O Nascimento da
Tragédia, compreendendo a questão do socratismo da moral, do socratismo
estético, do socratismo lógico e da luta contra a tragédia esquiliana ⎯
N.S.W., KSA 1, Die Geburt der Tragödie.
29
18
Estamos aludindo às estrofes iniciais do Samba da Bênção de Vinicius de
Moraes a título de ilustração, um brasileiro exemplo que, a nosso ver, muito
bem exemplifica o pensamento trágico.
30
19
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, parte 3, Do espírito de gravidade,
numa alusão ao burro que zurra fazendo I - a, I - a, que soa como a palavra
alemã Ja, que quer dizer “sim” ⎯ KSA 4, s.244, Z.1, “Alles aber kauen und
verdauen ⎯ das ist eine rechte Schweine-Art! Immer I-a sagen ⎯ das lernte
allein der Esel, und wer seines Geistes ist! ⎯”.
31
Do niilismo
O problema comum entre a ideologia cristã e o pensamento
trágico é o sentido da existência. Eis aí o problema supremo da
filosofia, que pode ser enunciado de outra forma: justiça. O que é a
justiça? Será a justiça obra de Deus? Mas que Deus? Deus morreu.
Nesta longa história, a do sentido da existência, serviu-se
do sofrimento como um meio para provar a injustiça da existência e
ao mesmo tempo para lhe encontrar uma justificação superior e
divina. A existência é culpada na medida em que sofre; mas porque
sofre, expia e é resgatada. Mas é Dionísio quem permite ver a
20
“Se eu te amo, tome cuidado!” Referimo-nos, como ilustração, ao trecho La
Bohême do primeiro ato de Carmen, ópera em quatro atos com libreto de Henri
Meilhac e Ludovic Halévy, baseado no romance Carmen de Prosper Mérimée e
música de Georges Bizet, estreada a 3 de março de 1875 no Teatro Nacional da
Opéra-Comique de Paris. Nietzsche admirava muito esta ópera, tendo sobre ela
escrito que lhe parecia perfeita. “Ela se mostra ligeira, ágil, tem polidez.
Ela é amável (...) ‘Tudo o que tem mérito é fácil, e os deuses têm os pés
ligeiros’: esta é a primeira tese de minha estética. (...) Ela é rica. Ela é
precisa. (...) Ter-se-á alguma vez escutado sobre o palco entonações de uma
dor mais trágica?”, O Caso Wagner, parágrafo 1 ⎯ N.S.W., KSA 6, Der Fall
Wagner I, s.13, z. 22, “Sie kommt leicht, biegsam, mit Höflichkeit daher. Sie
ist liebenswürdig...”.
32
21
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, primeira parte, Dos trasmundanos ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, Ester Teil, Von den Hinterweltlern,
s.35, z.4, “Eines leidenden und zerquälten Gottes Werk schien mir da die
Welt”.
33
Testamento que nos metia medo, agora está o Filho que exige apenas
que Nele creiamos e que O amemos, como Ele nos ama. Além disso, pede
que nos tornemos reativos para evitar o ódio.23
Na medida em que a vida reativa se estabelece, um estranho
resultado ocorre: somos nós culpados! Matamos Deus e nos colocamos
em seu lugar! A vontade de nada não tolera sequer Deus. Impede-o de
ressuscitar, senta-se sobre a tampa do túmulo e grita: sou Deus! Eis
aí o homem-deus, não mais o Deus-Homem, o homem europeu, o homem
ocidental moderno e contemporâneo. Eis aí o homem culpado por
natureza, culpado em tudo. Eis que essa culpa se interiorizou de tal
modo em nós que nos sentimos culpados por viver. Não é assim que nos
fazem sentir desde criança?
Quanto a Cristo, o Jesus de Nazaré, este teria sido um
budista. O seu tipo pessoal, a “boa nova” que ele trazia apontava
para a supressão do pecado, vale dizer, a supressão da vontade, a
ausência do ressentimento e do espírito de vingança, a recusa de
qualquer guerra, a revelação de um reino do coração, e sobretudo a
aceitação da morte. Jesus teria sido um Buda num terreno pouco
hindu. Jesus era dócil e doce, fornecia uma nobreza ao niilismo
passivo, ao nada de vontade, quando os homens de sua terra estavam
no niilismo negativo (vontade de nada), e quando já se alcançava o
niilismo reativo (culpa, má consciência, ressentimento).24
Terá sido trágica a morte de Cristo? Agora pode-se
compreender que não, segundo o sentido aqui dado ao trágico.
Sobretudo porque esta morte não aponta para a afirmação da alegria
do Múltiplo; pelo contrário, aponta para a negação pela tristeza do
Mesmo.
Mas, quem mais poderá ser portador do pensamento trágico,
além de Dionísio?
23
Idem
24
NIETZSCHE, F.. O Anticristo, par.31, 32 e 33 ⎯ N.S.W., KSA 6, Der
Antichrist 31, 32,33, s. 201, 203, 205.
35
Zaratustra
Zaratustra, que depois de gozar por dez anos do espírito de
solidão na montanha, falando ao sol, diz que, assim como a abelha
satura-se do mel juntado em demasia, aborreceu-se de sua sabedoria,
e precisa de mãos que para ele se estendam. Resolve, assim, descer
da montanha25 para ensinar aos homem o além-do-homem ⎯ o Übermensch
⎯, o super-homem.
O homem é algo que deve ser superado
⎯ dizia ele para os homens da cidade. Que fizestes
para superá-lo? ⎯ perguntava. O homem é uma corda,
atada entre o animal e o além-do-homem ⎯ uma corda
sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-
caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-
se e parar. O que é grande no homem é que ele é uma
ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é
que ele é um passar e um sucumbir. Amo Aqueles que não
sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são
os que atravessam ⎯ dizia ele.26
25
Interessante é observar a similitude entre o que se passa com Zaratustra e
o mito da caverna contado por Platão em A República, uma similitude de
sentidos diferente e opostos. Para Platão, o esplendor das essências só é
dado a contemplar e fixar na alma a quem, rompendo os grilhões, se tenha
elevado além das trevas da caverna até o reino da luz. Em Nietzsche, não é
assim. A sabedoria de Zaratustra não é fruto da contemplação de uma luz que
vem de fora, uma luz dada e preexistente. Zaratustra tem o sol como
companheiro em sua labuta, e o mel de sua sabedoria é como o da abelha:
fruto de um trabalho, de um esforço de juntar e de elaborar o que foi
juntado. Por outro lado, enquanto o homem iluminado de Platão habitua-se às
clarezas ideais e não mais consegue distinguir as sombras do mundo de baixo,
em Zaratustra não é assim. Este enriquece-se com sua labuta a ponto de
saturar-se e, superabundante, sente necessidade de ir ter com os homens para
ensinar o que aprendeu: a superação de si mesmo.
26
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, Prólogo, par. 4 ⎯ N.S.W., KSA 4,
Also sprach Zarathustra, Zarathustra’s Vorrede 4, s.16, z.25, “Der Mensch ist
ein Seil geknüpft zwischen Thier und Übermensch...”
36
CAPÍTULO 2
A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO
29
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, 354, Do gênio da espécie ⎯ N.S.W., KSA 3,
Die fröhliche Wissenchaft, 354, Vom “Genius der Gattung”, s.590, z.11, “Das
Problem des Bewusstseins ...”
30
Idem, ibidem. z.26, “Wozu überhaupt Bewusstsein, wenn es der Haupsache
überflüssig ist?”
40
31
NIETZSCHE, F.. Aurora, livro segundo, par. 115, O pretenso eu ⎯ N.S.W.,
KSA 3, Morgenröthe, Zweites Buch 115, Das Sogenannte “Ich”, s.107, z.9, “Die
Sprache und die Vorurtheile, auf denen die Sprache aufgebaut ist...”
32
NIETZSCHE, F.. Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, par.26
⎯ N.S.W., KSA 6, Götzen-Dämmerung, Streifzüge eines Unzeitgemäsen 26, s.128,
Z.20, “Wir schätzen uns nicht genug mehr, wenn wir uns mittheilen.”.
42
Conhecimento e idéia
Referindo-se à questão do conhecimento, Nietzsche observa
que não dispomos propriamente de órgãos para o mesmo, para a
“verdade”. Nós simplesmente “sabemos” (ou pelo menos acreditamos
saber, nós nos figuramos) até o ponto em que pode ser útil ao
rebanho humano, à espécie, sendo que mesmo a “utilidade” não é
afinal de contas mais que uma crença, produto da imaginação e talvez
essa “estupidez nefasta que um dia nos fará morrer”.
Para Nietzsche, o que está por trás do desejo de
conhecimento é o desejo de descobrir entre as coisas estranhas,
33
NIETZSCHE, F.. Humano, demasiado humano, Segunda Parte, par.105 ⎯ N.S.W.,
KSA 2, Menschliches, Allzumenschliches II, 105, s.421, Z.25, “Dass die
Sprache nicht zur Mittheilung des Gefühls gegeben ist, sieht man daraus ...”
43
inabituais, incertas, algo que não nos inquiete mais ⎯ será, pois,
o medo, enquanto instinto, que nos leva a conhecer.34
Referindo-se às filosofias do idealismo35, observa que
considerar o mundo como “conhecido” assim que nos conduza à “idéia”
é ter na “idéia” algo conhecido, habitual, algo do qual se tem muito
menos medo. É que as filosofias da “idéia” acreditam que aquilo que
é conhecido pode ser mais facilmente reconhecido que aquilo que é
estranho ⎯ trata-se de partir do “mundo interior” e dos “fatos da
consciência”, pois lá está o mundo que conhecemos. Conhecemos? Para
Nietzsche, estamos aqui diante de um grande equívoco, pois o que é
tido por conhecido é o mais habitual e o habitual é aquilo que há de
mais difícil de reconhecer como problema, como coisa desconhecida. O
habitual é nossa interioridade, essa que é objeto da psicologia e da
crítica dos elementos da consciência enquanto ciência. O fato da
grande superioridade das chamadas “ciências naturais” (biologia,
física, química, etc...) em relação às ciências voltadas para nossa
interioridade (ciências humanas) consiste no fato de que aquelas
tomam por objeto elementos estranhos, ou seja, exteriores, ou ainda,
não habituais. Essa superioridade serve para demonstrar a
dificuldade de conhecer o que é mais habitual, ou seja, o interior.
Eu penso, eu quero
Quanto às crenças nas certezas imediatas como o “eu penso”
ou ainda o “eu quero”36, Nietzsche observa que trata-se de pura
34
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, par.355, A origem de nossa noção de
conhecimento. ⎯ N.S.W., KSA 3, Die fröliche Wissenschaft 355, s.594, z.10,
“Sollte es nicht der Instinkt der Furcht sein, der uns erkennen heisst?”
35
O termo idealismo foi introduzido na linguagem filosófica na metade do
século XVII por Leibniz e inicialmente atribuído à doutrina platônica das
idéias e a outros autores para quem a realidade é a forma ou a idéia. A
palavra é usada prevalentemente no significado de idealismo gnosiológico ou
epistemológico e idealismo romântico. No sentido gnosiológico o termo foi
empregado pela primeira vez por Wollf, denominando idealistas aqueles que
admitem que os corpos têm somente uma existência ideal e por isso negam a
existência real dos próprios corpos e do mundo. No sentido romântico, o
idealismo constitui o nome da grande corrente filosófica romântica que se
originou na Alemanha depois de Kant, tendo por fundadores Fichte e Schelling,
e que teve numerosas ramificações na filosofia moderna e contemporânea. V.
ABBAGNANO, Nicola. V. verbete “Idealismo” In: Dicionário de Filosofia. São
Paulo: Mestre Jou, 1982.
36
NIETZSCHE, F.. Para além do Bem e do Mal, par.16 ⎯ N.S.W., KSA 5, Jenseits
von Gut und Böse, 16, S.29, Z.18, “Es giebt immer noch harmlose Selbst-
Beobachter, welche glauben, dass es ‘unmittelbare Gewissheiten’ gebe, zum
44
Beispiel ‘ich denke’, oder, wie es der Aberglaube Schopenhauer’s war, ‘ich
will’...”.
37
Contradição que ocorre entre um termo e o que se lhe acrescenta. Por
exemplo, entre o substantivo e seu adjetivo como em calor frio, beleza feia,
vivente imortal.
38
NIETZSCHE, F.. Para além do Bem e do Mal, par.17 ⎯ N.S.W., KSA 5, Jenseits
von Gut und Böse, 17, s.31, z.11, “Denken ist Thätigkeit, zu jeder Tkätigkeit
gehört Einer, der Thätig ist, folglich ⎯”
45
Verdade e aparência
Para Nietzsche, o caráter errôneo do mundo onde acreditamos
viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode
apreender. Assim, não passa de um preconceito moral que a verdade
tenha mais valor do que a aparência.39 A esse respeito, Nietzsche
observa que se quisesse abolir por inteiro o mundo “aparente”,
também da “verdade” não restaria nada. Nada nos obriga a supor que
há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”. Para
Nietzsche, basta a suposição de graus de aparência, e como que
sombras e tonalidades do aparente, mais claras e mais escuras ⎯
diferentes valores, para usar a linguagem dos pintores. Nesse
sentido, ele nos pergunta: por que não poderia o mundo que nos
concerne ser uma ficção? Mas a ficção não requer um autor? Por quê?
Esse “requer” também não pertenceria à ficção? Por que não usar de
alguma ironia com relação ao sujeito, como em relação ao predicado e
ao objeto? Por que o filósofo não poderia erguer-se acima da
credulidade da gramática? E Nietzsche ironiza, lembrando que
aprendemos a língua, a gramática ⎯ e as ficções nela incorporadas
⎯ com as babás, governantas e preceptoras (como era comum no seu
tempo), de modo que o filosofar tradicional estaria preso à “fé das
governantas”. E, mesmo pedindo todo o respeito àquelas respeitáveis
profissionais, incita-nos a abjurarmos dessa fé. Antigamente
acreditava-se na “alma”40, observa Nietzsche, assim como se
acreditava na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que “eu”
penso é condição; “penso” é predicado e condicionado ⎯ pensar é uma
atividade para a qual um sujeito tem que ser pensado como causa.
Tentou-se então, com tenacidade e astúcia dignas de admiração,
enxergar uma saída nessa teia. E então Nietzsche pergunta se não
seria verdadeiro fazer o contrário: admitir o “penso” como condição
39
Idem, par.34 ⎯ J.G.B.,34, s.53, z.22, “Warum nicht? Es ist nicht mehr als
ein moralisches Vorurteil, dass Wahrheit mehr ist als Schein...”
40
Idem, par.54 ⎯ J.G.B., 54, s.73, z.13, “Ehemals nämlich glaubte man an
‘die Seele’, wie man an die Grammatik und das grammatische Subjekt
glaubte...”
46
Um ato de autoridade
Mas, como se cunham os nomes e as palavras? Quem o faz?
Cunhar nomes para os valores é obra de quem cria valores ⎯ que lhes
importa a utilidade do rebanho! Este é um ato de autoridade.
Exemplificando, ao buscar a fonte do conceito “bom”, Nietzsche foi
observar que “foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos,
superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a
si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição
a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar, plebeu”.44 Assim,
para Nietzsche,
43
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, O convalescente, par.2 ⎯ N.S.W.,
KSA 4, Der Genesende, 2, s.272, z.9, “ ⎯ Oh meine Thiere, antwortete
Zarathustra, schwätzt also weiter und lasst micht zuhören!”
44
NIETZSCHE, F.. Genealogia da Moral, 1ª dissertação, par.2 ⎯ N.S.W., KSA 5,
Z.G.M., s.259, z.16, “Vielmehr sind es ‘die Guten’ selber gewesen ...”
45
Idem, ibidem ⎯ s.260, z.1, “Das Herrenrecht, namen zu geben, geht so
weit...”
49
46
Idem, par.4 ⎯ s.261, z.26, “...eine Entwicklung, die immer parallel mit
jener anderen läuft, welche ‘gemein’, ‘pöbelhaft’, ‘niedrig’ schliesslich in
den Begriff ‘schlecht’ übergehen macht.”
47
Idem, par.7 ⎯ s.267, z.22, “die Elenden sind allein die Guten, die Armen,
Ohnmächtigen, Niedrigen sind allein die Guten...”
50
48
Idem, par.11 ⎯ s.277, z.14, “der ‘zahme mensch’, der Heillos-
Mittelmässige und Unerquickliche ...”
49
Idem, ibidem ⎯ s. 276, z.20, “der Sinn aller Cultur sei, aus dem
Raubthiere “Mensch” ein Zahmes und civilisirtes Thier, ein Hausthier
herauszuzüchten...”
50
Idem, par.13 ⎯ s.279, z.9, “⎯ Von der Stärke verkangen, dass sie sich
nicht als Stärke äussere, ...”
51
A razão na filosofia
Sócrates, o pensador da Antigüidade, mestre de muitos
outros inclusive de Platão: Nietzsche observa que o mesmo fascinava,
pois parecia ser médico, um salvador. Mas nele havia um erro: a sua
crença na racionalidade a todo preço; Sócrates foi um mal-entendido;
a inteira “moral-da-melhoria”, também a cristã, foi um mal-
entendido.
52
Nietzsche refere-se a Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia e Melisso de
Samos, os chamados eleatas para quem o ser é indivisível, imóvel, acabado. É
sobretudo na filosofia de Parmênides que preludia-se o tema da ontologia. O
fato de a experiência não lhe apresentar em nenhuma parte um ser tal como ele
o pensava, mas, do fato de que podia pensá-lo, Parmênides concluía que ele
precisava existir: uma conclusão que repousa sobre o pressuposto de que nós
temos um órgão do conhecimento que vai à essência das coisas e é independente
da experiência. Segundo Parmênides, o elemento de nosso pensamento não está
presente na intuição, mas é trazido de outra parte, de um mundo extra-
sensível ao qual nós temos um acesso direto através do pensamento. Parmênides
explica o pensamento e o ser como idênticos. V. A Filosofia na Época Trágica
dos Gregos, par.9, 10, 11, 12, 13 ⎯ N.S.W., KSA 1, s.835 bis 851, “Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen”, 9, 10, 11, 12, 13.
53
NIETZSCHE, F.. Crepúsculo dos Ídolos, A razão na filosofia, par.5. ⎯
N.S.W., KSA 6, Götzen-Dämmerung, Die ‘Vernunft’ in der Philosophie, s.77,
z.15, “Die Sprache gehört ihrer Entstehung nach in die Zeit der
rudimentarsten Form von Psychologie ...”
53
CAPÍTULO 3
A MORTE DE DEUS
Antecedentes
A morte de Deus já havia sido formulada no âmbito da
filosofia antes de Nietzsche. Hegel (1770-1831) e Feuerbach (1804-
1872) já a haviam pensado. Mas Nietzsche é aquele a quem as pessoas
mais a associam, talvez pela maneira vigorosa e ao mesmo tempo cheia
de novas perspectivas com que ele a formulou.
Hegel, ao dizer “Deus está morto”, sugere, todavia, a
sobrevivência de Deus à morte pela via dialética da “morte da
morte”. Em Hegel, o termo “morte” quer referir-se tanto à morte em
sentido literal e sua significação para as nossas vidas, quanto à
morte como possibilidade de uma nova síntese, pela via da “morte da
morte”, ou seja, a “negação da negação”, o caminho do espírito.
Hegel interessou-se pelas mortes de Cristo e de Sócrates. A morte de
Cristo, argumentou ele, tem uma significação teológica e metafísica
que falta à morte de Sócrates. Apresenta, numa forma intuitiva, a
reconciliação da dicotomia entre Deus e o mundo. Por um lado, Deus
apresenta-se em forma finita e sofre uma morte dolorosa, a qual
revela que o próprio Deus envolve finitude e negação. Por outro
lado, sofrer e depois derrotar a morte ⎯ a que todos os homens estão
sujeitos ⎯ mostra que o espírito do homem pode triunfar sobre a
morte, sendo sua individualidade finita e contingente suprassumida
ou transfigurada em universalidade divina.
54
54
V. verbete Morte e imortalidade in: INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 228, e Nota 11 do Prólogo a
H.F.W.Hinrichs, A Religião na Relação Interna com a Ciência in: G.W.F.Hegel,
Prefácios. Lisboa, Imprensa Nacional ⎯ Casa da Moeda, 1990, p.229.
55
55
V. verbete Feuerbach, Ludwig In: Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia,
Barcelona, Ariel; e FEUERBACH, Ludwig. Aportes para la Critica de Hegel,
Buenos Aires, La Pleiade, 1974.
56
56
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença, 1983.
57
NIETZSCHE, F.. Aurora, 424, Para quem existe a verdade ⎯ N.S.W., KSA 3,
Morgenröte, Fünftes Buch,424, Für wen die Wahrheit da ist, s. 261, z. 5,
“Auch die grieschichen Götter verstanden nicht zu trösten, ...”
57
58
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, 125, O insensato ⎯ N.S.W., KSA 3, Die
fröhliche Wissenchaft, Drittes Buch, 125, Der tolle Mensch, s. 480, z.22,
“ ⎯⎯Habt ihr nicht von jenem tollen Menschen gehört ...”
59
Idem, 108, Lutas novas. ⎯ KSA 3, Dritten Buch, 108, Neue Kämpfe, s. 467,
Z.3, “ Nachdem Buddha todt war...”
60
Idem, Livro quarto, 343, Nossa serenidade. ⎯ KSA 3, Die fröhliche
Wissenchaft, Fünftes Buch, 343, Was es mit unserer Heiterkeit auf sich hat.
“ ⎯⎯Das gröste neuere Ereigniss, ⎯ dass `Gott todt ist’, dass der Glaube an
den christlichen Gott unglaubwürdig geworden ist.”
58
61
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, Prólogo 2. ⎯ N.S.W., KSA 4, Also
Sprach Zarathustra, ein Buch für Alle und Keinen, Zarathustra’s Vorrede, 2,
s.14, z.7, “Sollte es denn möglich sein! Dieser alte Heilige hat in seinem
Walde noch Nichts davon gehört, dass Gott todt ist!”
59
62
Idem. Prólogo 4. ⎯ N.S.W., KSA 4, Also Sprach Zarathustra, ein Buch für
Alle und Keinen, Zarathustra’s Vorrede, 4, s.17, z.7, “Ich liebe Die, welche
nicht erst hinter den Sternen einen Grund suchen...”
63
MACHADO, Roberto. Zaratustra, Tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997.
64
Op. Cit., Prólogo 5 ⎯ Zarathustra’s Vorrede 5, s.18, z.27, “...sie
verstehen mich nicht, ich bin nicht der Mund für diese Ohren”.
60
Duas alternativas
À cultura moderna, marcada pelo niilismo da morte de Deus
ou pela desvalorização dos valores supremos, dois caminhos se abrem:
65
Idem, Prólogo 5. ⎯ Zarathustra’s Vorrede 5, s.19, z.15, “Wehe! Es kommt
die Zeit, wo der Mensch nicht mehr den Pfei seiner Sehnsucht über den
Menschen hinaus wirft...
66
Zaratustra não utiliza o termo “niilista” para caracterizar isso que o
último homem é. É válido, todavia, entender o último homem de Zaratustra como
o homem ocidental niilista de nossos dias, este piolho, esta doença de pele
da terra.
61
O espírito de gravidade
O caráter lúdico e arriscado da existência humana
evidencia-se com a morte de Deus. Sem Deus, o risco e o jogo são por
si mesmos, estão na vida, são a vida, não encontram justificação.
Zaratustra vivenciou isso na praça do mercado, quando se dirigiu aos
homens. Um equilibrista, que fazia suas demonstrações no alto de uma
corda bamba, cai estatelado no chão e morre. O infortúnio fora em
conseqüência do ato de um palhaço que desequilibrara o homem com os
seus brados. “Que fazes aqui entre as torres?”, gritara o palhaço
para o equilibrista. “Dentro da torre é o teu lugar! É lá que
deveriam trancar-te, a ti, que impedes a passagem de alguém melhor
do que tu!”. Esta provocação causara o espanto do homem e o fizera
cair. Zaratustra tudo vê e socorre o homem. “Que diabo fazes aqui?”,
disse o moribundo. “Desde muito eu sabia que o Diabo me daria uma
rasteira. Agora ele me arrasta para o inferno; pretendes impedí-lo?”
Zaratustra lhe responde: “Não existe nada daquilo que disseste: não
existe o Diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais
depressa do que o teu corpo; portanto não receie nada!” O homem
ergueu os olhos desconfiado. “Se o que dizes é verdade”, falou
depois, “eu, então, nada perco, ao perder a vida. Não sou muito mais
do que um bicho, que ensinaram a dançar à força de pancadas e pouca
comida”. E Zaratustra retruca: “Oh, não! Fizeste do perigo o teu
62
A morte do homem
“Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser
superado. Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora,
criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa
grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o
homem?”68, assim começara o discurso de Zaratustra na praça do
mercado. Trata-se de uma morte o que Zaratustra propõe: a morte do
homem. Morte como apagamento de um passado, morte-superação, morte-
renascimento.
Aqui, fica bem claro por que a morte de Deus implica na
morte do homem: uma vez morto Deus, ao homem não resta senão morrer.
Pois, não são duas as alternativas que se põem? Tornar-se o último
dos homens, isto é, este que já é o fim em si próprio, ou tornar-se
diferente do que é. Mais do que trocar de pele, renascer,
transmutar-se, ser outro, não mais homem, mas outra coisa, super-
homem.
67
Idem, Prólogo 6. ⎯ Zarathustra’s Vorrede 6, s.22, z.16, “... du hast aus
der Gefahr deinen Beruf gemacht, daran ist nichts zu verachten.”
68
Idem, Prólogo 3. ⎯ Zarathustra’s Vorrede 3, s.14, z.13, “Ich lehre euch den
Übermenschen. Der Mennch ist Etwas, das überwunden werden soll.”
63
A morte da divindade
Interessante é observar que Nietzsche emprega a idéia da
morte da divindade, quer se referindo à morte de Deus, quer à morte
dos deuses. Aqui, examinamos três pontos a partir dos quais
Nietzsche vê a questão.
O primeiro ponto pode ser associado a uma interpretação
histórica nietzschiana, ao ver a ascensão e derrocada dos deuses
como associadas a fenômenos históricos humanos, demasiado humanos.
Nesta acepção, as eras históricas dos homens engendram seus deuses.
A esse respeito, Nietzsche refere-se particularmente a duas
transições: a que marcou a desvalorização do Velho Deus dos hebreus,
na figura do Pai, e a valorização do Filho; e a transição que marcou
a derrocada dos deuses greco-romanos e a ascenção do cristianismo no
Ocidente. Fazendo uma alusão a Feuerbach, para quem os deuses são
criação dos homens, podemos pensar esta primeira acepção como a de
uma visão feuerbachiana da morte de deus.
O segundo ponto é o que acabamos de examinar neste
capítulo: a morte de Deus como fenômeno da era moderna, e que
implica na morte do homem. Trata-se aqui da seguinte questão: o
homem ocidental niilista e ateu só tem uma alternativa: desaparecer.
Aqui, duas possibilidades: uma, negativa: o último homem; outra,
positiva: tornar-se um criador, deixar de ser homem e transmutar-se
em super-homem.
Finalmente, o terceiro ponto deriva do que também já foi
examinado: Deus como ilusão da consciência, da razão e da linguagem,
morte de Deus como conseqüência da percepção de que se trata de um
erro gramatical.
65
SEGUNDA PARTE
MICHEL FOUCAULT, CRÍTICO DA RACIONALIDADE MODERNA
Introdução
A partir deste ponto, queremos repassar sobre a obra de
Michel Foucault para dar conta de que este, nitidamente influenciado
pela leitura interpretativa de Nietzsche, concentra-se numa crítica
à modernidade, assim como Nietzsche o fizera. Nietzsche, como vimos,
vale-se da oposição do pensamento trágico ao pensamento racional,
da crítica à consciência e à linguagem, bem como da constatação da
morte de Deus e da morte do homem, para pôr em questão a própria
racionalidade moderna encarnada no último homem. Foucault, num
esforço para confirmar Nietzsche, desenvolve um trabalho original em
que parte do estudo das condições de possibilidade dos saberes do
homem, condições essas constituídas por regiões obscuras porém afins
à ciência e, a bem dizer, à racionalidade. A respeito desse
trabalho, observa Vera Portocarrero,
72
PORTOCARRERO, Vera. Foucault: A História do Saber e das Práticas. In:
Filosofia, História e Sociologia das Ciências I, Vera Portocarrero, org.,
Editora Fiocruz, 1994, p.43.
73
LE RIDER, Jacques. Prefácio de Nietzsche et la France - présences de
Nietzsche en France. In: Friedrich Nietzsche - Oeuvres, Paris, Bouquins,
Robert Laffont, vol.1.
67
78
Idem, ibidem.
70
CAPÍTULO 1
O PROJETO ARQUEOLÓGICO
Enraizamento na epistemologia
Sobre a primeira fase da trajetória de Michel Foucault,
Roberto Machado observa que “a história arqueológica (...) produziu
uma série de deslocamentos metodológicos para dar conta das ciências
do homem, um campo em que os métodos epistemológicos têm se mostrado
ineficazes ou insuficientes”.79
Eis que a trajetória da arqueologia de Foucault advém de
uma posição frente à história epistemológica tal como praticada na
França a partir de Bachelard, num progressivo distanciamento das
teses epistemológicas. Dessa forma, veremos que essa arqueologia
desdobra-se em novos horizontes de análise com a genealogia do poder.
A epistemologia, aqui entendida como pensamento crítico da
ciência, tem, na França, terra de Foucault, uma grande tradição.
Foucault, a sua história o demonstra, teve sua origem ligada à
ciência. Inicialmente estudioso da psicologia, e particularmente bem
informado sobre os problemas referentes à psicopatologia e à
psicopatologia social, sofre influência de dois pensadores franceses
das ciências: Gaston Bachelard (1884-1962) e Georges Canguilhem
(1904-1995). Nesses, são as idéias de descontinuidade e
historicidade que dominam na interpretação das ciências bem como a
necessidade de conceber essa história como uma psicologia da
conquista progressiva das reações em seu conteúdo atual, como a mise
en forme de genealogias lógicas e, para empregar uma expressão de
Bachelard, como um recenseamento de “obstáculos epistemológicos
superados”. A perspectiva em que se situam Bachelard e Canguilhem
não aceita a existência de critérios de cientificidade válidos
universalmente para todos os tempos; como também não aceita a
existência de um tempo único e homogêneo da ciência. Isto quer dizer
que uma resposta à questão dos critérios de cientificidade não deve
79
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber.
71
81
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, I, 1954-1988, p.161, l. 15, “On pourrait
faire une histoire des limites(...)” l. 29, “Au centre de ces expériences-
limites du monde occidental éclate, bien entendu, celle du tragique même
(...)”
80
83
Idem. O homem e seus duplos, I, Retorno da Linguagem, p.321.
84
Idem. O homem e seus duplos, I, Retorno da Linguagem, p.322 e 323.
85
85
V. comentário da tradutora Laura Fraga de Almeida Sampaio em A ordem do
discurso, Edições Loyola, 1996.
87
CAPÍTULO 2
O PROJETO GENEALÓGICO
O poder
Com a genealogia do poder temos um novo caminho para as
análises históricas sobre os saberes. Não invalidando propriamente o
passado, Foucault parte agora de outra questão. Na arqueologia,
tratava-se de, neutralizando a questão da cientificidade, interrogar
as condições de existência dos discursos, mesmo quando os discursos
analisados são ou se pretendem científicos. A arqueologia tinha por
objetivo escrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles
científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e
não de validade como na epistemologia. Já na genealogia, seu
objetivo não é principalmente analisar as compatibilidades e
incompatibilidades entre saberes e práticas não discursivas a partir
da configuração de suas positividades; o que pretende é, em última
análise, explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de
possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que
imanentes a eles, os situam como elementos de um dispositivo de
natureza essencialmente política. É essa análise dos saberes, que
pretende explicar sua existência e suas transformações situando-os
como peças de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo
político, que utilizando um termo nietzscheano Foucault chamará
genealogia.
Nessas análises, Foucault aponta uma não sinonímia entre
Estado e poder. Ele vê uma articulação com poderes locais,
específicos, circunscritos a uma pequena área de ação, o que
caracteriza muitas formas de exercício de poder diferentes do
Estado, poder que intervém materialmente, atingindo a realidade
concreta dos indivíduos ⎯ o seu corpo ⎯ e que se situa ao nível do
próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana
e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.
Estamos aí no terreno do controle detalhado, minucioso, do corpo:
gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. Aí os poderes
89
86
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: Microfísica do poder,
p.XVI
90
Genealogia e história
O conceito de genealogia foi introduzida em Vigiar e Punir
que é onde seu sentido aparece mais claramente. Nesta obra, e em
Microfísica do Poder, será a vontade de saber que estará no centro
da análise. Trata-se de uma genealogia da alma moderna e, sem
dúvida, muitas das idéias de Nietzsche são iluminadas pela
perspectiva foucaultiana: o ver na filosofia de Nietzsche uma
espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo,
que se desenrolaria sempre mais, uma filologia que nunca estaria
fixada de forma absoluta. Assim, Nietzsche filólogo comprova que à
existência da linguagem se vinculam a possibilidade e necessidade de
uma crítica.
Por outro lado, recuperando a questão da interpretação,
ligando-a desta vez à idéia de genealogia, Foucault vai desembocar
na teoria nietzschiana das forças. Assim, a genealogia é entendida
como análise da proveniência e história das emergências.87 Para
Foucault, a genealogia é cinza, meticulosa, pacientemente
documentária, trabalhando com pergaminhos embaralhados, riscados,
várias vezes reescritos. Nela, há um indispensável demorar-se,
procurando marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda
finalidade monótona. Trata-se de espreitar os acontecimentos lá onde
menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo
87
FOUCAULT, M.. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do
Poder.
91
88
Ursprung: origem; Entstehung: emergência, ponto de surgimento; Herkunft:
proveniência. Segundo o Dic. Langenscheidts Taschen-wörterbuch de Alemão-
Português.
92
anônimo, que não sabe mais quem ele é e que nome usar, trata-se de oferecer
93
identidades sobressalentes, segundo a história convencional. O genealogista, por
sua vez, coloca em cena um grande carnaval do tempo em que as máscaras reaparecem
Por outro lado, esta identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar
e reunir sob uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas
Quando o genealogista estuda a história, se sente “feliz” (Amor Fati? ⎯ como não
lembrar?) ao contrário dos metafísicos, de abrigar em si não uma alma imortal, mas
pretende aqui fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. E ainda,
indaga se não será a paixão do conhecimento que virá matar o homem, se não estamos
89
Paródia: sátira, imitação cômica ou burlesca, comédia satírica em que se
ridiculariza uma obra.
90
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história, parte VII. In:
Microfísica do Poder, p.35.
94
CAPÍTULO 3
MORTO DEUS, DE COMO PENSAR
A marca da Modernidade
Este capítulo comportaria muito bem um subtítulo: De como,
em sendo tão próximo a Nietzsche, não se afastar de Kant.
Michel Foucault, de maneira original, atribuía ao
pensamento de Kant um papel central na fundação da Modernidade. Isso
era por ele bem explicitado em As Palavras e as Coisas com a
consideração de que Kant havia sido o primeiro filósofo a perceber
que a forma do conhecimento caracteriza-se pelo fato de que o
sujeito cognoscente, ao levantar-se das ruínas da metafísica,
prescreve-se a si mesmo, consciente de suas forças finitas, num
projeto que exigiria uma força infinita. Kant, assim, transforma a
questão em um princípio de construção de sua teoria na medida em que
reinterpreta as limitações da capacidade finita do conhecimento nas
condições transcendentais de um conhecimento que avança em direção
ao infinito. Para Foucault, o sujeito, sobrecarregado, cai numa
forma antropocêntrica de conhecimento, fato que caracteriza o
surgimento das ciências humanas. Nessas, por detrás de perigosa
fachada de um saber de validez universal, opera uma força
disciplinada e dissimulada de pura vontade que deseja ser o poder do
conhecimento. Kant seria, pois, o primeiro crítico do conhecimento
que, com sua análise da finitude, abriu as portas à era do
pensamento antropológico e das ciências humanas, marca da
Modernidade.
Foi, todavia, na década de 80, já próximo ao final da vida,
que Foucault indicou no pensamento de Kant um outro aspecto também
original e instigante. Eis que ele descobre, no filósofo de
Königsberg, o contemporâneo que converte a filosofia esotérica em
uma crítica do presente. Na resposta de Kant à pergunta “o que é a
Ilustração?”, Foucault vê uma ontologia da atualidade. Essas
considerações Foucault explicitou em conferência, resumida em texto
95
A Modernidade
É encarando dessa forma que a Foucault parece poder-se
reconhecer o ponto de partida: o esboço daquilo que se poderia
chamar a atitude da Modernidade. Nesse sentido, Foucault pergunta se
não se pode encarar a Modernidade antes como uma atitude do que como
um período da história, por atitude querendo ele referir-se a um
modo de relação com a atualidade, uma escolha voluntária que é feita
por alguns, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de
agir e de se conduzir que marca uma pertença e que se apresenta como
tarefa e como empreitada. Trata-se, lembra Foucault, um pouco, sem
dúvida, daquilo que os Gregos chamavam de éthos.
96
FOUCAULT, M.. Dits et écrits, IV, 1980-1988, p.568, l.9, “Mais il me semble
que c’est la première fois qu’un philosophe donne les raisons qu’il a
d’entrependre son oeuvre en tel ou tel moment. ...”
97
Idem, p. 568, l.34, “Par conséquent, plutôt que de vouloir distinguer la
‘période moderne’ des époques ‘pré’ ou ‘post-moderne’, je crois qu’íl
vaudrait ...”
100
98
Traduz-se por vadiagem ou ato daquele que gosta de flanar.
99
Op. cit., p.569, l. 39, citando Baudelaire, “Il va, il court, il cherche.”
101
100
Dandismo: futilidade, frivolidade, vestir-se com extremo apuro, ser janota,
almofadinha.
102
O trabalho filosófico
Todavia, Foucault admite a objeção de que, limitando-se a
este gênero de estudos ou de provas sempre parciais e locais, possa
existir o risco de se deixar determinar pelas estruturas mais
gerais, sobre as quais não se tem nem a consciência nem o domínio.
Quanto a isso, considera que se deve renunciar à esperança de chegar
a um ponto de vista que pudesse nos dar acesso ao conhecimento
completo e definitivo daquilo que pode constituir nossos limites
históricos. Deste ponto de vista, a experiência teórica e prática
que fazemos de nossos limites e de sua superação possível é sempre,
ela mesma, limitada, determinada e, portanto, sempre em vias de
recomeçar.
Mas isso não significa que todo o trabalho não possa ser
feito senão na desordem e na contingência; este trabalho tem a sua
generalidade, sua sistematicidade, sua homogeneidade e seu risco.
Isto está indicado por aquilo que se poderia chamar de “o paradoxo
das relações da capacidade e do poder”. Sabe-se que a grande
promessa ou a grande esperança do século XVIII estava na crença em
uma capacidade técnica agindo sobre as coisas e, simultaneamente e
proporcionalmente, na liberdade dos indivíduos uns em relação aos
outros. Ora, na história das sociedades ocidentais, a aquisição
dessas capacidades e a luta pela liberdade constituíram-se em
elementos permanentes, de forma que as relações entre a crença
nessas capacidades e a crença na autonomia não se revelaram tão
simples como se acreditava durante o século XVIII.
O risco, pois, diz respeito a conseguir-se ou não separar a
crença nessas capacidades e a intensificação das relações de poder.
No que tange à homogeneidade do trabalho, Foucault observa que
trata-se de tomar como domínio homogêneo de referência não as
representações que os homens se dão deles mesmos, não as condições
que os determinam sem que eles o saibam, mas o que eles fazem e da
maneira como o fazem, isto é, considerando as formas de
racionalidade que organizam as maneiras de fazer (aquilo que se
poderia chamar seu aspecto tecnológico), e a liberdade com a qual os
106
101
Op. cit., p. 577, l. 22, “Je ne sais pas si jamais nous deviendrons
majeurs.”
108
TERCEIRA PARTE
A INSUSTENTABILIDADE DO HOMEM
Introdução
Foucault certa vez escreveu que “o único sinal de
reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de
Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger,
gritar”.102 Foucault fez isso. Foucault, leitor de Nietzsche, teve o
seu Nietzsche e utilizou-o. Michel Foucault (1926-1984), pensador
francês contemporâneo, talvez o mais próximo a Nietzsche.
Falar sobre o Nietzsche ligado a Foucault a partir dos
pontos de Foucault ⎯ ou seja, de como Foucault é esclarecido por
Nietzsche ⎯ eis o nosso objetivo. Neste contexto, iremos ver que a
tese da morte do homem aparece em Foucault como o coroamento de todo
um trabalho filosófico que, partindo da epistemologia, e
profundamente inspirado no pensamento trágico e na questão da
linguagem levantada por Nietzsche, enceta uma crítica à
racionalidade e ao saber modernos, notadamente às ciências humanas,
crítica esta em que é o próprio lugar do homem enquanto esfera de um
saber que parece não mais se sustentar.
102
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; org. e trad. Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1993. p.143.
109
CAPÍTULO 1
A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA
A história da loucura
Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge classique
(Loucura e desrazão: história da loucura na era clássica) é trabalho
do final dos anos 50, tendo-se constituído na tese de doutorado com
a qual Foucault alcançará o nível de professor universitário. No seu
prefácio103 Foucault dizia que estava interessado em “confrontar as
dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”, e que
assim o fazia “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana”.
Tratava-se, conforme escreveu, de perceber uma rejeição que
o homem ocidental moderno deixa transparecer, rejeição essa a partir
da qual denuncia uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como
não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na
história: a rejeição da loucura. Foucault observa que a relação
entre razão e loucura constitui para a cultura ocidental uma das
dimensões de sua originalidade: uma cultura de homens de razão
soberana que não hesitam em tachar de doentes seus vizinhos; uma
cultura que se comunica e se reconhece através da linguagem
impiedosa da não-loucura. Foucault empenha-se, em seu trabalho, em
encontrar o momento desta conjuração, tendo em conta que ela não foi
definitivamente estabelecida no reino da verdade. Buscar encontrar,
na história, o ponto de partida da loucura, onde ela é experiência
indiferenciada, experiência ainda não compartilhada pelo próprio
espírito do compartilhamento, vale dizer, da razão. Descrever, a
partir da origem, este outro caminho que faz com que Razão e Loucura
sejam como negação uma da outra.
103
Referimo-nos ao Prefácio da edição original do livro Folie et Déraison.
Histoire da le folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961, pp. I-XI. V. Dits
et Écrits I (1954-1969), p. 159.
112
104
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. O círculo antropológico. S.Paulo:
Perspectiva, 4a. Ed., p.529.
113
A experiência trágica
Para Foucault, na Renascença, a loucura passa a ocupar os
lugares que a lepra ocupara na Idade Média, lugares deixados sem
utilidade bem como os ritos. É que, com a regressão da lepra, serão
os pobres, os vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” que
assumirão o papel abandonado pelo lazarento. E, a partir do século
XV, a face da loucura passa a assombrar a imaginação do homem
ocidental. Para Foucault, até pouco depois do início da segunda
metade do século XV, o tema da morte impera sozinho; nela, o fim do
homem, o fim dos tempos, assumem o rosto das pestes e das guerras.
Mas eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira
sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a
seriedade que a acompanha. A partir de então, o insano desarma, e o
louco ri antes do riso da morte, pressagiando o macabro; trata-se de
uma virada no interior da mesma inquietude, trata-se do vazio da
existência, um vazio sentido do interior como forma contínua e
cosntante da existência. O liame entre loucura e o nada estreita-se
no século XV e subsiste por muito tempo no centro da experiência
clássica da loucura.
Dentre outras, é na composição literária Narrenschiff (A
nau dos loucos), de Brant, que Foucault situa a experiência trágica
da loucura na Renascença.106 Na época, os loucos eram escorraçados e
frequentemente confiados a barqueiros. O louco torna-se o Passageiro
por excelência, o prisioneiro da passagem, solidamente acorrentado à
infinita encruzilhada. Também entre os míticos do século XV
imaginava-se a alma-barca, abandonada no mar infinito dos desejos,
barca prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar
sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o
sopro de Deus a leve ao porto.
105
Idem, Ibidem.
106
Idem. Stultifera navis, p. 3.
114
CAPÍTULO 2
LINGUAGEM E LITERATURA
Tragédia e literatura
O Foucault trágico da década de 60 é também o Foucault
profundamente interessado na questão da linguagem e da literatura.
Pode-se mesmo entender que Foucault privilegia em História da
Loucura a relação entre literatura e loucura. Loucura é ausência de
obra, quer aí Foucault caracterizar; vale dizer, obra de linguagem,
literatura. Já em O Nascimento da Clínica, haverá um deslocamento
para a relação entre literatura e morte, conforme iremos ver
adiante. Em As Palavras e as Coisas, por outro lado, Foucault
privilegia uma contestação da linguagem a partir da própria
linguagem literária. Há, pois, três momentos a considerar no
Foucault dessa época: um primeiro em que a preocupação com a
linguagem se volta para a literatura; um segundo em que se volta
para a morte; e um terceiro, voltado para uma ontologia da
linguagem.
Pode-se ver ainda no Foucault trágico, vale dizer, no
pensador profundamente influenciado por Nietzsche, dois aspectos: um
aspecto negativo, marcado pelo momento constituído por um não, ou
seja, pela crítica da psiquiatrização, medicalização e internação da
loucura; e um aspecto positivo, um sim, constituído pelo elogio da
loucura considerando-a como experiência trágica no terreno da
literatura.
117
110
NIETZSCHE, F.. Aurora, par. 446 ⎯ N.S.W., KSA 3, Morgenröte, Fünftes Buch,
446, s.270, z.21, “Es giebt erstens oberflächliche Denker, zweites tiefe
Denken...”.
121
A região perigosa
Para Foucault, uma experiência importante para a
hermenêutica contemporânea é o fato de que quanto mais alguém se
111
V. verbete Indivíduo do Dicionário do Pensamento Marxista editado por Tom
Bottomore, Jorge Zahar Editor.
112
Foucault, em artigo intitulado Nietzsche, a genealogia e a história (In:
Microfísica do Poder) observa que Nietzsche quis acentuar uma oposição entre
início e origem. Para ele, Nietzsche recusa em certas ocasiões a pesquisa da
origem, colocando-se contra um querer desvelar uma identidade primeira, o
escutar a história. Retomamos este tema mais adiante.
122
113
NIETZSCHE, F.. Para além do Bem e do Mal, §39 ⎯ N.S.W., KSA 5, Jenseits
von Gut und Böse, 39, s.56, z.29, “ja es könnte selbst zur
Grundbeschaffenheit des Daseins gehören, dass man an seiner völligen
Erkenntniss zu Grunde gienge...”
123
114
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. In: Dits et écrits I, 1954-1969 ,
p.570, l.35, “Ce qui est en question dans le point de rupture de
l’interpretation, dans cette convergence de l’interprétation vers un point
qui la rend impossible, ce pourrait bien être quelque chose comme
l’expérience de la folie...”
115
FOUCAULT, M.. Nietzsche, Freud, Marx. In: Dits et écrits I, 1954-1969 ,
p.571, l.14, “Il n’y a rien d’absolument premier à interpréter, car au fond,
tout est déjà interprétation...”
124
116
Agathos (Αγαθος): bom, de boa qualidade, nobre, , valente, perfeito no seu
gênero, honrado, simples, próspero, feliz. Dic. Greco-Português de Isidro
Pereira, S.J., Liv. Apostolado da Imprensa, Braga, Portugal.
125
O visível e o dizível
No ano de 1963, anterior ao colóquio de Royaumont, Foucault
havia publicado um livro em que discute os trabalhos de um escritor
parisiense, Raymond Roussel, nascido em 1877, pelo qual muito se
entusiasmara117. Pode-se considerar esse livro como fazendo parte de
um “ciclo literário”, ciclo esse que durou de 1962 a 1966 no qual
Foucault elaborou também uma série de artigos sobre escritores. No
livro, Foucault discute o trabalho de Roussel em termos do “processo”
descrito em seu Comment j’ai écrit certains de mes livres (de como
117
FOUCAULT, M.. Raymond Roussel. Le Chemin. - Paris: Gallimard, 1963.
126
O ser da linguagem
Será pensando o ser da linguagem que Foucault irá em 1966
apresentar outras interessantes reflexões a respeito do tema.
Estamos aqui nos referindo à temática de As palavras e as Coisas e
também do texto correlato de O pensamento do exterior.118 Neste texto,
118
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. In: Dits et écrits par Michel
Foucault I, 1954-1969, p.518.
127
119
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, Je mens, je parle.
128
120
O ‘Paradoxo do Mentiroso’ não é formulado nas obras de Aristóteles; e
embora uma passagem do seu De Sophistics Elenchis, em que ele fala da
‘história do homem que mentia e dizia a verdade ao mesmo tempo’, possa talvez
referir-se a este paradoxo, este passo não é suficiente para permitir
reconstruir o paradoxo sem ser necessária muita habilidade. São Paulo refere-
se na verdade à versão de Epimênedes deste paradoxo, mas talvez sem
compreender que se trata de um paradoxo, porque ele diz “Um deles ... disse:
‘Os cretenses mentem sempre...’ Este testemunho é verdadeiro”. Pode ser,
portanto, que o paradoxo tivesse sido redescoberto no século XII. Em qualquer
caso os lógicos medievais não se satisfizeram com versões simples como Ego
dico falsum e inventaram variantes complicadas como “Sócrates diz ‘Aquilo que
Platão diz é falso’ e Platão diz ‘Aquilo que Sócrates diz é verdadeiro’ e
nenhum diz mais nada. Aquilo que Sócrates diz é verdadeiro ou falso?”
Compreendeu-se que a dificuldade era causada por tentar produzir uma certa
espécie de auto-referência e um insolubile foi definido como uma propositio
habens super se reflexionem suae falsitatis aut se non esse veram totaliter
vel partialiter illativa. Mas não havia acordo acerca de uma doutrina que
explicasse a importância destes paradoxos sobre a teoria do sentido e da
verdade. V. KNEALE, William e KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. ⎯
Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 233.
121
FOUCAULT, Michel. La Pensée du dehors, Je mens, je parle.
122
Idem, Ibidem.
129
123
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, L’expérience du dehors.
130
124
Idem, Ibidem.
131
CAPÍTULO 3
DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
Da morte de Deus
Será em Préface à la Transgression (Hommage à
G.Bataille)125, de 1963, que podemos obter importantes observações de
Foucault sobre as conseqüências da morte de Deus. Para Foucault,
todos os nossos gestos se dirigem à essa ausência, numa “profanação”
que a designa, a conjura, se abate nela e se acha enviada por ela à
uma pureza vazia de transgressão. A morte de Deus retira de nossa
existência o limite do Ilimitado e nos reconduz a uma experiência
onde nada pode anunciar a exterioridade do ser ⎯ uma experiência por
conseqüência interior e soberana. Para Foucault, com a morte de Deus
passamos do “limite do Ilimitado” ao “ilimitado do limite”, este
infinito de nós mesmos.
Assim, com a morte de Deus, resta-nos traçar o limite em
nós, desenhando-nos, nós mesmos, como limite. Resta-nos o interior,
nesta experiência onde reside o impossível: uma vontade de ir além
transgredindo. Para Foucault, a transgressão concerne ao limite; e o
jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma
obstinação simples: a de ultrapassar, vencer, superar; a
transgressão não cessa de assim o fazer.
A transgressão leva o limite até o limite de seu ser.
Libertá-la de seus parentescos com a ética, libertá-la do que é
125 125
FOUCAULT, Michel. Préface à la transgression. In: Dits et écrits I, 1954-
1969, p. 233.
133
Da morte do homem
Em Les mots et les Choses ⎯ Une archéologie des sciences
humaines (As Palavras e as Coisas, 1966), Foucault mostra de que
peças e de que partes o homem foi composto no final do século XVIII
e início do século XIX. Foucault assim o diz126, ressaltando que
procurou nesse trabalho “caracterizar a modernidade dessa figura”, o
homem. Tratava-se de mostrar o seguinte: não é tanto por ter tido um
cuidado moral com relação ao ser humano que se teve a idéia de
conhecê-lo cientificamente mas, ao contrário, porque se construiu o
126
FOUCAULT, Michel. L’homme est-il mort? In: Dits et écrits I, 1954-1969, p.
540. Entrevista dada por Foucault a C. Bonnefoy.
134
127
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, parte 4, O mais feio dos homens ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, Vierter und letzter Theil, Der
hässlichste Mensch, s.327.
135
128
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, Cap. IX: O homem e seus duplos,
par.VIII, O sono antropológico.
136
129
Idem, Cap. VIII, Trabalho, vida, linguagem, par. II, Ricardo, p.278.
137
CONCLUSÃO
130
Arriscamo-nos aqui a pensar em Descartes, não obstante nosso objeto de
estudo e também apesar da idéia não ter sido valorizada nem por Nietzsche nem
por Foucault. A seu respeito, lançamos, todavia, a seguinte questão: este, ao
tomar o “penso, logo existo” como fundamento de toda e qualquer certeza, não
estaria desvalorizando Deus nesse papel, como bem parece tê-lo percebido seu
contemporâneo Blaise Pascal? Não seria, em Descartes, Deus resultado de uma dedução
racional do sujeito que pensa, vale dizer, do homem, e não fruto dos motivos do
coração, como advogava Pascal? E não é isto, enfim, o que faz de Descartes, para
muitos, o pai da Filosofia Moderna?
140
131
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes,
p.402
142
132
Idem, ibidem.
143
Mas, o que será mesmo que Foucault quer dizer com este
perecer do homem “na medida em que brilha mais forte em nosso
horizonte o ser da linguagem”? É que Foucault viu um fato novo
entrar no campo do pensamento no fim do século XIX e que jamais
poderá ser doravante desprezado: um fato novo com Nietzsche a
perguntar: “Quem fala?”; e com Mallarmé a responder: “O que fala é a
própria palavra”. Não quererá, então, isso dizer que, doravante,
toda e qualquer pretensão de verdade da linguagem revela-se vã,
pretensão esta que se estende ao dizer do homem sobre si mesmo? Que,
doravante, na linguagem, o que pode ser considerado é tão somente a
sua aparência? E, considerar a linguagem pela sua aparência, não
será tão somente tê-la por arte? literatura?
Vida-literatura, dizer-se de si na infinita maneira de
interpretar o mundo, poesia?
Vida-literatura, vida-vazio, vida-transgressão, vida-salto,
vida-loucura, é o que Foucault parece intuir para o futuro do homem.
Não mais o homem como o reconhecíamos, não mais a pretensão de
verdade no dizer, mas o vazio, o permanente estado de suspensão, o
salto do dizer.
E, para lembrar Nietzsche uma vez mais: “flechas de anseio
pela outra margem” ⎯ não será isto que Foucault está querendo dizer?
Uma metafísica de artista.
Haverá filosofia mais bela?
* * *
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144
BIBLIOGRAFIA
Foucault
Sobre Foucault
Nietzsche
Sobre Nietzsche
Outros
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta o que é o Iluminismo? In: A Paz
Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1992.
PLATÃO. A República. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
148
* * *
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