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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ⎯ UERJ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
COORDENAÇÃO DO MESTRADO EM FILOSOFIA

A MORTE DE DEUS E A MORTE DO HOMEM


NO PENSAMENTO DE NIETZSCHE E DE MICHEL FOUCAULT

por
JOSÉ GUILHERME DANTAS LUCARINY

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, para
obtenção do título de Mestre em
Filosofia.

Orientadora:
Professora Vera Portocarrero

Rio de Janeiro
Julho de 1998
2

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ⎯ UERJ


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
COORDENAÇÃO DO MESTRADO EM FILOSOFIA

TÍTULO: A morte de Deus e a morte do homem no pensamento de


Nietzsche e de Michel Foucault

AUTOR: José Guilherme Dantas Lucariny

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

APROVADA PELA BANCA EXAMINADORA:

VERA PORTOCARRERO
(Orientadora, Professora da UERJ, Departamento de Filosofia)

ROSA MARIA DIAS


(Professora da UERJ, Departamento de Filosofia)

JOSÉ TERNES
(Professor convidado, UFG, PUC-Goiás)

Rio de Janeiro, 9 de julho de 1998


3

LUCARINY, José Guilherme Dantas. [18.06.47]

A morte de Deus e a morte do Homem no pensamento


de Niezsche e de Michel Foucault.

Rio de Janeiro ⎯ UERJ, 1998.


135 p.
Dissertação: Mestrado em Filosofia, UERJ.

I. Universidade do Estado do Rio de


Janeiro ⎯ UERJ
II. Filosofia/ Nietzsche/ Foucault/ Morte
de Deus/ Morte do Homem/ Modernidade/
Racionalidade/ Metafísica/ Ontologia/
Linguagem/ Literatura
4

RESUMO

A dissertação parte do pensamento de Nietzsche, notadamente


do pensamento trágico, da crítica à consciência e à linguagem e da
morte de Deus e da morte do homem, para caracterizar uma nova
atitude de suspeita e de crítica à racionalidade. Com isso,
identifica o âmbito do pensamento no qual também se situa Michel
Foucault, estudado em seguida do ponto de vista da recuperação da
interpretação e da linguagem, bem como da compreensão, na esfera da
literatura, de um vazio que se dá com a noção de sujeito. São também
apreciadas a crítica foucaultiana às ciências humanas e ao
humanismo, sua compreensão ontológica da modernidade, e sua reflexão
acerca dos saberes e da racionalidade moderna.
O texto assim preparado permite falar do Nietzsche ligado a
Foucault, ou seja, de como as teses de Foucault aparecem em
Nietzsche, de como Foucault é esclarecido por Nietzsche, o que
caracteriza a continuidade de uma crítica que nasce na Alemanha do
final do século passado, reafirmada e aperfeiçoada na França
contemporânea do pós-guerra. Conclui por ver a obra de Michel
Foucault estender-se a partir do pensamento de Nietzsche, como a
querer demonstrar, com a problematização da modernidade, o que
Nietzsche esboçara: que, uma vez morto Deus, o homem só também vai
desaparecer; isso que se pensava fundamentá-lo ⎯ a racionalidade ⎯
talvez não se sustente.
5

RÉSUMÉ

La dissertation part de la pensée de Nietzsche, notamment


de la pensée tragique, de la critique de la conscience et du
langage, et de la mort de Dieu et de l’homme, pour caractériser une
nouvelle attitude de soupçon et de critique de la rationalité.
Ainsi, identifie-t-elle l’horizon de la pensée dans lequel se
trouve aussi Michel Foucault, étudié ensuite du point de vue de la
récupération de l’interprétation et du langage, ainsi que de la
compréhension, en littérature, d’un vide qui arrive au sujet. La
critique foucaultienne des sciences humaines et de l’humanisme, sa
compréhension ontologique de la modernité, et sa réflexion sur les
savoirs et la rationalité moderne y sont appréciées.
Ce texte ainsi préparé permet qu’on parle de Nietzsche lié
à Foucault, ou bien, comment les thèses de Foucault se présentent
chez Nietzsche, comment Foucault est éclairé par Nietzsche, ce qui
caractérise une continuité de critique qui est née en l’Allemagne à
la fin du siècle passé et qui est réaffirmée et achevée dans la
France contemporaine de la post-guerre. Elle conclut en voyant
l’oeuvre de Michel Foucault se développer à partir de la pensée de
Nietzsche, comme s’il voulait démontrer, avec la problématisation de
la modernité, ce que Nietzsche avait esquissé: que, Dieu mort,
l’homme seul va aussi disparaître; ce qu’on pensait être le
fondemment de l’homme ⎯ la rationalité ⎯ est, peut être, une thèse
insoutenable.
6

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho às esquerdas brasileiras.


JGDL

Uma coisa é certa e deve aqui ser registrada: ambos,


Nietzsche e Foucault, são mestres da incitação à crítica e do
aguçamento em nós da santa vontade de ir além. A filosofia adquire
um enorme sentido ao podermos utilizá-la para interpretar o nosso
mundo, transcender mesmo o pensamento de nossos mais caros filósofos
inspiradores. Pois bem: ⎯ Aude saper! ⎯ aqui fazemos isso; assim
pretende quem em toda sua vida vê confirmarem-se as teses sobretudo
de Nietzsche e de Foucault. Aqui, refletimos sobre o momento
presente em que essa dissertação está sendo concluída, no ano de
1998, há 98 anos da morte de Nietzsche e há 14 da morte de Foucault.
O que nos vem a dizer de nosso mundo, especialmente de
nosso mundo brasileiro, à luz do que cogitamos nesta monografia? O
que é possível dizer da inquietação que ora nos acomete? ⎯ Que a
razão estertora miúda, ávida por novos deuses? Que, hoje, nenhuma
grande palavra mais parece se sustentar? E que a racionalidade busca
ávida e desesperadamente algo em que ainda possa se fundamentar?
Que, hoje, o deus por ela criado se chama Dinheiro? Que não mais a
cruz mas o cifrão impera como símbolo de uma fé no mundo? Que, no
Brasil, a Santíssima Trindade configura-se pelo Dólar, o Real e o
Mercado? E que esse Deus impiedoso e frio fundamenta hoje toda uma
racionalidade excludente voltada para o plano econômico em que o
homem queda esquecido, morto?
7

Hoje, o homem está morto diante da Economia; não é mais


ele que importa. A linguagem da Economia é o que prevalece, soando
única, triunfalista, alienante e alienada sobre as pessoas, as
nações e as culturas. Hoje, parece que vivemos de uma forma negativa
o que Foucault intuira: a morte do homem e o brilhar mais forte do
ser da linguagem. Negativa porque a linguagem da Economia não parece
ser a linguagem da superação nietzschiana, mas sim a linguagem do
último homem, merceeiro mesquinho, adorador do deus Dinheiro.
Porque, o discurso da Economia, como está hoje posto, não
parece estar voltado para a vida. Constitui-se numa metafísica, a
metafísica dos sacerdotes “executivos” vestidos de terno escuro, ar
circunspecto, pesado, falar comedido ⎯ o próprio espírito de
gravidade ⎯ e que sonham com férias na Disneylândia... ⎯ Não será
hoje a Disneylândia a mais ridícula evidência do ideal ascético do
qual falava Nietzsche? Ganhar dinheiro para ir gastá-lo em
Disneyland, USA, por que lá é um paraíso? Ganhar as bênçãos de Deus
e ir usufruí-las no Paraíso? Vontade de paraíso? Vontade de nada? Ou
será viver em refrigerados gabinetes funcionais o ascetismo maior?
Assessorados por submissos e entorpecidos empregados, cordeiros do
rebanho, a entabular negociações e projetos de nenhum compromisso
com a vida, e a exigir comportamento de máquina das pessoas, e a
excluir pessoas; viver de rituais em magníficos almoços e jantares
prolongados onde o Dinheiro é o assunto a não mais poder. Dinheiro,
o assunto da mídia ... e Poder. Dinheiro é Poder e Time is money,
estes, os dísticos dos oráculos contemporâneos?
Apartar-se da vida, negar a vida, eis o que parecem querer
essas “madres superioras”, movidas pela moral dos merceeiros.
Resguardar-se com base numa racionalidade engendrada; apoderar-se de
uma razão e de suas regras, tornar-se detentor da verdade e
encarapitar-se numa posição metafísica; e fazer com aquilo que sua
racionalidade engendrou o próprio fundamento dessa racionalidade.
Não é isso que se dá com o “plano” de todo e qualquer déspota, mesmo
esclarecido? Kant, ingenuamente talvez, ou com fé demais, propunha
ao déspota de seu tempo (Frederico II) um tipo de contrato: “um
certo tipo de despotismo racional com a razão livre”. Mas a razão...
a razão não é livre, direi. A razão é instrumento. E Kant parece
8

sequer ter desconfiado de que o seu déspota poderia ter ódio: da


vida!
Porque a vida é incerta, na vida tem protestos de
manifestantes da CUT e reivindicações dos Sem-Terra, tem vaias,
corre-se o risco de ter que se exilar, de ter sua conta bancária
escarafunchada numa CPI, de não se reeleger e de ficar desamparado,
desacreditado, de ficar desempregado, vale dizer, sem sentido, de
passar fome, de se enlamear. Na vida tem mendigos, tem assaltos, tem
sujeira, tem criança largada nas ruas, tem covardia, tem assassinos
de crianças, tem hospitais infecciosos, tem podridão, tem calor, tem
fome, tem enchentes, tem povo fedorento, tem coceira, tem barata...
“Comer a barata”, tal qual no desfecho vivido por G.H. ⎯
que bem poderia ser F.H. ⎯ em sua paixão, personagem de Clarice
Lispector1, ao cair no mundo, eis uma outra possibilidade ⎯ gesto
“louco” e pleno de sentido de comunhão com a vida. Se hoje vivemos
negativamente a morte do homem pela via da linguagem da Economia,
poderemos muito bem viver uma outra morte, esta sim positiva,
verdadeira superação, é o que nos sugere Clarice. Cometer um gesto
louco, de pura abertura estética: talvez aí resida a “salvação”; um
caminho para quem ama a vida e se tornou poeta e desprezador das
verdades racionais, tal qual Friedrich Nietzsche e ⎯ por que não?
⎯ Michel Foucault.

1
LISPECTOR, Clarice, 1925-1977. A Paixão Segundo G.H. 17a., Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1994. ⎯ Referimo-nos ao romance de 1964 da
romancista brasileira nascida em Tchetchelnik (Ucrânia) de uma família russa,
chegada ao Brasil com a idade de dois meses, tendo vivido em Recife até 1937
e depois no Rio de Janeiro. Segundo Nádia B. Gotlib em texto de apresentação,
“Quando G.H., a personagem deste romance, decide seguir seu percurso da sala
ao quarto dos fundos, não é apenas a escultora que, a certa altura, escolhe
um dos seus afazeres domésticos possíveis: limpar o apartamento de cobertura
começando pela parte que deveria ser a mais suja, a do quarto de empregada.
Este caminho de ‘arrumar’ ou de ‘dar a melhor forma’ ao quarto, que acontece
lá no alto de um apartamento de classe alta do Rio de Janeiro, é muito mais
do que uma simples arrumação. Transforma-se, pouco a pouco, no seu contrário.
Torna-se uma lenta, gradativa e dolorosa desarrumação do quarto, da vida, de
tudo. Implica num irremediável e fatal enveredar-se pelos múltiplos espaços
em profundidade em que este cubículo dos fundos vai se transformando, a
partir de um dado de origem social: estar à margem do poder num sistema de
classe institucionalizado. A partir dele, e também por ele motivado, inicia-
se este longo percurso de reconstrução de um mundo pelo seu avesso, que vai
se formando justamente neste não ter forma nem lei, contrariando todo um
sistema cristalizado do que se convencionou tomar por bom, belo e justo.
(...) Ler este livro é, também, seguir este caminho, derrubando os mitos dos
sistemas estereotipados, repressores e falsos em que vivemos, pela difícil
via da desconstrução.”
9

Para finalizar, desejo aqui considerar o retorno das


esquerdas, inspirado no que está a configurar-se como o prenúncio da
morte de mais uma divindade: a situação vexatória em que se encontra
o mundo e as recentes tendências de opinião em várias partes deste
mesmo mundo; o resultado das eleições recentes na Inglaterra ⎯ berço
do Liberalismo ⎯ e na França ⎯ berço do Iluminismo ⎯ e também no
México! ⎯ berço de experiências malogradas que acabam também
brasileiras ⎯ e, ora vejam, também na Argentina! ⎯ aquilo que,
segundo virou costume dizer, é o que seremos amanhã.
Desejo aqui considerar o retorno das esquerdas. Sim, das
es-querdas brasileiras, para quem esse trabalho vai dedicado, as
perple-xas esquerdas brasileiras, entendendo-se por tal todos
aqueles que em nosso país se indignam com a arrogância, a
prepotência e os sofismas do poder, e que por isso se inquietam, se
sentem gauche na vida; e que sonham com um Brasil menos ascético e
mais leve. Sim, mais leve, meus senhores, mais leve... Para esses, o
caminho talvez seja “comer a barata” como na história de Clarice
Lispector: largar mão da pureza e da metafísica (porque as esquerdas
também têm ⎯ ou tinham ⎯ a sua) e cair no mundo. Cair no mundo como
ele é, convertendo-se num desprezador para poder tornar-se um
criador ⎯ um criador de valores ⎯ como o são os poetas, os
artistas! O mundo, meus senhores, está a requerer criadores, porque
os deuses antigos estão para morrer!
Alegria criadora! Talvez seja com esta dinamite que o
triste deus Dinheiro será implodido. Tirar o seu sentido!
Desmascarar mais esta esfinge! Desbaratar estes trasmundanos com
alegria, com leveza, com riso e com dança, coisa que eles não
possuem porque o seu mundo é triste, meus senhores. O deus deles é
triste, e breve chegará o dia em que a nenhum homem mais trará
consolo! Fazer isto amando o jogo da vida, não propriamente “sem
medo de ser feliz” mas, sobretudo, “sem medo de tornar-se o que se
é”. Eis a superação.
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
POR UMA FILOSOFIA DA MORTE DE DEUS
E DA MORTE DO HOMEM ................................. 13

PRIMEIRA PARTE
O SOL NIETZSCHIANO
Introdução ........................................... 18
CAPÍTULO 1
O PENSAMENTO TRÁGICO ................................. 19
O Nascimento da Tragédia, 19. ⎯ O mito, 20 ⎯ O
Eterno Retorno e a inocência, 21. ⎯ Da imortalidade
dos deuses: Apolo e Dionísio, 23. ⎯ Sócrates, 26. ⎯
Dionísio e o crucificado, 27. ⎯ Da alegria e do Amor
Fati, 28. ⎯ Do niilismo, 30. ⎯ A morte de Deus, uma
interpretação histórica, 32. ⎯ Zaratustra, 34. ⎯ Do
homem superior e da superação, 34. ⎯ O trágico por
excelência, 36.
CAPÍTULO 2
A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO ...... 38
Pensamento, consciência e linguagem, 38. ⎯
Linguagem, sentimento e moral, 41. ⎯ Conhecimento e
idéia, 41. ⎯ Eu penso, eu quero, 42. ⎯ Verdade e
aparência, 44. ⎯ As palavras e as idéias, 45. ⎯ Uma
bela doidice, 46. ⎯ Um ato de autoridade, 47. ⎯ A
razão na filosofia, 50.
CAPÍTULO 3
A MORTE DE DEUS ...................................... 52
Antecedentes, 52. ⎯ Nietzsche e a morte de Deus, 54.
⎯ A morte de Deus e o super-homem, 56. ⎯ Duas
alternativas, 59. ⎯ O espírito de gravidade, 60. ⎯
A morte do homem, 61. ⎯ A permanência do vício
antigo, 62. ⎯ A morte da divindade, 63.
11

SEGUNDA PARTE
MICHEL FOUCAULT, CRÍTICO DA RACIONALIDADE MODERNA
Introdução .......................................... 64
CAPÍTULO 1
O PROJETO ARQUEOLÓGICO ........................... 69
Enraizamento na epistemologia, 69. ⎯ O primeiro
momento, 73. ⎯ Uma arqueologia do olhar, 78. ⎯ Uma
arqueologia das ciências humanas, 80. ⎯ Uma
arqueologia do saber, 83. ⎯ A démarche de Michel
Foucault, 86.
CAPÍTULO 2
O PROJETO GENEALÓGICO ................................ 87
O poder, 87. ⎯ Genealogia e história, 89.
CAPÍTULO 3
MORTO DEUS, DE COMO PENSAR ........................... 93
A marca da Modernidade, 93. ⎯ O ser da filosofia
moderna, 94. ⎯ A Modernidade, 98. ⎯ Ontologia de
nós mesmos, 102. ⎯ O trabalho filosófico, 104.

TERCEIRA PARTE
A INSUSTENTABILIDADE DO HOMEM
Introdução ......................................... 107
CAPÍTULO 1
A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA ..................... 108
Doença mental e personalidade, 108. ⎯ A história da
loucura, 110. ⎯ A experiência trágica, 112.
CAPÍTULO 2
LINGUAGEM E LITERATURA .................... 115
Tragédia e literatura, 115. ⎯ Nietzsche, Freud,
Marx, 116. ⎯ O século XVI como referência, 117. ⎯
Da ruptura do século XIX e das novas possibilidades,
117. ⎯ Uma tarefa infinita, 120. ⎯ A região
perigosa, 120. ⎯ Da natureza dos signos, 122. ⎯ O
visível e o dizível, 124. ⎯ O ser da linguagem, 125.
⎯ A conjunção linguagem, conhecimento e morte, 129.
12

CAPÍTULO 3
DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM ............... 131
Da morte de Deus, 131. ⎯ Da morte do homem, 132.

CONCLUSÃO ......................................... 136

BIBLIOGRAFIA ...................................... 143


13

INTRODUÇÃO
POR UMA FILOSOFIA DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM

Para muitos, uma característica importante da era moderna é


que, nela, Deus morreu. Personagem outrora tão importante para a
explicação do mundo, esse Deus vê-se gradualmente debilitado na
história do pensamento, torna-se cada vez mais fraco, findando por
morrer. Foi Nietzsche, no final do século XIX, quem, em mais alto e
bom tom, proclamou esta morte.
Em 1966, Michel Foucault, por sua vez, proclamava que o
homem poderia estar em vias de perecer e, com isso, levantava uma
controvérsia profunda. A este respeito, considerava ele que
Nietzsche indicara de longe o ponto de inflexão, o de que “não é
tanto a ausência ou a morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do
homem”2. Nietzsche, com a morte de Deus, estaria proclamando que o
conceito de uma deidade teria sido suplantado pelo de uma
consciência criativa alojada no âmago do sujeito individual, e isto
caracterizaria uma peculiaridade das disposições fundamentais do
saber do século XIX. Foucault, por sua vez, preocupado com essas
disposições fundamentais, pesquisa a questão dos saberes do homem
sobre si mesmo, e verifica que tiveram origem na passagem da era
clássica para a era moderna. Para ele, antes do fim do século XVIII
o homem não existia, pelo menos não diversamente dos saberes da

2
FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses: une archéologie des sciences
humaines. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
trad. Salma Tannus Muchail. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 402.
14

vida, do trabalho e da linguagem. “O homem é uma invenção cuja


recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E
talvez o fim próximo.”3, escrevia. E, para que possam existir as
ciências do homem, assim como elas hoje se configuram, a imagem do
homem que nos é habitual deve desaparecer.
À medida que nos damos conta de que todo conhecimento
humano, toda existência humana, toda vida humana e, talvez até, toda
herança biológica humana estão atadas a um conjunto formal de
elementos que obedecem a relações que são descritíveis pela
linguagem, o homem, por assim dizer, deixa de ser o sujeito de si
mesmo, de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto. Descobre-se que
aquilo que torna o homem possível, no fundo, é a linguagem, ou seja,
um conjunto de estruturas que, naturalmente, ele pode pensar e
descrever, mas do qual não é o sujeito, a consciência soberana.
Trata-se aí, observa Foucault, de um lugar que Nietzsche e Mallarmé
haviam indicado: o lugar do questionamento da linguagem em seu ser,
quando um deles perguntava: “Quem fala?” e o outro vira cintilar a
resposta na própria “Palavra”4
Ora, isso suscita uma filosofia da morte de Deus e da morte
do homem, nosso objeto central. Em Nietzsche, Deus morreu,
substitui-o o homem que também deverá morrer. Em Foucault, a
suspeita de que esse homem também morre, sendo substituído por algo
que não sabe. Nesse sentido, fala-nos Foucault de uma impressão de
acabamento e de fim, de um sentimento surdo que sustenta, anima
nosso pensamento, acalentando-o com suas promessas, e que nos faz
crer que alguma coisa de novo está em vias de começar, de que apenas
se suspeita um leve traço de luz na orla do horizonte. Dessa forma,
ressalta Foucault, este sentimento e esta impressão talvez não sejam
infundados.
Pesquisar os pontos centrais da tese da morte do homem em
Michel Foucault, identificando neste âmbito aspectos de filiação

3
Idem, p. 404
4
Idem, p. 399.
15

nietszcheana de crítica radical à modernidade, eis o objetivo deste


trabalho.
Mas a problemática assim levantada remete-nos para a
própria questão da constituição da modernidade, modernidade essa
inaugurada, segundo Foucault, com a instituição dos saberes sobre o
sujeito. Esta modernidade, tal qual a vivenciamos hoje, estaria ela
em seus estertores? Vivemos hoje no limiar de um novo século e, mais
do que isso, no limiar do terceiro milênio. Terá sido o século XX um
século vespertino? Estaremos hoje vivendo o fim de uma era? Outra
era virá? O fato é que parece estarmos em dia de balanço milenar.
Nietzsche e Foucault impelem-nos a esse balanço. O primeiro,
insurgindo-se fundo contra a possibilidade de um julgamento da vida
a partir de um critério de verdade, situando para além de bem e mal
e de verdade e aparência a sua filosofia de superação da oposição
metafísica de valores, e apontando para uma formulação mais radical.
O segundo, como que num desdobramento do primeiro, com uma
arqueologia dos saberes e uma genealogia do homem moderno.
A constituição dos saberes do homem sobre si mesmo na
modernidade será, pois, considerada ⎯ a formação desses saberes e
seu potencial de transformação. Aqui, estaremos orientados por dois
críticos radicais, entendendo-se essa radicalidade como refindo-se
ao próprio homem, isto é, aos saberes relacionados ao
estabelecimento do homem enquanto conceito.
Eis que a tese da morte do homem apresenta-se, assim, como
um coroamento de toda uma busca da compreensão do saber que se dá em
Foucault pela via da arqueologia e da genealogia. Será dentro deste
contexto de pensamento, que nossa dissertação versará. Face ao
momento histórico em que nos encontramos, face às perplexidades com
que nos defrontamos, estudar e relacionar os dois pensadores,
Foucault e Nietzsche, parece oportuno e instigante. Nesse sentido,
trataremos de procurar a continuidade de uma atitude inaugurada por
Nietzsche na passagem do século XIX para o século XX e assumida por
Foucault em nossa contemporaneidade: de incitação à dúvida e à
suspeita, e de indagação do que está por vir.
16

Delimitamos o problema filosófico objeto de nossa pesquisa.


Nela, estaremos voltados para: a) o problema da modernidade ⎯ tomado
como ponto de partida ⎯, ou seja, o pensamento moderno racional,
entendendo por tal aquele inaugurado, segundo Foucault, com a
fundação dos saberes sobre o sujeito; b) a conceituação da própria
idéia de homem ⎯ ou humanidade ⎯, e dos saberes deste sobre si
mesmo, no que constituem as chamadas ciências humanas e a própria
filosofia; c) a indagação do que é o homem, do que tem sido o homem
da modernidade; d) a problemática levantada por Foucault, neste
contexto de pensamento, no sentido de que as disposições
fundamentais daqueles saberes, assim como se constituiram, poderão
se desconstituir; e) a referida problemática no que remeta a
Nietzsche em sua crítica à verdade, à consciência, à linguagem e à
moral e nas idéias da morte de Deus e da morte do homem, do saber
trágico e conceitos correlatos de vontade de potência, eterno
retorno e transvaloração de valores, identificando aspectos de
filiação nietzschiana no pensamento de Foucault; f) o momento
histórico em que vivemos, fim de século e limiar do terceiro
milênio, momento de perplexidade, no que incita à dúvida, à
suspeita, e à indagação do que está por vir.
Trataremos de buscar um encadeamento entre Nietzsche e
Foucault, sendo marcante o fato de que ambos apontam como ilusão o
projeto de encontrar um significado profundo subjacente às
aparências. Mas, mostrar esse encadeamento será também mostrar uma
continuidade, um aperfeiçoamento, uma confirmação, no que se
configura já uma tradição de pensamento, tradição essa de uma dúvida
e de uma suspeita, marcas da modernidade.
Ocorre que essa dúvida e essa suspeita culminam com grandes
provocações: a da morte de Deus e da morte do homem em Nietzsche e
em Foucault. No primeiro, uma decretação-provocativa do fim de uma
era e conclamação ao início de outra. No segundo, idem. No primeiro,
contudo, era sabido o substituto de Deus: o homem. A esse respeito,
Nietzsche falava na saída negativa do último homem e na saída
positiva do Übermensch, o homem-superação, tal qual Zaratustra,
17

como resultado de uma transvaloração de valores. Na segundo, porém,


o substituto resta obscuro. Foucault não aponta substituto ao seu
morto, apenas aponta pistas e diz que nada há por que chorar. Fala
do “brilhar mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem como
sinal”5, e desenvolve toda uma arqueologia dos saberes e uma
genealogia do indivíduo moderno justamente para mostrar que é o
homem, enquanto conceito, que está em questão.
Desta maneira, configura-se toda uma condição de
possibilidade: crítica à racionalidade moderna tendo como centro o
próprio homem. Este será, pois, o objeto de nossa pesquisa. Junto, a
nossa indagação, como em Nietzsche e em Foucault: o que está por
vir? Como pensar doravante?
Nosso método de trabalho consiste numa análise e
interpretação de textos de fontes primárias, a saber: Nietzsche
e Foucault, bem como de fontes secundárias constituídas pelos
comentadores citados no decorrer do trabalho. Nele, partimos da
filosofia de Nietzsche para chegar ao pensamento de Foucault e é
certo que estaremos procurando demonstrar uma continuidade entre
os dois filósofos, ou seja, uma filiação de Foucault a
Nietzsche. Para tal, em Nietzsche iremos explorar sobretudo o
pensamento trágico e a crítica à consciência e à linguagem,
assim como a inserção em seu pensamento da morte de Deus e da
morte do homem. Neste contexto, a tese da morte de Deus será
tomada pela via da história ⎯ o que caracteriza a ascensão do
Deus cristão e a derrocada dos deuses gregos ⎯ , e pela
perspectiva filosófica do fim da metafísica e da ascensão do
homem como fundamento no lugar de Deus, bem como da superação
deste. Prosseguimos considerando o pensamento de Michel
Foucault, pensamento este que compreende uma crítica à
linguagem, aos saberes e aos poderes, no que vem a constituir-
se, segundo seu autor, uma arqueologia e uma genealogia. Neste
contexto, a tese da morte do homem será vista pela perspectiva

5
Idem, p. 403
18

da superação do humanismo, do anulamento daquele que fala e pelo


ser da linguagem.
19

PRIMEIRA PARTE
O SOL NIETZSCHIANO

Introdução
Falar sobre o pensamento de Nietzsche para depois falar dos
pontos de Foucault e do Nietzsche ligado a Foucault, eis o nosso
roteiro, no qual as temáticas da morte de Deus e da morte do homem
aparecem de forma capital. Dentro deste todo, esta parte funciona
como uma preparação, em que nos preocuparemos em fazer surgir o “sol
nietzschiano” que iluminará todo o exame posterior. Aqui, estaremos
particularmente interessados em três temas de Nietzsche, a saber: o
pensamento trágico, a crítica à consciência, à linguagem e à razão,
e a morte de Deus.
Façamos, pois, uma incursão no pensamento deste alemão
8Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900), o filósofo-filólogo
criador de Zaratustra e de outros tantos livros e textos de
filosofia, criador, a bem dizer, de uma nova atitude diante da vida,
de uma nova filosofia, sem deixar, contudo, de demolir umas tantas
outras, razão pela qual passava também por aquele que filosofava com
o martelo.
Busquemos interpretar Nietzsche, penetrando por seu mundo
ainda que de uma maneira provisória, para fazer surgir “o sol da
grande pesquisa nietzschiana” ⎯ assim o escrevera Foucault! ⎯, eis
o trabalho neste início.
20

CAPÍTULO 1
O PENSAMENTO TRÁGICO

O Nascimento da Tragédia
Em 1871, quando Nietzsche tinha 27 anos de idade e já dois
de professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia,
aparece o seu primeiro livro: O Nascimento da Tragédia6. Desde então
constitui-se a definição da natureza do trágico em tema central da
filosofia de Nietzsche, tema este que irá relacionar-se intimamente
com todos os demais, inclusive com o da morte de Deus, conforme
iremos ver.
Reveste-se, pois, de muita importância o nosso ponto de
partida ⎯ interpretar o trágico em Nietzsche ⎯ porque será no
fenômeno do trágico que este percebe a natureza da realidade. Nele,
o tema estético adquire condição de princípio fundamental. A arte, a
poesia trágica, torna-se a chave do mundo. Nietzsche serve-se de
categorias estéticas para formular a sua visão de mundo e isso
confere ao Nascimento da Tragédia uma natureza toda particular em
que o fenômeno da arte é colocado no centro. Para Nietzsche, só com
os olhos da arte consegue o pensador mergulhar o seu olhar no
coração do mundo, e é a arte trágica, a tragédia antiga, que possui
este olhar penetrante.

6
NIETZSCHE, F.. O Nascimento da Tragédia. ⎯ Citarei pela edição Friedrich
Nietzsche Sämtliche Werke, Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino
Montinari, Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, dtv de Gruyter, Dünndruck-
Ausgabe. KSA 1, Die Geburt der Tragödie.
21

Estaremos, assim, nos situando em um mundo de um pensador


intuitivo, cujos pensamentos, colocados e afirmados, adquirem uma
espécie de confirmação exatamente através da intensidade luminosa
que depois projetam nas coisas. Nietzsche permanece alheio à
especulação e seu pensamento brota de uma experiência
fundamentalmente poética. Assim, ao penetrarmos neste tema com
características tão particulares, nada mais conveniente do que nos
deixarmos envolver pela poesia, uma bela poesia: a da descoberta do
maravilhoso fenômeno do dionisíaco.

O mito
Para chegarmos ao pensamento trágico da forma como
pretendemos, nada mais interessante do que lembrarmos da lenda grega
antiga de Ariadne e Dionísio, lenda a que Nietzsche recorreu com
grande inspiração.7
Diz a lenda que Ariadne, filha de Minos e Pasífae, vendo o
belo herói Teseu encerrado no labirinto para ser devorado pelo
Minotauro, concebeu por ele tão violento amor que não hesitou em
salvá-lo. Deu-lhe um novelo de linha com o qual, desenrolando-o à
medida que avançava, logrou sair das inúmeras voltas do labirinto
depois de haver matado o monstro. Teseu fugiu da ilha de Creta com
sua libertadora e a desposou, mas logo depois a abandonou na ilha de
Naxos. Dionísio, que por ali passava, veio então consolá-la da
infidelidade de Teseu, apaixonando-se pela infeliz princesa. Fez-lhe
presente de uma bela coroa de ouro e pedrarias, obra-prima de
Vulcano, casando-se com ela. Mas Ariadne era mortal, contrariamente
a Dionísio que era imortal, o deus da embriaguez e do desembaraço.
Assim, diz também a lenda que, após a morte de Ariadne, sua coroa
foi lançada aos céus em sua lembrança,8 tendo as pedras da coroa de
Ariadne se convertido em belas estrelas do céu.

7
NIETZSCHE, F.. Ditirambos de Dionisos, Lamento de Ariadne. N.S.W., KSA 6,
Klage der Ariadne, s.398. “Ich bin dein Labyrinth...”
8
V. verbete Baco, In: SPALDING, Tassilo Orpheu. Dic. Mitologia Grego-Latina.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1965, e Dioniso ou Baco: o deus do êxtase e do
entusiasmo, cap. IV In: BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, II.
Petrópolis: Vozes, 1995. p.113.
22

Dionísio e Ariadne, sua noiva; Dionísio e Ariadne, sua


amada; Donísio e a vida-mulher, seu sofrimento; Donísio e a vida,
como tragédia. Eis aí, no mito, uma dualidade que caracteriza o
pensamento trágico: a do homem e da vida, esta em toda sua dimensão
inclusive a do sofrimento, sofrimento este proporcionado pela paixão
que é viver.
Mas o que há de tão particular e de tão interessante nessa
história? É que Dionísio a afirma sempre, mesmo em face da mais
cruel dor. Pois, quem mais, além de Dionísio, poderia ter lançado
aos céus a coroa de Ariadne? ⎯ uma coroa para ser contemplada por
todos aqueles que se sensibilizam pela beleza da vida e a eternidade
das estrelas.

O Eterno Retorno e a inocência


A eternidade das estrelas ⎯ é com ela que Dionísio afirma
a sua paixão, um episódio que deseja que retorne eternamente, o seu
caso de amor com Ariadne, o seu caso de amor com a Vida.
O que acontece, acontece para sempre, fica acontecido e
nada mais pode mudar. É nesse sentido que o acontecido retorna
sempre. Retorna pelo simples fato de ter acontecido para a
eternidade. Uma coisa é de uma certa maneira e não de outra porque
aconteceu ser daquela maneira e não de outra. É nesse sentido que se
dá o eterno retorno do acontecido. Uma outra maneira de conceber
isso seria admitir uma condição cosmológica caracterizada por uma
uma infinitude do tempo associada a uma finitude das possibilidades
no plano do existente. Mas, mais do que concepção do tempo como
infinito, de que não há origem nem fim dos tempos, mais do que
condição face à finitude das possibilidades, pode-se pensar que o
retorno líquido e certo do acontecido, do feito, da ação, dá-se
porque o que está feito está feito e não está mais por fazer. É
assim que o feito influi decisivamente sobre a eternidade, e esta
inclui o passado, o presente e o futuro.9

9
Interessante é observar que, presentemente, o eterno retorno tem lugar numa
cosmologia derivada de uma concepção física e matemática do existente como dando-se
em um âmbito fechado, o chamado “espaço-tempo”, um espaço quadridimensional tendo
23

Interessante é observar que esta concepção acarreta uma


importante dimensão ética da doutrina do eterno retorno: a
importância da nossa ação, no sentido de que “todos aqueles que agem
amem a sua ação infinitamente, mesmo que ela não mereça ser amada”10.
Uma ética calcada nessa compreensão é uma ética que leva à afirmação
do feito, da ação.11
E o feito, o acontecido, dá-se na Vida. A Vida é tudo e é
bela. A Vida é para ser amada. ⎯ Por isso, nunca negá-la-ei, a Vida,
mesmo em face da maior dor. Sempre afirmarei a Vida, este é o
pensamento trágico. Sempre afirmarei Ariadne, meu amor, este é o
pensamento de Dionísio, um pensamento inocente.
Inocente é a vida para Dionísio. Inocente é o múltiplo jogo
da vida, da força, da vontade. A existência é um jogo e, como tal,
pura sensação, fenômeno estético. A existência flui, é devir, é
afirmação pura. Não existe um ser para além do devir, não existe um
uno para além do múltiplo. O múltiplo é a manifestação inseparável,
a metamorfose essencial. O múltiplo e o devir são a grande
constância. Assim, o múltiplo é afirmação do uno; o devir, a
afirmação do ser.
Retornar é o ser do próprio devir, o ser que se afirma no
devir. Ser é devir. Tudo o que é devém. Tudo o que devém é. Será,
pois, o eterno retorno lei do próprio devir, como justiça e como
ser.
E não terá sido assim que a enunciaram, a serpente e a
águia, para Zaratustra, de uma forma inconseqüente, tornando
“modinha de realejo” para seu dono a doutrina do eterno retorno, sem
que este, mesmo assim, deixasse de amá-los?

por quarta dimensão o tempo. Este espaço contém todos os acontecimentos possíveis,
acontecimentos esses caracterizados por pontos deste espaço.
10
NIETZSCHE, F.. Considerações Extemporâneas, Da utilidade e do incoveniente
da história para a vida. ⎯ N.S.W., KSA 1, Unzeitgemässe Betrachtungen II, Vom
Hutzen und Nachteil der Historie für das Leben, s.254, Z.6, “So liebt jeder
Handelnde seine That unendlich mehr als...”
11
Nietzsche explica em Ecce Homo que o eterno retorno é a “suprema fórmula
de afirmação que alguma vez se atingiu”, fórmula esta que teria lhe surgido
em agosto de 1881 na concepção do Zaratustra. Há que se considerar, todavia,
que as idéias fundamentais de Nietzsche estão em relação umas com as outras,
razão pela qual fazemos esta menção ao tema neste ponto do trabalho em que
estamos tratando do pensamento trágico.
24

Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do


ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente
transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é
refeito; eternamente se constrói a mesma casa do ser.
Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente
fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada
instante começa o ser; em torno de todo “aqui” rola a
bola “acolá”. O meio está em toda parte. Curvo é o
caminho da eternidade.12

Por que deixar de amá-los, Zaratustra a seus animais, se a


existência nada tem de responsável nem mesmo de culpável? Dar à
irresponsabilidade um sentido positivo, tornar-se independente do
louvor e da censura, do presente e do passado, do bem e do mal, este
é o dom também de Dionísio, numa existência de jogador-artista-
criança: o jogador abandona-se temporariamente à vida e
temporariamente fixa seu olhar sobre ela; o artista coloca-se
temporariamente na sua obra, sobre sua obra; e a criança brinca,
retira-se do jogo e retorna; brinca como brinca Dionísio com as
pedras da coroa de Ariadne lançadas no firmamento, ou seja,
afirmadas para sempre em seu acaso. Haverá aí, nesta maneira de ver
o mundo, possibilidade de se admitir um Deus? ⎯ um Deus que morre?

Da imortalidade dos deuses: Apolo e Dionísio


Dionísio era imortal. Os deuses gregos antigos eram todos
imortais. Por que haveriam os gregos de admitir um deus mortal, se
os deuses eram aquilo que eles próprios eram, uma vontade de ser ...
eternamente? E, sendo os deuses como os homens, tinham as
imperfeições e as virtudes destes; além de disputarem e litigarem
entre si e serem passíveis de perdas e danos, freqüentemente se
imiscuíam nas questões dos homens e tomavam partido das suas
paixões. E os homens se sentiam favorecidos ou desfavorecidos pelos
deuses. Se uma pessoa errava, era porque um deus a havia cegado; se
outra matava, era porque um deus a havia para tal fortalecido ou

12
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, terceira parte, O convalescente ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, ein Buch für Alle und Keinen, Dritter
Teil, Der Genesende 2, s.272, z. 31, “Alles geht, Alles kommt zurück; ewig
rollt das Rad des Seins ...”
25

capacitado; se alguém era bem sucedido, era porque um deus fora seu
amigo.
Entre os gregos antigos, os homens pareciam querer a vida
daquela maneira transcorrendo eternamente, como para com os seus
deuses. Esses deuses morreram? Sim, morreram. “Morreram de rir ao
escutar um Deus dizer que era o único”13, escreveu Nietzsche.
Dentre os deuses do Olimpo havia Apolo, o deus da bela
figura. Foibos Apolon; o nome procede da raiz fós, “luz” e do
substantivo bíou, “vida”, Luz da Vida. Apolo não era só o deus do
sol, mas o próprio sol. É o mais radioso dos Imortais. Vivifica
todos os seres mas igualmente queima e desseca tudo; deus fecundo e
purificador é, da mesma forma, o deus destruidor dos exércitos,
sempre vitorioso, o deus da morte súbita. Grande curador e médico, é
pai de Esculápio, o deus da Medicina. Apolo proporciona calma às
agitações do espírito e dá paz. Apolo é o deus da harmonia e da
música apaziguante e da inspiração poética. Comanda as Musas, é deus
das profecias, inspira as Sibilas e Pitonisas em Delos, Tênedos,
Claros, Pátara, Cumas, sobre o monte Palatino e ainda em muitos
outros lugares menos importantes. Consultavam-no ao fundar toda nova
colônia, ou ao decretar leis importantes. Apolo estava presente em
todos os atos da vida pública.
Dionísio, por sua vez, o deus de Nisa ⎯ Baco, para os
romanos ⎯ era o deus do vinho, filho de Júpiter e Semele. Criado
pelas Horas e pelas Ninfas longe do Olimpo e da ciumenta Juno, no
monte Nisa, instruíram-no Sileno e as Musas. Ao crescer, empreendeu
a conquista da Índia e do território compreendido entre a Índia e a
Grécia. Consta que passou pelo Egito. Acompanhado de um grande
cortejo de homens e mulheres, armados com o tirso, batendo em
tambores e seguido pelas Ninfas, pelos Sátiros e pelo próprio deus
Pã, deus dos pastores, dos rebanhos, e das florestas, marchava
Dionísio à frente do cortejo como um vencedor triunfante. Submeteu
ao seu império todos os povos, ensinando-lhes a cultura da vinha e o

13
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, terceira parte, Dos renegados ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, Dritter Teil, Von den Abtrünnigen,
s.230, z.4, “Mit den alten Göttern gieng es ja lange schon zu Ende...”
26

fabrico do vinho. Representam-no às vezes com chifres e mesmo sob a


forma de um touro, símbolo da força que o vinho pode dar ao homem.
Mais comumente é representado como um belo jovem de faces coradas,
coroado de vinha ou de hera, com os longos cabelos anelados caídos
sobre os ombros. Não raro figuram-no sentado num carro puxado por
tigres, leões e panteras. A ele imolavam o bode, sendo também a ele
consagradas a pantera e a pega, ave européia semelhante ao corvo;
entre os vegetais , a hera, o pinheiro e o carvalho. Consta que o
culto de Dionísio foi introduzido na Grécia por Orfeu. De Dionísio
contam-se muitas façanhas. Aos habitantes do Egito ensinou a
agricultura e a arte de extrair o mel. Seus apelidos são inúmeros:
Liber, “Livre”, porque o vinho desembaraça o espírito; Évio, o que
solta o grito evoé, grito festivo com que se o evocava; Niseu, da
cidade mítica de Nisa; Lieu, o quebra-cuidados; Leneu, o deus do
lagar; Nictélio, o noturno, já que suas festas eram celebradas à
noite; Brômio, o que faz ruídos. O nome Baco deriva de uma palavra
grega que significa “gritar”, alusão aos gritos frenéticos das
Bacantes e dos bêbados. Em Atenas, suas festas, as Dionisíacas,
celebravam-se oficialmente com grande pompa e esplendor. Consistiam
as principais cerimônias numa majestosa procissão na qual se levavam
tirsos, vasos cheios de vinho, coroas de pâmpanos, ramos e
guirlandas de árvores e cepas de vinha. Virgens chamadas Canéforas,
as que conduzem cestos, soltavam, de açafates enfeitados, serpentes
domesticadas. No cortejo figuravam homens fantasiados de Silenos, de
Pãs e de Sátiros. Em Roma, celebravam-se as festas em honra de Baco,
as Liberálias.14
Apolo e Dionísio, Dionísio e Apolo. Neles reside uma outra
dualidade que caracteriza o pensamento trágico. Em Apolo, a
divinização do princípio de individuação e de construção da
aparência, da imagem plástica que triunfa sobre o sofrimento do
indivíduo pela glória radiosa que dele se rodeia e assim apaga a
dor. Em Dionísio, o regresso à unidade primitiva, uma abolição do
indivíduo e uma inserção no grande naufrágio e no ser original.

14
Cf. SPALDING, T.O., p. 37 e BRANDÃO, J.S., p. 113, Op. cit.
27

Dionísio reproduz a contradição como a dor da individuação,


resolvendo-a num prazer superior, fazendo-a participar da
superabundância do ser único ou do querer universal.
Apolo e Dionísio não se opõem como os termos de uma con-
tradição, mas como dois modos antitéticos de a resolver. Apolo,
mediatamente, na contemplação da imagem plástica; Dionísio,
imediatamente, na reprodução, no símbolo musical da vontade.
Assim, a tragédia é esta aliança admirável e precária
dominada por Dionísio. Na tragédia, Dionísio é o fundo trágico; o
tema trágico reside nos sofrimentos de Dionísio, sofrimentos de
individuação mas reabsorvidos no prazer de ser original. E o
espectador trágico é o coro, coro de vozes a cantar e a compor o
palco da arte dramática grega antiga, o coro que tem Dionísio como
senhor e amo mas que se distende ao projetar para fora de si um
mundo de imagens apolíneas. A arte dramática em que consistia a
Tragédia Grega é a representação do fenômeno dionisíaco sob uma
forma e num mundo apolíneo.15

Sócrates
Eis que na vida dos gregos haveria de existir Sócrates, o
novo opositor a Dionísio. Não é Apolo que se opõe ao trágico ou
através de quem o trágico morre, mas Sócrates, e este não é apolíneo
nem dionisíaco, mas teórico. Enquanto os instintos eram força
afirmativa e criadora para os homens produtivos de outrora, e a
consciência era força crítica e negativa, em Sócrates ocorre uma
inversão: nele, é a consciência que se torna criativa e os
instintos, negativos. Sócrates torna-se o primeiro grande gênio da
decadência porque opõe a idéia à vida, julga a vida pela idéia,
postula a vida como algo que deve ser julgado, justificado,
resgatado pela idéia. O que ele nos pede é que sintamos a vida como
que esmagada sob o peso do negativo e, assim, indigna de ser
desejada por si mesma, experienciada por si mesma. Sócrates, dessa

15
A teoria da aliança de Apolo e Dionísio na tragédia é apresentada por
Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. ⎯ N.S.W., KSA 1, Die Geburt der
Tragödie.
28

forma, marca o início do pensamento lucubrativo racional. Sócrates


pensa deveras racionalmente e dessa maneira se contorce em
explicações fazendo uso da palavra ou incentivando os seus próximos
a assim procederem. A partir desse momento, a partir do momento em
que o homem passa a pensar dessa forma, introduz-se nas coisas o
bacilo da vingança.
Mas Sócrates, sendo como foi, parece não ter amado a vida.
Eis que nesse sentido ele se denuncia justo no momento de morrer,
segundo escreve seu discípulo Platão.16 Eis que Sócrates, no momento
de morrer, depois de haver justificado aos amigos pesarosos o seu
ato de não fugir e de não reagir à condenação de beber cicuta, já
tendo-a bebido e já sentindo o torpor provocado pelo veneno, pede
que se ofereça um galo a Esculápio por aquele episódio. Sócrates
estava querendo, com o galo, recompensar o deus da cura pois, enfim,
sentia-se curado. Curado da vida. Para Sócrates, vida é doença,
vida é mal que se cura com a morte. Eis Sócrates, o primeiro
racionalista.
Sócrates é o homem teórico, opositor do homem trágico. E
como homem teórico, Sócrates opunha o mundo das idéias ao mundo das
aparências, o mundo racional ao mundo da arte, o além-da-vida à
vida.17 E não terá sido ali, no além-da-vida, que o homem do Ocidente
passou a habitar depois de Sócrates? Não foi ali que colocou o seu
novo Deus?

Dionísio e o crucificado
À antítese Dionísio e Apolo, e à complementaridade Dionísio
e Ariadne, e à oposição Dionísio e Sócrates, substitui-se aqui a
mais significativa oposição: Dionísio e o Crucificado, Dionísio e
Cristo, Dionísio e o cristianismo.

16
V. diálogo Fédon, de Platão, em que Sócrates é apresentado na prisão,
conversando sobre a morte. O diálogo relata o caminho socrático, retomado e
desenvolvido por Platão: o conhecimento como reminiscência e a doutrina das
idéias.
17
A questão do Socratismo é apresentada por Nietzsche em O Nascimento da
Tragédia, compreendendo a questão do socratismo da moral, do socratismo
estético, do socratismo lógico e da luta contra a tragédia esquiliana ⎯
N.S.W., KSA 1, Die Geburt der Tragödie.
29

Cristo, filho de Deus, Deus sob a forma de Homem que morre


na cruz para nos salvar; um deus mortal, eis aí o crucificado, um
Deus que redime os pecados do mundo, eis aí Cristo, Cristo Homem,
Cristo Deus, Deus Morto.
Tanto em Dionísio quanto em Cristo o mártir é o mesmo, a
paixão é a mesma, é o mesmo fenômeno que se dá, mas são dois os
sentidos. Num, a vida não tem justificação porque é essencialmente
justa. No outro, a vida é algo que deve ser justificado porque não é
justa em sua essência. Dionísio afirma a dor de viver e aceita a
vida sem culpa, nele há uma exteriorização da dor, afirmação de
vida, uma embriaguez que é pura atividade, laceração,
transavaliação, renascimento, redespertar para a vida. No
Cristianismo, a vida é culpada na medida em que faz sofrer, a vida
deve ser resgatada de sua injustiça e salva pelo próprio sofrimento
que causa, nele há uma interiorização, negação, entorpecimento,
convulsão, crucificação, transubstanciação, ressurreição para a
morte, com ele estão os que sofrem de um empobrecimento de vida.
Para Dionísio, a vida é santa por si própria e motivo de afirmação,
uma pura diferença afirmativa. Para o Cristianismo, a vida é o
caminho da santidade, reconciliação, negação dialética. Para o
Cristianismo, a vida é tristeza, má consciência; para Dionísio,
alegria.

Da alegria e do Amor Fati


Alegria... E por que não lembrar aqui desses alegres e
brasileiros versos de nosso poetinha maior? ⎯ e, deveras trágico.

É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a


melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração
⎯ cantava o poeta ⎯ mas pra fazer um samba com
beleza é preciso um bocado de tristeza, é preciso um
bocado de tristeza, senão não se faz um samba não ...
⎯ completava ele.18

18
Estamos aludindo às estrofes iniciais do Samba da Bênção de Vinicius de
Moraes a título de ilustração, um brasileiro exemplo que, a nosso ver, muito
bem exemplifica o pensamento trágico.
30

Será necessário o gênio do pluralismo, o esforço e o poder


das metamorfoses, para fazer de tudo um objeto de afirmação. Eis aí
a essência do trágico: uma afirmação múltipla e pluralista,
afirmação mesmo da tristeza de viver, negatividade essa que se
transmuta em positividade no canto do poeta. Mas, poder-se-á tomar
tudo o que existe por objeto de afirmação, quer dizer, de alegria?
Para tal, será necessário encontrar em cada coisa os meios
particulares pelos quais ela é afirmada, pelos quais deixa de ser
negativa. Assim, o que define o trágico é a alegria que resulta do
múltiplo, a alegria plural, que se afirma também na dor e na
tristeza. Amor Fati, amor aos múltiplos fatos do mundo.
Mas, deve-se cuidar de um aspecto importante: de que, antes
de aceitar dizendo sim a tudo indiscriminadamente, trata-se de
afirmar: afirmar a vida. Trata-se de um afirmar-aceitando-a, tanto
quanto um aceitar-afirmando-a. O dizer sim a tudo
indiscriminadamente não é afirmar a vida, isso é próprio do burro
que zurra dizendo sim.

Mas mastigar e digerir qualquer coisa


⎯ isso é próprio de porcos! Dizer sempre I-a ⎯
aprendeu isto somente o burro e quem tem o seu
espírito!19

Muitas vezes, repetidas vezes, precisamos dizer um não, um


rotundo não, para afirmar a vida ⎯ e como isso é difícil...
A forma estética assim designada é que o trágico é alegria,
lógica da afirmação múltipla que é própria do artista, do criador,
do criador de valores; e que implica também numa ética. Sonho anti-
dialético e anti-religioso. Sonho heróico. E o herói é alegre, o
herói é leve e diáfano, o herói dança, o herói joga, como Dionísio-
herói que conduz ao céu Ariadne; as pedrarias da coroa de Ariadne
são estrelas e sua constelação nasce como de um lance de dados.
Jogar é afirmar o acaso, é aceitar o lance de dados. Afirmar o acaso

19
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, parte 3, Do espírito de gravidade,
numa alusão ao burro que zurra fazendo I - a, I - a, que soa como a palavra
alemã Ja, que quer dizer “sim” ⎯ KSA 4, s.244, Z.1, “Alles aber kauen und
verdauen ⎯ das ist eine rechte Schweine-Art! Immer I-a sagen ⎯ das lernte
allein der Esel, und wer seines Geistes ist! ⎯”.
31

é ser capaz de dar ao lance de dados, qualquer que seja o seu


resultado, um sentido positivo, alegre.

Um sentido positivo, alegre e afirmativo do acaso, um


exemplo que Nietzsche amava deveras, é assim como o canta a bela
Carmen, la Carmencita, flor de acácia entre os lábios, ao responder
com estes franceses versos aos jovens da praça que imploravam por
seu amor e que perguntavam se ela um dia os amaria.

Quand je vous aimerai?


Ma foi, je ne sais pas.
Peut-être jamais, peut-être demain,
mais pas aujourd’hui, c’est certain.
(...)
L’amour est enfant de Bohême,
il n’a jamais, jamais connu de loi;
si tu ne m’aimes pas, je t’aime;
si je t’aime, preds garde à toi!
(...)
Prends garde à toi!20

Do niilismo
O problema comum entre a ideologia cristã e o pensamento
trágico é o sentido da existência. Eis aí o problema supremo da
filosofia, que pode ser enunciado de outra forma: justiça. O que é a
justiça? Será a justiça obra de Deus? Mas que Deus? Deus morreu.
Nesta longa história, a do sentido da existência, serviu-se
do sofrimento como um meio para provar a injustiça da existência e
ao mesmo tempo para lhe encontrar uma justificação superior e
divina. A existência é culpada na medida em que sofre; mas porque
sofre, expia e é resgatada. Mas é Dionísio quem permite ver a

20
“Se eu te amo, tome cuidado!” Referimo-nos, como ilustração, ao trecho La
Bohême do primeiro ato de Carmen, ópera em quatro atos com libreto de Henri
Meilhac e Ludovic Halévy, baseado no romance Carmen de Prosper Mérimée e
música de Georges Bizet, estreada a 3 de março de 1875 no Teatro Nacional da
Opéra-Comique de Paris. Nietzsche admirava muito esta ópera, tendo sobre ela
escrito que lhe parecia perfeita. “Ela se mostra ligeira, ágil, tem polidez.
Ela é amável (...) ‘Tudo o que tem mérito é fácil, e os deuses têm os pés
ligeiros’: esta é a primeira tese de minha estética. (...) Ela é rica. Ela é
precisa. (...) Ter-se-á alguma vez escutado sobre o palco entonações de uma
dor mais trágica?”, O Caso Wagner, parágrafo 1 ⎯ N.S.W., KSA 6, Der Fall
Wagner I, s.13, z. 22, “Sie kommt leicht, biegsam, mit Höflichkeit daher. Sie
ist liebenswürdig...”.
32

armadilha que aí se esconde: fazer da existência um fenômeno moral e


religioso. O que está no fundo de tudo isso é uma maneira sutil de
depreciá-la, de torná-la passível de um juízo moral e sobretudo
juízo de Deus. A existência, aqui entendida como a vida, é um valor
em si; ela não pode ser julgada!
Nihil é uma palavra latina que significa nada, coisa
nenhuma. Dela deriva a palavra niilismo, que significa aquilo que
baseia-se sobre o nada, que valoriza o nada. Sim, porque em tudo
existe um valor, sendo o valor último, o valor dos valores, a
própria vida. Valorizar o nada, aquilo que é próprio do niilismo,
significa não valorizar a vida. E valorizar o nada está muito
próximo do nada de valor.
Mas, o que é valorizar o nada? Significa não valorizar o
tudo, que é a vida. Assim, niilismo é valorizar o que está fora da
vida. Niilismo significa que os mais altos valores se depreciam,
falta a meta, falta a resposta ao porquê. O niilismo radical é a
convicção da mais absoluta insustentabilidade da existência.
Os que têm a vida como injusta, triste, pesada, grave; os
que não sabem dançar, cantar, poetar, e que vivem só a teorizar, a
racionalizar, a calcular; os da lógica fria e excludente em que A é
igual a A e o que não for A estará excluído; os que têm medo da vida
e de sua lógica plural do A, do B, do C, do D, e de todas as demais
letras e signos do mundo, podendo-se com eles montar toda e qualquer
equação pois a vida assim o permite; os que têm nojo da vida; os
covardes; os que não amam a vida como ela é; a esses só resta
valorizar o que não está na vida, ou seja, valorizar o nada. São os
trasmundanos, os que vivem em busca dos trasmundos, para quem este
mundo não é digno e afigura-se como “obra de um Deus sofredor e
atormentado”21; são os que vivem a enfiar a cabeça na “areia das
coisas celestes”, quando esta é para ser trazida erguida e livre

21
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, primeira parte, Dos trasmundanos ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, Ester Teil, Von den Hinterweltlern,
s.35, z.4, “Eines leidenden und zerquälten Gottes Werk schien mir da die
Welt”.
33

como cabeça terrena capaz de “criar o sentido da terra”. Mas o que


esperar de quem não ama a vida? Vingança. Vingança contra a vida.
Por todo lado onde se procuraram responsabilidades, ou
seja, exigir de alguém uma resposta, foi o instinto de vingança que
as procurou. O instinto de vingança apoderou-se de tal maneira da
humanidade, no decorrer dos séculos, que toda a metafísica, a
psicologia, a história e sobretudo a moral dele ficaram impregnadas.
E eis que o niilismo apresenta aspectos, gradações.
Primeiro, o de um niilismo negativo, momento da consciência judaica
e cristã. Aqui, a idéia de Deus exprime a vontade de nada, a
depreciação da vida. O centro de gravidade da vida é colocado não na
vida, mas no além, no nada. Depois, o de um niilismo reativo,
momento da consciência européia, o do homem que mata Deus e se
coloca, com culpa, em seu lugar. Finalmente, o de um niilismo
passivo, momento da consciência búdica. Aqui, trata-se de toda e
qualquer supressão da vontade. Não se trata mais de uma vontade de
nada mas de um nada de vontade.22

A morte de Deus, uma interpretação histórica


Segundo a história, é o Velho Deus Judaico que deixa o
Filho morrer, isto é, mata-O. Para quê? Para torná-lO independente
de Si próprio e do povo judaico. Em outras palavras, o povo judaico,
ou melhor, a consciência judaica mata Deus na pessoa do Filho e
assim inventa um Novo Deus, um Deus Universal que irá conquistar
Roma e destronar os deuses gregos. A consciência judaica, no Filho,
inventa um Deus de amor que sofre com o ódio em vez de encontrar no
ódio as premissas e o seu princípio. Trata-se de um Deus, na figura
do Filho, independente das próprias premissas judaicas. Assim, o
judeu, ao matar Deus, encontrou o meio de fazer do seu Deus um Deus
Para Todos, um Deus Verdadeiramente Cosmopolita, e que irá vencer os
deuses de Roma. Eis, pois, que a Judéia vence Roma.
Assim, é o Velho Deus Judaico que verdadeiramente morre
nessa história. E o Filho refaz um Deus. No lugar do Pai do Antigo
22
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia, cap. V: Super-Homem: contra a
dialética.
34

Testamento que nos metia medo, agora está o Filho que exige apenas
que Nele creiamos e que O amemos, como Ele nos ama. Além disso, pede
que nos tornemos reativos para evitar o ódio.23
Na medida em que a vida reativa se estabelece, um estranho
resultado ocorre: somos nós culpados! Matamos Deus e nos colocamos
em seu lugar! A vontade de nada não tolera sequer Deus. Impede-o de
ressuscitar, senta-se sobre a tampa do túmulo e grita: sou Deus! Eis
aí o homem-deus, não mais o Deus-Homem, o homem europeu, o homem
ocidental moderno e contemporâneo. Eis aí o homem culpado por
natureza, culpado em tudo. Eis que essa culpa se interiorizou de tal
modo em nós que nos sentimos culpados por viver. Não é assim que nos
fazem sentir desde criança?
Quanto a Cristo, o Jesus de Nazaré, este teria sido um
budista. O seu tipo pessoal, a “boa nova” que ele trazia apontava
para a supressão do pecado, vale dizer, a supressão da vontade, a
ausência do ressentimento e do espírito de vingança, a recusa de
qualquer guerra, a revelação de um reino do coração, e sobretudo a
aceitação da morte. Jesus teria sido um Buda num terreno pouco
hindu. Jesus era dócil e doce, fornecia uma nobreza ao niilismo
passivo, ao nada de vontade, quando os homens de sua terra estavam
no niilismo negativo (vontade de nada), e quando já se alcançava o
niilismo reativo (culpa, má consciência, ressentimento).24
Terá sido trágica a morte de Cristo? Agora pode-se
compreender que não, segundo o sentido aqui dado ao trágico.
Sobretudo porque esta morte não aponta para a afirmação da alegria
do Múltiplo; pelo contrário, aponta para a negação pela tristeza do
Mesmo.
Mas, quem mais poderá ser portador do pensamento trágico,
além de Dionísio?

23
Idem
24
NIETZSCHE, F.. O Anticristo, par.31, 32 e 33 ⎯ N.S.W., KSA 6, Der
Antichrist 31, 32,33, s. 201, 203, 205.
35

Zaratustra
Zaratustra, que depois de gozar por dez anos do espírito de
solidão na montanha, falando ao sol, diz que, assim como a abelha
satura-se do mel juntado em demasia, aborreceu-se de sua sabedoria,
e precisa de mãos que para ele se estendam. Resolve, assim, descer
da montanha25 para ensinar aos homem o além-do-homem ⎯ o Übermensch
⎯, o super-homem.
O homem é algo que deve ser superado
⎯ dizia ele para os homens da cidade. Que fizestes
para superá-lo? ⎯ perguntava. O homem é uma corda,
atada entre o animal e o além-do-homem ⎯ uma corda
sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-
caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-
se e parar. O que é grande no homem é que ele é uma
ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é
que ele é um passar e um sucumbir. Amo Aqueles que não
sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são
os que atravessam ⎯ dizia ele.26

Vontade de sucumbir, eis a morte do homem.

Do homem superior e da superação


Zaratustra vê o homem superior sob dois aspectos:
simultaneamente como representante das forças reativas e de seu
triunfo, e representante da atividade genérica e do seu produto. É,
pois, o homem superior, a imagem pela qual o homem reativo se
apresenta como superior, e se deifica. É a imagem na qual aparece o
produto da cultura. E o homem reativo, o mais ignóbil dos homens,
representa o niilismo reativo, momento da consciência européia e que

25
Interessante é observar a similitude entre o que se passa com Zaratustra e
o mito da caverna contado por Platão em A República, uma similitude de
sentidos diferente e opostos. Para Platão, o esplendor das essências só é
dado a contemplar e fixar na alma a quem, rompendo os grilhões, se tenha
elevado além das trevas da caverna até o reino da luz. Em Nietzsche, não é
assim. A sabedoria de Zaratustra não é fruto da contemplação de uma luz que
vem de fora, uma luz dada e preexistente. Zaratustra tem o sol como
companheiro em sua labuta, e o mel de sua sabedoria é como o da abelha:
fruto de um trabalho, de um esforço de juntar e de elaborar o que foi
juntado. Por outro lado, enquanto o homem iluminado de Platão habitua-se às
clarezas ideais e não mais consegue distinguir as sombras do mundo de baixo,
em Zaratustra não é assim. Este enriquece-se com sua labuta a ponto de
saturar-se e, superabundante, sente necessidade de ir ter com os homens para
ensinar o que aprendeu: a superação de si mesmo.
26
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, Prólogo, par. 4 ⎯ N.S.W., KSA 4,
Also sprach Zarathustra, Zarathustra’s Vorrede 4, s.16, z.25, “Der Mensch ist
ein Seil geknüpft zwischen Thier und Übermensch...”
36

é também nossa consciência ocidental contemporânea. Nele está o


homem da grande lassidão, o profeta dos últimos dos homens que quer
a morte mas como uma extensão passiva, em um nada querer. Nele está
a má consciência, o falsário, o expiador do espírito, o demônio da
melancolia que fabrica o seu sofrimento para excitar a piedade, para
espalhar o contágio. Nele está a moralidade de costumes e nele, o
produto da cultura enquanto ciência, o querer a certeza e o
apoderar-se da ciência e da cultura. Nele está o homem do mais frio
de todos os monstros frios: o Estado. Nele está o produto da cultura
como religião, mas nele, também, aquele que percorreu toda a
espécie, dos ricos aos pobres, procurando o reino dos céus e a
felicidade na terra como recompensa, mas também como produto da
atividade humana, genérica e cultural.27
Será o homem essencialmente reativo? Como compreender o
devir histórico do homem da cultura, esse que nós somos? Terá sido o
triunfo das forças reativas essencial no homem e na história? Será o
ressentimento, a má consciência constituintes da humanidade do homem
e o niilismo o conceito a priori da história universal?
Vencer o niilismo, libertar o pensamento da má consciência
e do ressentimento significa superar o homem, destruir o homem. Mas
o que constitui o homem é um devir de forças em geral; não as forças
reativas em particular, mas o devir-reativo de todas as forças. É,
pois, na sua essência que o homem é dito a doença da pele da terra.
Nesse sentido, há uma saúde acerca da qual o genealogista-filósofo
pressupõe um devir-doente. Pois existem de fato forças ativas no
homem, mas que constituem apenas o alimento de um devir reativo.
Assim é que Roma foi invertida pela Judéia, e a Renascença pela
Reforma. Está, pois, nos homens superiores o caráter ativo. Mas eles
são naturezas falhadas; são algo falso, pois seu projeto, em vez de
formar um devir-ativo, alimenta o devir inverso, o devir-reativo.
E Zaratustra fala em transmutar valores, converter a
negação em afirmação. Nunca a reação se tornará ação sem esta
conversão mais profunda: é necessário que em primeiro lugar a
27
Para uma teoria do homem superior v. Assim falou Zaratustra, parte 4 ⎯
N.S.W., KSA 4, Vierten und letzter Theil, s. 293 bis 405.
37

negação se torne poder de afirmar. Assim, as condições que tornariam


viável o projeto do homem superior são condições que lhe mudariam a
natureza: a afirmação dionisíaca, não a atividade genérica do homem.
O elemento da afirmação constitui o elemento do sobre-humano. O
elemento da afirmação é o que falta ao homem, mesmo e sobretudo ao
homem superior, pois há coisas que este homem não sabe fazer: rir,
jogar e dançar. Rir é afirmar a vida e, na vida, até o sofrimento.
Jogar é afirmar o acaso e, do acaso, a necessidade. Dançar é afirmar
o devir e, do devir, o ser.
Mas, como vencer o niilismo? Como mudar o próprio elemento
dos valores, como colocar a afirmação no lugar da negação? O
niilismo, se vencido, será por si mesmo. Será, assim, a transmutação
de valores que vence o niilismo, a única forma completa e acabada do
próprio niilismo.

Tardiamente é que temos a coragem de confessar o que


sabemos verdadeiramente. Que até o presente eu tenha
sido fundamentalmente niilista, foi há bem pouco tempo
que confessei a mim mesmo28

Nietzsche viveu o niilismo em si mesmo e a experiência da


transmutação de valores o fez tornar-se o que é. Nietzsche viveu
esta morte em si mesmo, é o que ele nos diz. Morte para um passado
doente e renascimento para um estado de grande saúde.

O trágico por excelência


A morte do homem é uma passagem daquele que quer sucumbir,
sucumbir para o além-do-homem. Nesse sentido é que esse é um
pensamento trágico por excelência. Trágico porque afirmativo.
Afirmativo do riso, do jogo e da dança dos homens. Dionísio assim o
confirma e Zaratustra assim o disse. Ou melhor: Nietzsche-Zaratustra
assim o disse. Ou melhor: Nietzsche, o filósofo das marteladas.
Ao concluirmos estas considerações sobre o trágico, uma
indagação veio-nos à mente: haverá filosofia mais bela? Ao que,
28
NIETZSCHE, F.. ⎯ N.S.W., KSA 12, Nachgelassene Fragmente 1885-1887, 9
[123](81), Zur Genesis des Nihilisten, “Man hat nur spät den Muth zu dem, was
man eigentlich weiss. Dass ich ...”
38

imediatamente, uma outra nos surgiu como que a ampliar a


constatação: haverá maneira de se admirar uma filosofia que não pela
sua beleza?
Admirar uma filosofia pela sua beleza talvez constitua-se
na única maneira que nos resta, depois da morte de Deus, de
chegarmos à filosofia. Amar a sabedoria tendo-a por linguagem bela
e vã, linguagem de um sujeito que se entrega e se dissolve no mundo.
Não será isso que o maravilhoso fenômeno do dionisíaco inspira a
quem a ele se deu? Não terá sido a isso que Foucault sensibilizou-se
ao ler Nietzsche, antes de tudo, e ao voltar-se, desde o início de
sua obra, para a loucura trágica dos homens, a loucura que é viver?
E a preocupar-se com a história do Ocidente como história da
repressão ao trágico?
39

CAPÍTULO 2
A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO

Nietzsche, por sua crítica ⎯ crítica de filólogo e, como


tal, de grande intimidade com as palavras e seu poder de sedução ⎯,
é aqui visitado no sentido de buscarmos um encadeamento e
prepararmos uma compreensão do Foucault, leitor de Nietzsche, em sua
concepção da linguagem e, por essa via, do conceito da supressão do
sujeito ou, como queiram, da morte do homem.

Pensamento, consciência e linguagem


Voltado para o problema da consciência, ou mais exatamente
da consciência de si, Nietzsche observa que o mesmo só se apresenta
a nós quando compreendemos em que medida poderíamos dispensá-la, ou
seja, passar sem isso que chamamos consciência.29 Pois, segundo nota,
podemos muito bem pensar, sentir, querer, lembrar, agir sem que
tenhamos consciência disso. A rigor, a vida inteira poderia decorrer
sem que se visse no espelho da consciência. Dessa forma, Nietzsche
pergunta: “para que servirá a consciência se para tudo que é
essencial é supérflua?”30 E, já como resposta, observa que a força da
consciência sempre lhe pareceu estar em relação com a faculdade de

29
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, 354, Do gênio da espécie ⎯ N.S.W., KSA 3,
Die fröhliche Wissenchaft, 354, Vom “Genius der Gattung”, s.590, z.11, “Das
Problem des Bewusstseins ...”
30
Idem, ibidem. z.26, “Wozu überhaupt Bewusstsein, wenn es der Haupsache
überflüssig ist?”
40

comunicação e com a necessidade de comunicação de um indivíduo. A


consciência, assim, ter-se-ia desenvolvido tão-somente sob a pressão
da necessidade de comunicação, consistindo, em suma, numa rede
homem-homem. Para reforçar sua tese, observa que foi apenas enquanto
tal que a consciência se viu forçada a desenvolver-se. Consciência e
comunicação desenvolveram-se par-e-passo. O homem solitário e o
animal de rapina poderiam dispensá-la.
Teria sido então pela terrível conseqüência de uma
necessidade que dominou longamente o homem ⎯ pois este era o animal
que corria mais perigos, tinha necessidade de ajuda e proteção,
tinha necessidade de seus semelhantes (necessitava exprimir seus
anseios, seus alarmes e seus socorros) ⎯ que desenvolveu-se nele a
“consciência”, pois precisava “saber” o que lhe faltava, saber qual
era sua disposição de espírito e o que pensava.
Para Nietzsche, o homem, como qualquer ser vivo, pensa
ininterruptamente mas não o sabe; o pensamento que se torna
consciente é apenas a menor parte, a parte pior e mais superficial
⎯ pois esse pensamento só é consciente quando se efetua com
palavras, em signos de comunicação.
Palavras e signos de comunicação, eis a base da linguagem,
expressão da “consciência” do homem; o homem diz, fala, expressa sob
a forma de signos aquilo que lhe é consciente. Curiosamente, não é
só a linguagem assim constituída que serve de intermediária entre os
homens, mas também o olhar, a pressão, o gesto.
Mas a consciência das impressões de nossos sentidos, a
faculdade de podê-los fixar e determinar, aumentaram na medida em
que crescia a necessidade de comunicá-los aos outros através de
signos. É, pois, o homem, ao mesmo tempo inventor de signos e aquele
que toma consciência de si mesmo e do mundo; e isso se dá de modo
cada vez mais agudo: animal social, o homem aprende a tornar-se
consciente de si mesmo.
Isso posto, torna-se perfeitamente plausível admitir que a
consciência não faz propriamente parte da existência individual do
homem, mas sim do que nele provém da natureza da comunidade e do
41

rebanho e que, conseqüentemente, não é desenvolvida de modo sutil


senão relativamente à sua utilidade para essa mesma comunidade e
rebanho. A linguagem do homem é, assim, do e para o rebanho, não
propriamente a linguagem de si. “A linguagem e os preconceitos em
que se assenta colocam múltiplos obstáculos ao aprofundamento dos
fenômenos internos e dos instintos”.31 É que isso que lhe provém de
fora acresce-se ao seu próprio pensamento pelo caráter próprio da
consciência, pelo que Nietzsche chama de “gênio da espécie” que o
comanda e é retransmitido na perspectiva sempre do rebanho. Isso
ocorre de forma que, apesar de todos os nossos atos serem no fundo
incomparavelmente pessoais, únicos, desde que os transcrevemos na
consciência não mais parece que assim seja... É que essa natureza da
consciência quer que o mundo do qual podemos ter consciência seja
apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado e
vulgarizado, que, conseqüentemente, tudo que se torna consciência
seja chão, pequeno, generalização, signo, marca do rebanho. Dessa
forma, assim que o pensamento se torna consciência, produz-se uma
grande corrupção fundamental, uma falsificação, um achatamento, uma
vulgarização, um empobrecimento desse pensamento.
E esse pensamento, tornado consciência, torna-se palavra, o
instrumento de nossa comunicação. Ocorre que

Não nos estimamos mais o bastante, quando nos


comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são
nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se
quisessem. É que lhes falta a palavra. Quando temos
palavras para algo, também já o ultrapassamos. Em todo
falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece,
só foi inventada para o corte transversal, o mediano,
o comunicativo. Com a fala já se vulgariza o falante.
⎯ De uma moral para surdos-mudos e outros filósofos.32

31
NIETZSCHE, F.. Aurora, livro segundo, par. 115, O pretenso eu ⎯ N.S.W.,
KSA 3, Morgenröthe, Zweites Buch 115, Das Sogenannte “Ich”, s.107, z.9, “Die
Sprache und die Vorurtheile, auf denen die Sprache aufgebaut ist...”
32
NIETZSCHE, F.. Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, par.26
⎯ N.S.W., KSA 6, Götzen-Dämmerung, Streifzüge eines Unzeitgemäsen 26, s.128,
Z.20, “Wir schätzen uns nicht genug mehr, wenn wir uns mittheilen.”.
42

Linguagem, sentimento e moral


A linguagem por meio de signos é, pois, para Nietzsche, uma
via de comunicação pobre, restrita.

A linguagem não nos foi dada para comunicar nossos


sentimentos, percebe-se esse fato ao verificar que
todos os homens simples têm vergonha de procurar as
palavras para suas emoções mais profundas: eles só as
deixam transparecer por meio de seus atos,
enrubescendo ao ver que os outros lhes percebem os
motivos. Entre os poetas, a quem geralmente a
divindade nega esse pudor, nota-se, todavia, entre os
mais nobres, um certo laconismo na linguagem do
sentimento, deixando transparecer algum embaraço: ao
passo que os verdadeiros sacerdotes do sentimento são
freqüentemente, na vida prática, os mais sem-
vergonha.33

Para Nietzsche, a linguagem insiste e “continua a falar em


oposições onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações”,
muito “embora a arraigada tartufice da moral, que agora pertence de
modo insuperável a ‘nossa carne e nosso sangue’ chegue a nos
distorcer as palavras na boca”. Não será, pois, a “moral” que nos
faz dizer o que ela quer, e não o que queremos? Por acaso falamos o
que queremos e o que sentimos? Se não, quem fala? Quem é o “sujeito”
desse falar? O que, por mim, fala?

Conhecimento e idéia
Referindo-se à questão do conhecimento, Nietzsche observa
que não dispomos propriamente de órgãos para o mesmo, para a
“verdade”. Nós simplesmente “sabemos” (ou pelo menos acreditamos
saber, nós nos figuramos) até o ponto em que pode ser útil ao
rebanho humano, à espécie, sendo que mesmo a “utilidade” não é
afinal de contas mais que uma crença, produto da imaginação e talvez
essa “estupidez nefasta que um dia nos fará morrer”.
Para Nietzsche, o que está por trás do desejo de
conhecimento é o desejo de descobrir entre as coisas estranhas,

33
NIETZSCHE, F.. Humano, demasiado humano, Segunda Parte, par.105 ⎯ N.S.W.,
KSA 2, Menschliches, Allzumenschliches II, 105, s.421, Z.25, “Dass die
Sprache nicht zur Mittheilung des Gefühls gegeben ist, sieht man daraus ...”
43

inabituais, incertas, algo que não nos inquiete mais ⎯ será, pois,
o medo, enquanto instinto, que nos leva a conhecer.34
Referindo-se às filosofias do idealismo35, observa que
considerar o mundo como “conhecido” assim que nos conduza à “idéia”
é ter na “idéia” algo conhecido, habitual, algo do qual se tem muito
menos medo. É que as filosofias da “idéia” acreditam que aquilo que
é conhecido pode ser mais facilmente reconhecido que aquilo que é
estranho ⎯ trata-se de partir do “mundo interior” e dos “fatos da
consciência”, pois lá está o mundo que conhecemos. Conhecemos? Para
Nietzsche, estamos aqui diante de um grande equívoco, pois o que é
tido por conhecido é o mais habitual e o habitual é aquilo que há de
mais difícil de reconhecer como problema, como coisa desconhecida. O
habitual é nossa interioridade, essa que é objeto da psicologia e da
crítica dos elementos da consciência enquanto ciência. O fato da
grande superioridade das chamadas “ciências naturais” (biologia,
física, química, etc...) em relação às ciências voltadas para nossa
interioridade (ciências humanas) consiste no fato de que aquelas
tomam por objeto elementos estranhos, ou seja, exteriores, ou ainda,
não habituais. Essa superioridade serve para demonstrar a
dificuldade de conhecer o que é mais habitual, ou seja, o interior.

Eu penso, eu quero
Quanto às crenças nas certezas imediatas como o “eu penso”
ou ainda o “eu quero”36, Nietzsche observa que trata-se de pura
34
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, par.355, A origem de nossa noção de
conhecimento. ⎯ N.S.W., KSA 3, Die fröliche Wissenschaft 355, s.594, z.10,
“Sollte es nicht der Instinkt der Furcht sein, der uns erkennen heisst?”
35
O termo idealismo foi introduzido na linguagem filosófica na metade do
século XVII por Leibniz e inicialmente atribuído à doutrina platônica das
idéias e a outros autores para quem a realidade é a forma ou a idéia. A
palavra é usada prevalentemente no significado de idealismo gnosiológico ou
epistemológico e idealismo romântico. No sentido gnosiológico o termo foi
empregado pela primeira vez por Wollf, denominando idealistas aqueles que
admitem que os corpos têm somente uma existência ideal e por isso negam a
existência real dos próprios corpos e do mundo. No sentido romântico, o
idealismo constitui o nome da grande corrente filosófica romântica que se
originou na Alemanha depois de Kant, tendo por fundadores Fichte e Schelling,
e que teve numerosas ramificações na filosofia moderna e contemporânea. V.
ABBAGNANO, Nicola. V. verbete “Idealismo” In: Dicionário de Filosofia. São
Paulo: Mestre Jou, 1982.
36
NIETZSCHE, F.. Para além do Bem e do Mal, par.16 ⎯ N.S.W., KSA 5, Jenseits
von Gut und Böse, 16, S.29, Z.18, “Es giebt immer noch harmlose Selbst-
Beobachter, welche glauben, dass es ‘unmittelbare Gewissheiten’ gebe, zum
44

ingenuidade. Para ele, “certeza imediata”, “coisa-em-si” envolve uma


37
contradictio in adjeto . Devemos nos livrar da sedução das pala-
vras, sugere ele. Pois, no caso de “eu penso”, como pode haver cer-
teza imediata? Onde está a fundamentação de que sou eu que pensa?
Por que deve haver necessariamente um algo que pensa? Por que pensar
é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa? Existe um
“Eu”? O que é pensar? Qual a diferença entre pensar, sentir e
querer?
Nietzsche conclui que a afirmação “eu penso” pressupõe uma
comparação com outros estados que de mim conheço para determinar o
que é. Devido a essa referência retrospectiva a um “saber” de outra
parte, este saber “eu penso” não tem para mim, de todo modo, nenhuma
“certeza” imediata. A rigor, para mim, nenhum saber é imediatamente
certo. Em mim, se algum saber há, ele terá sido tão mediatizado por
outros saberes, será tão fluido e instável, que a rigor nunca
poderei chamá-lo de “certo” e muito menos de “imediato”. No lugar
dessa “certeza imediata”, deparamo-nos com uma série de questões de
metafísica; questões de consciência para o intelecto, que são: de
onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e
efeito? O que me dá o direito de falar de um “Eu”, e até mesmo de um
“Eu” como causa, e por fim de um “Eu” como causa de pensamentos?
Como posso dizer “eu penso” se um pensamento vem quando “ele” quer e
não quando “eu” quero? Assim, parece ser um falseamento da realidade
efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. O
que ocorre aí é uma interpretação do processo (pensar) e não o
processo mesmo. O equívoco, segundo Nietzsche, está em concluir pelo
hábito gramatical de que “pensar é uma atividade, toda atividade
requer um agente, logo... “38

Beispiel ‘ich denke’, oder, wie es der Aberglaube Schopenhauer’s war, ‘ich
will’...”.
37
Contradição que ocorre entre um termo e o que se lhe acrescenta. Por
exemplo, entre o substantivo e seu adjetivo como em calor frio, beleza feia,
vivente imortal.
38
NIETZSCHE, F.. Para além do Bem e do Mal, par.17 ⎯ N.S.W., KSA 5, Jenseits
von Gut und Böse, 17, s.31, z.11, “Denken ist Thätigkeit, zu jeder Tkätigkeit
gehört Einer, der Thätig ist, folglich ⎯”
45

Verdade e aparência
Para Nietzsche, o caráter errôneo do mundo onde acreditamos
viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode
apreender. Assim, não passa de um preconceito moral que a verdade
tenha mais valor do que a aparência.39 A esse respeito, Nietzsche
observa que se quisesse abolir por inteiro o mundo “aparente”,
também da “verdade” não restaria nada. Nada nos obriga a supor que
há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”. Para
Nietzsche, basta a suposição de graus de aparência, e como que
sombras e tonalidades do aparente, mais claras e mais escuras ⎯
diferentes valores, para usar a linguagem dos pintores. Nesse
sentido, ele nos pergunta: por que não poderia o mundo que nos
concerne ser uma ficção? Mas a ficção não requer um autor? Por quê?
Esse “requer” também não pertenceria à ficção? Por que não usar de
alguma ironia com relação ao sujeito, como em relação ao predicado e
ao objeto? Por que o filósofo não poderia erguer-se acima da
credulidade da gramática? E Nietzsche ironiza, lembrando que
aprendemos a língua, a gramática ⎯ e as ficções nela incorporadas
⎯ com as babás, governantas e preceptoras (como era comum no seu
tempo), de modo que o filosofar tradicional estaria preso à “fé das
governantas”. E, mesmo pedindo todo o respeito àquelas respeitáveis
profissionais, incita-nos a abjurarmos dessa fé. Antigamente
acreditava-se na “alma”40, observa Nietzsche, assim como se
acreditava na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que “eu”
penso é condição; “penso” é predicado e condicionado ⎯ pensar é uma
atividade para a qual um sujeito tem que ser pensado como causa.
Tentou-se então, com tenacidade e astúcia dignas de admiração,
enxergar uma saída nessa teia. E então Nietzsche pergunta se não
seria verdadeiro fazer o contrário: admitir o “penso” como condição

39
Idem, par.34 ⎯ J.G.B.,34, s.53, z.22, “Warum nicht? Es ist nicht mehr als
ein moralisches Vorurteil, dass Wahrheit mehr ist als Schein...”
40
Idem, par.54 ⎯ J.G.B., 54, s.73, z.13, “Ehemals nämlich glaubte man an
‘die Seele’, wie man an die Grammatik und das grammatische Subjekt
glaubte...”
46

e o “eu” como condicionado ⎯ o “eu” seria uma síntese feita pelo


próprio pensar.
As palavras e as idéias
Nietzsche salienta que a observação inexata que nos é
habitual tende a nos fazer tomar grupos de fenômenos como unidades e
chamá-los de fatos (ou acontecimentos). Ocorre também que entre um e
outro fato costuma-se representar um espaço vazio. Tendemos a isolar
cada acontecimento ou fato do mundo e vê-los de per-se. Mas, na
realidade, o conjunto de nossas atividades e de nosso conhecimento
não é uma série de fatos com espaços intermediários vazios, mas um
fluxo contínuo, um devir. Nietzsche exemplifica repudiando a crença
no livre arbítrio que, para ele, é incompatível com a concepção de
um fluxo contínuo, homogêneo, comum, indivisível, porque supõe que
toda ação particular é isolada e indivisível; trata-se aqui de um
atomismo no domínio do querer e do saber, escreve. ⎯ Da mesma forma
que nós compreendemos inexatamente os caracteres, fazemos o mesmo
com os acontecimentos: nós falamos de caracteres idênticos, e de
fatos idênticos: entretanto, não existe nem um nem outro. E não
seria demais acrescentar que tudo é diverso no mundo, o mundo é
constituído por singularidades e diferenças.
Mas nós mesmos tendemos a isolar não somente o fato
particular mas também a eles agregamos os grupos de pretendidos
fatos idênticos (e a eles damos nomes, como por exemplo bondade,
maldade, piedade, inveja, etc...) São, porém, a palavra e a idéia o
que, para Nietzsche, nos fazem crer nesse isolamento de grupos de
ações. Exemplificamos isso da seguinte maneira: ao falarmos
“cadeira”, atribuímos a essa palavra uma idéia que trazemos conosco,
idéia essa que ambiciona abarcar todas as cadeiras que existem; a
partir daí, julgamos deter a “verdade” do que é “cadeira”. Ledo
engano, Nietzsche nos diria a esse respeito, pois, a rigor, não
existem duas cadeiras iguais no mundo... Segundo ele, as palavras
nos servem não somente para designarmos as coisas ⎯ ela nos fazem
crer que originariamente, por elas, nos assenhoreamos da “verdade”.
Verdade? Mas que verdade, se tudo é aparência? Mesmo as cadeiras da
47

mais padronizada produção, se repararmos bem, se nos aparecem cada


uma de um jeito. Mesmo se tomarmos uma única, se olharmos bem,
veremos que muda de aparência de instante a instante. É que estão
sujeitas à ação do tempo, ou melhor, são, como todas as coisas, puro
devir.
As palavras e as idéias nos induzem, pois, a representar
constantemente as coisas como mais simples do que são, separadas
umas das outras, indivisíveis, tendo cada uma existência em si e por
si. Assim é que Nietzsche vai considerar que existe, oculta na
linguagem, uma mitologia ⎯ uma mitologia filosófica que a cada
instante reaparece: a crença nos fatos idênticos e nos fatos
isolados. E será na linguagem que essa crença vai encontrar um
apóstolo e um advogado perpétuo.41
Perigo da linguagem para a liberdade do espírito ⎯
cada palavra é uma presunção.42

Uma bela doidice


Mas será Zaratustra quem, ao cabo de sete dias sem comer
nem beber, convalescente, dirá essas belas e inspiradas palavras
sobre a linguagem para seus animais que o conclamavam a sair da
caverna e ir ao encontro do mundo:

Ó meus animais, continuais a tagarelar assim e


deixai que vos escute. Traz-me tamanho conforto ouvir-
vos tagarelar; onde se tagarela, já o mundo é ali,
para mim, como um jardim. Como é agradável que existam
palavras e sons; não são, palavras e sons, arco-íris e
falsas pontes entre coisas eternamente separadas? Toda
alma tem o seu mundo, diferentes dos outros; para toda
alma, qualquer outra alma é um trasmundo. É entre as
mais semelhantes que mente melhor a aparência; pois a
brecha menor é a mais difícil de transpor. Para mim ⎯
como haveria algo exterior a mim? Não existe o
exterior! Mas esqueçamos isso a cada palavra; como é
agradável que o esqueçamos! Não foram as coisas
presenteadas com nomes e sons, para que o homem se
recreie com elas? Falar é uma bela doidice: com ela o
homem dança sobre todas as coisas. Quão grata é toda a
41
NIETZSCHE, F.. Humano, demasiado humano, O viajante e sua sombra, par.11 ⎯
N.S.W., KSA 2, M.,A.II, s.547, z.16, “Der Glaube an die Freiheit des Willens,
das heisst der gleichen Facten und der isolirten Facten ⎯ hat in der Sprache
seinen beständigen Evangelisten und Anwalt”.
42
Idem, par.55 ⎯ s.557, z.5, “Gefahr der Sprache für die geistige Freiheit.
⎯ Jedes Wort ist ein Vorurtheil.”
48

fala e toda a mentira dos sons! Com sons dança o nosso


amor com coloridos arco-íris.43

Aqui, vemos Nietzsche colocar na boca de seu personagem,


Zaratustra, toda uma concepção do que é falar. Falar é uma bela
doidice, escreve ele. Falar é tagarelar, é dançar sobre todas as
coisas, e essas coisas estão em mim, fazem parte do meu mundo.
Assim, não existe exterior, ou melhor: exterior e interior são uma
coisa só, constituem um mundo! E cada indivíduo tem seu mundo,
havendo entre os mais semelhantes a maior diferença. As minhas
palavras para as minhas coisas, esse é o meu mundo; as tuas palavras
para as tuas coisas, este é o teu mundo ⎯ e como são diversos! Não
há um mundo igual ao outro, muito embora esqueçamos disso a cada
palavra proferida, observa Nietzsche.

Um ato de autoridade
Mas, como se cunham os nomes e as palavras? Quem o faz?
Cunhar nomes para os valores é obra de quem cria valores ⎯ que lhes
importa a utilidade do rebanho! Este é um ato de autoridade.
Exemplificando, ao buscar a fonte do conceito “bom”, Nietzsche foi
observar que “foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos,
superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a
si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição
a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar, plebeu”.44 Assim,
para Nietzsche,

O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que


nos permitiríamos conceber a própria origem da
linguagem como expressão de poder dos senhores: eles
dizem ‘isso é isto’, marcam cada coisa e acontecimento
com um som, como que apropriando-se assim das
coisas.45

43
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, O convalescente, par.2 ⎯ N.S.W.,
KSA 4, Der Genesende, 2, s.272, z.9, “ ⎯ Oh meine Thiere, antwortete
Zarathustra, schwätzt also weiter und lasst micht zuhören!”
44
NIETZSCHE, F.. Genealogia da Moral, 1ª dissertação, par.2 ⎯ N.S.W., KSA 5,
Z.G.M., s.259, z.16, “Vielmehr sind es ‘die Guten’ selber gewesen ...”
45
Idem, ibidem ⎯ s.260, z.1, “Das Herrenrecht, namen zu geben, geht so
weit...”
49

Pesquisando sob o ponto de vista etimológico as designações


para a palavra “bom” cunhadas pelas diversas línguas, Nietzsche
descobre que todas elas remetem à mesma transformação conceitual ⎯
que em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o
conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu
“bom” no sentido de “espiritualmente nobre”, “aristocrático”, de
“espiritualmente bem-nascido”, “espiritualmente privilegiado”: um
desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz
“plebeu”, “comum”, transmutar-se finalmente em ruim.46
Assim, Nietzsche constata que, nas palavras e raízes que
designam o “bom”, “transparece ainda com freqüência a nuance cardeal
pela qual os nobres se sentiam homens de categoria superior”. São os
“ricos”, “os possuidores”, e também segundo um traço típico de
caráter, “os verazes”. A palavra criada para este fim pelos gregos
antigos é εσθλοσ (ésthlós), que significa segundo sua raiz, alguém
que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro, nobre ⎯ para
diferenciar do homem comum, mentiroso.
Associar a linguagem ao poder dos senhores é, para
Nietzsche, associar as palavras ao poder de criação de valores,
atributo dos nobres, aqui entendidos como os de espírito
superabundante, os ricos de espírito. Quanto ao fraco, ao ressentido
moralista, a este, já que não detém o poder da criação, resta a
distorção. Diante da linguagem, o que faz é subvertê-la, torcê-la,
inverter a equação de valores aristocrática (bom=nobre=poderoso=belo
=feliz=caro aos deuses). E assim o fazem, dizendo que

Os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres,


impotentes, baixos são bons, os sofredores,
necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os
únicos abençoados, que unicamente para eles há bem-
aventurança ⎯ mas vocês, nobres e poderosos, vocês
serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os
lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também
eternamente os desventurados, malditos e danados!47

46
Idem, par.4 ⎯ s.261, z.26, “...eine Entwicklung, die immer parallel mit
jener anderen läuft, welche ‘gemein’, ‘pöbelhaft’, ‘niedrig’ schliesslich in
den Begriff ‘schlecht’ übergehen macht.”
47
Idem, par.7 ⎯ s.267, z.22, “die Elenden sind allein die Guten, die Armen,
Ohnmächtigen, Niedrigen sind allein die Guten...”
50

Precisamente o oposto do que sucede com o nobre, que


primeiro e espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica
de “bom”, é o que acontece com o fraco ressentido. Esse, mirando-se
no outro, diz: tu és mau, logo eu sou bom. Assim, é “o ‘homem
manso’, o incuravelmente medíocre e insosso”,48 é esse que faz crer
como “verdade” que “o sentido de toda cultura é amansar o homem,
reduzí-lo a um animal manso e civilizado, doméstico.”49
As ovelhas têm rancor das aves de rapina, Nietzsche
observa. Assim, elas dizem: “essas aves de rapina são más; e quem
for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha ⎯
este não deveria ser bom?” No que, as aves de rapina, em tom
zombeteiro, dirão para si: “nós nada temos contra essas boas
ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que
uma tenra ovelhinha”.

Exigir da força que não se expresse como força, que


não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um
querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e
triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que
se expresse como força. Um quantum de força eqüivale a
um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade ⎯
melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este
mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da
linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela
se petrificaram), a qual entende ou mal-entende que
todo atuar é determinado por um atuante, um ‘sujeito’,
é que pode parecer diferente. Pois assim como o povo
distingue o corisco do clarão, tomando este como ação,
operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo
a moral do povo discrimina entre a força e as
expressões da força, como se por trás do forte
houvesse um substrato indiferente que fosse livre para
expressar ou não a força. Mas não existe um tal
substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do
atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada
à ação ⎯ a ação é tudo. 50

48
Idem, par.11 ⎯ s.277, z.14, “der ‘zahme mensch’, der Heillos-
Mittelmässige und Unerquickliche ...”
49
Idem, ibidem ⎯ s. 276, z.20, “der Sinn aller Cultur sei, aus dem
Raubthiere “Mensch” ein Zahmes und civilisirtes Thier, ein Hausthier
herauszuzüchten...”
50
Idem, par.13 ⎯ s.279, z.9, “⎯ Von der Stärke verkangen, dass sie sich
nicht als Stärke äussere, ...”
51

A razão na filosofia
Sócrates, o pensador da Antigüidade, mestre de muitos
outros inclusive de Platão: Nietzsche observa que o mesmo fascinava,
pois parecia ser médico, um salvador. Mas nele havia um erro: a sua
crença na racionalidade a todo preço; Sócrates foi um mal-entendido;
a inteira “moral-da-melhoria”, também a cristã, foi um mal-
entendido.

A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo


preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem
instinto, oferecendo resistência aos instintos era,
ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença ⎯ e de
modo nenhum um caminho de retorno à “virtude”, à
“saúde”, à “felicidade”...Ter de combater os instintos
⎯ eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se
intensifica, felicidade é igual a instinto. ⎯ 51

Para Nietzsche, hoje, na exata medida em que o preconceito


da razão nos coage a pôr unidade, identidade, duração, substância,
causa, coisidade, ser, vemo-nos enredados no erro, necessitados ao
erro. Nesse sentido, aqui temos a nossa linguagem como constante
advogado.
Deixemos, por fim, nosso filósofo-filólogo Nietzsche-
Zaratustra falar longamente sobre a linguagem por esse texto de
Crepúsculo dos Ídolos que se segue ⎯ ele é de muita beleza e resume
e atinge a nossa questão central: a morte de Deus.

A linguagem pertence, por sua origem, ao tempo da


mais rudimentar forma de psicologia: entramos em um
grosseiro fetichismo, quando trazemos à consciência as
pressuposições fundamentais da metafísica da
linguagem, ou, dito em alemão, da razão. Essa vê por
toda parte agente e ato: essa acredita em vontade como
causa em geral; essa acredita no “eu”, no eu como ser,
no eu como substância, e projeta a crença na
substância-eu sobre todas as coisas ⎯ somente com
isso cria o conceito “coisa”... O ser é por toda parte
pensado-junto, introduzido sub-repticiamente; somente
da concepção “eu” se segue, como derivado, o conceito
51
NIETZSCHE, F.. Crepúsculo dos Ídolos, O problema de Sócrates, par.11 ⎯
N.S.W., KSA 6, Götzen-Dämmerung, Das Problem des Sokrates, 11, s.73, z.3,
“Das grellste Tageslicht, die Vernünftigkeit um jeden Preis, ...”
52

“ser”... No início está a grande fatalidade do erro,


de que a vontade é algo que faz efeito ⎯ de que a
vontade é uma faculdade... Hoje sabemos que é
meramente uma palavra... Muito mais tarde, em um mundo
mil vezes mais esclarecido, a segurança, a certeza
subjetiva na manipulação das categorias da razão,
chegou, com surpresa, à consciência dos filósofos:
concluíram que elas não poderiam provir da empiria ⎯
a empiria inteira, mesmo, está em contradição com
elas. De onde então provêm? ⎯ E nas Índias como na
Grécia se fez o igual equívoco: “É preciso que já
alguma vez tenhamos habitado um mundo superior (⎯ em
lugar de: um mundo inferior, o que teria sido a
verdade!), é preciso que tenhamos sido divinos, pois
temos a razão!...” De fato, nada até agora teve uma
mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser,
tal como foi, por exemplo, formulado pelos eleatas52:
pois esse erro tem a seu favor cada palavra, cada
proposição que nós falamos! ⎯ Até mesmo os
adversários dos eleatas sucumbiram à sedução de seu
conceito-de-ser: Demócrito entre outros, quando
inventou seu átomo... A “razão” na linguagem: oh, que
velha, enganadora personagem feminina! Temo que não
nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos
na gramática...53

Eis a morte de Deus: desvencilharmo-nos dessa fé na


gramática, penetrarmos no ser da linguagem e indagarmos sobre um
outro sentido deste ser. Conforme iremos ver nos capítulos que se
seguem, esta parece ser a preocupação de Foucault.

52
Nietzsche refere-se a Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia e Melisso de
Samos, os chamados eleatas para quem o ser é indivisível, imóvel, acabado. É
sobretudo na filosofia de Parmênides que preludia-se o tema da ontologia. O
fato de a experiência não lhe apresentar em nenhuma parte um ser tal como ele
o pensava, mas, do fato de que podia pensá-lo, Parmênides concluía que ele
precisava existir: uma conclusão que repousa sobre o pressuposto de que nós
temos um órgão do conhecimento que vai à essência das coisas e é independente
da experiência. Segundo Parmênides, o elemento de nosso pensamento não está
presente na intuição, mas é trazido de outra parte, de um mundo extra-
sensível ao qual nós temos um acesso direto através do pensamento. Parmênides
explica o pensamento e o ser como idênticos. V. A Filosofia na Época Trágica
dos Gregos, par.9, 10, 11, 12, 13 ⎯ N.S.W., KSA 1, s.835 bis 851, “Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen”, 9, 10, 11, 12, 13.
53
NIETZSCHE, F.. Crepúsculo dos Ídolos, A razão na filosofia, par.5. ⎯
N.S.W., KSA 6, Götzen-Dämmerung, Die ‘Vernunft’ in der Philosophie, s.77,
z.15, “Die Sprache gehört ihrer Entstehung nach in die Zeit der
rudimentarsten Form von Psychologie ...”
53

CAPÍTULO 3
A MORTE DE DEUS

Antecedentes
A morte de Deus já havia sido formulada no âmbito da
filosofia antes de Nietzsche. Hegel (1770-1831) e Feuerbach (1804-
1872) já a haviam pensado. Mas Nietzsche é aquele a quem as pessoas
mais a associam, talvez pela maneira vigorosa e ao mesmo tempo cheia
de novas perspectivas com que ele a formulou.
Hegel, ao dizer “Deus está morto”, sugere, todavia, a
sobrevivência de Deus à morte pela via dialética da “morte da
morte”. Em Hegel, o termo “morte” quer referir-se tanto à morte em
sentido literal e sua significação para as nossas vidas, quanto à
morte como possibilidade de uma nova síntese, pela via da “morte da
morte”, ou seja, a “negação da negação”, o caminho do espírito.
Hegel interessou-se pelas mortes de Cristo e de Sócrates. A morte de
Cristo, argumentou ele, tem uma significação teológica e metafísica
que falta à morte de Sócrates. Apresenta, numa forma intuitiva, a
reconciliação da dicotomia entre Deus e o mundo. Por um lado, Deus
apresenta-se em forma finita e sofre uma morte dolorosa, a qual
revela que o próprio Deus envolve finitude e negação. Por outro
lado, sofrer e depois derrotar a morte ⎯ a que todos os homens estão
sujeitos ⎯ mostra que o espírito do homem pode triunfar sobre a
morte, sendo sua individualidade finita e contingente suprassumida
ou transfigurada em universalidade divina.
54

Hegel considera a teologia moderna como tendo derivado para


o formalismo iluminista, que proclama a “morte de Deus especulativa”
pela sua conversão no mero alvo de uma aspiração infinita, numa
simples representação, e também como tendo derivado para o abandono
de Deus para tratar da religião como realidade institucional e
cultural.54
Feuerbach, por sua vez, estudou teologia em Heidelberg e
filosofia em Berlim com Hegel. Aderiu à “esquerda hegeliana” e foi,
durante um tempo, o mais destacado e influente representante desta
tendência. Mesmo tendo-se afastado posteriormente do mestre, as
marcas hegelianas nunca desapareceram completamente de seu
pensamento e de seu vocabulário. Feuerbach escreveu em um de seus
fragmentos: “Meu primeiro pensamento foi Deus; o segundo, a razão; o
terceiro e último, o homem. O sujeito da divindade é a razão, mas o
da razão é o homem”. Assim, a teologia, e ainda a própria filosofia,
deve converter-se em “antropologia”, em ciência filosófica do homem,
única capaz de esclarecer os “mistérios” teológicos e provar que se
trata de “crenças em fantasmas”. Para Feuerbach, “o princípio da
filosofia não é Deus, nem o Absoluto, nem o ser como predicado do
Absoluto ou a Idéia; o princípio da filosofia é o finito, o
determinado, o real”. Feuerbach considerou necessário desmascarar a
teologia especulativa de seu antigo mestre pois, a seu entender, é
ao fantasma da teologia que recorre de ponta a ponta o pensamento
hegeliano. Conforme expressa em sua crítica a Hegel, a filosofia
hegeliana é o último refúgio, o último baluarte racional da
teologia. Da mesma forma que antigamente, em que os teólogos
católicos se convertiam em aristotélicos de fato, também em seu
tempo os teólogos protestantes se tornavam hegelianos jurados para
poderem combater o “ateísmo”. Para Feuerbach, Deus é obra do homem e
não o contrário. O homem cria os seus deuses à sua imagem e
semelhança; os cria de acordo com suas necessidades, desejos e

54
V. verbete Morte e imortalidade in: INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 228, e Nota 11 do Prólogo a
H.F.W.Hinrichs, A Religião na Relação Interna com a Ciência in: G.W.F.Hegel,
Prefácios. Lisboa, Imprensa Nacional ⎯ Casa da Moeda, 1990, p.229.
55

angústias. É unicamente na miséria do homem que tem Deus seu lugar


de nascimento. Só do homem tem Deus todas suas determinações: Deus é
o que o homem aspira ser.55

Nietzsche e a morte de Deus


Nietzsche, eis que este anuncia em alto e bom tom a morte
de Deus. Nietzsche constata e anuncia isto como um acontecimento
histórico. Mas será de forma gradual que em sua obra esta
constatação se releva. É fato que em seus primeiros livros, a saber,
em O Nascimento da Tragédia, de 1871, As Considerações
Intempestivas, de 1873, Schopenhauer como Educador, de 1874, e
Richard Wagner em Bayreuth, de 1876, nada há a respeito. Pode-se
ver, todavia, em Humano, Demasiado Humano, de 1878, o começo das
formas preparatórias daquilo a que Nietzsche mais tarde chamará a
morte de Deus ⎯ uma posição de combate contra a duplicação idealista
do mundo, contra a “quimera do Além”.
A tese fundamental é antes esta: as coisas pretensamente
chamadas “sobre-humanas” são apenas ilusões demasiado humanas; a
vontade metafísica do conhecimento é apenas uma necessidade
mascarada, apenas uma necessidade demasiado humana; que aquilo que
se considerava Deus é apenas uma dimensão da existência do homem que
este projeta para fora de si. Assim, a metafísica se afigura como
uma gigantesca ficção, como uma construção de sonho de que o homem
dispõe como uma mentira vital de que ele se socorre para ultrapassar
a sua natureza perecível e poder dar à sua existência um significado
infinito.
Em Aurora, de 1881, e em A Gaia Ciência, de 1882, já se vê
Nietzsche cumprir inconfundivelmente uma desmontagem da imagem do
homem, desmontagem essa que nasce de uma vontade de desmascaramento
que liberta o homem da servidão dos ideais transcendentes
representados por Deus, a moral, o ultramundo metafísico.

55
V. verbete Feuerbach, Ludwig In: Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia,
Barcelona, Ariel; e FEUERBACH, Ludwig. Aportes para la Critica de Hegel,
Buenos Aires, La Pleiade, 1974.
56

Segundo Fink56, essa libertação opera-se, por um lado, como


desmascaramento psicológico no qual o homem é determinado como uma
criatura de instintos, na qual uma complexa meada desses instintos o
determina, inclusive na figura do artista, do santo e do sábio. Por
outro lado, essa libertação opera-se pela negação de significado
transcendente das grandes construções do homem, não rejeitando,
entretanto, a possibilidade da superação desse mesmo homem.
Mas, eis que, em Aurora e em A Gaia Ciência, o método é
profanador, ou melhor, transgressor. Nietzsche transgride o
estabelecido, e é aí que a sua filosofia da manhã torna-se cada vez
mais iluminada pela luz do meio-dia. O seu discurso torna-se cada
vez mais metafórico, mais poético, a sua ciência torna-se “alegre”,
e o seu afastamento de um impulso inicial em direção ao positivismo
torna-se cada vez mais decidido. E eis que a trangressão não
respeita sequer os deuses gregos antigos. Ei-lo numa apreciação da
história, ao afirmar que “os deuses gregos também não tinham grande
jeito para consolar; quando, por fim, o povo grego caiu, ele,
também, doente, arrastou em sua queda semelhantes deuses”.57
Transgressão como a de um louco; eis que Nietzsche assume
a palavra do insensato.

Nunca ouviram falar de um louco que em pleno dia


acendeu sua lanterna e pôs-se a correr na praça
pública gritando sem cessar: ⎯ Procuro Deus! Procuro
Deus! (...) Para onde Deus foi? (...) Nós o matamos,
vós e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos! (...)
Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus
continua morto! E nós o matamos! (...) O que nos
limpará deste sangue? Com qual água nos purificaremos?
(...) Não seremos forçados a tornarmo-nos deuses para
parecermos, pelo menos, digno de deuses? ⎯ E, depois
de atirar a lanterna ao chão que se espatifou,
apagando-se, disse: ⎯ Meu tempo não é chegado (...) É
preciso tempo para o relâmpago e o raio (...) é
preciso tempo para as ações (...) ⎯ E, penetrando
nesse mesmo dia em diferentes igrejas, entoou seu
Réquiem e, expulso e interrogado, não cessou de

56
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença, 1983.
57
NIETZSCHE, F.. Aurora, 424, Para quem existe a verdade ⎯ N.S.W., KSA 3,
Morgenröte, Fünftes Buch,424, Für wen die Wahrheit da ist, s. 261, z. 5,
“Auch die grieschichen Götter verstanden nicht zu trösten, ...”
57

responder a mesma coisa: ⎯ De que servem estas


igrejas se são tumbas e monumentos de Deus?58

Transgressão e criação de lutas novas, como aqui nesta


constatação.

Depois da morte de Buda, sua sombra se mostrou


durante séculos numa caverna; sombra enorme e
aterradora. Deus morreu, mas os homens são de tal modo
que haverá ainda, talvez, cavernas nas quais sua
sombra se mostrará...59

Transgressão na constatação aqui expressamente enunciada


para os destemidos.

O mais importante dos recentes acontecimentos ⎯ o


fato de “que Deus está morto”, de que a fé no Deus
cristão está enfraquecida (...) Com efeito, nós
filósofos e “espíritos livres” frente à nova de que “o
Deus antigo está morto” sentimo-nos iluminados por uma
nova aurora (...) o mar, nosso grande mar abre-se
novamente diante de nós e talvez nunca tenha nascido
um mar tão “pleno”.60

Mas, a filosofia de Nietzsche, como dissemos, ilumina-se


cada vez mais pela luz do meio-dia. O Zaratustra, de 1883 e 1885,
inaugura uma nova fase em que Nietzsche, com seu pensamento, parece
atingir o zênite. Aqui, ele encontra sua verdadeira natureza, ele
torna-se o que é. Aqui, no Zaratustra, em primeiro plano temos a
morte de Deus, a vontade de potência, o eterno retorno e o super-
homem.

A morte de Deus e o super-homem


A morte de Deus pode ser vista como a base, o ponto de
partida da filosofia de Zaratustra, pois Zaratustra parte, ao

58
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, 125, O insensato ⎯ N.S.W., KSA 3, Die
fröhliche Wissenchaft, Drittes Buch, 125, Der tolle Mensch, s. 480, z.22,
“ ⎯⎯Habt ihr nicht von jenem tollen Menschen gehört ...”
59
Idem, 108, Lutas novas. ⎯ KSA 3, Dritten Buch, 108, Neue Kämpfe, s. 467,
Z.3, “ Nachdem Buddha todt war...”
60
Idem, Livro quarto, 343, Nossa serenidade. ⎯ KSA 3, Die fröhliche
Wissenchaft, Fünftes Buch, 343, Was es mit unserer Heiterkeit auf sich hat.
“ ⎯⎯Das gröste neuere Ereigniss, ⎯ dass `Gott todt ist’, dass der Glaube an
den christlichen Gott unglaubwürdig geworden ist.”
58

apresentar o super-homem como uma necessidade, da afirmação de que


Deus morreu. E será já no Prólogo de Zaratustra que isto é posto.
Zaratustra, que depois de gozar solitário na montanha por
dez anos de seu próprio espírito de solidão, vê, de repente, seu
coração mudar e se enche de vontade de ir ter com os homens.
Zaratustra quer voltar a ser homem para “dar e distribuir tanto, que
os sábios dentre os homens voltassem a alegrar-se de sua loucura e
os pobres de sua riqueza”. Zaratustra queria ensinar que “o homem é
algo a ser superado”, queria ensinar aos homens o super-homem. Mas
eis que, antes de chegar a seu destino, depara-se repentinamente com
um velho no ermo da floresta, um santo, que ironiza a vontade de
Zaratustra, e lhe diz: “Mudado está Zaratustra, tornou-se uma
criança, Zaratustra, despertou Zaratustra; que pretendes, agora,
entre os que dormem? Vivias na solidão como um mar e o mar te
transportava. Ai de ti, queres ir a terra? Ai de ti, queres
novamente arrastar tu mesmo o teu corpo?” E Zaratustra responde:
“Amo os homens.” E, responde o santo: “E por que foi que me recolhi
à floresta e ao ermo? Não foi porque amei demais os homens? Agora,
amo Deus, não amo os homens. Coisa por demais imperfeita é, para
mim, o ser humano. O amor aos homens me mataria.” E prosseguiu: “Não
lhes dês nada. Tira-lhes de preferência alguma coisa de cima e
ajuda-os a levá-la(...) E, se queres dar-lhes alguma coisa, que não
seja mais do que uma esmola; e, mesmo assim, só depois que a
mendiguem”. Ao que Zaratustra respondeu: “Não, eu não dou esmolas.
Não sou bastante pobre para isso”. E Zaratustra indaga: “E o que faz
o santo na floresta?” E o santo responde: “Faço canções e as canto;
e, quando faço canções, rio, choro e falo de mim para mim: assim
louvo Deus”. Zaratustra despede-se do velho. Mas quando ficou só,
falou ao seu próprio coração: “Será possível? Esse velho santo, em
sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?”61

61
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, Prólogo 2. ⎯ N.S.W., KSA 4, Also
Sprach Zarathustra, ein Buch für Alle und Keinen, Zarathustra’s Vorrede, 2,
s.14, z.7, “Sollte es denn möglich sein! Dieser alte Heilige hat in seinem
Walde noch Nichts davon gehört, dass Gott todt ist!”
59

O velho encarna o espírito do ressentimento que detesta os


homens e se refugia em Deus. Zaratustra encarna o contrário disto.
Zaratustra quer ter com os homens, Zaratustra ama os homens, ele não
se refugia, ele não se esconde com Deus, e ele quer o seu ocaso, ele
quer a superação, ele quer ensinar o caminho da superação, pois ele
sabe que este é o caminho, porque Deus está morto.
Morto Deus, o que resta aos homens? Zaratustra tem uma
resposta, Zaratustra tem uma sabedoria a esse respeito. Morto Deus,
resta aos homens voltarem-se para a terra. “Amo aqueles que, para o
seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das
estrelas, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se
torne do super-homem”.62 Zaratustra sabe que não há outra vida, que
não há outro mundo, mas que pode haver um outro homem. Zaratustra
quer ensinar uma saída positiva, afirmativa: o super-homem como
sentido da terra. O que Zaratustra quer dizer é, como bem observa
Roberto Machado63, que os homens não têm mais Deus mas podem muito
bem ter um futuro. Zaratustra propõe o super-homem como alvo a ser
atingido, como um novo estado a ser buscado, um novo modo de sentir,
um novo modo de pensar, um novo modo de avaliar; uma nova forma de
vida, um novo tipo de subjetividade.
E eis que Zaratustra chega à praça do mercado e se dirige
ao povo para pregar o super-homem. Mas o povo ri de Zaratustra e
nada entende do que ele lhe diz. “Lá estão eles rindo”, disse
Zaratustra ao seu coração. “Não me compreendem, não sou a boca para
esses ouvidos”64 Zaratustra percebe então que a outra possibilidade
que se oferece ao homem, aquela para a qual o povo está a caminho, é
o que ele chama de “o último homem”.
A outra alternativa que se coloca para o homem com a morte
de Deus, ao invés do super-homem positivo, criador de valores, é o
que Zaratustra chama de “o último homem”, esse perigo terrível que é

62
Idem. Prólogo 4. ⎯ N.S.W., KSA 4, Also Sprach Zarathustra, ein Buch für
Alle und Keinen, Zarathustra’s Vorrede, 4, s.17, z.7, “Ich liebe Die, welche
nicht erst hinter den Sternen einen Grund suchen...”
63
MACHADO, Roberto. Zaratustra, Tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997.
64
Op. Cit., Prólogo 5 ⎯ Zarathustra’s Vorrede 5, s.18, z.27, “...sie
verstehen mich nicht, ich bin nicht der Mund für diese Ohren”.
60

o homem ausente de vontade, ausente de valor, sem amor, sem anseio,


que não sabe criar. E Zaratustra inquieta-se porque teme que chegue
“o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio
para além do homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido de
vibrar!”65
Zaratustra teme o tempo do mais desprezível dos homens,
que nem sequer saberá desprezar-se a si mesmo. Sim, porque esse
último homem parece avançar no seu modo de ser e tem vida longa, é
inteligente, é esperto. São esses que “inventaram a felicidade” e
sua espécie é inextirpável como o pulgão. Zaratustra teme o último
homem que a tudo apequena, esse que quer certeza, quer a facilidade,
quer o calor e por isso diz amar o vizinho, porque nele se esfrega.
São esses para os quais toda e qualquer inquietação, todo e qualquer
adoecer, todo e qualquer desconfiar, é pecado ⎯ são esses para os
quais seria um tolo quem ainda tropeça em pedras ou homens. Gostam
de sonhos agradáveis e sonham com um agradável morrer. Trabalham, é
certo, mas o trabalho é um passatempo, e cuidam para que o
passatempo não canse. Não almejam tornar-se ricos ou pobres, pois
são por demais penosas ambas as coisas. Não almejam governar, sequer
obedecer. São de nenhum pastor e de um só rebanho. Todos são iguais
e quem se sente de outro modo vai, voluntário, para o manicômio. Têm
pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite,
mas respeitam a saúde. São os que “inventaram a felicidade”66
E eis que o povo pede a Zaratustra que lhes ensine mais a
respeito desse último homem ⎯ o povo gosta do último homem, não do
super-homem. Zaratustra se entristece.

Duas alternativas
À cultura moderna, marcada pelo niilismo da morte de Deus
ou pela desvalorização dos valores supremos, dois caminhos se abrem:

65
Idem, Prólogo 5. ⎯ Zarathustra’s Vorrede 5, s.19, z.15, “Wehe! Es kommt
die Zeit, wo der Mensch nicht mehr den Pfei seiner Sehnsucht über den
Menschen hinaus wirft...
66
Zaratustra não utiliza o termo “niilista” para caracterizar isso que o
último homem é. É válido, todavia, entender o último homem de Zaratustra como
o homem ocidental niilista de nossos dias, este piolho, esta doença de pele
da terra.
61

um, afirmativo, outro negativo; uma possibilidade, a do super-homem,


outra, a do último homem; uma, saudável, outra, doente. A saúde
consistiria, então, em reconhecer que, após a morte de Deus, a ação
do homem já não é chamar os deuses nem invocar a santidade. Agora é
a relação criadora do homem para com a terra, para com a vida; é a
invocação da suprema possibilidade humana, criar. Eis a doutrina do
super-homem. O super-homem que sabe que Deus morreu, isto é, que o
idealismo transcendente chegou ao fim, reconhece do “Além” idealista
apenas um reflexo niilista da terra. A idéia metafísica de um “Além”
brota de uma fonte terrestre original; ela é como que um “sonho”
pelo qual se procura obter a libertação de um mal.

O espírito de gravidade
O caráter lúdico e arriscado da existência humana
evidencia-se com a morte de Deus. Sem Deus, o risco e o jogo são por
si mesmos, estão na vida, são a vida, não encontram justificação.
Zaratustra vivenciou isso na praça do mercado, quando se dirigiu aos
homens. Um equilibrista, que fazia suas demonstrações no alto de uma
corda bamba, cai estatelado no chão e morre. O infortúnio fora em
conseqüência do ato de um palhaço que desequilibrara o homem com os
seus brados. “Que fazes aqui entre as torres?”, gritara o palhaço
para o equilibrista. “Dentro da torre é o teu lugar! É lá que
deveriam trancar-te, a ti, que impedes a passagem de alguém melhor
do que tu!”. Esta provocação causara o espanto do homem e o fizera
cair. Zaratustra tudo vê e socorre o homem. “Que diabo fazes aqui?”,
disse o moribundo. “Desde muito eu sabia que o Diabo me daria uma
rasteira. Agora ele me arrasta para o inferno; pretendes impedí-lo?”
Zaratustra lhe responde: “Não existe nada daquilo que disseste: não
existe o Diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais
depressa do que o teu corpo; portanto não receie nada!” O homem
ergueu os olhos desconfiado. “Se o que dizes é verdade”, falou
depois, “eu, então, nada perco, ao perder a vida. Não sou muito mais
do que um bicho, que ensinaram a dançar à força de pancadas e pouca
comida”. E Zaratustra retruca: “Oh, não! Fizeste do perigo o teu
62

ofício, nada há nisso de desprezível. Morres, agora, vítima do teu


ofício...”67
O caráter lúdico e arriscado da vida humana sofre
permanente ameaça não do Diabo, mas do “espírito do negativo”, do
“demônio do niilismo”, aqui personificado pelo palhaço provocador, o
inimigo mortal de Zaratustra. Esse demônio arrasta os homens para
baixo, faz os homens caírem de suas cordas-bambas, entronizam-se tão
perversamente nos homens que estes, ao morrerem, sequer esboçam
reação, e morrem resignados achando que, afinal, nada perdem.
Zaratustra, ao contrário, é positivo, vê um sentido nada desprezível
para o moribundo: o sentido de quem fez do perigo o seu ofício.

A morte do homem
“Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser
superado. Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora,
criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa
grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o
homem?”68, assim começara o discurso de Zaratustra na praça do
mercado. Trata-se de uma morte o que Zaratustra propõe: a morte do
homem. Morte como apagamento de um passado, morte-superação, morte-
renascimento.
Aqui, fica bem claro por que a morte de Deus implica na
morte do homem: uma vez morto Deus, ao homem não resta senão morrer.
Pois, não são duas as alternativas que se põem? Tornar-se o último
dos homens, isto é, este que já é o fim em si próprio, ou tornar-se
diferente do que é. Mais do que trocar de pele, renascer,
transmutar-se, ser outro, não mais homem, mas outra coisa, super-
homem.

67
Idem, Prólogo 6. ⎯ Zarathustra’s Vorrede 6, s.22, z.16, “... du hast aus
der Gefahr deinen Beruf gemacht, daran ist nichts zu verachten.”
68
Idem, Prólogo 3. ⎯ Zarathustra’s Vorrede 3, s.14, z.13, “Ich lehre euch den
Übermenschen. Der Mennch ist Etwas, das überwunden werden soll.”
63

A permanência do vício antigo


Nietzsche não coloca o homem no lugar de Deus: não diviniza
nem idolatra a existência finita. Mas colocar o homem no lugar de
Deus é o que fez a nossa moral ocidental niilista, a moral do último
homem. O ateísmo, assim o fazendo, permaneceu na toada antiga, no
velho vício. “Hegel, sobretudo, foi um estorvo por excelência,
graças à tentativa grandiosa que fez para nos convencer ainda,
afinal de contas, da divindade da existência, com o auxílio de nosso
sexto sentido, o sentido histórico.”69 Permaneceu-se no vício antigo
porque, mesmo tendo Deus por morto, o Ocidente permaneceu
inconscientemente a reverenciá-lo ao pôr em seu lugar idéias
modernas como “humanidade”, “sociedade livre”, “ciência”,
“progresso”, “felicidade”. Nesse sentido, observa Nietzsche que,
mesmo morto Deus, algo dele triunfou.

“Vê-se o que triunfou do Deus cristão: a própria


moral cristã, a noção de sinceridade aplicada com um
rigor sempre crescente; é a consciência cristã aguçada
nos confessionários e que se transformou até tornar-se
consciência científica, a pureza intelectual a todo
preço. Considerar a natureza como se fosse uma prova
de bondade e da providência divinas; interpretar a
história em honra de uma razão divina, como prova
constante de uma ordem moral do universo e do
finalismo moral, como o fizeram por tanto tempo os
homens pios, vendo em toda parte a mão de Deus, que
dispensa e dispõe todas as coisas em razão da saúde de
nossa alma.”70

Algo de Deus triunfou e grassa entre os homens. O


cristianismo, como dogma, pereceu; mas o cristianismo, como moral,
não. Em A Genealogia da Moral, de 1887, Nietzsche remete a questão
para a vontade de verdade. Quando essa vontade de verdade toma
“consciência de si mesma como problema”.71 Para Nietzsche, o ateísmo
69
NIETZSCHE, F.. A Gaia Ciência, 357, Acerca do velho problema: “O que é
alemão” ⎯ N.S.W., KSA 3, Die fröhliche Wissenchaft, 357, Zum alten Probleme:
“was ist deutsch”, s.599, z.29, “Hegel namentlich war sein verzögerer par
excellence...”
70
Idem, Ibidem. ⎯ s. 600, z.10, “Man sieht, was eigentlich über den
christlichen Gott geriegt hat: die christliche Moralität...”
71
NIETZSCHE, F.. Genealogia da Moral, 3ª dissertação, par.27 ⎯ N.S.W., KSA 5,
Zur Genealogie der Moral, s.410, z.29, “... jener Willens zur Wahrheit sich
selbst als Problem zum Bewusstsein gekommen wäre?”
64

é, pois, o aperfeiçoamento, o refinamento da vontade de verdade


criada pelo platonismo e o cristianismo. O homem moderno perpetra a
morte de Deus, mas queda envolvido pela sombra do Deus morto. Ainda
é preciso, portanto, livrar-se dessa sombra. O homem precisa
desaparecer.

A morte da divindade
Interessante é observar que Nietzsche emprega a idéia da
morte da divindade, quer se referindo à morte de Deus, quer à morte
dos deuses. Aqui, examinamos três pontos a partir dos quais
Nietzsche vê a questão.
O primeiro ponto pode ser associado a uma interpretação
histórica nietzschiana, ao ver a ascensão e derrocada dos deuses
como associadas a fenômenos históricos humanos, demasiado humanos.
Nesta acepção, as eras históricas dos homens engendram seus deuses.
A esse respeito, Nietzsche refere-se particularmente a duas
transições: a que marcou a desvalorização do Velho Deus dos hebreus,
na figura do Pai, e a valorização do Filho; e a transição que marcou
a derrocada dos deuses greco-romanos e a ascenção do cristianismo no
Ocidente. Fazendo uma alusão a Feuerbach, para quem os deuses são
criação dos homens, podemos pensar esta primeira acepção como a de
uma visão feuerbachiana da morte de deus.
O segundo ponto é o que acabamos de examinar neste
capítulo: a morte de Deus como fenômeno da era moderna, e que
implica na morte do homem. Trata-se aqui da seguinte questão: o
homem ocidental niilista e ateu só tem uma alternativa: desaparecer.
Aqui, duas possibilidades: uma, negativa: o último homem; outra,
positiva: tornar-se um criador, deixar de ser homem e transmutar-se
em super-homem.
Finalmente, o terceiro ponto deriva do que também já foi
examinado: Deus como ilusão da consciência, da razão e da linguagem,
morte de Deus como conseqüência da percepção de que se trata de um
erro gramatical.
65

SEGUNDA PARTE
MICHEL FOUCAULT, CRÍTICO DA RACIONALIDADE MODERNA

Introdução
A partir deste ponto, queremos repassar sobre a obra de
Michel Foucault para dar conta de que este, nitidamente influenciado
pela leitura interpretativa de Nietzsche, concentra-se numa crítica
à modernidade, assim como Nietzsche o fizera. Nietzsche, como vimos,
vale-se da oposição do pensamento trágico ao pensamento racional,
da crítica à consciência e à linguagem, bem como da constatação da
morte de Deus e da morte do homem, para pôr em questão a própria
racionalidade moderna encarnada no último homem. Foucault, num
esforço para confirmar Nietzsche, desenvolve um trabalho original em
que parte do estudo das condições de possibilidade dos saberes do
homem, condições essas constituídas por regiões obscuras porém afins
à ciência e, a bem dizer, à racionalidade. A respeito desse
trabalho, observa Vera Portocarrero,

a delimitação dos objetos tratados por Foucault


(...) podemos compreender como uma insurreição contra
os poderes da “normalização” (...) Seu objetivo é saber
através de que jogos de verdade o homem se constitui
historicamente como experiência, quando se pensa a si
mesmo, ao se perceber como louco, ao se olhar como
doente, ao se refletir como ser vivo que fala e que
trabalha, ao se julgar criminoso. Apesar de
essencialmente histórica, sua abordagem é, conforme ele
66

mesmo frisa, filosófica e não deve ser confundida com a


de um historiador72

Foucault desenvolveu um trabalho, como ele mesmo o


conceituou, que é um éthos, um caminho filosófico de crítica àquilo
que nós somos. Uma crítica ao último homem que nós somos? ⎯ cabe
pensar, reportando-nos a Nietzsche, este homem sem Deus, este homem
só com sua racionalidade. E este caminho de crítica foucaultiana é,
a uma vez, análise histórica dos limites que nos são postos, e
indagação de uma superação possível, num anseio, como o de
Nietzsche, pela superação do homem. Ocorre que a atitude filosófica
de Foucault traduz-se em um rico trabalho de pesquisa que comporta
estudos diversos que convergem para o que ele chamava de uma
pesquisa arqueológica e para uma pesquisa genealógica, como veremos
a seguir.
Todavia, e isto queremos reafirmar, por todo o trabalho de
Foucault é possível perceber como que um desejo permanente: o de
confirmar Nietzsche, indo além, mesmo, do filósofo da morte de Deus
e da morte do homem.
Particularmente na França, terra de grandes anseios e
inquietações, Nietzsche foi muito utilizado. Segundo Le Rider73,
muito embora desde o início assim não tivesse sido, o pensamento do
alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) findou por ter na
França grande acolhida. No começo, no tempo de O Nascimento da
Tragédia (1872), a França, evidentemente, nada conhecia de
Nietzsche. A época apresentava-se dominada pela guerra de 1870 entre
França e Alemanha e o jovem Nietzsche, futuro admirador de
Baudelaire e de Carmen de Bizet, era então um patriota cheio de
desconfiança com relação à França moderna, e francamente hostil aos
socialistas e aos republicanos franceses.

72
PORTOCARRERO, Vera. Foucault: A História do Saber e das Práticas. In:
Filosofia, História e Sociologia das Ciências I, Vera Portocarrero, org.,
Editora Fiocruz, 1994, p.43.
73
LE RIDER, Jacques. Prefácio de Nietzsche et la France - présences de
Nietzsche en France. In: Friedrich Nietzsche - Oeuvres, Paris, Bouquins,
Robert Laffont, vol.1.
67

A primeira fase de introdução de Nietzsche na França deu-se


no período de 1890 a 1933. Segundo Le Rider, essa fase “parece
marcada por afinidades intelectuais algumas vezes não percebidas ou
não confessadas entre os leitores franceses e o filósofo alemão”.
Ressalta que, nessa época, os franceses pareciam particularmente
sensíveis a tudo que, vindo de Nietzsche, tocava na questão da “alma
alemã” e de sua expressão literária e especulativa. Segundo Le
Rider, “os franceses dessa época se regalavam com a verve anti-alemã
de Nietzsche e de sua estética anti-wagneriana, reconhecendo-se
freqüentemente em sua crítica toda baudelairiana da modernidade ou
na pureza e elegância de seus escritos polêmicos e de seus
aforismos”.
Mas, observa Le Rider, eis que nos anos 20 e 30 Nietzsche
já não é mais novidade, situando-se entre os clássicos do pensamento
alemão. Assim é que, em 1932, Albert Camus, ainda estudante de
dezenove anos em Argel, demonstra conhecer Nietzsche parafraseando O
Nascimento da Tragédia e, em particular, a oposição entre o apolíneo
e o dionisíaco no seu Ensaio sobre a música.
No fim dos anos trinta e durante os anos da Segunda Guerra
Mundial produz-se um segundo momento francês de Nietzsche que tem
por principal representante Georges Bataille. Le Rider observa que
esse momento é, todavia, rapidamente ultrapassado pelo terceiro
momento francês de Nietzsche que começa nos anos sessenta,
particularmente no colóquio de Royaumont de julho de 1964, dedicado
a Nietzsche. Esse colóquio conta, dentre outros, com Pierre
Klossowski e Gilles Deleuze e também com Michel Foucault que
apresenta trabalho intitulado Nietzsche, Freud e Marx. Na base da
discussão de Foucault está a questão da linguagem.
Um filósofo interessado em psicologia, eis como, no início
da década de 50, era definido o perfil do professor procurado pela
universidade de Lille. Será Michel Foucault quem irá preencher os
requisitos do cargo, nomeado assistente de psicologia em outubro de
1952. Segundo nos indica Eribon74, o novo professor dará suas aulas
74
ERIBON, Didider. Michel Foucault, 1926-1984. — S.Paulo: Cia.das Letras,
1990. p.74.
68

na faculdade de letras onde “ensina psicologia e sua história,


explicando teorias, passando em revista autores, falando de
psicopatologia, das Gestalt, dos testes de Rorschach, etc, (...)
demora-se sobre Freud, (...) demora-se também no estudo da
‘psiquiatria existencial’ e nos trabalhos de Kuhn e Biswanger (...) e
conclui suas exposições anuais lembrando os fisiologistas soviéticos
que trabalham na linha de Pavlov”.75
Antes de ser nomeado para Lille, Foucault já lecionava
psicologia na École Normale Supérieure. Eribon observa que seu curso
era muito bem acolhido e muito procurado, sendo que as pessoas a ele
acorriam como se fossem a um espetáculo. É dessa época o livro
Maladie mentale et personalité (Doença mental e personalidade).
Um filósofo interessado em psicologia? ⎯ bem mais do que
isso parece revelar-se Foucault. Seu trabalho revela um interesse que
transcende a própria ciência, pois vê nela uma forma essencial de
crueldade.
Eribon, em sua pesquisa biográfica, observa que Foucault
veio a interessar-se por Nietzsche no início dos anos 50, época em
que fazia parte do Partido Comunista76. Sobre essa época, em
entrevistas posteriores, Foucault observou que o seu sentimento era
de perceber como intolerável um futuro profissional do tipo burguês e
de decepção com relação à sociedade da qual fazia parte, a sociedade
francesa que “admitira o nazismo, que se prostituíra com ele, e
depois passara em bloco para De Gaulle”77
Eribon sugere que Foucault teria se interessado por
Nietzsche “afastando-se das formas tradicionais da filosofia que a
seu ver o hegelianismo e a fenomenologia representavam”. A esse
respeito, cita uma entrevista dada por Foucault em 1978 em que a
certa altura responde:

Para muitos de nós, jovens intelectuais, o interesse


por Nietzsche ou por Bataille não representava uma
forma de se afastar do marxismo ou do comunismo. Ao
contrário, era a única via de comunicação e de passagem
75
Idem, p.75.
76
Op. Cit., ERIBON , cap. 5, O sapateiro de Stálin.
77
Op. Cit., ERIBON, p.65.
69

para o que acreditávamos dever esperar do comunismo.


Essa exigência de recusa total do mundo em que devíamos
viver evidentemente não era satisfeita pela filosofia
hegeliana. Por outro lado, procurávamos outras vias
intelectuais para chegar justamente lá, onde parecia
que ganhava corpo ou existia uma coisa muito diferente:
quer dizer, o comunismo. Foi assim que, sem bem
conhecer Marx, recusando o hegelianismo, sentindo-me
mal com os limites do existencialismo, decidi aderir ao
partido comunista. Estávamos em 1950: nessa época ser
“comunista nietzschiano”! Uma coisa no limite do
vivível e, se quiser, talvez um pouco ridícula: eu
sabia disso.78

De qualquer forma, é considerando testemunhas da época que


Eribon aponta o ano de 1953 como aquele em que Nietzsche assume
influência determinante sobre Foucault. Nietzsche, o louco.

78
Idem, ibidem.
70

CAPÍTULO 1
O PROJETO ARQUEOLÓGICO

Enraizamento na epistemologia
Sobre a primeira fase da trajetória de Michel Foucault,
Roberto Machado observa que “a história arqueológica (...) produziu
uma série de deslocamentos metodológicos para dar conta das ciências
do homem, um campo em que os métodos epistemológicos têm se mostrado
ineficazes ou insuficientes”.79
Eis que a trajetória da arqueologia de Foucault advém de
uma posição frente à história epistemológica tal como praticada na
França a partir de Bachelard, num progressivo distanciamento das
teses epistemológicas. Dessa forma, veremos que essa arqueologia
desdobra-se em novos horizontes de análise com a genealogia do poder.
A epistemologia, aqui entendida como pensamento crítico da
ciência, tem, na França, terra de Foucault, uma grande tradição.
Foucault, a sua história o demonstra, teve sua origem ligada à
ciência. Inicialmente estudioso da psicologia, e particularmente bem
informado sobre os problemas referentes à psicopatologia e à
psicopatologia social, sofre influência de dois pensadores franceses
das ciências: Gaston Bachelard (1884-1962) e Georges Canguilhem
(1904-1995). Nesses, são as idéias de descontinuidade e
historicidade que dominam na interpretação das ciências bem como a
necessidade de conceber essa história como uma psicologia da
conquista progressiva das reações em seu conteúdo atual, como a mise
en forme de genealogias lógicas e, para empregar uma expressão de
Bachelard, como um recenseamento de “obstáculos epistemológicos
superados”. A perspectiva em que se situam Bachelard e Canguilhem
não aceita a existência de critérios de cientificidade válidos
universalmente para todos os tempos; como também não aceita a
existência de um tempo único e homogêneo da ciência. Isto quer dizer
que uma resposta à questão dos critérios de cientificidade não deve

79
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber.
71

ser dada em um nível geral e abstrato, assinalando as condições


indispensáveis à elaboração de qualquer conhecimento científico. Não
cabe à filosofia enunciar a verdade da ciência. Fazer epistemologia,
elucidar o problema do conhecimento científico, não é definir a
priori as condições de possibilidade de todo conhecimento possível;
é delimitar o que caracteriza a operação científica através da
investigação da produção de conhecimentos de uma determinada
ciência; é refletir filosoficamente sobre as ciências, privilegiando
a questão da formação de seus conceitos.
Já em Foucault não há propriamente uma questão
epistemológica; o problema da ciência remete a seu exterior, às
condições de possibilidade do surgimento de seu discurso. Muito
embora não incompatível com a epistemologia, o deslocamento de
Foucault com relação ao problema da ciência remete para uma
preocupação com o “saber”, numa preocupação com a formação dos
conceitos, uma busca das continuidades e descontinuidades.
Mas talvez esta perspectiva nova de Foucault se deva a
outra grande influência: Nietzsche. Foucault foi leitor de Nietzsche
e assim facilmente se denuncia pelo “desinteresse por uma obra
sistemática, pelo primado da relação sobre o objeto, sobre o papel
relevante dado à interpretação, pela importância dos procedimentos
estratégicos e pela absorção da noção de genealogia”80.
Ora, a tese fundamental da epistemologia francesa é a de
que a filosofia das ciências possui uma dimensão histórica. Isto se
dá porque a ciência coloca uma questão fundamental para a filosofia:
a questão da racionalidade (grifo nosso). Mas a razão tem uma
história e, assim sendo, só a história das ciências é capaz de
demonstrar o lugar próprio do conhecimento e da verdade e indicar o
seu itinerário. É, pois, a epistemologia uma filosofia que tematiza a
racionalidade através da ciência, por ela considerada atividade
racionalista por excelência. Será, portanto, a partir da
epistemologia que se deve analisar o deslocamento metodológico
operado por Foucault. O ponto de chegada é a “arqueologia do saber”,
80
MARTON, Scarlet. Foucault, leitor de Nietzsche. In: Recordar Foucault,
Renato Janine Ribeiro (org.). - São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
72

resultado de um processo também histórico, em que, para se definir,


procurou sempre se situar com relação à epistemologia. Depois disso,
novos horizontes de análise se abrem com a “genealogia do poder”.
Segundo nos aponta Roberto Machado, o pensamento de Gaston
Bachelard é voltado para a problemática da racionalidade porém no
sentido de desclassificar toda pretensão de formular um racionalismo
geral. Configura-se assim um racionalismo regional e a inexistência
de critérios de racionalidade válidos para todas as ciências. Trata
ele de uma investigação minuciosa de várias “regiões de
cientificidade”, na pesquisa da física, da química, das ciências da
natureza (região da natureza ou da matéria).
Georges Canguilhem, por sua vez, retomando Bachelard,
interessa-se pela biologia, anatomia e fisiologia, ou seja, pelas
ciências da vida, uma outra região de cientificidade.
A arqueologia de Foucault, por fim, comporta análises
centradas na questão do homem, numa grande pesquisa sobre a
constituição histórica das “ciências do homem” na modernidade,
caracterizando uma nova região, uma região ao lado das regiões da
natureza e da vida. É, todavia, Georges Canguilhem o epistemólogo de
quem Foucault se sente mais próximo; ciências da vida versus
ciências do homem, eis a proximidade.
Mas eis que a démarche arqueológica de Foucault não se
norteará mais pelos mesmos princípios que orientam a história
epistemológica. Aqui, a arqueologia assume em suas análises da
racionalidade uma posição bastante diferente: enquanto a
epistemologia, pretendendo estar à altura das ciências (postula que
a ciência ordena a filosofia, como diz Bachelard) a arqueologia,
reivindicando sua independência com relação a qualquer ciência,
pretende ser uma crítica da própria idéia de racionalidade (grifos
nossos).
Assim, abandonando a questão da cientificidade, que define
propriamente o projeto epistemológico, a arqueologia realiza uma
história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma
história do progresso da razão (grifo nosso). Trata-se de investigar
73

as condições de existência das ciências do homem enquanto saberes


através da análise do que dizem, como dizem e por que dizem. Essa
démarche implicará no abandono da ciência como o objeto
privilegiado, na conservação da exigência filosófica de realizar uma
análise conceitual, e não factual, do discurso. Desaparecem assim as
categorias de ciência e epistemologia e aparece um novo objeto: o
saber ⎯ e um novo método, a arqueologia.
Dentro da arqueologia mesma, entretanto, observa-se uma
trajetória. O próprio termo “arqueologia” (a história realizada por
Michel Foucault das histórias das idéias) sofre modificações
conceituais importantes a ponto de, em cada livro, ter sido definido
de modo diferente. Daí a idéia de uma trajetória, como o
deslocamento de uma região do conhecimento para o saber.
A arqueologia distingue-se da epistemologia em função das
propriedades intrínsecas dos objetos por ela estudados. Será a
originalidade da psiquiatria e da medicina que exige a
especificidade de um método capaz de esclarecer e reconstituir a sua
história. Será a diferença dessas disciplinas com relação aos
conhecimentos propriamente científicos como a física ou a química
que impede que elas sejam estudadas de modo eficaz em uma
perspectiva epistemológica.
Na obra de Foucault observa-se, num primeiro momento, uma
arqueologia da percepção ou uma arqueologia do olhar. Num segundo
momento, uma arqueologia do saber, mas que, no entanto, não
constitui a palavra final.
Em Foucault, qualquer livro seu é, do ponto de vista
metodológico, sempre diferente do livro anterior. Uma característica
fundamental da arqueologia é justamente a multiplicidade de suas
definições: uma pesquisa que, não aceitando fixar-se em cânones
rígidos, é sempre instruída pelos documentos pesquisados, numa
provisoriedade assumida e refletida pela análise. Aqui, é a própria
idéia de método histórico imutável, sistemático, universalmente
aplicável, que é desprestigiada.
O primeiro momento
74

História da loucura, este é o primeiro momento da


trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Aqui, trata-se de
estabelecer as condições históricas de possibilidade dos discursos e
das práticas que dizem respeito ao louco considerado como doente
mental. Será no final do século XVIII o momento em que se inicia o
processo de patologização do louco. O que interessa a Foucault é,
através do nível simbólico, analisar uma inquietação própria da
época: o aparecimento do louco no âmago da questão da verdade e da
razão, como ameaça, irrisão, ilusão. Foucault coloca sob foco o
início de um processo de dominação da loucura pela razão, processo
esse que comporta a destruição da loucura como saber que expressa a
experiência trágica do homem no mundo, em proveito de um saber
racional e humanista, centrado na questão da verdade e da moral.
Trata-se de uma percepção do indivíduo como ser social pois eis que
o estatuto do louco é conferido não pelo conhecimento médico, mas
por uma “percepção social”.
A ação é dispersa e produzida por diversas instituições da
sociedade como a polícia, a justiça, a família, a Igreja, a partir
de critérios que dizem respeito não à medicina, mas à transgressão
às leis da razão e da moralidade. O marco institucional da nova
etapa: 1656, Paris, criação do Hospital geral que agrupa La
Salpêtrière, Bicêtre e outros estabelecimentos. Não se trata, para
Foucault, de uma instituição médica, mas de uma estrutura “semi-
jurídica”, entidade assistencial e administrativa que se situa entre
a polícia e a justiça e seria como que a “ordem terceira da
repressão”. Socialmente, trata-se do “Grande Enclausuramento” que
assinala a passagem de uma visão religiosa da pobreza que,
considerando-a uma positividade mística, a santifica, para uma
percepção social que, atribuindo-lhe a negatividade de uma desordem
moral e um obstáculo à ordem social, a condena e exige sua reclusão.
Economicamente falando, eis duas justificativas da época: em tempo
de desemprego, proteger a cidade contra os distúrbios que podiam ser
causados pelos ociosos; em tempo de pleno emprego, possibilidade de
adquirir mão-de-obra barata. Foucault observa que, na época, o
75

trabalho é menos uma categoria econômica do que uma categoria moral,


e que a origem da pobreza era vista não propriamente como sendo o
desemprego ou a escassez, mas a falta de disciplina e os maus
costumes. O Grande Enclausuramento, para Foucault, assinala o
nascimento de uma ética de trabalho em que este é moralmente
concebido como o grande antídoto contra a pobreza. É um fenômeno
eminentemente moral, instrumento de poder político que não apenas
exclui (grifo nosso) da sociedade aqueles que escapam a suas regras
e que produz uma população homogênea, a dos internados, um “outro”
da sociedade, um estrangeiro aos olhos da razão e da moral, ao mesmo
tempo que organiza um domínio novo de experiência que tem unidade e
coerência, como diz Foucault: “...uma coerência que não é nem a de
um direito, nem a de uma ciência; a coerência mais secreta de uma
percepção”.
A maior parte dos motivos de internamento: a sexualidade
imoral do doente venéreo ⎯ que adquiriu o mal fora da família ⎯ na
sodomia, prostituição, “devassidão”, “prodigalidade”, “ligação
inconfessável”, “casamento vergonhoso”. Uma segunda região:
profanação do sagrado, desordem do coração, da alma, desordem moral
ou social como a blasfêmia, o suicídio, ou magia, feitiçaria ou
alquimia e que são desclassificados como erro, engano, ilusão. O
terceiro domínio é formado pela libertinagem que, na época, é
irracionalismo e subordinação da razão à não-razão dos desejos do
coração. O quarto tipo é representado propriamente pelo louco. Na
época, o espaço do louco é o enclausuramento junto com todos os
demais excluídos da sociedade, o que significa que ele não é
percebido como doente e muito menos como doente mental.
Ocorre que, na época, já existe uma percepção da loucura
como doença que interna no hospital. Enquanto os loucos do Grande
Enclausuramento seriam doentes ignorados, não localizados por um
saber médico emergente, os outros já teriam sido reconhecidos como
doentes e tratados em hospital. Porém, importa observar que na época
clássica a loucura não era percebida como uma individualização por
critérios médicos, em que ela será patologizada como doença mental,
76

mas como integrado ou dissipado em uma massa de que também fazem


parte o venéreos, os sodomitas, libertinos, mágicos e alquimistas.
Para Foucault, o que é isolado e localizado no internamento clássico
sob variadas figuras é a desrazão e esta percepção não é uma
percepção médica, mas ética.
Para a medicina, todavia, a loucura será algo bastante
diferente: será parte de um saber que vai procurar determinar sua
essência, sua natureza. Temos assim, por uma lado, a figura do
enclausurado em instituições de reclusão em que a medicina não
entra; por outro, a teoria médica que pretende definir a loucura
como doença e que em nenhum momento se apóia em uma observação dos
loucos, como procurará fazer a psiquiatria. Daí a dicotomia
estabelecida por Foucault: “O século XVIII percebe o louco, mas
deduz a loucura”. O fato é que a medicina, e a teoria que define o
louco como doente mental, em vez de estar na origem, se encontra no
fim deste processo.
Será no século XIX que se dará a revolução psiquiátrica,
num processo que medicaliza, objetiva, que muda as significações
essenciais da loucura e propõe uma nova descrição das relações do
homem com as formas ocultas da desrazão: loucura não mais como
desrazão mas como alienação. O caminho está preparado para o
surgimento da psiquiatria, e o nascimento dessa ciência só pode ser
elucidado a partir do tipo de intervenção que a caracteriza. É o
nível da percepção e não o do conhecimento que aparece como
fundamental quando se trata de estabelecer suas condições de
possibilidade. É do lado institucional que Foucault vai sobretudo
desenvolver sua análise do nascimento da psiquiatria, psiquiatria
como terapêutica, sem uma medicina propriamente.
Em História da Loucura Foucault traça as atitudes do
Ocidente com respeito à loucura e suas relações com as normas sociais
durante três períodos históricos:
(1) O final da Idade Média e o Renascimento, quando a
loucura substitui a lepra como motivo de exclusão e os loucos são
ritualmente expulsos para um “exterior” tanto social quanto
77

geográfico, o que é bem representado pelo popular símbolo da


stultífera navis (o navio dos loucos). O conceito de loucura
substitui a morte como limite absoluto e verdade do mundo e foi
expresso de duas formas eventualmente divergentes: (a) nas imagens
visuais de Bosch, Brueghel, Dürer e outros artistas que representavam
a dimensão sombria e cósmica da loucura como uma experiência trágica
do silencioso segredo do mundo; e (b) a representação literária da
loucura como a “consciência crítica do homem”, a qual desenvolveu-se
a partir da tradição humanística de Erasmo e Brant na qual “a loucura
ocupou o universo do discurso” e uma distância irônica se estabeleceu
no que parecia como o conhecimento do homem de si mesmo. No final do
século XVII, a forma trágica da loucura foi subsumida, ou
compreendida, pela experiência da loucura na linguagem e da razão,
tendo ambas triunfado sobre a loucura colocando-a “no coração de si
mesma, designando-a como um momento essencial de sua própria
natureza”.
(2) A Idade Clássica, que começou em meados do século XVII
com o advento do Hospital Geral e outras instituições onde os loucos
eram confinados juntamente com desempregados, criminosos, libertinos
e vários outros tipos que não se enquadravam na ordem econômica e
moral da sociedade burguesa ascendente. Esse “grande confinamento”
constituia uma vasta e uniforme esfera de “desrazão” que foi
localizada e isolada de uma presença concreta no mundo social e
silenciada por ser alienada da razão, uma animalidade pura que vinha
do que fosse humano no homem. Loucura era puro não-ser; não mais uma
contrapartida dialética da razão como havia sido entendida no
Renascimento, a loucura existia agora somente na medida em que era
ordenada e julgada pela razão como uma falta absoluta percebida
principalmente como aquilo que distinguia das estruturas racionais do
“não-louco”.
(3) O século XIX e a época recente, período que começou com
os movimentos da reforma de Tuke e Pinel, continuando até nossos
dias. Nas novas instituições “humanas” criadas especialmente para os
loucos, as restrições físicas do período do confinamento foram
78

internalizadas nos pacientes como um senso de temor e de culpa diante


da presença de um “outro” autoritário, que simboliza a ordem moral e
familiar da sociedade racional, na figura do Doutor, do Juiz e mais
geralmente do Pai. A loucura, uma vez mais se torna visível, mas
somente como objeto firmado à distância por um sujeito que conhece e,
assim o fazendo, a conduz. Esse aspecto do asilo ainda conduz ao modo
pelo qual pensamos a loucura no que ela evoluiu no sentido da
situação psicanalítica freudiana, com sua ênfase no forte benefício
curativo da relação doutor-paciente e na importância subjacente dos
temas familiares. A origem histórica dessa situação foi rapidamente
soterrada, entretanto, debaixo da pretensão científica pela
objetividade e diante do mito do positivismo.
Nossa experiência da loucura hoje, consequentemente,
permanece ignorando “o reino soberano da desrazão”, irredutível à
loucura e resistente “àquele gigantesco aprisionamento moral” no qual
a loucura foi tida no século XIX. Mas a desrazão irrompe
ocasionalmente, todavia, em “relâmpagos” como em Nietzsche ou Artaud,
em Sade, em Goya, onde a loucura amplifica as “escassas vozes
audíveis da desrazão clássica” em “grito e agitação”, adicionando ao
não-ser da desrazão “o poder de aniquilar” e assim permitir ao
Ocidente “a possibilidade de transcender sua razão com violência”. A
loucura do artista moderno não é a origem da arte mas a ausência do
trabalho da arte ... o lado exterior, a linha de dissolução, o
contorno vazio, e através da mediação da loucura, o mundo que se
torna culpável ... em relação ao trabalho da arte; [o mundo] é agora
acusado pelo mundo da arte, forçado a ordenar-se segundo sua
linguagem, compelido por ela a uma tarefa de restaurar a razão a
partir daquela desrazão e para aquela desrazão.
Conforme escreve no prefácio de História da Loucura,
Foucault anuncia que é preciso “renunciar ao conforto das verdades
terminais”, abandonar conceitos elaborados pela psicopatologia
contemporânea. Tratava-se, como ele declarou, não de fazer a história
de uma linguagem, mas, antes, a “arqueologia de um silêncio”, o que
implica examinar toda a cultura ocidental. Talvez seja preciso
79

adimitir que a relação razão-desrazão constitui para essa cultura


“uma das dimensões de sua originalidade”, que ela se define por essa
profundeza que a ameaça, essa região onde importam mais os limites
que a identidade de uma cultura. E Foucault, conforme tão bem ilustra
a citação seguinte, ancora o seu trabalho na descendência de
Nietzsche.
(...) fazer uma história dos limites ⎯ desses
gestos obscuros, necessariammente esquecidos tão logo
se realizam, pelos quais uma cultura rejeita algo que
será para ela o Exterior; e ao longo de sua história,
esse oco, esse espaço vazio pelo qual ela se isola e
designa tanto quanto a seus valores ... Interrogar uma
cultura sobre suas experiências-limite é questioná-la
nos confins da história sobre um dilaceramento que é
como o próprio nascimento de sua história. (...) No
centro dessas experiências-limite do mundo ocidental
explode naturalmente a do próprio trágico ⎯ Nietzsche
mostrou que a estrutura trágica a partir da qual se
faz a história do mundo ocidental outra coisa não é
senão a recusa, o esquecimento e a base silenciosa da
tragédia.81
Uma arqueologia do olhar
Segue-se um segundo momento caracterizado por uma
arqueologia do olhar. Em O Nascimento da Clínica, as análises
arqueológicas de Michel Foucault voltam-se não mais para a
psiquiatria, mas para a própria doença e para a medicina moderna.
Trata-se aí de estudar como se deu a inauguração de um conhecimento
que se tornou científico quando a medicina se transformou em uma
ciência empírica.
Foucault parte da medicina clássica, uma medicina
classificatória que se elabora tomando como modelo a história
natural, um olhar que não pretende penetrar na profundidade das
coisas. Definir uma doença, aí, é enumerar seus sintomas. O
conhecimento da doença abstraía o doente. A doença era vista como
pura essência.
Seguem-se a proto-clínica do século XVIII, a clínica do
final do século XVIII e a anátomo-clínica do século XIX. A

81
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, I, 1954-1988, p.161, l. 15, “On pourrait
faire une histoire des limites(...)” l. 29, “Au centre de ces expériences-
limites du monde occidental éclate, bien entendu, celle du tragique même
(...)”
80

princípio, a finalidade do doente era exemplificar a doença. A


clínica é a primeira tentativa de fundar o saber na percepção,
quando o olhar passa a produzir conhecimento. A doença passa a
existir no elemento visível e enunciável, numa percepção de um
conjunto de sistemas. Trata-se de ouvir uma linguagem no momento em
que se percebe um espetáculo. Na anátomo-clínica observar-se-á o
resultado da relação constitutiva da clínica com a anatomia
patológica, numa ação voltada para explorar um novo espaço: o espaço
tangível do corpo. A doença, assim, se torna corporal. O processo
médico torna-se analítico para identificar o patológico; doença como
análise; acesso do olhar no interior do corpo doente, olhar de
profundidade.
Foucault correlaciona essa mudança da estrutura do
conhecimento médico a mudanças contemporâneas na estrutura
institucional dos hospitais e no amplo delocamento filosófico do
idealismo ao positivismo. Considera que esse deslocamento envolveu
uma reorganização fundamental da natureza da percepção que substitui
a transparência das coisas, as verdades ideais, e todas as razões de
conhecimento do Iluminismo por objetos opacos que deixam transparecer
suas verdades particulares somente a medida em que a observação
minuciosa do sujeito ( “olhar”) passa sobre eles. Questiona se esse
novo tipo de percepção envolveu uma nova relação entre ver e dizer.
Enquanto que no começo do século XVIII o conhecimento médico
constituia a verdade de uma doença por meio de um discurso
enciclopédico que existia a priori e separado da percepção de
sintomas, na “anátomo-clínica” a doença sofre uma total
redistribuição dentro da esfera do visível por um “olhar loquaz” que
via falando e falava vendo. Esse olhar falante foi, todavia, baseado
em uma reciprocidade tautológica entre linguagem e mundo porque a
linguagem que o olhar captou nos sistemas visíveis da doença foi
também a linguagem pela qual ele leu, ambos o seu objeto e sua
origem.
Essa tautologia foi resolvida pelo que Foucault chama “a
grande ruptura na história da medicina ocidental”, que relocou
81

conexões entre sintomas visíveis da superfície do corpo (constituida


como uma linguagem do exame da nova medicina clínica) para as
superfícies dos tecidos das membranas do corpo onde a doença
ocorria. Essa mudança fez coincidir a duração mórbida da doença com
o volume orgânico do corpo, e o olho analítico do observador
simplesmente seguiu a trajetória realizada pela doença, ela própria
à medida que passava pelo corpo marcando os tecidos em seu curso.
Ocorre assim o fato dessa passagem somente ser visível pela autópsia
e seu progresso aparente somente ser possível depois de haver
cessado a vida. Essa nova análise anátomo-clínica baseia assim seu
conhecimento na morte terminal, não mais concebendo, como outrora,
morte e doença somente como o negativo da vida. Além do mais, pelo
fato de o olhar estar agora proibido de transcender os limites
opacos do espaço visível dos corpos no sentido de buscar alguma
essência ideal e abstrata da doença, não mais pode usar uma
linguagem universal para levar o visível ao legível. Contrariamente,
a medicina fez a linguagem se voltar para o concreto, individualizou
o percurso da doença quando por ocasião da morte e assim desenvolveu
o primeiro discurso científico concernido ao indivíduo.

Uma arqueologia da ciências humanas


Em As palavras e as coisas, Foucault desenvolve uma
arqueologia das ciências humanas, num estudo da constituição
histórica dos saberes sobre o homem. Trata-se aqui de mostrar porque
antes da época moderna não houve, nem poderia ter havido, um saber
sobre o homem.
O fato de o homem desempenhar duas funções no saber da
modernidade, sua existência como coisa empírica e como fundamento
filosófico, o homem não mais considerado como objeto ou sujeito, mas
como representação, faz estabelecer uma correlação entre o homem
como objeto e o homem como sujeito do conhecimento. Nessa dupla
posição, a filosofia moderna passa a ser uma analítica da finitude.
A cultura moderna pode pensar o homem porque pensa o finito a partir
82

de si mesmo. Daí a tematização da sociologia, da psicologia e da


análise literária e dos mitos.
Na relação do significante com o significado, ligação
estabelecida entre a idéia de uma coisa e a idéia de uma outra, está
a representação. É no interior da análise da representação que
existem e se desenvolvem os saberes sobre os seres vivos, as
palavras e as riquezas. Será no aparecimento do homem como empírico
e como transcendental, objeto das ciências empíricas e da filosofia
moderna, que se dará a condição de possibilidade do aparecimento do
homem como representação, tal como é estudado nas ciências humanas.
Trata-se também aqui de assinalar as continuidades
sincrônicas e as descontinuidades diacrônicas entre os saberes. O
que interessa é estabelecer a rede que define a configuração geral
do saber de determinada época, sua emergência e sua transformação.
Em As Palavras e as Coisas, Foucault divide os últimos
cinco séculos da cultura ocidental em três épocas, e descreve o
paradigma epistemológico ou epistémê que caracteriza cada uma delas:
(1) O Renascimento, que percebia a ordem das coisas em função das
semelhanças entre elas; (2) a Idade Clássica, que começa no meio do
século XVII e baseou o conhecimento numa teoria da representação que
ordenou as coisas espacialmente de acordo com a taxonomia geral de
identidades e diferenças entre elas; e (3) a Idade Moderna, que
começa no século XIX e que entendeu as coisas temporariamente de
acordo com sua história ou, de uma forma mais geral, de acordo com
sua relação com uma origem que ao mesmo tempo era a essência de seu
ser e ainda fundamentalmente “outro” em relação a elas.
Foucault insiste na descontinuidade abrupta e absoluta
entre epistémês. Colocando frente a frente as ciências isomórficas da
ordem corrente da Idade Clássica ⎯ a gramática geral, a história
natural e a análise da saúde ⎯ com aquelas dos séculos XIX e XX:
filologia, biologia, economia política, concentra-se no estado da
linguagem dentro de cada epistémê, distinguindo: (1) a identidade
entre a linguagem e as coisas que constituiram a “prosa do mundo” no
Renascimento; (2) o desaparecimento da linguagem como um objeto do
83

conhecimento na Idade Clássica devido à sua identificação com “o


pensar por si mesmo” como um modelo para todos os conhecimentos; e
(3) a nova emergência da linguagem na idade moderna como um objeto de
conhecimento positivo do mesmo nível que a vida, a saúde e os valores
econômicos.
Foucault reivindica para a idade moderna o aparecimento do
conceito de “Homem” como “um objeto de conhecimento e como sujeito
que conhece”, um “duplo empírico-transcendental” no qual os conteúdos
empíricos do conhecimento revelam as categorias transcendentais que
tornam o conhecimento possível. Mas acrescenta que,
contemporaneamente a esse aparecimento, ocorre o nascimento de seu
“gêmeo”, um “não pensado” que é “um pouco a sombra projetada do homem
surgindo no saber; um pouco a mancha cega a partir da qual é possível
conhecê-lo”.82
Foucault situa as ciências humanas, constituídas pela
psicologia, sociologia e a história da cultura, dentro dessas
enigmáticas “finitudes” que constituem o Homem, caracterizando-as
como se estendendo “do que o homem é em sua positividade (vida,
linguagem, trabalho) ao que possibilita esse mesmo saber”, tendo em
mira “trazer a consciência do homem de volta a suas condições reais”.
Foucault privilegia a psicanálise e a etnologia (i.e., antropologia
social) como “contra-ciências” porque levam as ciências humanas
diretamente para regiões mais enigmáticas do que suas bases
epistemológicas ⎯ a consciência do indivíduo e a historicidade da
cultura ⎯ argumentando que essas contra-ciências são integradas de
acordo com o modelo formal da linguagem que pretende o conhecimento
positivo.
Foucault conclui que o “retorno” moderno da linguagem à
transparência do discurso clássico deixa expostos os fundamentos do
Homem, ameaçando substituí-lo no papel de figura central do
pensamento contemporâneo. Para Foucault, a linguagem entra
diretamente no campo do pensamento no fim do século XIX, “poder-se-ia
mesmo dizer no século XX, se Nietzsche, o filólogo (...) não tivesse
82
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. O homem e seus duplos, V, O
cógito e o impensado, p. 342 e 343.
84

sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão sobre


a linguagem”.83
A importância da linguística assume aqui dimensões
ontológicas, uma vez que somos reconduzidos ao lugar que Nietzsche e
Mallarmé haviam indicado quando um deles perguntava: “Quem fala?” e o
outro “vira cintilar a resposta na própria Palavra”. Eis que a
interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser reassume tom
imperativo. A questão de Nietzsche e a resposta de Mallarmé surgem
quando, estando a lei do discurso destacada da representação, o ser
da linguagem achou-se como que fragmentado; com Nietzsche e com
Mallarmé o pensamento foi reconduzido violentamente para a própria
linguagem.
Nesse ponto, onde a questão da linguagem surge novamente
com tal força de sobredeterminação, e onde parece sitiar a figura do
homem em cada um de seus aspectos, a cultura contemporânea está
forçando no sentido de criar uma parte importante do seu presente e
talvez do seu futuro; o homem pode estar em um processo de extinção à
medida em que o ser da linguagem continua a brilhar sempre mais forte
sobre nosso horizonte. E Foucault conclui perguntando:

Que relação há entre a linguagem e o ser, e é


realmente ao ser que sempre se endereça a linguagem,
pelo menos aquela que fala verdadeiramente? Que é,
pois, essa linguagem que nada diz, jamais se cala e se
chama “literatura”? (...) Dever-se-á pressentir aí o
nascimento, menos ainda, o primeiro vislumbre no
horizonte de um dia que mal se anuncia, mas onde já
advinhamos que o pensamento (...) vai recuperar-se por
inteiro e iluminar-se de novo no fulgor do ser? Não é
isso o que Nietzsche preparava, quando, no interior de
sua linguagem, matava o homem e Deus ao mesmo tempo e
assim prometia, com o Retorno, o cintilar múltiplo e
recomeçado dos deuses?84

Uma arqueologia do saber


Em 1969, ao publicar A Arqueologia do Saber, Foucault
explicava seu método de análise nos trabalhos precedentes,
argumentando no sentido de libertar a história do pensamento da sua

83
Idem. O homem e seus duplos, I, Retorno da Linguagem, p.321.
84
Idem. O homem e seus duplos, I, Retorno da Linguagem, p.322 e 323.
85

sujeição à transcendência e da camisa de força da fenomenologia para


purificar a história de todo o narcisismo transcendental,
desenvolvendo um método de análise livre de todo antropomorfismo.
Segundo ele, a história das idéias está condenada, nada mais, do que
a uma mudança de um interesse, mascarada em teoria, em um esforço
para restituir ao homem tudo que lhe foi incessantemente negado por
cerca de uma centena de anos: um refúgio privilegiado para a
soberania da consciência e a ilusão de uma continuidade histórica
ininterrupta. Em oposição a essa história contínua e à correlata
“função fundadora do sujeito”, Foucault propõe a “dispersão do
sujeito” através de sua “arqueologia” e de seu objetivo triplo: a
articulação das descontinuidades e a diferenciação das diferenças (ao
invés de sua supressão); a análise das transformações (ao invés da
simples indicação das mudanças); e a descrição das “dispersões das
descontinuidades em si mesmas” (ao invés da sua redução a uma origem
transcendental unitária).
A rejeição da consciência como origem transcendental de um
dizer expressivo permite a Foucault tratar cada discurso como uma
pura prática material firmada em um “a priori histórico” que forma
suas condições de possibilidade. Como a epistémê, o “arquivo” é a
primeira lei do que pode ser dito, e consiste no conjunto total das
relações que unem, em um dado período, as práticas discursivas que
dão lugar às figuras epistemológicas, às ciências e possivelmente a
sistemas formalizados. Consequentemente, apesar de rejeitado o
critério de continuidade, coerência e causalidade que governa a
historiografia tradicional, a análise arqueológica permanece
profundamente histórica, mergulhada na dimensão de uma história geral
que procura descobrir o domínio completo das instituições, processos
econômicos e relações sociais nos quais uma formação discursiva pode
ser articulada; ela procura mostrar como a autonomia do discurso e a
sua especificidade, entretanto, não dá a ela o status de pura
idealidade e independência histórica total; o que ela pretende
desencobrir é o nível particular no qual a história pode dar lugar a
tipos definidos de discurso.
86

A aula inaugural que Foucault pronunciou em 2 de dezembro


de 1970 ao assumir a cátedra vacante no Collège de France pela morte
de Jean Hyppolite recebeu o título de L’ordre du discours (A ordem do
discurso). Segundo observa sua tradutora para a edição brasileira da
Loyola85, “pode ser considerado um texto de ligação entre as obras
datadas dos anos 60, como História da Loucura, As Palavras e as
Coisas, A Arqueologia do Saber, centradas na análise das condições de
possibilidade das ciências humanas, e as que se seguiram a maio de
1968, como Vigiar e Punir, voltadas ao exame da microfísica do
poder”.
No texto, Foucault fala de início de sua ansiedade em
começar o seu discurso e propõe a hipótese de que em toda sociedade a
produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível
materialidade. Foucault observa que a sociedade usa três estratégias
principais para controlar os discursos: (1) regras de exclusão
(grifo nosso) que são fundamentalmente exteriores ao discurso, tais
como a proibição de determinadas palavras, a rejeição de certos tipos
de discurso tidos como “loucos”, e a “vontade de verdade” (ou
“conhecimento”) que privilegia alguns discursos em detrimento de
outros que são desconsiderados e tidos como “não verdadeiros”; (2)
regras internas ao discurso mesmo, tal como a metodologia do
comentário, a noção de “autor”, e os limites regulares e as práticas
das “disciplinas”; e (3) as regras ou condições impostas aos
indivíduos que se utilizam (ou pretendem utilizar) o discurso:
rituais, “solenidades do discurso”, doutrinas, e as mais gerais
restrições que governam a “apropriação social do discurso”, tais como
os sistemas educacionais.
Foucault observa que a filosofia tem consistentemente
tentado omitir a realidade do discurso como evento material através

85
V. comentário da tradutora Laura Fraga de Almeida Sampaio em A ordem do
discurso, Edições Loyola, 1996.
87

de temas como o do “sujeito fundante”, da “experiência originária”, e


da “mediação universal” e insiste que nos coloquemos em oposição a
essa “profunda logofobia” aceitando três decisões centrais:
“questionar nossa vontade de verdade; restaurar o caráter de evento
ao discurso; e abolir a soberania do significante”.
Na parte final de A ordem do discurso, Foucault anuncia a
direção em que prosseguirá suas investigações no decorrer dos cursos
no Collège de France, apontando para o que denomina o “conjunto
crítico” e o “conjunto genealógico” e lança o projeto de estudo das
interdições que atingem o discurso da sexualidade.

A démarche de Michel Foucault


Foucault dizia que seu problema estava em substituir a
forma abstrata, geral e monótona da “mudança”, na qual se pensa de
bom-grado a sucessão, pela análise dos tipos diferenciais de
transformação. E isso implicava duas coisas: 1) colocar entre
parênteses todas as velhas fórmulas de genérica continuidade,
através das quais comumente se atenua o fato selvagem da mudança, e,
ao contrário, fazer surgir obstinadamente toda a vivacidade da
diferença: estabelecer meticulosamente a separação; 2) colocar entre
parênteses todas as explicações psicológicas da mudança e definir
com mais atenção as transformações, não que tenham provocado, mas
sim constituído, a mudança; em suma, substituir o tema do devir pela
análise das transformações em sua especificidade.
Eis que a démarche de Michel Foucault em relação à história
das ciências é um processo cuja formação cabe estudar, bem como suas
transformações no tempo, e determinar sua trajetória, isto é, tanto
os deslocamentos com relação à epistemologia, quanto as modificações
internas que conduziram à arqueologia do saber e à genealogia do
poder.
88

CAPÍTULO 2
O PROJETO GENEALÓGICO

O poder
Com a genealogia do poder temos um novo caminho para as
análises históricas sobre os saberes. Não invalidando propriamente o
passado, Foucault parte agora de outra questão. Na arqueologia,
tratava-se de, neutralizando a questão da cientificidade, interrogar
as condições de existência dos discursos, mesmo quando os discursos
analisados são ou se pretendem científicos. A arqueologia tinha por
objetivo escrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles
científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e
não de validade como na epistemologia. Já na genealogia, seu
objetivo não é principalmente analisar as compatibilidades e
incompatibilidades entre saberes e práticas não discursivas a partir
da configuração de suas positividades; o que pretende é, em última
análise, explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de
possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que
imanentes a eles, os situam como elementos de um dispositivo de
natureza essencialmente política. É essa análise dos saberes, que
pretende explicar sua existência e suas transformações situando-os
como peças de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo
político, que utilizando um termo nietzscheano Foucault chamará
genealogia.
Nessas análises, Foucault aponta uma não sinonímia entre
Estado e poder. Ele vê uma articulação com poderes locais,
específicos, circunscritos a uma pequena área de ação, o que
caracteriza muitas formas de exercício de poder diferentes do
Estado, poder que intervém materialmente, atingindo a realidade
concreta dos indivíduos ⎯ o seu corpo ⎯ e que se situa ao nível do
próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana
e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.
Estamos aí no terreno do controle detalhado, minucioso, do corpo:
gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. Aí os poderes
89

se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social.


Nem o controle, nem a destruição do aparelho de Estado, como muitas
vezes se pensa, é suficiente para fazer desaparecer ou para
transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes
que impera em uma sociedade. Trata-se de um nível molecular de
exercício de poder, sem que parta necessariamente do centro para a
periferia. Os poderes não estão localizados em nenhum ponto
específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de
dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa. Não é
propriamente o poder que existe, mas práticas ou relações de poder,
relação entendida como luta, resistência dentro da própria rede do
poder. Trata-se de uma multiplicidade de relações de força, guerra,
disputa, este é o modelo para o poder.
Mas o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza
estratégica, uma positividade, segundo aponta Foucault:

O que lhe interessa basicamente não é expulsar os


homens da vida social, impedir o exercício de suas
atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los
em suas ações para que seja possível e viável utilizá-
los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e
utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e
contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo
econômico e político: aumento do efeito de seu
trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho
dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição
de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta,
de insurreição contra as ordens do poder, neutralização
dos efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens
dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade
econômica e diminuir os perigos políticos; aumentar a
força econômica e diminuir a força política.86

Uma importante novidade dessas investigações é não


considerar pertinente para as análises a distinção entre ciência e
ideologia. O objetivo da genealogia é neutralizar a idéia que faz da
ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas
condições particulares de existência instalando-se na neutralidade
objetiva do universal, e, da ideologia um conhecimento em que o

86
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: Microfísica do poder,
p.XVI
90

sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida,


velada pelas condições de existência. Para Foucault, todo
conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a
partir de condições políticas que são as condições para que se
formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação
do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua
origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber
neutro. Todo saber é político. Todo saber tem sua gênese em relações
de poder. Em contrapartida, todo saber assegura o exercício de um
poder.

Genealogia e história
O conceito de genealogia foi introduzida em Vigiar e Punir
que é onde seu sentido aparece mais claramente. Nesta obra, e em
Microfísica do Poder, será a vontade de saber que estará no centro
da análise. Trata-se de uma genealogia da alma moderna e, sem
dúvida, muitas das idéias de Nietzsche são iluminadas pela
perspectiva foucaultiana: o ver na filosofia de Nietzsche uma
espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo,
que se desenrolaria sempre mais, uma filologia que nunca estaria
fixada de forma absoluta. Assim, Nietzsche filólogo comprova que à
existência da linguagem se vinculam a possibilidade e necessidade de
uma crítica.
Por outro lado, recuperando a questão da interpretação,
ligando-a desta vez à idéia de genealogia, Foucault vai desembocar
na teoria nietzschiana das forças. Assim, a genealogia é entendida
como análise da proveniência e história das emergências.87 Para
Foucault, a genealogia é cinza, meticulosa, pacientemente
documentária, trabalhando com pergaminhos embaralhados, riscados,
várias vezes reescritos. Nela, há um indispensável demorar-se,
procurando marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda
finalidade monótona. Trata-se de espreitar os acontecimentos lá onde
menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo
87
FOUCAULT, M.. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do
Poder.
91

história ⎯ os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos. Em


Nietzsche, Foucault vê o emprego da palavra alemã Ursprung em
oposição a duas outras: Entstehung e Herkunft88. É que Nietzsche
recusa em certas ocasiões a pesquisa da origem (Ursprung),
posicionando-se contra uma identidade primeira, o escutar a
história. Para ele, ao invés de se acreditar na metafísica, ao invés
de se procurar atrás das coisas existe algo diferente, o que é
freqüentemente buscado na origem, o que se encontra no começo
histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem,
mas a discórdia entre as coisas, é o disparate (grifo nosso). “A
história ensina a rir das solenidades da origem”, escreve Foucault.
Gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em
estado de perfeição; mas o começo histórico é baixo. Procura-se
despertar o sentimento de soberania do homem mostrando seu
nascimento divino: isto agora se tornou um caminho proibido, pois no
seu limiar está o macaco. Trata-se, pois, de não acreditar mais que
a verdade permaneça verdadeira quando se lhe arranca o véu. A
verdade nada mais é do que espécie de erro que tem a seu favor o
fato de não poder ser refutado. A verdade e seu reino originário
tiveram sua história na história. Trata-se, pois, de fazer, como o
fez Nietzsche, uma genealogia dos valores, da moral. O genealogista
necessita da história para conjurar a quimera da origem; um pouco
como o bom filósofo precisa do médico para conjurar a sombra da
alma.
Ao contrário da origem, seguir o filão complexo da
proveniência (Herkunft) é descobrir que na raiz daquilo que nós
conhecemos e daquilo que nós somos não existe a verdade profunda,
mas a exterioridade do acidente. Assim, toda a origem da moral, a
partir do momento em que ela não é venerável ⎯ e a Herkunft nunca é
⎯ é crítica.
Já a emergência (Entstehung) quer referir-se ao ponto de
surgimento; princípio e lei singular de um aparecimento que se dá em

88
Ursprung: origem; Entstehung: emergência, ponto de surgimento; Herkunft:
proveniência. Segundo o Dic. Langenscheidts Taschen-wörterbuch de Alemão-
Português.
92

um determinado estado de forças. É que os fins aparentemente últimos


nada mais são do que o atual episódio de uma série de submissões. A
genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão, voltando-
se não para a potência antecipadora de um sentido, mas para o jogo
casual das dominações. A emergência tem a ver com o estado das
forças, embate de forças, relações de forças. Por exemplo, a
emergência de uma espécie (animal, vegetal, humana) e sua
premanência são asseguradas por um longo combate contra condições
constantes e essencialmente desfavoráveis. O triunfo da espécie é o
triunfo das forças que lutaram pela sua afirmação contra as forças
que lutaram pela sua negação.
Assim, a genealogia é, conforme bem indicou Nietzsche, a
Wirkliche Historie (história verdadeira ou efetiva). Aqui, o sentido
histórico escapa da metafísica para tornar-se um instrumento
privilegiado da genealogia, apoiando-se sobre nenhum absoluto (grifo
nosso); trata-se aqui de reintroduzir no devir tudo o que se tinha
acreditado imortal no homem. A história efetiva se distingue daquela
dos historiadores pelo fato de que ela não se apoia em nenhuma
constância. A história será “efetiva” na medida em que ela
reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. O sentido histórico
está mais próximo da medicina do que da filosofia: trata-se de olhar
perto, como o olhar do médico.
Essa história verdadeira não teme ser um saber perspectivo,
assumindo que olha de um determinado ângulo; é um olhar que sabe
tanto de onde olha quanto o que olha.
Aqui, o sentido histórico propugnado ⎯ em oposição às
modalidades platônicas da história-reminiscência, da história-
continuidade e da história-conhecimento ⎯ consiste do seguinte: uso
paródico89 e destruidor da realidade, uso dissociativo e destruidor
da identidade e uso sacrificial e destruidor da verdade.
Trata-se de fazer da história um uso que a liberte para sempre do

modelo, ao mesmo tempo metafísico e antropológico da memória. Ao homem confuso e

anônimo, que não sabe mais quem ele é e que nome usar, trata-se de oferecer
93
identidades sobressalentes, segundo a história convencional. O genealogista, por

sua vez, coloca em cena um grande carnaval do tempo em que as máscaras reaparecem

incessantemente. Genealogia, aqui, será como a história de um carnaval organizado.

Por outro lado, esta identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar

e reunir sob uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas

inumeráveis nela disputam, os sistemas se entrecruzam e se dominam uns aos outros.

Quando o genealogista estuda a história, se sente “feliz” (Amor Fati? ⎯ como não

lembrar?) ao contrário dos metafísicos, de abrigar em si não uma alma imortal, mas

muitas almas mortais ⎯ nessas, nenhum poder de síntese domina ⎯ a genealogia

pretende aqui fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. E ainda,

indaga se não será a paixão do conhecimento que virá matar o homem, se não estamos

diante da exigência do sacrifício do sujeito do conhecimento. Isto porque a

consciência histórica, apesar de ser aparentemente neutra, despojada de toda

paixão, apenas obstinada com a verdade, se ela se interrogar e se de uma maneira

mais geral interrogar toda consciência científica em sua história, descobrirá,

então, as formas e as transformações da vontade de saber, que é instinto, paixão,

obstinação inquisidora, refinamento cruel, maldade. Descobrir-se-á a violência das

opiniões preconcebidas com relação a tudo aquilo que há de perigoso na pesquisa e

de inquietante na descoberta. Assim,

(...) A análise histórica desse querer-saber que percorre a


humanidade faz aparecer tanto que todo o conhecimento repousa sobre a
injustiça (que não há no conhecimento um direito à verdade ou um
fundamento do verdadeiro), quanto que o instinto de conhecimento é
mau: há nele alguma coisa de assassino, e que ele não pode, que ele não
quer fazer nada para a felicidade do homem. O querer-saber não se
aproxima de uma verdade universal, ao contrário ele não cessa de
multiplicar os riscos; ele sempre faz nascer os perigos; abate as
proteções ilusórias; desfaz a unidade do sujeito; libera nele tudo o
que se obstina a dissociá-lo e a destruí-lo.90

89
Paródia: sátira, imitação cômica ou burlesca, comédia satírica em que se
ridiculariza uma obra.
90
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história, parte VII. In:
Microfísica do Poder, p.35.
94

CAPÍTULO 3
MORTO DEUS, DE COMO PENSAR

A marca da Modernidade
Este capítulo comportaria muito bem um subtítulo: De como,
em sendo tão próximo a Nietzsche, não se afastar de Kant.
Michel Foucault, de maneira original, atribuía ao
pensamento de Kant um papel central na fundação da Modernidade. Isso
era por ele bem explicitado em As Palavras e as Coisas com a
consideração de que Kant havia sido o primeiro filósofo a perceber
que a forma do conhecimento caracteriza-se pelo fato de que o
sujeito cognoscente, ao levantar-se das ruínas da metafísica,
prescreve-se a si mesmo, consciente de suas forças finitas, num
projeto que exigiria uma força infinita. Kant, assim, transforma a
questão em um princípio de construção de sua teoria na medida em que
reinterpreta as limitações da capacidade finita do conhecimento nas
condições transcendentais de um conhecimento que avança em direção
ao infinito. Para Foucault, o sujeito, sobrecarregado, cai numa
forma antropocêntrica de conhecimento, fato que caracteriza o
surgimento das ciências humanas. Nessas, por detrás de perigosa
fachada de um saber de validez universal, opera uma força
disciplinada e dissimulada de pura vontade que deseja ser o poder do
conhecimento. Kant seria, pois, o primeiro crítico do conhecimento
que, com sua análise da finitude, abriu as portas à era do
pensamento antropológico e das ciências humanas, marca da
Modernidade.
Foi, todavia, na década de 80, já próximo ao final da vida,
que Foucault indicou no pensamento de Kant um outro aspecto também
original e instigante. Eis que ele descobre, no filósofo de
Königsberg, o contemporâneo que converte a filosofia esotérica em
uma crítica do presente. Na resposta de Kant à pergunta “o que é a
Ilustração?”, Foucault vê uma ontologia da atualidade. Essas
considerações Foucault explicitou em conferência, resumida em texto
95

de 1984 intitulado Qu’est-ce que les Lumières?91. Nele, motivado pelo


que Kant escrevera em 1784 no jornal Berlinische Monatschrift em
resposta à pergunta Was ist Aufklärung?, Foucault desenvolve
interessante apreciação não somente daquilo que Kant escrevera, mas
também do próprio conceito de Modernidade e do que chama uma
“ontologia histórica de nós mesmos”, tipo de trabalho filosófico que
lhe é peculiar e que vem apresentar-se, por assim dizer, como
coroamento de toda uma tradição que tem suas origens exatamente no
Iluminismo.

O ser da filosofia moderna


Para Foucault, será com este texto de Kant que importante
questão entra discretamente na história do pensamento, questão à
qual a filosofia moderna não conseguiu responder e da qual nunca
conseguiu se livrar: o que é este acontecimento que se chama
Ilustração ou Esclarecimento ou Lumières ou Aufklärung e que
determinou em parte o que nós somos, o que nós pensamos e o que nós
fazemos hoje? Foucault coloca no próprio ser da filosofia moderna a
questão. É ela que tenta responder à questão lançada, eis que já se
vão dois séculos: Was ist Aufklärung?
Foucault observa que certamente não foi essa a primeira vez
que o pensamento filosófico procurou refletir sobre o próprio
presente, tendo este, entretando, sido tomado, na tradição cristã,
por três maneiras principais: a) o presente tomado como pertencente
a uma certa idade do mundo distinta das outras por algumas
características próprias ou separada das outras por algum
acontecimento dramático como, por exemplo, o pertencer a uma
revolução do mundo onde as coisas se põem ao avesso (República de
Platão); b) o presente interrogado para nele decifrarem-se signos
anunciadores de um acontecimento próximo, à feição de uma
hermenêutica histórica (Agostinho); c) o presente analisado como
ponto de transição em direção à aurora de um mundo novo (Vico).
91
FOUCAULT, M.. Qu’est-ce que les Lumières. In: Dits et écrits, vol. IV, 1980
- 1988, p. 562. Uma ontologia da atualidade que leva a Horkheimer e Adorno e
também a Habermas, passando por Hegel, Nietzsche e Max Weber, escreve
Foucault.
96

Ora, para Foucault, a maneira pela qual Kant coloca a


questão da Aufklärung é bem diversa, não tratando-a nem como uma
idade do mundo à qual se pertence, nem como um acontecimento do qual
se percebem os signos, nem como a aurora de uma realização. Kant
define Aufklärung de uma maneira negativa como Ausgang, “saída”,
“resultado”, concernindo a questão à pura atualidade. Ele não
procura compreender o presente a partir de uma totalidade ou de um
acabamento futuro; ele procura uma diferença, a diferença em relação
ao ontem.
Nesse sentido, segundo Kant, a saída que caracteriza a
Aufklärung é um processo que nos resgata do estado de minoridade,
entendendo por tal um certo estado de nossa vontade que nos faz
aceitar a autoridade de qualquer um que se põe a nos conduzir nos
domínios que devem convir à razão92. Quando um livro nos toma o lugar
no entendimento, ou quando um diretor espiritual nos toma o lugar da
consciência ou ainda quando um médico decide em nosso lugar sobre
nosso regime, aqui, à feição das três críticas, Kant exemplifica o
estado de minoridade. Aufklärung é, pois, definida pela modificação
da relação preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso da
razão ⎯ saída essa apresentada por Kant, segundo Foucault, de
maneira ambígua ⎯ e entendida como um feito, um processo em
desenvolvimento, uma tarefa, uma empreitada, uma obrigação. Observa
Foucault que, desde o primeiro parágrafo do texto de Kant, é o
homem, ele mesmo, o responsável pelo seu estado de minoridade,
devendo conceber que não poderá sair desse estado senão por uma
mudança que operará sobre si mesmo. De uma maneira significativa,
Kant sugere um lema, uma senha para a Aufklärung: Aude saper93.
Trata-se de um processo no qual os homens participam coletivamente e
um ato de coragem no plano pessoal.
Nesse ponto Foucault aponta uma dificuldade que diz
respeito à palavra Menschheit94 utilizada por Kant: é a espécie
humana que deve aí ser compreendida? Aufklärung é uma mudança
92
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo? In: A Paz Perpétua
e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1992.
93
Significando “tenha a coragem e a audácia de saber”.
94
Traduz-se por humanidade.
97

histórica que toca à existência política e social de todos os homens


na superfície da terra? Ou se trata de uma mudança que afeta aquilo
que constitui a humanidade do ser humano? O que é esta mudança? Para
Foucault, a resposta de Kant é de um certo modo ambígua,
aparentemente simples mas muito complexa.
Para Kant, são duas as condições essenciais para que o
homem saia de sua minoridade: condições de natureza espiritual e de
natureza institucional, ética e política, devendo-se distinguir
quanto às primeiras aquilo que diz respeito à obediência e aquilo
que diz respeito ao uso da razão. Para caracterizar brevemente o
estado de minoridade, Kant cita a expressão corrente “obedeça, não
raciocine”, sendo esta a forma de como se exerce a disciplina
militar, o poder político, a autoridade religosa. E observa que a
humanidade se tornará maior não propriamente quando não tiver mais
que obedecer, mas quando se disser: “obedecei, e vós podereis
raciocinar o tanto que quereis”. Aí a palavra räzonieren teria a
conotação de raciocinar por raciocinar como, por exemplo, ao “pagar
seus impostos, mas poder raciocinar o tanto que quiser sobre a
fiscalização” ou ainda ao “garantir, quando se é pastor, o serviço
de uma paróquia, de conformidade com os princípios da igreja à qual
se pertence, mas raciocinar como se deseja diante dos dogmas
religiosos”.
Uma outra distinção que faz Kant diz respeito ao que chama
uso privado e uso público da razão. O uso privado da razão é
exemplificado quando se é peça de uma máquina, isto é, quando há um
jogo a jogar na sociedade e funções a exercer, quando se deve
aplicar regras e seguir fins particulares, não se tratando
propriamente de uma obediência cega e bestial mas de fazer uso da
razão de forma adaptada às suas circunstâncias determinadas, devendo
se submeter a seus fins particulares, não se podendo aí fazer um uso
propriamente livre da razão. Já o uso público da razão se daria
quando se procura ser razoável não como peça de uma máquina mas
quando se raciocina como humanidade. Nesse sentido Kant indica que
98

existe Aufklärung quando ocorre a superposição do uso universal, do


uso livre e do uso público da razão.
Ora, Foucault vai observar que concebe-se o uso universal
da razão como aquele fora de todo fim particular e que isto seria
tarefa do sujeito enquanto indivíduo. Concebe-se também que a
liberdade desse uso possa ser assegurada de modo puramente negativo
pela ausência de toda perseguição contra ele. Mas como assegurar o
uso público dessa razão? A Aufklärung, vê-se, não deve ser concebida
simplesmente como um processo geral afetando toda a humanidade. Ela
não deve ser concebida somente como obrigação prescrita aos
indivíduos. Ela aparece agora como um problema político. Como o uso
da razão pode tomar a forma pública que lhe é necessária? Como a
audácia de saber poderá se exercer à luz do dia, dado que os
indivíduos obedecerão também exatamente que possível? Nesse sentido
Kant propõe ao monarca de seu tempo, Frederico II, em termos
velados, um tipo de contrato: “despotismo racional com a razão
livre”, em que o uso público e livre da razão autônoma será a melhor
garantia da obediência, isto sob condição de que o princípio
político ao qual se deve obedecer seja ele mesmo conforme a razão
universal.
Foucault sublinha a ligação que existe entre esse breve
artigo de Kant e as três Críticas95. Será precisamente na Aufklärung,
no momento em que a humanidade vai fazer uso da própria razão sem se
submeter a nenhuma autoridade, é precisamente nesse momento que a
Crítica é necessária para definir as condições nas quais o uso da
razão é legítimo para determinar aquilo que se pode conhecer, aquilo
que se deve fazer e aquilo que é permitido esperar. A Crítica é,
nesse sentido, o guia da razão tornada maior na Aufklärung.
Inversamente, Aufklärung é idade da Crítica.
É exatamente sob o aspecto mencionado acima que Foucault
lança a sua hipótese: a de que o pequeno texto de Kant Was ist
Aufklärung encontra-se na dobra da reflexão crítica e da reflexão
sobre a história. No fundo, trata-se de uma reflexão de Kant sobre a
95
Obras críticas de Kant: Crítica da Razão Pura, 1781; Crítica da Razão
Prática, 1788; Crítica da Faculdade do Juízo, 1790.
99

atualidade de sua própria empreitada. Nesse sentido, escreve


Foucault:

Mas me parece que é a primeira vez


que um filósofo liga assim, de modo estreito e do
interior, a significação de sua obra em relação ao
conhecimento a uma reflexão sobre a história e a uma
análise particular do momento singular em que escreve
e a causa pela qual escreve. A reflexão sobre “o hoje”
como diferença na história e como motivo para uma
tarefa filosófica particular me parece ser a novidade
deste texto.96

A Modernidade
É encarando dessa forma que a Foucault parece poder-se
reconhecer o ponto de partida: o esboço daquilo que se poderia
chamar a atitude da Modernidade. Nesse sentido, Foucault pergunta se
não se pode encarar a Modernidade antes como uma atitude do que como
um período da história, por atitude querendo ele referir-se a um
modo de relação com a atualidade, uma escolha voluntária que é feita
por alguns, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de
agir e de se conduzir que marca uma pertença e que se apresenta como
tarefa e como empreitada. Trata-se, lembra Foucault, um pouco, sem
dúvida, daquilo que os Gregos chamavam de éthos.

Por conseguinte, antes de se querer


distinguir o “período moderno” das épocas “pré” ou
“pós-modernas”, eu acredito que valeria mais à pena
procurar como a atitude de modernidade, depois que ela
se formou, se encontrou em luta com as atitudes de
“contra-modernidade”.97

Para caracterizar brevemente esta atitude Foucault cita


Baudelaire, nele reconhecendo em geral uma das consciências mais
agudas da Modernidade no século XIX. Modernidade como
descontinuidade do tempo, ruptura da tradição, sentimento de
novidade, vertigem. É nesse sentido que Baudelaire falava de “o

96
FOUCAULT, M.. Dits et écrits, IV, 1980-1988, p.568, l.9, “Mais il me semble
que c’est la première fois qu’un philosophe donne les raisons qu’il a
d’entrependre son oeuvre en tel ou tel moment. ...”
97
Idem, p. 568, l.34, “Par conséquent, plutôt que de vouloir distinguer la
‘période moderne’ des époques ‘pré’ ou ‘post-moderne’, je crois qu’íl
vaudrait ...”
100

transitório”, “o fugidio”, “o contingente”. Tomar uma certa atitude


em consideração ao movimento, resgatar qualquer coisa de eterno que
não está nem além nem aquém do instante presente, mas nele mesmo ⎯
atitude que permite apoderar-se do que há de “heróico” no momento
presente. A Modernidade não é um fato de sensibilidade ao momento
fugidio, é uma vontade de “heroicizar” o presente. Nesse sentido
Baudelaire escrevia que “não tens o direito de menosprezar o
presente.” Mas essa heroicização é irônica, não se tratando de
sacralizar o momento que passa, não se tratando de recolher uma
curiosidade fugitiva e interessante, esta uma atitude de flânerie98
que se contenta em abrir os olhos, de prestar atenção e de
colecionar recordações. Ao homem da flânerie Baudelaire vai opor o
homem da Modernidade:

Ele vai, ele corre, ele procura. Com


certeza, este homem, este solitário dotado de uma
imaginação ativa, sempre viajando através do grande
deserto de homens, tem um objetivo mais elevado que
aquele de um puro vadio, um objetivo mais geral que
vai além do prazer fugidio da circunstância. Ele
procura aquela coisa que se nos permitirá chamar de
Modernidade. Se trata, para ele, de resgatar da moda o
que ela pode conter de poético na história.99

Trata-se de uma transfiguração que não é anulação do real,


mas jogo difícil entre a verdade do real e o exercício da liberdade,
onde as coisas “naturais” se tornam “mais que naturais”, as coisas
“belas” se tornam “mais que belas” e as coisas singulares aparecem
“dotadas de uma via entusiástica como a alma do autor”. Trata-se de
obstinação em imaginar o presente, imaginá-lo de outra forma que ele
não é, e transformá-lo, e não destruí-lo, mas captando-o no que é. A
Modernidade baudelairiana é um exercício cuja extrema atenção ao
real é confrontada com a prática de uma liberdade que de uma só vez
respeita e viola o real. Todavia, a Modernidade é também um modo de
relação que deve-se estabelecer consigo mesmo, ascetismo
indispensável. Ser moderno não é aceitar-se a si próprio tal como se

98
Traduz-se por vadiagem ou ato daquele que gosta de flanar.
99
Op. cit., p.569, l. 39, citando Baudelaire, “Il va, il court, il cherche.”
101

é no fluxo dos momentos que passam; é tomar-se a si como objeto de


uma elaboração complexa e dura. Sob esse aspecto, Baudelaire lembra
o “dandismo”100, dedicando a esse respeito páginas sobre a natureza
“grosseira”, “terrestre” e “imunda” e a revolta indispensável que
suscita uma “doutrina da elegância” imposta sobre ambiciosos e
humildes, numa disciplina mais despótica que a mais terrível das
religiões: o ascetismo do dandi que faz de seu corpo, de seu
comportamento e paixões, de sua existência, uma obra de arte. O
homem moderno, para Baudelaire, não é aquele que parte para a
descoberta de si mesmo, dos seus segredos e da sua verdade
escondida, mas sim aquele que procura inventar-se a si mesmo (grifo
nosso); esta Modernidade não libera o homem em seu ser próprio; ela
o constrange à tarefa de elaborar-se a si mesmo. Enfim, Baudelaire
não concebe que possam ter lugar na sociedade ou no corpo político,
mas somente num lugar outro que chama arte, esta heroicização do
presente, este jogo da liberdade com o real para sua transfiguração,
esta elaboração ascética de si.
Ora, com todas essas considerações, Foucault quer salientar
o enraizamento da Aufklärung a um tipo de interrogação filosófica
que problematiza a relação com o presente, o modo de ser histórico e
a constituição de si mesmo como sujeito autônomo. De outra parte,
pretende chamar atenção que o fio que nos prende à Aufklärung não é
o de uma fidelidade a elementos de doutrina, mas antes à reativação
permanente de uma atitude, um éthos filosófico que poderia se
caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico.
Esse éthos Foucault caracteriza negativamente observando
que não se trata de dizer que se deve ser a favor ou contra a
Aufklärung. É necessário fazer a análise de nós mesmos como seres
históricamente determinados, de uma certa parte, pela Aufklärung, em
estudos que serão orientados na direção dos limites atuais do
necessário, em direção ao que não é mais indispensável para a
constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos.

100
Dandismo: futilidade, frivolidade, vestir-se com extremo apuro, ser janota,
almofadinha.
102

Por outro lado, na crítica de nós mesmos, Foucault alerta


que devemos evitar confusões sempre muito fáceis entre o Humanismo e
a Aufklärung. Não se deve esquecer que a Aufklärung é um
acontecimento ou um conjunto de acontecimentos e de processos
históricos complexos que se situaram em um certo momento do
desenvolvimento das sociedades européias. O Humanismo é outra coisa.
É um tema, ou um conjunto de temas que reapareceram várias vezes
através do tempo nas sociedades européias. Esses temas, sempre
ligados a julgamentos de valor, evidentemente sempre variaram muito
em seu conteúdo, assim como os valores a eles associados. Para
Foucault, existiu um humanismo que se apresentava como crítica do
cristianismo ou da religião em geral; existiu um humanismo cristão
em oposição a um humanismo ascético e muito teocêntrico (séc. XVII);
no século XIX existiu um humanismo desconfiado, hostil e crítico em
relação à ciência; e um outro que localizava, ao contrário, sua
esperança nesta mesma ciência; o marxismo foi um humanismo, o
existencialismo, o personalismo também; houve tempo em que se
sustentavam até os valores humanistas representados pelo nacional-
socialismo e em que os estalinistas se diziam humanistas. Foucault
considera a temática humanista por si mesma muito flexível, muito
diversa, muito inconsistente para servir de eixo à reflexão.
Depois do século XVII, observa que ela apoiou-se sobre
certas concepções de homem emprestadas da religião, da ciência e da
política. Assim, o humanismo serve para colorir e justificar as
concepções de homem às quais ele se obrigou a recorrer. Ocorre que
Foucault crê que se pode opor a esta temática o princípio de uma
crítica do que ele chama uma criação de nós mesmos em nossa
autonomia. Em outras palavras, trata-se de um princípio que se situa
no coração da consciência histórica em que a própria Aufklärung se
dá. Deste ponto de vista, Foucault vê mais uma tensão do que
propriamente uma identidade entre Aufklärung e Humanismo. E, para
ele, a confusão parece perigosa e historicamente inexata. Foucault
crê que no século XVIII muito raramente a Aufklärung é considerada
como um Humanismo, muito embora a questão do homem, da espécie
103

humana, do humanista, tenha sido importante na ocasião. Por outro


lado, ao longo do século XIX, ele observa que a historiografia do
humanismo do século XVI foi sempre tida como distinta e algumas
vezes explicitamente oposta às luzes e ao século XVIII. Foucault
conclui, portanto, que deve-se escapar da confusão histórica e moral
que mistura o tema do humanismo com a questão da Aufklärung,
propondo, em contrapartida, uma análise de suas relações.

Ontologia de nós mesmos


Mas Foucault também busca um conteúdo mais positivo ao que
pode ser um éthos filosófico constituído em uma crítica daquilo que
nós dizemos, pensamos e fazemos através do que chama uma ontologia
de nós mesmos. Trata-se aqui de entender o que a caracteriza: uma
atitude limite. Não se trata de um comportamento de rejeição visando
escapar da alternativa do dentro e do fora, mas de que deve-se ser
ou ficar nas fronteiras; a crítica é bem a análise dos limites e a
reflexão sobre eles. Trata-se de buscar no que nos é dado como
universal, necessário, obrigatório, qual é a parte daquilo que é
singular, contingente e devido a constrangimentos arbitrários.
Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida na forma da
limitação necessária em uma crítica prática na forma da superação
possível. Aqui, a crítica vai se exercer não mais na pesquisa de
estruturas formais que têm valor universal, mas como estudo
histórico através dos acontecimentos que nos levaram a nos
constituir reconhecendo-nos como sujeitos daquilo que fazemos,
pensamos e dizemos. Nesse sentido, esta crítica não é transcendental
e não tem por fim tornar possível uma metafísica: ela é genealógica
na sua finalidade e arqueológica no seu método. Arqueológica ⎯ e não
mais transcendental ⎯ no sentido em que ela não procurará resgatar
as estruturas universais de todo o conhecimento e de toda ação moral
possível, mas sim tratar os discursos que articulam aquilo que nós
pensamos, dizemos e fazemos como se fossem acontecimentos
históricos. Será genealógica, por outro lado, no sentido de que ela
não deduzirá, da forma daquilo que nós somos, aquilo que nos é
104

impossível fazer e conhecer, mas que resgatará, da contingência que


nos fez ser o que nós somos, a possibilidade de não mais ser, fazer
ou pensar aquilo que somos, fazemos ou pensamos; ela não procura
levar a metafísica a se tornar ciência, mas lançar tão longe e tão
largamente quanto possível o trabalho indefinido da liberdade.
E Foucault prossegue observando, para que não se trate de
um sonho vazio de liberdade, que esta atitude histórico-crítica deve
ser também uma atitude experimental, no sentido de abrir um domínio
de estudos históricos e se pôr à prova da realidade e da atualidade
para, de uma só vez, fixar os pontos onde a mudança seja possível e
desejável e para determinar a forma precisa dessa mudança. Para tal,
esta ontologia histórica de nós mesmos deve desviar-se de todos
aqueles projetos que pretendem ser globais e radicais. De fato,
sabe-se, por experiência, que a pretensão de escapar ao sistema da
atualidade criando programas de constituição de uma outra sociedade,
de um outro modo de pensar, de uma outra cultura, de uma outra visão
de mundo, não levaram senão às mais perigosas tradições. A esse
respeito, Foucault prefere as transformações bem precisas que
puderam ter lugar, desde há alguns anos, num certo número de
domínios relativos a nossos modos de ser e de pensar, às relações de
autoridade, relações de sexos, ao modo pelo qual percebemos a
loucura e a doença. Ele prefere estas transformações, mesmo que
parciais, feitas na correlação de análises históricas com atitudes
práticas, às promessas de um homem novo, características dos piores
sistemas políticos do século XX.
Assim, Foucault caracteriza o éthos filosófico próprio à
ontologia crítica de nós mesmos como uma prova histórico-prática dos
limites que nós podemos superar, e, portanto, como trabalho de nós
sobre nós mesmos, na medida em que somos seres livres.
105

O trabalho filosófico
Todavia, Foucault admite a objeção de que, limitando-se a
este gênero de estudos ou de provas sempre parciais e locais, possa
existir o risco de se deixar determinar pelas estruturas mais
gerais, sobre as quais não se tem nem a consciência nem o domínio.
Quanto a isso, considera que se deve renunciar à esperança de chegar
a um ponto de vista que pudesse nos dar acesso ao conhecimento
completo e definitivo daquilo que pode constituir nossos limites
históricos. Deste ponto de vista, a experiência teórica e prática
que fazemos de nossos limites e de sua superação possível é sempre,
ela mesma, limitada, determinada e, portanto, sempre em vias de
recomeçar.
Mas isso não significa que todo o trabalho não possa ser
feito senão na desordem e na contingência; este trabalho tem a sua
generalidade, sua sistematicidade, sua homogeneidade e seu risco.
Isto está indicado por aquilo que se poderia chamar de “o paradoxo
das relações da capacidade e do poder”. Sabe-se que a grande
promessa ou a grande esperança do século XVIII estava na crença em
uma capacidade técnica agindo sobre as coisas e, simultaneamente e
proporcionalmente, na liberdade dos indivíduos uns em relação aos
outros. Ora, na história das sociedades ocidentais, a aquisição
dessas capacidades e a luta pela liberdade constituíram-se em
elementos permanentes, de forma que as relações entre a crença
nessas capacidades e a crença na autonomia não se revelaram tão
simples como se acreditava durante o século XVIII.
O risco, pois, diz respeito a conseguir-se ou não separar a
crença nessas capacidades e a intensificação das relações de poder.
No que tange à homogeneidade do trabalho, Foucault observa que
trata-se de tomar como domínio homogêneo de referência não as
representações que os homens se dão deles mesmos, não as condições
que os determinam sem que eles o saibam, mas o que eles fazem e da
maneira como o fazem, isto é, considerando as formas de
racionalidade que organizam as maneiras de fazer (aquilo que se
poderia chamar seu aspecto tecnológico), e a liberdade com a qual os
106

homens agem nesses sistemas práticos, reagindo àquilo que fazem os


outros, modificando até um certo ponto as regras do jogo, no que se
poderia chamar de a vertente estratégica dessas práticas. A
homogeneidade dessas análises histórico-críticas é, portanto,
assegurada por aqueles domínios das práticas com sua vertente
tecnológica e sua vertente estratégica.
No que tange à sistematicidade dos trabalhos, Foucault
observa que esses conjuntos práticos se dão em três grandes
domínios: o domínio das coisas, o domínio da ação sobre os outros e
o domínio das relações consigo mesmo, o que caracteriza três eixos:
o eixo do saber, o eixo do poder e o eixo da ética. A sistematização
de uma ontologia histórica de nós mesmos comportaria, pois, as
seguintes questões: 1) Como nós somos constituídos (ou nos
constituímos) em nosso saber? 2) Como nos constituímos como sujeitos
que exercem e sofrem relações de poder? 3) Como nos constituímos
como sujeitos morais de nossas ações?
Finalmente, no que tange à generalidade dos trabalhos,
Foucault observa que tais estudos histórico-críticos, apesar de bem
particulares, no sentido de que eles têm por objeto sempre um
material, uma época, um conjunto de práticas e de discursos
determinados, eles têm sua generalidade, na medida em que têm sido
recorrentes, ou seja, reaparecem e se reproduzem. Assim é o caso do
problema das relações entre razão e loucura, doença e saúde, crime e
lei, o problema e o lugar a atribuir às relações sexuais, etc. A
esse respeito, deve-se fixar que aquilo que sabemos, as formas de
poder que se exercem e a experiência que desenvolvemos de nós mesmos
não constituem senão figuras históricas determinadas por uma certa
forma de problematização que define os objetos, as regras de ação,
os modos de relação consigo mesmo. O estudo de problematizações (
daquilo que não é nem constante antropológica nem variação
cronológica) é, portanto, o modo de analisar, na sua forma
historicamente singular, questões de alcance geral.
Foucault conclui o texto Qu’est-ce que les Lumières?
escrevendo o seguinte:
107

Eu não sei se em algum tempo nos tornaremos maiores.


Muitas coisas de nossa experiência nos levam a crer
que o acontecimento histórico da Aufkärung não nos
tornou maiores; e que nós não o somos ainda.
Entretanto, me parece que se pode dar um sentido a
essa interrogação crítica sobre o presente e sobre nós
mesmos que Kant formulou refletindo sobre a
Aufklärung. Me parece que encontra-se aí mesmo um modo
de filosofar importante e eficaz que se desenvolve já
há dois séculos. (...) Eu não sei se hoje deve-se
dizer que o trabalho crítico implica ainda a confiança
do Iluminismo; ele necessita, eu penso, sempre de um
trabalho sobre nossos limites, quer dizer: um labor
101
paciente que dá forma à impaciência da liberdade.

Foucault nos aponta para o que chama uma ontologia crítica


de nós mesmos. Mas esta, certamente, ele ressalva, não deve ser
considerada uma teoria, uma doutrina, nem mesmo um conjunto
permanente de saber que se acumula. Deve-se, sim, concebê-la como
uma atitude, um éthos, um caminho filosófico, onde a crítica daquilo
que nós somos é, a uma vez, análise histórica dos limites que nos
são postos, e indagação de sua superação possível. E esta atitude
filosófica deve se traduzir em um trabalho que comporta estudos
diversos que têm sua coerência metodológica na pesquisa arqueológica
e genealógica de práticas visadas, simultaneamente, como tipo
tecnológico de racionalidade e jogos estratégicos de liberdades; têm
sua coerência teórica na definição das formas historicamente
singulares nas quais foram problematizadas as generalidades de nossa
relação com as coisas, com os outros e com nós mesmos; e têm sua
coerência prática no cuidado de colocar a reflexão histórico-crítica
no âmbito das indagações das práticas concretas. Eis aí como
Foucault define o seu trabalho filosófico.

101
Op. cit., p. 577, l. 22, “Je ne sais pas si jamais nous deviendrons
majeurs.”
108

TERCEIRA PARTE
A INSUSTENTABILIDADE DO HOMEM

Introdução
Foucault certa vez escreveu que “o único sinal de
reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de
Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger,
gritar”.102 Foucault fez isso. Foucault, leitor de Nietzsche, teve o
seu Nietzsche e utilizou-o. Michel Foucault (1926-1984), pensador
francês contemporâneo, talvez o mais próximo a Nietzsche.
Falar sobre o Nietzsche ligado a Foucault a partir dos
pontos de Foucault ⎯ ou seja, de como Foucault é esclarecido por
Nietzsche ⎯ eis o nosso objetivo. Neste contexto, iremos ver que a
tese da morte do homem aparece em Foucault como o coroamento de todo
um trabalho filosófico que, partindo da epistemologia, e
profundamente inspirado no pensamento trágico e na questão da
linguagem levantada por Nietzsche, enceta uma crítica à
racionalidade e ao saber modernos, notadamente às ciências humanas,
crítica esta em que é o próprio lugar do homem enquanto esfera de um
saber que parece não mais se sustentar.

102
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; org. e trad. Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1993. p.143.
109

CAPÍTULO 1
A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA

Doença mental e personalidade


Vê-se que, já desde o início de sua pesquisa, Foucault se
interessa em perceber as práticas da psiquiatria, do internamento e
da medicina, questionando seus jogos de linguagem, incitando-nos a
entrar nos seus domínios específicos para compreender as suas
condições de existência.
Assim é que em Maladie mentale et personalité (1954),
trabalho anterior à História da Loucura, Foucault observa que a
percepção teórica da doença mental na psicologia tinha se baseado em
dois paradigmas que derivavam da patologia orgânica: 1) que a doença
mental era retratada como uma entidade específica mapeada através de
seus sintomas mas essencialmente independentes deles; 2) que a doença
mental era tratada como uma desordem interna que se aloja na
personalidade integrada do paciente. Foucault rejeita essa
“metapsicologia” por entendê-la um “mero artifício de linguagem” uma
vez que injustificadamente assume que os esquemas da abstração, os
critérios de normalidade e as definições do paciente individual podem
ser transpostos da patologia orgânica para a patologia psicológica.
No lugar disso, sugere que a especificidade da doença mental deve ser
retratada na sua dimensão psicológica e, portanto, como um fato da
civilização (grifo nosso).
110

Foucault questiona as psicologias que retratam a doença


mental em termos de uma “evolução psicológica”, onde a doença
funciona segundo uma “arqueologia espontânea” da libido, segundo uma
regressão a formas mais anteriores de comportamento que são
alcançadas através da supressão de padrões de comportamento
adquiridos ao longo da vida. Outras retratam a doença em termos de
uma “história psicológica” do indivíduo, um recurso estratégico do
comportamento que foi eficaz em algum ponto do passado que age como
uma defesa contra alguma ameaça presente. Foucault observa que a
análise fenomenológica é capaz de caracterizar a doença mental de
forma mais prática que uma relação particular entre a consciência
doente e a consciência da doença, e entre a consciência doente e o
mundo patológico no qual ela se vê.
Conclui, assim, que uma vez que essa relação baseia-se numa
relação mais geral entre o mundo patológico e o mundo “normal” que
ela opõe, a análise psicológica precisa estudar o domínio específico
e concreto no qual a doença mental aparece, se se trata de entender
as condições de sua existência.
Foucault sugere perspectivas segundo as quais tal estudo
poderia ser conduzido e conclui com uma discussão da teoria
psicológica desenvolvida na Rússia. Posteriormente, sob o novo
título de Maladie mentale et psicologie (Doença mental e psicologia,
1962), Foucault desenvolve a parte 2 argumentando que as condições
concretas nas quais o homem aparece na sociedade mudaram enormemente
desde a Idade Média. No Renascimento, os loucos podiam circular
livremente na sociedade e a loucura era vista como parte da vida de
cada dia. Depois dos meados do século XVII, os loucos são excluídos
da sociedade junto com todo e qualquer tipo social considerado não
economicamente útil. Quando o confinamento se torna, ou se revela,
politicamente impopular no final do século XVIII, a loucura torna-se
novamente visível mas agora rapidamente suprimida por meio de um
confinamento médico. A título de tratamento médico os pacientes eram
submetidos a um “moralizante sadismo” dirigido para a alma humana e
projetado de tal forma a enquadrar a loucura num conjunto de
111

restrições morais baseadas nos dispositivos da exclusão e da


punição. Assim, Foucault conclui que toda a estrutura epistemológica
da psicologia moderna está enraizada nessa decepcionante atitude em
relação à loucura, e que, como todas as formas de conhecimento,
também a psicologia é baseada numa forma essencial de crueldade
(grifo nosso).

A história da loucura
Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge classique
(Loucura e desrazão: história da loucura na era clássica) é trabalho
do final dos anos 50, tendo-se constituído na tese de doutorado com
a qual Foucault alcançará o nível de professor universitário. No seu
prefácio103 Foucault dizia que estava interessado em “confrontar as
dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”, e que
assim o fazia “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana”.
Tratava-se, conforme escreveu, de perceber uma rejeição que
o homem ocidental moderno deixa transparecer, rejeição essa a partir
da qual denuncia uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como
não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na
história: a rejeição da loucura. Foucault observa que a relação
entre razão e loucura constitui para a cultura ocidental uma das
dimensões de sua originalidade: uma cultura de homens de razão
soberana que não hesitam em tachar de doentes seus vizinhos; uma
cultura que se comunica e se reconhece através da linguagem
impiedosa da não-loucura. Foucault empenha-se, em seu trabalho, em
encontrar o momento desta conjuração, tendo em conta que ela não foi
definitivamente estabelecida no reino da verdade. Buscar encontrar,
na história, o ponto de partida da loucura, onde ela é experiência
indiferenciada, experiência ainda não compartilhada pelo próprio
espírito do compartilhamento, vale dizer, da razão. Descrever, a
partir da origem, este outro caminho que faz com que Razão e Loucura
sejam como negação uma da outra.

103
Referimo-nos ao Prefácio da edição original do livro Folie et Déraison.
Histoire da le folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961, pp. I-XI. V. Dits
et Écrits I (1954-1969), p. 159.
112

Fazer uma história dos limites, dos gestos obscuros


necessariamente esquecidos uma vez completados, pelos quais uma
cultura rejeita tudo o que para ela é o Exterior. E, interrogar uma
cultura sobre as experiências-limite é questioná-la até os confins
da história. E Foucault ensina: no centro dessas experiências-
limites do mundo ocidental explode o trágico.
Foucault reporta-se a Nietzsche para observar que este
havia mostrado que o caráter trágico da história não é outra coisa
que a rejeição, o esquecimento e a reincidência da tragédia. Para
Nietzsche, a história do Ocidente é a história da repressão do
trágico, e é isso que Foucault quer esmiuçar em A História da
Loucura. E quer mais: assim como Nietzsche, quer criticar a razão,
desmascarando-a como um processo orientado de crescente subordinação
daquilo que ela julga não ser: a loucura. Mas quer também, a exemplo
da oposição nietzschiana entre pensamento trágico e pensamento
racional, mostrar que a loucura triunfa sobre o mundo que acredita
avaliá-la e justificá-la através da psicologia, pois este jamais
deterá a verdade da loucura; ao contrário, para Focault, é a loucura
que detém a verdade da psicologia.
“A loucura é ruptura absoluta da obra; ela constitui o
momento de uma abolição, que fundamenta no tempo a verdade da obra;
ela esboça a margem exterior desta, a linha de desabamento, o perfil
contra o vazio”104, escrevia Foucault ao final do livro. E
complementa, referindo-se a Nietzsche: “a loucura de Nietzsche, isto
é, o desmoronamento de seu pensamento, é aquilo através do qual seu
pensamento se abre sobre o mundo moderno (...) mas isso significa
que, através da loucura, uma obra que parece absorver-se no mundo,
que parece revelar aí seu não-senso e aí transfigurar-se nos traços
apenas do patológico, no fundo engaja nela o tempo do mundo (grifo
nosso), domina-o e o conduz; pela loucura que a interrompe, uma obra
abre um vazio, um tempo de silêncio, uma questão sem resposta,

104
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. O círculo antropológico. S.Paulo:
Perspectiva, 4a. Ed., p.529.
113

provoca um dilaceramento sem reconciliação onde o mundo é obrigado a


interrogar-se”105.

A experiência trágica
Para Foucault, na Renascença, a loucura passa a ocupar os
lugares que a lepra ocupara na Idade Média, lugares deixados sem
utilidade bem como os ritos. É que, com a regressão da lepra, serão
os pobres, os vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” que
assumirão o papel abandonado pelo lazarento. E, a partir do século
XV, a face da loucura passa a assombrar a imaginação do homem
ocidental. Para Foucault, até pouco depois do início da segunda
metade do século XV, o tema da morte impera sozinho; nela, o fim do
homem, o fim dos tempos, assumem o rosto das pestes e das guerras.
Mas eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira
sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a
seriedade que a acompanha. A partir de então, o insano desarma, e o
louco ri antes do riso da morte, pressagiando o macabro; trata-se de
uma virada no interior da mesma inquietude, trata-se do vazio da
existência, um vazio sentido do interior como forma contínua e
cosntante da existência. O liame entre loucura e o nada estreita-se
no século XV e subsiste por muito tempo no centro da experiência
clássica da loucura.
Dentre outras, é na composição literária Narrenschiff (A
nau dos loucos), de Brant, que Foucault situa a experiência trágica
da loucura na Renascença.106 Na época, os loucos eram escorraçados e
frequentemente confiados a barqueiros. O louco torna-se o Passageiro
por excelência, o prisioneiro da passagem, solidamente acorrentado à
infinita encruzilhada. Também entre os míticos do século XV
imaginava-se a alma-barca, abandonada no mar infinito dos desejos,
barca prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar
sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o
sopro de Deus a leve ao porto.

105
Idem, Ibidem.
106
Idem. Stultifera navis, p. 3.
114

Será, todavia, na literatura erudita da Renascença, que


Foucault vê a loucura em ação, principalmente nos textos humanistas
entre os quais se destaca Erasmo, bem como na longa dinastia de
imagens, de pinturas, sobretudo em Bosch e Brueghel. Nestas,
Foucault percebe uma enorme proliferação de sentidos, de onirismo,
onde as figuras simbólicas tornam-se silhuetas do pesadelo, uma
interrogação a permanecer indefinidademnte sem resposta, num
silêncio habitado apenas pelo bulício do mundo.
Mas, na mesma época, os termos literários, filosóficos e
morais da loucura são de tipo bem diferente, observa Foucault. Aqui,
a loucura está ligada ao homem, a suas fraquezas, seus sonhos e
ilusões, num sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo,
desembocando em um universo inteiramente moral. O Mal é apenas erro
e defeito ⎯ eis que a experiência da loucura assume o aspecto de uma
sátira moral. Eis que Erasmo desvia os olhos dessa demência e a
elogia, porém, como “doce ilusão” que libera a alma de suas penosas
preocupações.
Foucault vê, de uma lado, Bosch, Brueghel, Thierry Bouts,
Dürer e todo um silêncio de imagens, toda uma trama do visível e do
secreto desenvolver-se, na pintura do século XV, como sendo a
trágica loucura do mundo; de outro lado, com Brant, Erasmo e toda a
tradição humanista, a loucura é considerada no universo do discurso,
o discurso como uma consciência crítica do homem. Enquanto que as
pinturas de Bosch, Brueghel e Dürer revelavam espectadores
terrivelmente terrestres e implicados nesse homem que viam brotar à
sua volta, os escritos de Erasmo revelam uma distância suficiente
para estar fora do perigo da loucura. Foucault vê aí uma oposição
entre o que chama uma experiência cósmica da loucura, nas formas
fascinantes das pinturas, e uma experiência crítica dessa mesma
loucura, na distância intransponível da ironia. Duas formas de
experiência da loucura revelam-se então, e a distância não mais
deixará de aumentar: as figuras da reflexão cósmica e os movimentos
da reflexão moral, o elemento trágico e o elemento crítico, que irão
115

doravante separar-se cada vez mais, abrindo, na unidade profunda da


loucura, um vazio que não mais será preenchido.
Mas Foucault observa que, mesmo sob a consciência crítica
da loucura, e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou
médicas, uma abafada consciência trágica não deixou de ficar de
vigília. No século XVI, a experiência trágica e cósmica da loucura
viu-se mascarada pelos privilégios exclusivos de uma consciência
crítica e apenas algumas páginas de Sade e a obra de Goya são
testemunha de que o desaparecimento não significou uma derrota
total.
E eis que este mascaramento avança a ponto de o mundo do
começo do século XVII mostrar-se estranhamente hospitaleiro para com
a loucura, mal guardando a lembrança das grandes ameaças trágicas.
É que este mundo interna o louco, enclausura a loucura e desta
maneira dela parece dar conta.
Mais tarde, bem mais tarde, já em fins do século XIX,
início do XX, serão Nietzsche, Van Gogh, Freud e Artaud, que irão
assumir a reação àquela opressão, segundo Foucault. No ponto extremo
da opressão, uma explosão: Nietzsche. Eis a experiência trágica da
loucura. Eis o Foucault trágico.
116

CAPÍTULO 2
LINGUAGEM E LITERATURA

Tragédia e literatura
O Foucault trágico da década de 60 é também o Foucault
profundamente interessado na questão da linguagem e da literatura.
Pode-se mesmo entender que Foucault privilegia em História da
Loucura a relação entre literatura e loucura. Loucura é ausência de
obra, quer aí Foucault caracterizar; vale dizer, obra de linguagem,
literatura. Já em O Nascimento da Clínica, haverá um deslocamento
para a relação entre literatura e morte, conforme iremos ver
adiante. Em As Palavras e as Coisas, por outro lado, Foucault
privilegia uma contestação da linguagem a partir da própria
linguagem literária. Há, pois, três momentos a considerar no
Foucault dessa época: um primeiro em que a preocupação com a
linguagem se volta para a literatura; um segundo em que se volta
para a morte; e um terceiro, voltado para uma ontologia da
linguagem.
Pode-se ver ainda no Foucault trágico, vale dizer, no
pensador profundamente influenciado por Nietzsche, dois aspectos: um
aspecto negativo, marcado pelo momento constituído por um não, ou
seja, pela crítica da psiquiatrização, medicalização e internação da
loucura; e um aspecto positivo, um sim, constituído pelo elogio da
loucura considerando-a como experiência trágica no terreno da
literatura.
117

Com isso, queremos assinalar a importância da linguagem na


pesquisa foucaultiana, e é Nietzsche quem mais intensamente ilumina
Foucault nesta tarefa. Para bem compreendermos como isso se dá,
examinemos o trabalho apresentado por Foucault no colóquio de
Royaumont de julho de 1964, dedicado a Nietzsche.

Nietzsche, Freud, Marx


Michel Foucault, em texto intitulado Nietzsche, Freud,
Marx, se incumbe a tarefa de apreciar as técnicas de interpretação
daqueles pensadores. Neste trabalho, Foucault considera que a partir
do século XIX “voltamos a crer que os gestos mudos, as doenças, toda
a confusão que nos circunda, podem a pleno título falar ⎯ e que mais
do que nunca estamos à escuta de toda esta linguagem possível, na
tentativa de surpreender, sob as palavras, um discurso mais
essencial”107.
Na base da discussão de Foucault está a questão da
linguagem, questão essa que aparece sobretudo em face de duas
suspeitas: 1) a de que a linguagem não diga exatamente o que diz,
sendo talvez o sentido que dela se colhe, ou seja, o que é
imediatamente manifesto, uma realidade menor e que enclausura algo
maior, acabando por ter outro sentido daquele que se queria dar; por
baixo da linguagem haveria um sentido mais forte, aquilo que os
gregos chamavam allegoria e hyponoia108 ; e 2) a suspeita de que
existem muitas outras coisas no mundo que falam e que não são
linguagens, como, por exemplo, “aquilo que se pode depreender da
natureza, do mar, do farfalhar das árvores, dos animais, dos rostos,
das máscaras, das facas cruzadas”, e a suspeita de que talvez exista
uma linguagem que se articula de uma maneira não verbal, como
aproximadamente entendiam os gregos por semainon109 .
107
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. In: Dits et écrits I, 1954-1969,
p. 565, l.15, “(...) nous avons recommencé à croire, précisement, depuis le
XIXe. siècle, que les gestes muets, que les maladies, que tout le tumulte
autour de nous peut aussi bien parler...”
108
Allegoria (Αλληγορια): interpretação alegórica, exegese (explicação);
Hyponoia (Υπο-νοια): sentido subjacente, significado oculto. V. PETERS, F.E..
Termos Filosóficos Gregos. LISBOA: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1974.
109
Semainon (Σηµαιυω): assinalar, marcar, selar, fazer senhas, mandar por
senhas, dar o sinal, mandar, ordenar, mandar um augúrio, deixar ver um
118

O século XVI como referência


Para compreendermos o sistema de interpretações fundado a
bem dizer em nossa contemporaneidade, Foucault nos remete a um ponto
de referência mais distante: o século XVI, ao Classicismo. Nessa
época, segundo ele, o que dava lugar à interpretação era a
semelhança. Lá, onde as coisas se assemelhavam, qualquer coisa podia
ser decifrada. E esse corpus de semelhanças era perfeitamente
organizado e comportava cinco noções perfeitamente definidas: a
Convenientia, que dizia respeito ao adequamento das coisas entre si;
a Sympatheia, que dizia respeito à sua afinidade; a Aemulatio, que
dizia respeito ao paralelismo de atributos das coisas; a Signatura,
que referia-se à propriedade visível como imagem de algo escondido;
e a Analogia, que referia-se à identidade de relações entre duas ou
mais coisas. Com base nessas cinco noções, as coisas do mundo eram
comparadas para ver se assemelhavam-se e daí surgia o saber. Dessa
forma, na teoria do signo e na técnica de interpretações, dois tipos
de conhecimento resultavam: a Cognitio, que era a passagem de um
certo modo lateral de uma semelhança à outra; e a Divinatio, que era
o conhecimento em profundidade. Assim, as semelhanças manifestavam o
Consensus do mundo que as funda, sendo que a este opunha-se o
Simulacrum, que é a má semelhança, estando tal oposição fundada
naquela entre Deus e o diabo.

Da ruptura do século XIX e das novas possibilidades


Marx (1818-1883), Nietzsche (1844-1900) e Freud (1856-1939)
são pensadores do século XIX que vão influenciar enormemente o
pensamento do século XX. No seu trabalho, Foucault vai observar que
algo comum acontece: todos eles nos remetem incessantemente para
novas possibilidades de interpretação, possibilidades essas bem
diversas daquelas do século XVI. Nesse sentido é que podem ser
entendidas como puras técnicas interpretativas o primeiro livro de O

presságio (os deuses), ser um presságio, pressagiar, indicar, anunciar,


predizer, revelar, manifestar-se. Dic. Greco-Português de Isidro Pereira,
S.J., Liv. Apostolado da Imprensa, Braga, Portugal.
119

Capital, de Marx, O Nascimento da Tragédia e a Genealogia da Moral,


de Nietzsche, e A Interpretação dos Sonhos, de Freud.
Ocorre que nesses trabalhos ⎯ aí está a grande novidade! ⎯
há como que um reconhecimento do que o próprio Marx chamava de
“hieróglifos”. É que aquilo a ser interpretado nos deixa numa
posição incômoda. Agora, somos nós mesmos que passamos a ser objeto
da interpretação; o homem, outrora intérprete do mundo, assume agora
a posição de interpretador de si mesmo. Interpretador da vida, do
trabalho e da linguagem de si mesmo; interpretador de algo
extremamente enigmático.
Ao interrogar os intérpretes que foram Freud, Nietzsche e
Marx, Foucault vê surgir um jogo indefinido de espelhos que remete a
infinitas possibilidades.
Que interessante transformação é essa que tira do homem a
certeza da homogeneidade e funda a infinita incerteza dentro do
finito de si mesmo! Que interessante movimento de pensamento é esse
que sai de um espaço homogêneo de infinitas interpretações e cai
numa heterogeneidade completa, infinita, porém dentro da finitude
que é o homem!
Eis que, em Nietzsche, o que se manifesta é uma crítica da
profundidade da consciência. Em Nietzsche, há uma acusação de que a
consciência é uma invenção dos filósofos em busca da “verdade” como
algo interior e que implica em resignação, hipocrisia, máscara.
Assim, quando percorre os signos para denunciá-los, o intérprete
deve descer ao longo de toda a linha vertical e mostrar que o
profundo da interioridade é em realidade outro com respeito àquilo
que exprime.
Foucault cita Nietzsche observando que há, em primeiro
lugar, pensadores superficiais; em segundo lugar, pensadores
profundos ⎯ os que descem à profundeza das coisas, em terceiro
lugar, pensadores radicais que vão ao fundo das coisas, ⎯ o que tem
muito mais valor do que simplesmente descer às profundezas! ⎯ e
finalmente pensadores que enterram a cabeça na lama: o que não é,
120

evidentemente, sinal nem de profundidade, nem de radicalidade! São


os nossos queridos “pensadores do subsolo”.110
Nietzsche sugere que o profundo é bem outro: é preciso
imiscuir-se na lama do mundo para captar o mundo. E a lama dá-se na
superfície. Eis que a profundidade, que estava recoberta e
sepultada, é restituída como segredo absolutamente superficial.
Trata-se de uma inversão da profundidade; a descoberta de que a
profundidade não era mais do que um jogo, uma prega da superfície, e
de que tudo o que tinha constituído a profundidade do homem outra
coisa não é do que jogo infantil. Assim, há que se elevar, como o
faz Zaratustra ao subir a montanha, para perceber a superficialidade
do mundo.
Para Marx, por outro lado, deve-se descer ao nevoeiro para
mostrar que de fato não existem monstros nem inimigos profundos, já
que tudo quanto é profundo na concessão que a burguesia se faz do
dinheiro, do capital, do valor, etc., não é mais que
superficialidade.
Em Freud, o homem vive as três grandes feridas
narcisísticas da cultura: a ferida copernicana (a Terra não é o
centro do universo); a ferida darwiniana (nós descendemos do
macaco); e a ferida freudiana (a consciência se funda no
inconsciente). Para Freud, o espaço da interpretação é construído
na topologia da consciência e do subconsciente e também nas regras
sobre a atenção psicanalítica, na decifração do fluxo do falar do
analisando; aí há uma espacialidade bastante material a qual Freud
atribuía grande importância e que expõe o paciente ao olhar profundo
do psicanalista.
Dessa forma, Marx Nietzsche e Freud não propriamente
modificam o espaço de repartição onde os signos do mundo se dão.
Marx, Nietzsche e Freud sequer multiplicam os signos do mundo
ocidental e também não dão propriamente um sentido novo às coisas
que já não tinham sentido. Na realidade, o que fazem, segundo nos

110
NIETZSCHE, F.. Aurora, par. 446 ⎯ N.S.W., KSA 3, Morgenröte, Fünftes Buch,
446, s.270, z.21, “Es giebt erstens oberflächliche Denker, zweites tiefe
Denken...”.
121

aponta Foucault, é transformar a natureza do signo, modificando o


modo pelo qual este, em geral, pode ser interpretado.

Uma tarefa infinita


Muito embora no século XVI o conhecimento das coisas já se
apresentasse ilimitado, se bem que dando-se no terreno homogêneo da
semelhança, a partir do século XIX os signos vão-se caracterizar,
segundo Foucault, no interior de uma rede inexaurível, também
infinita, porém onde os vazios e as aberturas são irredutíveis.
É que a interpretação é sempre incompleta. A incompletude
da interpretação, o ser fragmentado dela, o permanecer em suspenso,
isso se encontra de modo bastante análogo em Marx, Nietzsche e
Freud. Por exemplo, na rejeição de Marx às explicações elaboradas em
termos dos propósitos, atitudes e crenças individuais, preferindo
considerá-las elas próprias como matéria a ser explicada, postulando
que as teorias e modos de pensar individualistas, e particularmente
as formuladas em termos de indivíduos abstratos, fora do contexto
histórico, são “robinsonadas” ⎯ expressão por ele cunhada na
introdução de Crítica da Economia Política e inspirada no personagem
de Robinson Crusoé ⎯ que ocultam as relações sociais subjacentes,
sobretudo as relações de produção, as quais, por sua vez, explicam
o pensamento e a ação individuais.111
A incompletude da interpretação se encontra na importante
distinção para Nietzsche entre início e origem112. Encontra-se também
no caráter sempre incompleto do andamento regressivo e analítico em
Freud.

A região perigosa
Para Foucault, uma experiência importante para a
hermenêutica contemporânea é o fato de que quanto mais alguém se

111
V. verbete Indivíduo do Dicionário do Pensamento Marxista editado por Tom
Bottomore, Jorge Zahar Editor.
112
Foucault, em artigo intitulado Nietzsche, a genealogia e a história (In:
Microfísica do Poder) observa que Nietzsche quis acentuar uma oposição entre
início e origem. Para ele, Nietzsche recusa em certas ocasiões a pesquisa da
origem, colocando-se contra um querer desvelar uma identidade primeira, o
escutar a história. Retomamos este tema mais adiante.
122

embrenha na interpretação, tanto mais se avizinha de uma região


absolutamente perigosa, onde não só a interpretação encontra seu
ponto de involução, mas onde desaparece como interpretação,
provocando talvez o desaparecimento do intérprete mesmo.
A existência do ponto absoluto em direção ao qual a
interpretação constantemente procede comportaria a existência de um
ponto de ruptura. Pode-se assim depreender do caráter aberto da
interpretação em Freud, no Traumdeutung. Aí, Freud interrompe a
análise dos próprios sonhos apelando a pudores e para não divulgar
um segredo pessoal. Também, na análise de Dora, existe a idéia de
que a interpretação deva parar, de que não pode prosseguir até o fim
em razão da “transferência”. É através do estudo da “transferência”
que vem sustentada a inexauribilidade da análise em virtude do
caráter infinito e infinitamente problemático da relação entre
analisado e analista, relação essa obviamente constitutiva da
psicanálise e que abre o espaço no qual ela se desenvolve
incessantemente sem poder nunca se completar.
Em Nietzsche, resulta evidente que a interpretação é sempre
incompleta. Para ele, filosofia é um tipo de filologia sempre em
suspenso, uma filologia sem fim que se desenvolve andando sempre
mais longe, uma filologia que não poderia nunca se estabelecer
absolutamente. Para ele, pode ser da constituição básica da
existência o fato de alguém se destruir ao conhecê-la inteiramente,
ou seja, o fato de quem atingir o conhecimento perfeito encontre o
anulamento113, muito embora esse conhecimento resida no fundamento do
ser.
Também em Freud, nas suas correspondências, podem ser
decifradas preocupações constantes que o assaltam justo no momento
em que descobre a psicanálise; sendo este o caso de inquirir se a
sua experiência não era, no fundo, bastante semelhante àquela de
Nietzsche. E nesse ponto Foucault, autor de A História da Loucura,

113
NIETZSCHE, F.. Para além do Bem e do Mal, §39 ⎯ N.S.W., KSA 5, Jenseits
von Gut und Böse, 39, s.56, z.29, “ja es könnte selbst zur
Grundbeschaffenheit des Daseins gehören, dass man an seiner völligen
Erkenntniss zu Grunde gienge...”
123

sugere que “no ponto de ruptura da interpretação, no seu convergir


em direção a um ponto que a torna impossível, poderia muito bem
aproximar-se a questão de qualquer coisa como a experiência da
loucura. (...) Esta experiência seria a conseqüência inelutável de
um movimento da interpretação que se aproxima ao infinito do próprio
centro e afunda carbonizada.”114

Da natureza dos signos


Foucault vê, ligados à incompletude da interpretação,
outros princípios que se apresentam como postulados da hermenêutica
contemporânea. Assim ele os enuncia:

Não há nada a interpretar; no fundo,


tudo é já interpretação; cada signo não é por si a
coisa que se oferece à interpretação, mas
interpretação de outros signos; não existe um
interpretandum que não seja já interpretans; na
interpretação, o que se estabelece é uma relação, seja
de violência, seja de clarificação; na realidade, a
interpretação não esclarece propriamente uma matéria
que a ela se ofereceria passivamente; o que faz é
assenhorear-se, apoderar-se ⎯ e com violência ⎯ de
uma interpretação já existente e que é revirada,
subvertida, destruída a golpes de martelo.115

Veja-se, por exemplo, em Marx: este não interpreta a


história das relações de produção, mas uma relação que não se
apresenta como natureza, mas já como interpretação.
Veja-se em Freud, que não interpreta signos, mas
interpretações: sob os sintomas Freud descobre não propriamente os
“traumas”, mas os fantasmas, com sua carga de angústia, vale dizer:
como um núcleo que é já, per si, no seu próprio ser, uma
interpretação.

114
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. In: Dits et écrits I, 1954-1969 ,
p.570, l.35, “Ce qui est en question dans le point de rupture de
l’interpretation, dans cette convergence de l’interprétation vers un point
qui la rend impossible, ce pourrait bien être quelque chose comme
l’expérience de la folie...”
115
FOUCAULT, M.. Nietzsche, Freud, Marx. In: Dits et écrits I, 1954-1969 ,
p.571, l.14, “Il n’y a rien d’absolument premier à interpréter, car au fond,
tout est déjà interprétation...”
124

Veja-se em Nietzsche, para quem não existe um significado


original: as palavras mesmas nada mais são do que interpretações; ao
longo de toda a sua história, antes de serem sinais, as palavras
interpretam ⎯ no fim, significam, mas só porque não são mais do que
interpretações essenciais.
No estudo da origem da palavra grega Αγαθοσ116, Nietzsche
mostra como as palavras são inventadas pelas classes superiores, não
significando algo prévio mas impondo uma interpretação. Em
conseqüência, somos destinados incessantemente à tarefa de
interpretar, não porque existam signos primeiros e enigmáticos, mas
porque são meras interpretações, porque assim continuam a ser
debaixo de todo o falar do grande tecido das interpretações
violentas, este é o motivo, para Foucault, pelo qual existem signos.
São signos que nos obrigam a revirá-los do avesso como signos.
Estranheza e inquietação, este é o mundo dos signos.
Assim, o que está no fundamento da linguagem e antes dela
são a allegoria e a hyponoia dos gregos. Estas são, no dizer de
Foucault, aquilo que gerou as palavras, fazendo-as cintilar com uma
reverberação que não se fixa nunca.
Em Nietzsche, o intérprete é o verídico, é o verdadeiro,
não porque se apropria de uma verdade adormecida para proferi-la,
mas porque pronuncia a interpretação que toda a verdade tem a função
de encobrir. Existe, pois, segundo nos aponta Foucault, um primado
da interpretação sobre os signos, sendo este fato o que de mais
decisivo existe na hermenêutica contemporânea. Assim, o signo não é
um ser simples e benévolo como no século XVI, quando a abundância de
signos, o fato de que as coisas se assemelhavam, era prova da
benevolência de Deus, e o signo era separado do significado só por
um véu transparente. No século XIX, a partir de Freud, Marx e
Nietzsche, o signo converte-se em algo ambíguo, que nos seja uma
maneira ambígua e um pouco turva de malquerer, de hostilizar. Os
signos são interpretações que tentam justificar-se, e não o

116
Agathos (Αγαθος): bom, de boa qualidade, nobre, , valente, perfeito no seu
gênero, honrado, simples, próspero, feliz. Dic. Greco-Português de Isidro
Pereira, S.J., Liv. Apostolado da Imprensa, Braga, Portugal.
125

contrário. Foucault exemplifica com o dinheiro nas análises da


Crítica da Economia Política; também com os sintomas de Freud; e, em
Nietzsche, com as palavras, a justiça, e as classificações binárias
do bem e do mal. Os signos são máscaras e, dessa forma, perdem a sua
essência simples de significante que ainda tinham na época do
Renascimento.
São duas as conseqüências importantes que derivam do fato
de a interpretação encontrar-se diante da tarefa de interpretar-se
ao infinito: 1) a interpretação será sempre, enfim, interpretação de
alguém. Assim, cumpre sempre perguntar: interpretação de quem? —
quem pôs a interpretação? — o princípio da interpretação não é outro
que o intérprete; 2) a interpretação deve interpretar sempre a si
mesma e disso não pode evitar ⎯ de retornar a si.
Assim, conclui Foucault, em oposição ao tempo dos signos,
que foi o tempo das trocas, e em oposição ao tempo da dialética, que
malgrado tudo é linear, existe um tempo circular da interpretação.
Crer que existam signos que preexistam originários, reais, como
marcas homogêneas, pertinentes e sistemáticas, isto é a morte da
interpretação. A vida da interpretação é, assim, crer que nada
existe além de interpretações.
Como aqui não lembrar de Nietzsche? Do eterno retorno ⎯
que o tempo é um círculo ⎯ , e da morte de Deus ⎯ a inexistência
do absoluto.

O visível e o dizível
No ano de 1963, anterior ao colóquio de Royaumont, Foucault
havia publicado um livro em que discute os trabalhos de um escritor
parisiense, Raymond Roussel, nascido em 1877, pelo qual muito se
entusiasmara117. Pode-se considerar esse livro como fazendo parte de
um “ciclo literário”, ciclo esse que durou de 1962 a 1966 no qual
Foucault elaborou também uma série de artigos sobre escritores. No
livro, Foucault discute o trabalho de Roussel em termos do “processo”
descrito em seu Comment j’ai écrit certains de mes livres (de como

117
FOUCAULT, M.. Raymond Roussel. Le Chemin. - Paris: Gallimard, 1963.
126

escrevi alguns de meus livros), traçando paralelos metafóricos entre


a loucura e a morte do escritor e sua técnica literária. Foucault
questiona se as obsessões irracionais de Roussel, e sua morte real
dentro de um quarto trancado, não refletem suas explorações
narrativas baseadas nas diferenças semânticas entre frases
proximamente homógrafas ⎯ o procedimento do “processo” ⎯ e a
origem/limite daquele processo no espaço vazio entre as palavras e as
coisas que elas representam.
Foucault concorda com a reivindicação de Roussel de que o
processo é o princípio constitutivo de seus quatro trabalhos
centrais, mas acrescenta que esse processo também revela as técnicas
básicas de Roussel em outros trabalhos. Foucault mostra como, nesse
contexto, os trabalhos mais antigos de Roussel jogam o visível contra
o dizível, usando elementos daquelas duas esferas alternadamente. O
trabalho de Roussel opõe o visível ao dizível, descobrindo na
diferença entre eles um vazio a ser preenchido com a curiosa
potencialidade ontológica da palavra. No trabalho final Nouvelles
impressions, Roussel abandona a esfera das coisas, voltando-se
diretamente para o “espaço vazio” que “ecoa dentro dos mais profundos
recessos da linguagem mesma”. Foucault conclui que, em Roussel, a
exploração daquele vazio e a “agonia do significante” que o
caracteriza prevê a verdade central de nossa linguagem contemporânea:
“o significar” não é inadequado; os signos, esses sim, o são. Assim,
a representação do mundo revela-se uma inevitável “falência”, porque
existe muito mais significados do que signos. Foucault sustenta
todavia que essa “falha” da capacidade representativa é a fonte do
grande poder dos “signos”.

O ser da linguagem
Será pensando o ser da linguagem que Foucault irá em 1966
apresentar outras interessantes reflexões a respeito do tema.
Estamos aqui nos referindo à temática de As palavras e as Coisas e
também do texto correlato de O pensamento do exterior.118 Neste texto,
118
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. In: Dits et écrits par Michel
Foucault I, 1954-1969, p.518.
127

Foucault observa que a origem do que se entende por “literatura” não


pertence à ordem da interiorização senão para uma visão superficial;
trata-se muito mais de um trânsito ao “exterior”. É que aqui a
linguagem escapa do modo de ser do discurso, ou seja, da “dinastia
da representação”, e a palavra literária se desenvolve a partir de
si mesma, formando uma rede. Para Foucault, a literatura não é a
linguagem que se identifica consigo mesma mas sim a linguagem
distanciando-se o mais possível de si mesma. Assim, o “sujeito” da
literatura não seria tanto a linguagem na sua positividade quanto o
vazio em que se encontra seu espaço quando se enuncia. E esse espaço
se enuncia no puro falar. “Falar” põe à prova toda a ficção moderna,
ensina Foucault. E, a que extrema sutileza, a que ponto singular e
tênue chegaria uma linguagem que quisesse reivindicar-se na
despojada forma do “falo”? indaga Foucault, conjecturando assim a
respeito: “A menos, precisamente, que o vazio em que se manifesta a
exigüidade sem conteúdo do ‘falo’ não seja uma abertura absoluta por
onde a linguagem possa se propagar ao infinito, enquanto que o
‘sujeito’ ⎯ o ‘eu’ que fala ⎯ se fragmenta, se esparrama e se
dispersa até desaparecer neste espaço vazio”. Sem efeito, a
linguagem só tem lugar na soberania solitária do “falo”, ninguém tem
direito de limitá-lo ⎯ nem aquele ao qual se dirige nem a verdade
daquele que diz, nem os valores ou os sistemas representativos que
utiliza; numa palavra, já não é discurso nem comunicação de um
sentido, mas a exteriorização da linguagem no seu ser bruto, pura
exterioridade elucidada; e o sujeito que fala não é responsável pelo
discurso (aquele que o detém, que afirma e julga mediante ele,
representando-se às vezes sob uma forma gramatical disposta a estes
efeitos), como a inexistência em cujo vazio se prolonga sem descanso
o derramamento indefinido da linguagem.119
Hoje, o que importa é pensar esta ficção quando antigamente
o que importava era pensar a verdade. Hoje, “falo” põe à prova toda
a ficção moderna do mesmo modo que “minto” ⎯ o paradoxo de
Epimênedes ⎯ fez estremecer a verdade grega antiga, e talvez a

119
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, Je mens, je parle.
128

verdade da época medieval.120 Hoje, falar “minto” não representa


paradoxo algum se compreendermos esse “falar” como uma pura
exterioridade. Falo, e assim fazendo digo “minto”. Digo “minto”
assim como poderia dizer qualquer outra coisa, inclusive “falo”.
Aqui, não se trata mais de se prender ao fato de que o sujeito que
fala é o mesmo que aquele do qual se fala e, logo, exigir dele uma
coerência, uma verdade. Mas sim, de que o falar se refere a um
discurso que, ao mesmo tempo que lhe oferece um objeto, lhe serve de
suporte. Sendo assim, observa Foucault, “este discurso está ausente;
o ‘falo’ não é o dono de sua soberania mais do que na ausência de
qualquer outra linguagem; o discurso do que falo não preexiste a
nudez enunciada no momento em que digo ‘falo’; e desaparece no mesmo
instante em que me calo.”121
Para Foucault, o “falo” funciona como o revés do “penso”.
“Este conduzia (...) à certeza indubitável do Eu e de sua
existência; aquele, pelo contrário, afasta, dispersa, apaga esta
existência e não conserva dela mais do que sua citação vazia.”122
Terá sido então, observa Foucault, o pensamento do pensamento, na
tradição antiga que a filosofia nos ensinou, o que nos conduzia à
interiorização profunda, assim como a palavra da palavra nos conduz
pela literatura, mas talvez por outros caminhos, a esse exterior de

120
O ‘Paradoxo do Mentiroso’ não é formulado nas obras de Aristóteles; e
embora uma passagem do seu De Sophistics Elenchis, em que ele fala da
‘história do homem que mentia e dizia a verdade ao mesmo tempo’, possa talvez
referir-se a este paradoxo, este passo não é suficiente para permitir
reconstruir o paradoxo sem ser necessária muita habilidade. São Paulo refere-
se na verdade à versão de Epimênedes deste paradoxo, mas talvez sem
compreender que se trata de um paradoxo, porque ele diz “Um deles ... disse:
‘Os cretenses mentem sempre...’ Este testemunho é verdadeiro”. Pode ser,
portanto, que o paradoxo tivesse sido redescoberto no século XII. Em qualquer
caso os lógicos medievais não se satisfizeram com versões simples como Ego
dico falsum e inventaram variantes complicadas como “Sócrates diz ‘Aquilo que
Platão diz é falso’ e Platão diz ‘Aquilo que Sócrates diz é verdadeiro’ e
nenhum diz mais nada. Aquilo que Sócrates diz é verdadeiro ou falso?”
Compreendeu-se que a dificuldade era causada por tentar produzir uma certa
espécie de auto-referência e um insolubile foi definido como uma propositio
habens super se reflexionem suae falsitatis aut se non esse veram totaliter
vel partialiter illativa. Mas não havia acordo acerca de uma doutrina que
explicasse a importância destes paradoxos sobre a teoria do sentido e da
verdade. V. KNEALE, William e KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. ⎯
Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 233.
121
FOUCAULT, Michel. La Pensée du dehors, Je mens, je parle.
122
Idem, Ibidem.
129

onde desaparece o sujeito do qual se fala. Pensar o ser da linguagem


é, pois, pôr em risco a evidência do “existo”.
Foucault considera que assim evidencia-se o ocaso de uma
incompatibilidade na transição para uma linguagem em que o sujeito
está excluído. Trata-se da incompatibilidade entre a aparição da
linguagem em seu ser e a consciência de si em sua identidade. Não
há, pois, mais alguma incompatibilidade entre a linguagem e a
consciência de si se admitirmos nessa linguagem a supressão do
sujeito.
Foucault observa que, de repente, nos encontramos diante de
um hiato que durante muito tempo tinha sido ocultado: o ser da
linguagem não aparece por si mesmo mais do que no desaparecimento do
sujeito.
Como ter acesso a esta estranha relação? Talvez mediante
uma forma de pensamento do que a cultura ocidental não fez mais do
que esboçar, em suas margens, sua possibilidade contudo incerta.
Este pensamento que se mantém fora de toda a subjetividade para
fazer surgir como do exterior seus limites, enunciar seu fim, fazer
brilhar sua dispersão e não obter mais do que sua irrefutável
ausência e que ao mesmo tempo se mantém no princípio de toda
positividade, não tanto para extrair seu fundamento ou sua
justificativa, quanto para encontrar o espaço em que se desvincula o
vazio que lhe serve de lugar, à distância em que se constitui e na
qual se dissipam, desde o momento em que é o objeto da mirada, suas
certezas imediatas, ⎯ este pensamento, com relação à positividade do
nosso saber, constitui o que poderíamos chamar em uma palavra “o
pensamento do exterior”.123
Encontrar as categorias fundamentais desse pensamento do
exterior, bem como encontrar o vestígio de seu trajeto, para buscar
de onde provém e a que direção leva, eis a tarefa. Nesse sentido
Foucault considera que poder-se-ia muito bem supor que ele tem sua
origem no pensamento místico que habitou o cristianismo sob as
formas de uma teologia negativa: colocar-se “fora de si” e seguir a

123
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, L’expérience du dehors.
130

Palavra de Deus, onde ser é palavra ⎯ e ”mais além de toda


linguagem, silêncio, mais além de todo ser, nada”.
Mas Foucault observa também que talvez o pensamento do
exterior “se rompe até nós” no que ele considera o “monólogo
insistente de Sade”, e isto se dá num momento em que a
interiorização da lei da história e do mundo (tratava-se da época de
Kant e Hegel) era imperiosamente requerida. Para Foucault, Sade não
deixa que fale, como lei sem lei no mundo, “mais que a mudez do
desejo”. Será também na poesia de Hölderlin que “se manifestava a
ausência resplandecente dos deuses e se enunciava como uma nova lei
a obrigação de esperar, sem dúvida até o infinito, a enigmática
ajuda que provém da ‘ausência de Deus’”. E Foucault então conjectura
se “pôr a nu o desejo no murmúrio infinito do discurso” e “descobrir
o subterfúgio dos deuses no efeito de uma linguagem em vias de
perder-se”, se isso não se trata já de depositar no nosso pensamento
para o século vindouro a “experiência do exterior”, muito embora de
maneira resumida. Para Foucault, essa experiência reaparece na
segunda metade do século XIX e “no seio mesmo da linguagem” em
Nietzsche, em Mallarmé, em Artaud, em Bataille, em Klossowski. Em
Nietzsche quando este “descobre que toda a metafísica do Ocidente
está ligada não somente à sua gramática (...) senão àqueles que,
apropriando-se do discurso, detenham o direito da palavra”; em
Mallarmé quando “a linguagem aparece como o ócio daquele que nomeia
e como o movimento no qual desaparece aquele que fala” ⎯ para
Foucault, Mallarmé mostra bem como o jogo próprio e autônomo da
linguagem vem se alojar lá onde precisamente o homem desaparece; em
Klossowski, “com a experiência do duplo, da exteriorização dos
simulacros, da multiplicação teatral e demente do Eu”.124

A conjunção linguagem, conhecimento e morte


Em Naissance de la clinique: une archéologie du régard
médical (O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico,
1963), Foucault descreve a emergência da medicina clínica na França

124
Idem, Ibidem.
131

no fim do século XVIII. Traça a consequente evolução do conceito


médico de doença a partir de sua base nos sistemas abstratos
nosográficos, nos quais as doenças eram classificadas, no século
XVII, e aparecem através do corpo, em função de um lugar no espaço
material do corpo, corpo esse literalmente aberto pela anatomia
patológica nos primeiros anos do século XIX.
Assim é que a medicina baseada na anátomo-clínica constrói
um conhecimento do homem sobre a base de sua própria finitude,
autorizando-o a compreender-se dentro de sua linguagem (...) somente
pela abertura criada com sua própria eliminação. A medicina é,
assim, fundamental para todas as ciências humanas porque é a que
mais se aproxima da estrutura antropológica que as sustenta; nela
temos a conjunção paradoxal de linguagem, conhecimento e morte que
constitui o indivíduo tanto como objeto quanto como sujeito do
conhecimento positivo.
132

CAPÍTULO 3
DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM

Da morte de Deus
Será em Préface à la Transgression (Hommage à
G.Bataille)125, de 1963, que podemos obter importantes observações de
Foucault sobre as conseqüências da morte de Deus. Para Foucault,
todos os nossos gestos se dirigem à essa ausência, numa “profanação”
que a designa, a conjura, se abate nela e se acha enviada por ela à
uma pureza vazia de transgressão. A morte de Deus retira de nossa
existência o limite do Ilimitado e nos reconduz a uma experiência
onde nada pode anunciar a exterioridade do ser ⎯ uma experiência por
conseqüência interior e soberana. Para Foucault, com a morte de Deus
passamos do “limite do Ilimitado” ao “ilimitado do limite”, este
infinito de nós mesmos.
Assim, com a morte de Deus, resta-nos traçar o limite em
nós, desenhando-nos, nós mesmos, como limite. Resta-nos o interior,
nesta experiência onde reside o impossível: uma vontade de ir além
transgredindo. Para Foucault, a transgressão concerne ao limite; e o
jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma
obstinação simples: a de ultrapassar, vencer, superar; a
transgressão não cessa de assim o fazer.
A transgressão leva o limite até o limite de seu ser.
Libertá-la de seus parentescos com a ética, libertá-la do que é
125 125
FOUCAULT, Michel. Préface à la transgression. In: Dits et écrits I, 1954-
1969, p. 233.
133

escandaloso ou subversivo, é libertá-la do que é animado pela


potência do negativo. Não se trata de uma negação generalizada, mas
de uma afirmação que não afirma nada: plena ruptura de
transitividade. E será aí, ao limite, que se chega à decisão
ontológica. Contestar é ir ao coração vazio onde o ser tem o seu
limite e onde o limite define o ser.
A transgressão se abre, pois, sobre um mundo cintilante e
sempre afirmado, um mundo sem sombra, sem crepúsculo, sem esse
“escorregamento do não” da dialética que corrói os frutos do mundo e
crava em seu coração o espírito da contradição. Ela, a transgressão,
é o avesso solar da negação satânica; assim, ela tem parte com o
divino, ou antes, ela abre o sagrado a partir desse limite ⎯ o
sagrado, espaço onde se dá o divino.
Substituir a experiência do divino no coração do pensamento
é o que, segundo Foucault, a filosofia, desde Nietzsche, sabe ou bem
deveria saber. E, acrescenta: interrogar uma origem sem positividade
e uma abertura que iguala as “potências do negativo”. É nesse
sentido que Foucault conjectura se o pensamento de Nietzsche não
seria, assim, uma Crítica e uma Ontologia, um pensamento que
penetraria na finitude do ser. Para nos acordar do sono da dialética
e da antropologia, observa Foucault, foi preciso as figuras
nietzschianas do trágico e de Dionísio, da morte de Deus, do eterno
retorno, do martelo do filósofo, do super-homem...

Da morte do homem
Em Les mots et les Choses ⎯ Une archéologie des sciences
humaines (As Palavras e as Coisas, 1966), Foucault mostra de que
peças e de que partes o homem foi composto no final do século XVIII
e início do século XIX. Foucault assim o diz126, ressaltando que
procurou nesse trabalho “caracterizar a modernidade dessa figura”, o
homem. Tratava-se de mostrar o seguinte: não é tanto por ter tido um
cuidado moral com relação ao ser humano que se teve a idéia de
conhecê-lo cientificamente mas, ao contrário, porque se construiu o
126
FOUCAULT, Michel. L’homme est-il mort? In: Dits et écrits I, 1954-1969, p.
540. Entrevista dada por Foucault a C. Bonnefoy.
134

ser humano como objeto de um saber possível que são desenvolvidos em


seguida todos os temas morais do humanismo contemporâneo. Porém, o
humanismo não se sustenta. Para Foucault, o movimento humanista data
do fim do século XIX, e quando se observam mais de perto as culturas
dos séculos XVI, XVII e XVIII verifica-se que, nelas, o homem não
tinha literalmente nenhum lugar. A cultura de então era ocupada por
Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço,
pelos corpos, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem, ele mesmo
é ausente.
Para Foucault, ao humanismo vai suceder uma cultura não
dialética que está se formando e é ainda bastante incipiente. Essa
cultura, para ele, começa com Nietzsche “logo que ele mostrou que a
morte de Deus não era a aparição mas o desaparecimento do homem, que
o homem e Deus tinham estranhas relações de parentesco, que eram a
uma vez irmãos gêmeos e pai e filho um do outro, que uma vez Deus
morto o homem não pode não desaparecer, deixando atrás de si um
medonho e horrível anão”.127 Mas essa cultura não dialética aparece
também em Heidegger, quando ele procura resgatar a relação
fundamental do ser associando-o a um retorno à origem grega. Também
aparece em Russell quando ele faz a crítica lógica à filosofia, em
Wittgenstein, quando ele coloca o problema das relações entre lógica
e linguagem, e também nos lingüistas, e nos antropólogos como Lévi-
Strauss.
Para Foucault, deve-se tratar de descobrir a forma própria
e absolutamente contemporânea deste pensamento não dialético.
Enquanto que a razão analítica do século XVII se caracterizava pela
sua referência à natureza e a razão dialética do século XIX
desenvolveu-se sobretudo em referência à existência, ou seja, ao
problema das relações do indivíduo com a sociedade, da consciência
com a história, da práxis com a vida, do sentido com o não-sentido,
do vivente com o inerte, o pensamento não dialético de agora tem por
objeto próprio o saber. Sua posição será de interrogar a respeito da

127
NIETZSCHE, F.. Assim falou Zaratustra, parte 4, O mais feio dos homens ⎯
N.S.W., KSA 4, Also sprach Zarathustra, Vierter und letzter Theil, Der
hässlichste Mensch, s.327.
135

relação que pode ter, de uma parte, entre os diferentes domínios do


saber e, de outra parte, entre saber e não-saber.
A antropologia como analítica do homem teve para Foucault
indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno. Ela se
tornou necessária a partir do momento em que a representação perde o
poder de determinar o jogo de suas sínteses e de suas análises. “Era
preciso que as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer
outro lugar que não na soberania do eu penso”.128 Passaram a ser
requeridas precisamente na finitude do homem ⎯ finitude da
consciência, do indivíduo que vive, fala, trabalha. A filosofia
moderna passa a ser caracterizada por uma preocupação com o homem e
eis que aí adormeceu um sono novo; não mais o Dogmatismo de outrora,
mas o da Antropologia. É como se a configuração antropológica da
filosofia moderna desdobrasse o dogmatismo da análise do que é o
homem em sua essência para convertê-la na análise de tudo o que pode
dar-se em geral à experiência do homem.
Para despertar o pensamento desse sono antropológico, não
há outro meio que abandonar seus fundamentos. Foucault considera que
todos os esforços para pensar de novo investem contra ele: trata-se
de atravessar o campo antropológico e apartar-se dele a partir do
que ele enuncia, para reencontrar uma ontologia purificada ou um
pensamento radical do ser, bem como, colocando fora do circuito o
psicologismo e o historicismo, assim como todas as formas do
preconceito antropológico, tentar reintegrar os limites do
pensamento e reatar com o projeto de uma crítica geral da razão.
O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de
olvido, de alienação, será captado numa finitude antropológica que
aí encontra em troca sua manifestação iluminada. A finitude, com sua
verdade, se dá no tempo: e, desde logo o tempo é finito. O grande
devaneio de um termo da História é a utopia dos pensamentos causais,
como o sonho das origens era a utopia dos pensamentos
classificadores.

128
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, Cap. IX: O homem e seus duplos,
par.VIII, O sono antropológico.
136

No elogio de As Palavras e as Coisas, podemos ver o quanto


Foucault admira e se inspira no Nietzsche “incendiário” das formas
estáveis da dialética e da antropologia.

Essa disposição foi por longo tempo


constringente; e, no fim do século XIX, Nietzsche a
fez cintilar uma última vez, incendiando-a. Retomou o
fim dos tempos para dele fazer a morte de Deus e a
errância do último homem; retomou a finitude
antropológica, mas para fazer fulgir o arremesso
prodigioso do super-homem; retomou a grande cadeia
contínua da História, mas para curvá-la no infinito do
retorno. A morte de Deus, a iminência do super-homem,
a promessa e o terror do grande ano se esforçam em vão
por retornar, como que termo a termo, os elementos que
se dispõem no pensamento do século XIX e formam sua
rede arqueológica, mas não é menos certo que inflamam
todas essas formas estáveis, desenham com seus restos
calcinados rostos estranhos, impossíveis talvez; e, a
uma luz de que não se sabe ainda ao certo se reaviva o
último incêndio ou se indica a aurora, vê-se abrir o
que pode ser o espaço do pensamento contemporâneo. Foi
Nietzsche, em todo o caso, que queimou para nós, e
antes mesmo que tivéssemos nascido, as promessas
mescladas da dialética e da antropologia.129

Desenraizamento da antropologia, é o que Foucault sugere,


considerando que talvez o primeiro esforço nesse sentido tenha sido
feito por Nietzsche através de uma crítica filológica, ao
reencontrar o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde
a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde
a promessa do super-homem significa a iminência da morte do homem.
Para Foucault, Nietzsche propõe-nos esse futuro ao mesmo tempo como
termo e como tarefa, marcando o limiar a partir do qual a filosofia
contemporânea pode recomeçar a pensar.

129
Idem, Cap. VIII, Trabalho, vida, linguagem, par. II, Ricardo, p.278.
137

CONCLUSÃO

Para nós, pensar a morte dos deuses parece constituir-se


numa maneira bastante interessante de se compreender a transição das
épocas históricas e das mudanças na forma de ver e de explicar o
mundo. Este trabalho, assim orientado, pode subsidiar o próprio
estudo da história das idéias, tornando mais rica a filosofia.
Terá sido o estudo dos tempos remotos de nossa civilização,
da língua grega e da Grécia Antiga, em particular, o que
possibilitou, talvez, uma primeira compreensão deste fato: de que,
por detrás das mortes dos deuses, encontramos as rupturas, as
transições, as mudanças históricas.
Outrora, existiu na Grécia uma maneira de ver e de explicar
o mundo que não é mais a de hoje. Essa maneira mudou. Outrora,
múltiplos eram os deuses, fortes, guerreiros ⎯ eles eram tais quais
os homens gostariam de ser, e governavam o mundo, ou melhor,
aspectos do mundo, assim constituindo seu fundamento. Nos tempos
mitológicos contados por Hesíodo e Homero, o que prevalecia era a
força, o embate, a luta, o empenho aventureiro, a espontaneidade do
herói, a coragem, o jogo. E esses deuses morreram? “Morreram de rir,
ao ouvir um Deus dizer que era único” ⎯ ironizava Nietzsche. Mas o
fato é que morreram. Os imortais morreram. Os deuses gregos, que
também foram os deuses dos romanos, a uma certa época viram-se
enfraquecidos, esquecidos, destronados, mortos. No seu lugar, assume
o Deus cristão.
138

Com a vitória da Judéia sobre Roma, são os deuses do


Olimpo, sobretudo, que perdem importância e morrem. E eis que um
novo deus surge, um deus que parece ter sido arquitetado para todos,
um deus de aceitação universal. Contrariamente ao antigo deus
hebreu, vingativo e forte, esse apresenta-se fraco, sem pecado, sem
vontade. Um deus que morre na cruz, um deus à imagem e semelhança de
um povo escravo. No entanto, esse deus venceu, passou a ser aquele a
ser imitado, um mito ⎯ Jesus Cristo, o crucificado, o que morreu na
cruz para nos salvar.
Sem dúvida, a ascensão do cristianismo na história da
humanidade é concomitante com a ascensão de uma nova maneira de ser
e de ver o mundo: niilismo, culpa, ressentimento, racionalismo, eis
as marcas do novo tempo. Eis que a mentalidade do homem europeu
racional desenvolve-se na era cristã, eivada de uma vontade de nada,
de ressentimento e culpa, o que caracteriza enorme decadência em
contraposição ao pensamento dos gregos antigos, pura afirmação do
devir.
Mas trata-se do homem racional segundo nós nos temos, ou
melhor, tivemos. Ora, a racionalidade, aquilo que se coloca como a
essência do homem, revela-se um instrumento engendrado por ele para
que possa obter uma “salvação” dos perigos da vida e das aparências
do instante. O homem, para se “salvar” das incertezas, do caos e do
devir que sente, antes de tudo, dentro de si mesmo, no pulsar de
suas veias e no rodopiar de seu próprio coração, o homem engendra um
terreno novo, um terreno como que “mapeado”, e, assim, mais
conhecido e menos temível. Este terreno situa-se no plano das
idealidades, no mesmo plano onde veio se situar o Deus cristão.
Ocorre que esse plano não se dá propriamente na vida, está fora da
vida, está fora da phýsis grega (natureza), constituindo-se numa
metafísica. Ora, admitir esse plano, querer metafísica, é de alguma
forma querer fugir da vida, é negar a vida, é negar as aparências da
vida. O que possibilita isto é a racionalidade. Nietzsche mostrou
muito bem como isto se dá, considerando a consciência, a razão na
linguagem, bem como a metafísica e termos correlatos como “ser”,
139

“coisa em si”, “unidade”, “identidade”, “substância”, “alma”, como


enredados num mesmo erro: um erro da razão.
Mas, eis que, constituída a metafísica, é a própria razão
que se vê por ela fundada, a razão, obra de Deus, a Palavra
Primeira. Eis a metafísica e eis a racionalidade tão intimamente
imbricadas, tal qual irmãs siamesas.
Suspeitar da racionalidade é indagar se não será ela a
marca maior da fraqueza humana, da queda, da decadência. O homem
racional, não estaria ele procurando uma escora para se apoiar ou
uma capa para se proteger ou se acautelar? Uma proteção feita de
palavras, de argumentos, de arrazoados, de frases, de idéias, tudo
para fugir, ou melhor, para se resguardar de algo temível e no
entanto mais básico e de mais valor: a vida, a concretude da vida
em toda a sua crueza, gratuidade e inocência? Será, no entanto,
diante da tragédia ⎯ que se dá no plano da vida ⎯ que todo o
trabalho elocubrativo da razão cai por terra. Diante da tragédia não
há palavras, toda razão é vã. A razão não resiste à tragédia.
Mas é a própria razão que vemos endeusada explícitamente a
certa altura da história, talvez no ápice de sua fé ⎯ lembremos da
deusa Razão do Iluminismo a ocupar papel central nos cultos
religiosos da França da Revolução, e lembremos também da tragédia
que se sucedeu. Mas não terá sido antes, bem antes do Iluminismo,
que Deus começou a morrer? Mas quando, exatamente? Eis aí uma boa
questão.130
Mas, eis o fato: apesar de todas as peripécias
desvalorizadoras da figura de Deus que se pode observar na história
da filosofia, foi Nietzsche quem, no final do século XIX, em alto e
bom tom, proclamou a sua morte. Deus morreu, é fato, constata
Nietzsche. Deus não é mais o fundamento, isso é fato. E essa

130
Arriscamo-nos aqui a pensar em Descartes, não obstante nosso objeto de
estudo e também apesar da idéia não ter sido valorizada nem por Nietzsche nem
por Foucault. A seu respeito, lançamos, todavia, a seguinte questão: este, ao
tomar o “penso, logo existo” como fundamento de toda e qualquer certeza, não
estaria desvalorizando Deus nesse papel, como bem parece tê-lo percebido seu
contemporâneo Blaise Pascal? Não seria, em Descartes, Deus resultado de uma dedução
racional do sujeito que pensa, vale dizer, do homem, e não fruto dos motivos do
coração, como advogava Pascal? E não é isto, enfim, o que faz de Descartes, para
muitos, o pai da Filosofia Moderna?
140

transição ocorre na Era Moderna. Substitui-o o homem. Mas será


também Nietzsche quem irá suspeitar que, em conseqüência da morte de
Deus, também o homem morrerá.
Ora, matar Deus, como o homem o fez, é negar a dimensão
última da própria racionalidade, da Palavra, daquilo que, em última
instância, a fundamenta. O que o homem fez foi ficar só com sua
palavra. Mas é isso que parece não se sustentar. Metafísica e
racionalidade, uma implica a outra; o fim de uma parece implicar o
desmoronamento da outra, a existência de uma parece exigir a outra.
Eis, assim, o porquê da suspeita de Nietzsche de que por detrás da
morte de Deus está a morte do homem: morte do homem racional, morte
deste homem, tal qual o é o homem ocidental moderno, o último homem.
Será sobre essa questão, ainda com tantos aspectos a
explorar, que Foucault irá se concentrar: a questão do homem sem
Deus. O Foucault, leitor de Nietzsche, parece a cada momento querer
demostrar o que Nietzsche apenas esboçara: que o homem, com sua
razão, vai desaparecer; que a razão parece não se sustentar; que aí
configura-se uma falência; que isso que fundamenta o homem não é
algo tão sólido quanto se pensava outrora.
Esse “outrora” foucaultiano refere-se a uma época
relativamente recente, época em que não mais Deus, mas já o próprio
homem constitui-se como fundamento. É nesta perspectiva que Foucault
irá trabalhar. Foucault situa-se na era do último homem
nietzschiano.
Concluindo As Palavras e as Coisas, Foucault escreveu:

Em nossos dias, e ainda aí Nietzsche indica de


longe o ponto de inflexão, não é tanto a ausência ou a
morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do homem
(...) uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que
ele pensa e existe, seu próprio assassinato está
condenado a morrer; deuses novos, os mesmos, já
avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer.
Mais que a morte de Deus ⎯ ou antes no rastro dessa
morte e segundo uma correlação profunda com ele, o que
anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu
assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso
e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo
escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado
141

e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas;


é a identidade de Retorno do Mesmo.131

Será Kant quem marca, para Foucault, o início da


modernidade, ao ser o primeiro a perceber que é o sujeito
cognoscente que, ao levantar-se das ruínas da metafísica, prescreve-
se a si mesmo. Mas isso se dá já dentro de uma consciência de que as
forças do homem são finitas, muito embora seu projeto de
conhecimento seja infinito. Sobrecarrega-se, assim, o sujeito, que
cai numa forma antropocêntrica de conhecimento, o que caracteriza o
surgimento das ciências humanas. Estas, por sua vez, configuram
perigosa fachada de um saber universal, escondendo, porém, um
turbilhão de vontades que desejam, em última instância, não mais que
o poder do conhecimento.
Foucault irá realizar, dessa forma, um trabalho intenso e
obstinado de exame da racionalidade moderna, estudo esse pela via
daquilo que mais a põe em cheque: estudar a razão, como ele dizia,
em seus limites, abandonar o conforto das verdades terminais e
interrogar sobre as experiências limites. Estudar a história da
loucura para, de uma certa forma, anistiar a desrazão e constatar
que esta irrompe ocasionalmente, permitindo-nos a possibilidade de
transcender a razão, salvando-nos com violência. Estudar a história
do olhar médico, para constatar que aí se dá, pela primeira vez, o
conhecimento do homem sobre si mesmo, com base em sua própria
finitude, dentro de uma linguagem criada pela abertura de sua
própria eliminação. Estudar autores literários que caracterizam a
falência da linguagem, manifestação da razão, autores esses que
exploraram o vazio, a agonia do significante na busca de parcos
signos para apontar significados múltiplos e infinitos. Estudar as
ciências humanas, e ver sua constituição dentro de enigmáticas
finitudes que constituem o homem. Estudar a história do saber
humano, e rejeitar a consciência como origem transcendental de um
dizer expressivo, propondo a dispersão do sujeito. Estudar as

131
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes,
p.402
142

interdições que atingem o discurso do homem e sobretudo o discurso


da sexualidade. Estudar o poder, e ver que o homem é simples
joguete, à mercê de relações de forças, que se dão no âmbito de uma
microfísica onde se encontra inserido socialmente.
Foucault, a cada momento, parece querer demonstrar que a
racionalidade, agora vista estritamente pelo ângulo da modernidade,
confirma a precariedade, a fraqueza, a decadência, o disparate que
Nietzsche já acusara. Mas Foucault também, a cada momento, parece
querer resgatar a experiência trágica da loucura para o seu lugar de
nobreza, como que a honrar Nietzsche em seu final de vida, Nietzsche
louco, Nietzsche criança, última máscara afinal ⎯ Nietzsche e todos
os loucos que fizeram da loucura uma libertação.
Nietzsche, com sua filosofia, propugnara a saída positiva
do Übermensch (Super-Homem), o além-do-homem, o homem-superação, o
homem-devir, o homem trágico. Para tal, será necessária a efetuação
de uma transvaloração de todos os valores; uma transvaloração tal,
que o pensamento trágico prevaleça sobre o pensamento racional. O
homem, herói trágico lançado na vida, amante das aparências e
desprezador das verdades, criança afinal, deverá viver por pura
criação estética, fazendo da vida uma obra de arte, eis Nietzsche.
Foucault, por sua vez, nos fala de sua suspeita, apontando para a
epistémê moderna, e assim ele escreve concluindo Les mots et les
choses:

(...) a epistémê moderna ⎯ aquela que se formou


por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo
positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo
de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-
lo empiricamente ⎯ toda essa epistémê estava ligada
ao desaparecimento do Discurso e de seu reino
monótono, ao deslizar da linguagem para o lado da
objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. Se essa
mesma linguagem surge agora com insistência cada vez
maior numa unidade que devemos mas que não podemos
ainda pensar, não será isto o sinal de que toda essa
configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está
em vias de perecer, na medida em que brilha mais forte
em nosso horizonte o ser da linguagem?132

132
Idem, ibidem.
143

Mas, o que será mesmo que Foucault quer dizer com este
perecer do homem “na medida em que brilha mais forte em nosso
horizonte o ser da linguagem”? É que Foucault viu um fato novo
entrar no campo do pensamento no fim do século XIX e que jamais
poderá ser doravante desprezado: um fato novo com Nietzsche a
perguntar: “Quem fala?”; e com Mallarmé a responder: “O que fala é a
própria palavra”. Não quererá, então, isso dizer que, doravante,
toda e qualquer pretensão de verdade da linguagem revela-se vã,
pretensão esta que se estende ao dizer do homem sobre si mesmo? Que,
doravante, na linguagem, o que pode ser considerado é tão somente a
sua aparência? E, considerar a linguagem pela sua aparência, não
será tão somente tê-la por arte? literatura?
Vida-literatura, dizer-se de si na infinita maneira de
interpretar o mundo, poesia?
Vida-literatura, vida-vazio, vida-transgressão, vida-salto,
vida-loucura, é o que Foucault parece intuir para o futuro do homem.
Não mais o homem como o reconhecíamos, não mais a pretensão de
verdade no dizer, mas o vazio, o permanente estado de suspensão, o
salto do dizer.
E, para lembrar Nietzsche uma vez mais: “flechas de anseio
pela outra margem” ⎯ não será isto que Foucault está querendo dizer?
Uma metafísica de artista.
Haverá filosofia mais bela?

* * *
*
144

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