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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
18
JUNHO

1959

ERGUNTE
e

Responderemos

ANO II
ÍNDICE

Pág.
I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

1) "Que sao maleficios ? Quais os meios de que dispomos para


evitá-los e combaté-los ?" 223

II. DOGMÁTICA

2) "No momento presente, em que a atencüo do público é solici


tada pela noticia de próximo concilio ecuménico, hiteressa
saber algo sobre o histórico de tais assembléias. Qual o seu
significado em épocas passadas ?" 229

3) "Qual o trámite observado na celebracao de um concilio ecumé


nico e qual a autoridade que a éste compete na vida da
Igreja ?" 2S7

III. SAGRADA ESCRITURA

U) "Dada a moderna mudanga de exegese dos primeiros capítulos


do Génesis (1-11), reina confusdo entre cateqttistas e apolo
gistas sobre a vianeira de propor o conteúdo désses textos
(a doutrina da criacáo, do primeiro pecado, etc.) cm aulas
e conferencias.
Nao se poderiam indicar alguvias normas a propósito ?" 2/t2

5) "Como explicar, em particular, a narrativa da queda dos pri


meiros pais (Génesis S) ? A fruta proibida era realidade ou
símbolo ? A serpente falava e tinha patas no paraíso ?" ... 2íG

TV. MORAL

6) "Diz-se geralmente que nem toda verdade deve ser proferida.


Será lícito cniáo recorrer a mentira, para nSo confessar a
verdade ?" 254

V. HISTORIA

7) "Qual a origem dos festejos de Sao Joüo com scus fogos ca


racterísticos ?" 2G0

CORRESPONDENCIA MIODA 2fí>,

COM APROVAgAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano II — N' 18

I. FILOSOFÍA E

PREOCUPADO (Sao Paulo) :

1) «Que sao maleficios ? Quais os meios de que"


mos para evitá-los e combate-Ios ?»

Tendo em vista as duas partes da questáo, trataremos


abaixo da natureza e das práticas do chamado «maleficio» ;
a seguir, procuraremos avaliar a eficacia do mesmo, acrescen-
tando, por fim, urna palavra sobre a mentalidade que o male
ficio pressupóe.

1. Que sao maleficios ?

1. Os maleficios constituem urna arte que pretende obter,


de maneira mais ou menos irresistível, a colaboragáo de fórgas
invisíveis (espíritos) a fim de acarretar algum daño ao próximo.
Na verdade, a arte dos maleficios nao é senáo um setor
da técnica mais ampia chamada magia.
2. Que seria entáo a magia ?
A magia é o conjunto de práticas que visam de certo
modo dominar a Divindade ou os espirites superiores, captan-
do-os para servirem aos interésses dos homens. Em geral, a
magia, onde ela é exercida, fica reservada a pequeño grupo
de peritos que vivem em sociedades secretas, dizem ter rece-
bido especiáis revelagóes do Alto e se submetem a urna apren-
dizagem, teórica e prática, própria ; jejuns, provagóes dolo-
rosas, isolamento entram por vézes no programa de formagáo
do mago. Certas realizagóes da magia sao freqüentemente pa
trimonio exclusivo de tal ou tal familia, pois, em grande parte,
o sucesso do mago está baseado em determinada constituicáo
fisiológica e temperamental hereditaria (isto já insinúa que
as práticas mágicas nada tém de sobrenatural, mas sao fenó
menos nao raro derivados de reagóes subconscientes e, muitas
vézes, doentias do individuo).

O vocábulo «Magia» se deriva de «Magos», nome de urna das


seis tribos integrantes do povo dos medos. Essa tribo tinha significado
religioso próprio, pois os seus membros, pertencentes talvez a casta

— 223 —
sacerdotal se opuseram a Zoroastro na sua obra de reforma da
antiga religiao do Irá (séc. VII/VI a.C). Quando os perra? sob
?«Jí?v<?rví\de Ciro- se aP°deraram da Media (550 a.C.) e da Babilonia
(539 a. O, os magos entraram em contato com a Pérsia a Meso-
potamia e, a seguir, com a vasta rede territorial conquistada por
Alexandre Magno da Macedónia (t313 a.C). A Babilonia tornou-se
entao o cadinho de fusáo da antiga civilizagáo oriental com a civili-
zagao grega. E o que explica a nova acepcáo que o título de «mago»
íoi tomando no mundo greco-romano : tal nome, guardando o seu
significado religioso, passou a designar os sacerdotes da religiao
babilónica, homens habéis em práticas de astrologia e adivinhacáo
(cf. «P. R.s» 16/1959, qu. 2); por isto o nome «mago» veio a ser
tido como sinónimo de «astrólogo, taumaturgo e feiticeiro». A magia
é hoje praticada ñas mais diversas regióes do globo, com modalidades
e ritos muito variados, mas sempre inspirada pelo mesmo afá de
captar as fórcas superiores para servireir. aos planos dos homens.
Ela é, em larga escala, explorada em nossos dias e no Brasil pela
sociedade dita de «Umbanda», onde os maleficios tomam o nome
de «despachos».

3. Sejam aqui citadas algumas das práticas mais carac


terísticas da magia.

A «morte á distancia», dizem os magos, pode ser provocada


do seguinte modo : faz-se urna estatueta da pessoa de quem se desejá
o exterminio, utilizando-se de preferencia os excrementos dessa pessoa
ou (n&o sendo isto possível) um pouco de barro, no qual o mago
procura enxertar pedacos de unha, fios de cábelo, urna parte da
esteira de dormir pertencentes á vítima visada ou simplesmente um
retalho de paño que haja tocado a pele desta. A seguir, o mago
(também chamado «médium» em algumas escolas) evoca fórgas
maléficas, pedindo a sua intervengáo; concentra seus pensamentos
ñas tribulagoes e dores que deseja afetem o individuo odiado e
inflige á estatua os ferimentos que ele intenciona causar á vitima:
caso queira atacar o coracáo e matar sem demora, finca um osso
pontiagudo no suposto lugar do caragSo da estatua; caso deseje
apenas fazer enlouquecer, é na cabeca da estatua que o mago mete
a ponta de osso; se quer, antes, tornar o individuo cegó visa os
olhos; a fim de o tornar paralítico, mutila urna ou mais extremidades
da estatua; para fazer morrer aos poucos, faz a estatua consumir-se
lentamente em f ogo...
Semelhantes «receitas» podem ser utilizadas em vista de finali
dades menos sinistras, ou seja, para obter o amor ou conquistar a
simpatía de alguém. No primeiro caso, esfrega-se a estatueta do
homem ou da mulher que se deseja, com pimentáo, banhando-se a
mesma depois em óleo de palmeira; no segundo caso, a efigie é
encerrada entre as duas metades de um galo branco recém-morto.
Virgilio, na sua Écloga VIII, narra o processo aplicado a urna estatua
que representava Dafnes; feita de gésso e cera, a imagem foi colocada
no fogo, a fim de que, em conseqtiéncia, o coragáo do jovem Dafnes
fósse amolecido como cera em relacáo á donzela que praticava o
rito, e endurecido como gésso frente a todas as demais mulheres...
Para obter um sucesso na caca, os cacadores primitivos nao raro ■-
executavam, e executam, previamente urna danca que pretende imitar
as diversas fases da cagada; durante tal rito, um déles permanece
revestido da pele do animal que visam capturar. O código da magia

— 224 —
ensina que éste cerimonial garante a queda da presa ñas máos dos
cacadores que lhe fórem ao encalgo.
Outras receitas tém por objeto o nome da pessoa visada O nome
segundo a mentalidade dos primitivos, faz parte integrante do respec
tivo individuo, pois está em estreita relagáo com a esséncia déste
Em conseqüéncia, quem conhece o nome de determinada pessoa, pode
influir sobre os sentimentos Íntimos e a conduta da mesma; aplicando
estes principios, os magos, desejosos de prejudicar ou exterminar um
adversario, repetem o nome déste, mutilando ou suprimindo progres-
sivamente letras e silabas; a destruicao do apelativo assim efetuada
deve acarretar a ruina da personalidade nomeada... Para defender-se
de tal agao mágica, muitos dos homens primitivos guardavam e
guardam rigoroso sigilo com relacáo ao seu nome pessoal ou ao
de familias' e entidades caras.
Entre as apllcagóes maléficas da magia, goza de grande celebri-
dade popular o «mau olhado:». Os temores em relacáo a éste se ba-
seiam na crenga de que dos olhos de certos individuos emana um
fluido ou urna corrente qualquer capaz de prejudicar pessoas e coisas.
Os latinos davam á arte do mau olhado o nome de invldia (donde
«inveja» em portugués), derivado do verbo in-videre («olhar contra»);
famosa ficou sendo a inscricáo gravada no pavimento da taverna dos
peixeiros em ostia (Italia), inscrigáo dirigida contra os maliciosos nos
termos seguintes : «Invejoso (tu, que langas mau olhado), eis que te
torno cegó !» (Reg. IV, ilha 5a.). Os gregos designavam a mesma arte
pelo apelativo de báskanon, de etimologia incerta, do qual se derivou
o termo latino fascinum (fgscinagao). Nao raro o mau olhado era
acompanhado de urna fórmula mágica cantada; em conseqüéncia,
essa técnica tomou também o nome de «encantamento». É interes-
sante notar que a famosa Lei romana das Doze Tábuas proibia explí
citamente aos agricultores tentassem, por meio de mau olhado e en
cantamento, fazer passar para o seu próprio campo os frutos do
campo do vizinho (Tab. VIII 1,8, Bruns); Virgilio alude ao mau
olhado que fascina os cordeirinhos (fiel. VIII 99). —A título de curio-
sidade, seja notado que os romanos se procuravam defender dos efei-
tos nocivos de louvores exagerados (tidos como invejosos), trazendo
consigo certa erva denominada baccar ou asarum ; por vézes junto
a essa planta colocavam mesmo a inscrigáo : «Prae fiscisne» ísto é •
«Sem fascinagáo ! De tal louvor nao provenha mal!» (cf. Servio, Ad
Ecl. VII 27). Em geral, minerais e vegetáis qualificados (o ouro, os
coráis, o ámbar, a arruda, a sanguinaria...) eram utilizados pelos
romanos como elementos aptos para afugentar as conseqUéncias do
mau olhado.
Entende-se. porém, que ésses pretensos meios profiláticos nao
libertavam o homem pagáo do médo dos maleficios. Haveria entao
alguma saida satisfatória?

2. A eficacia dos maleficios


O fato de que os maleficios conseguiram tanta voga no
mundo antigo e moderno deve-se inegávelmente á obtengáo
de resultados que a muitos homens parecem comprovar a efi
cacia das artes mágicas. Nao se poderá negar que fenómenos
surpreendentes se verificam em conseqüéncia dos ditos en
cantamentos.

— 225 —
Os povos pagaos, reconhecendo isso, afirmavam e afirmam que
tais portentos se devem realmente á intervengáo dos espíritos supe
riores evocados pelos magos.
Os cristáos, até o século XVII, rejeitando qualquer vestigio de
politeísmo, atribuiam os maleíicios á cooperado direta do demonio
ou dos anjos maus. Era conseqüéncia, era comum, na Idade Media
íalar-se, por exemplo, de bruxas, ou seja, de mulheres possuidas
e atormentadas pelo Maligno; julgava-se que. em reunióes noturnas
(sabas) celebradas nos bosques, os espiritos malvados se associavam
orgiástica e impúdicamente a tais criaturas, dancando, corriendo e
deitando-se com elas. As trágicas calamidades desencadeadas pela
íome, as guerras e as epidemias no periodo medieval concorriam
para alimentar a crenca na acáo direta do demonio em meio aos
homens. Verdade é que os bispos e concilios da época mais de urna
vez procuraram combater a credulidade excessiva e simplória de
que dava provas o povo cristáo nesse setor: assim o concilio de
Braga em 563 repreendeu os fiéis que atribuiam ao demonio poder
sobre os fenómenos atmosféricos; S. Agobardo, arcebispo de Liáo
em cérea de 840, combateu essa mesma concepeáo na sua obra
«Contra insulsam opinionem de grandine et de tonitruis». O Papa
S. Gregorio VII tomou semelhante atitude em carta dirigida ao rei
Haroldo da Dinamarca (19 de abril de 1080). A lei dos francos
chamada «Canon episcopi», datada de fins do séc. IX negava a
realidade dos fenómenos atribuidos aos sabás das bruxas dizendo
tratar-se de invencóes da fantasía de mulheres depravadas.
Nos últimos sáculos os cronistas cristáos se mostraram menos
propensos a admitir intervencoes diabólicas e preternaturais para
elucidar os efeitos extraordinarios dos maleficios e da magia. Hoje
em dia, os teólogos, utilizando novos conhecimentos fornecidos pelas
pesquisas modernas de psicología, parapsicología e ciencias naturais,
2& consideram toda essa fenomenología de modo diverso e mais
profundo. Eis como se exprimem a respeito :

Os efeitos reais (exclua-se, portanto, o número nao exi


guo dos prodigios meramente imaginarios ou inventados por
mistificadores) produzidos pelos ditos maleficios se podem
explicar por duas vias :
a) ou sao devidos á acáo direta do demonio (Satanaz e
a coorte de espíritos maus). Julga-se, porém, que esta agáo
direta é rara ; está cada vez mais comprovado que os por
tentos da magia geralmente nao sao preternaturais, isto é,
nao exigem a intervencáo de causa superior ao homem, mas,
ao contrario, se explicam muito bem pelas virtualidades da
própria alma humana. Donde a hipótese abaixo :
b) ou sao devidos a fatores parapsicológicos, isto é, a
elementos naturais contidos no subconsciente do individuo.
Trata-se em tal caso (e, note-se bem, o caso é freqüente) de
fenómenos paranormais (isto é, nao normáis, nao habituáis,
mas nao necessariamente anormais), os quais podem ser de-
sencadeados no individuo por acáo de um choque ou trauma
tismo psíquico que impressione o íntimo da personalidade.
Sabe-se que apenas urna oitava parte dos conhecimentos pos-

— 226 —
suidos pela alma humana aflora habitualmente á consciéncia,
ficando sete oitavas partes no subconsciente ; dado, porém,
que, em virtude de um fator extraordinario, estas nocóes la
tentes se manifestem, a personalidade do individuo pode tomar
aspectos muito variados e imprevistos.

Tém sido mais é mais explorados os eíeitos da radiestesia, do


magnetismo, da letargía, do hipnotismo, assim como os fenómenos
intitulados «psi-gama» (gama é a primeira letra da palavra grega
gnósis, conhecimento; trata-se do conhecimento á distancia ou por
vía extra-sensorial) e «psi-kapa» (kapa é a primeira letra do termo
grego kínesis, movimento; trata-se da movimentacáo de cornos sem
aparente contato direto do movente com o movido). Os mesmos
fenómenos que magos, curandeiros e médiuns provocam dentro de
um ritual religioso, tém sido obtidos sem evocacáo de espirito algum
por tramite racional e científico — o que bem demonstra nao se tratar
de fenómenos essencialmente pretematurais ou religiosos.

Nao há dúvida de que o demonio pode exercer — e, de


fato, nao raro exerce — agáo indireta na provocacáo dos fenó
menos parapsicológicos, procurando corroborar nos magos e
médiuns a crenca de que tais efeitos se devem a espíritos su
periores ; com isto Satanaz alimenta os erros religiosos que
os autores de encantamentos professam. Em particular com
relacáo a certas doengas, é notorio que o Maligno as pode
provocar no homem (é o que atesta o S. Evangelho, por
exemplo, em Mt 9,32s ; 12,22; 17,14-20; Le 13,10-13). Ten-
do-as provocado, o demonio pode fazer que resistam á agáo
de qualquer tratamento médico, mas cedam finalmente á apli
cado de algum encantamento ou despacho mágico. Assim
procedendo, o espirito mau vai fomentando a adesáo as idéias
erróneas dos magos e médiuns...
Assim elucidados os efeitos maléficos da magia, pergun-
ta-se: tais artes e encantamentos teráo realmente a acáo
mais ou menos infalível que Ihes atribuem seus adeptos, de
modo a dever assustar as pessoas visadas ?
Em resposta, observe-se que os espiritos malignos evoca
dos pelos autores de maleficios sao seres reais, sem dúvida,
dotados de inteligencia e capacidade de acáo muito mais ele
vadas que as do homem. Contudo éles nao podem exercer
influencia alguma sobre as demais criaturas sem que Deus o
permita explícitamente; a acáo do demonio neste mundo
fica estritamente subordinada aos designios do Altíssimo.
E Deus permitirá que os espíritos maus ajam sobre o
homem ?
Sim. O Senhor o permite. E permitejgusegundo^duas mo
dalidades principáis : ^ ¥

- 227
a) aos justos Satanaz pode atacar a fim de que se com-
provem a fé e o amor de tais homens a Deus ; é, sim, pela
luta que o cristáo se configura a Cristo. Ésses ataques podem
tomar proporgóes de grande vulto (como no caso de urna
doenca ou de um desastre) ; mas — saibamo-lo bem — só sao
permitidos em vista de um efeito bom a ser obtido no homem
tentado. E, para que éste consiga realmente beneficiar-se do
combate contra Satanaz, Deus Ihe dá a graga correspondente,
nunca permitindo que o homem seja tentado ácima de suas
fórgas. Caso, portanto, alguém se considere vítima de um
maleficio ou de um «despacho», nao julgue que o rito mágico
foi por si eficaz para tanto (longe disto !), mas conclua que
Deus, por ocasiáo da agáo do mago ou médium, houve por
bem permitir tal efeito, outorgando simultáneamente a graga
para que o individuo atribulado usufruisse de todo o proveito
espiritual resultante da sua situagáo.
b) Sobre os pecadores Deus pode permitir que o demo
nio tenha influencia mais intensa, pois que tais homens habi-
tualmente vivem em afinidade com Satanaz e em revolta con
tra Deus. Principalmente quando alguém declara explícita
mente travar um pacto com o Maligno ou «vender sua alma
ao demonio», o Senhor pode conceder a Satanaz que responda
tomando posse dessa alma, seja de maneira visivel e veemente,
seja de maneira invisível; está claro entáo que os maleficios
e encantamentos dirigidos contra tal pecador podem ter certa
eficacia, pois Deus poderá permitir que o Maligno trabalhe
mais livremente num individuo que deseja sofrer a agáo do
demonio; note-se, porém, que mesmo neste caso a permissáo
de Deus ainda visa a cura espiritual (ou seja, um beneficio
real) para o pecador.

Diante destas considera?des o cristáo concluirá que ele nao


tem motivo algum para temer os encantamentos da magia ou os
maleficios. Quem procura viver com Deus, como fiel católico, sabe
que nada poderá prevalecer contra os seus verdadeiros interésses:
<ttSe Deus está por nos, quem será contra nos?», pergunta vitoriosa-,
mente Sao Paulo (Rom 8,31). Verdade é que o Senhor nao prometeu
eximir das dores e da cruz os seus filhos devotos; muito ao con
trario... (cf. «P. R.» 15/1959, qu. 6). O cristáo conta mesmo com
provac5es que mais e mais o purifiquem das tendencias desregradas
da natureza, mas pouco Ihe importa saber se tais provagóes provém
de artes maléficas ou nao; em todo e qualquer caso, o íilho de
Deus tem certeza de que é o Pai do céu quem rege os acontecimentos
da sua vida, e nao o demonio; sabe que ele depende de Deus, e nao de
Satanaz, de modo que, se nao abandona espontáneamente o seu
Salvador, pode estar seguro de que o Salvador nao o abandonará:
«Para quem ama a Deus, Deus tudo faz cooperar para o bem»,
ensina de novo o Apostólo (Rom 8,28). Retomando urna comparagáo
de S. Agostinho, alias muito conhecida, diremos que Satanaz é como

— 228 —
um cSo acorrentado que pode ladrar muito, sim, mas a ninguém
consegue fazer mal a nao ser que alguém espontáneamente se
coloque sob a sua influencia.
Procurem, pois, os homens viver na graga de Deus; fuiam do
pecado e dos vicios. E, fazendo isto, nao duvidem de que nada nada
absolutamente, os impedirá de chegar á posse consumada do Bem
Infinito!

3. A mentalidade do mago
Por último, parece oportuna breve reflexáo sobre a atitude
«religiosa» que caracteriza a magia. Esta, embora conserve as apa-
rencias de religiao, significa decadencia ou aberragáo do espirito
religioso.

Com efeito, a genuína religiao leva o homem a implorar a Deus


e se submeter a Ele num gesto de abandono humilde; o orante con
serva a consciéncia de que depende sempre do Altissimo O Qual
lhe outorga gratuitamente seus dons; é, alias, nessa entrega total
a Deus que o homem religioso vé a realizacáo de si mesmo e de
seu ideal. — Ora o oposto se verifica na magia: o mago se separa
da coletividade dos demais homens, julgando possuir ciencia oculta
muito profunda; exalta-se mesmo ácima da Divindade, pois, mediante
essa ciéricia, presume forgar o consentimento da própria -Divindade-
a obediencia e a submissSo de que ele dé provas ñas fases dé
imciacao, para ele, nao sao;senao a condicáo ou talvez a artimanha
necessána para que possa adquirir a maravilhosa ciencia de dominar
os poderes supremos.
A magia, portento, vem a ser urna afirmagáo da cobica do
homem, que tende a se endeusar dentro de um ambiente primitivo
e ignorante, ambiente em que qualquer verniz de ciencia é suficiente
para assegurar a carreira dos cobigosos.

II. DOGMÁTICA

T. N. (Rio de Janeiro) :

2) «No momento presente, em que a atencao do público


e solicitada pela noticia de próximo concilio ecuménico, inte-
rqssa saber algo sobre o histórico do tais assembléias. Qual
o seu significado em épocas passadas ?»
Chama-se concilio (ou, menos freqüentemente, sínodo) urna
reuniao de bispos que1 tenham em vista deliberar e babear definieses
sdbre assuntos de índole eclesiástica.
O concilio é ecuménico ou universal se os bispos do mundo
inteiro, previamente chamados a integrar a assembléia, a esta compa-
recem de modo tal que representen! a Igreja universal.
O termo «ecuménico» vem do participio grego «oikouméne» =
= habitada (térra), expressáo que no vocabulario do Imperio greco-
-romano designava simplesmente o orbe. — Nao se confunda «concilio
ecuménico» com «movimento ecumenista», iniciativa de origem pro
testante que visa a unificagáo de todas as denominag6es cristas;
cf. «P.R.» 6/1958, qu. 10.

— 229 —
Caso apenas limitado número de bispos seja chamado ao concilio,
éste é tido como particular.
O concilio particular vem a ser plenário, se déle participam os
bispos de varias provincias ou circunscricóes eclesiásticas (tal íoi,
por exemplo, o concilio plenário hrasileiro de 1939, que reuniu todas
as provincias eclesiásticas ou todo o episcopado do Brasil). O concilio
particular é, ao contrario, provincial au metropolitano, se conta com
os bispos de urna só provincia eclesiástica (os limites de urna provin
cia sao geralmente lixados de acordó com a importancia religiosa das
cidades que ela abrange).
Pode-se dizer que a realizacáo de um concilio é inspirada pelas
palavras de Cristo consignadas em Mt 18,20: o Senhor prometeu, sim,
especial assisténcia aos discípulos que se reunissem em seu nome.
Desde os primeiros dias do Cristianismo, questdes de interésse cole-
tivo foram tratadas comunitariamente: assim Pedro propós a
assembléia dos irmáos a escolha de novo Apostólo, substituto de
Judas (cf. At 1,15-26); os «Doze», de comura acordó, pediram aos
liéis, elegessem os sete primeiros diáconos (At 6,1-6); e — o que é mais
importante — os Apostólos se reuniram em Jerusalém no ano de 49,
a fim de deliberar sobre a imposicüo da Lei de Moisés aos pagaos
(cf. At 15). Esta reuniáo dos Apostólos tornou-se o arquetipo de
todos os concilios episcopais celebrados posteriormente.
Após a geracáo apostólica, os primeiros concilios de que se tem
noticia, datam do séc. II: reunem-se na Asia menor para deliberar
sobre a heresia de Montano (que anunciava nova eíusáo do Paráclito)
e a data da festa de Páscoa. No séc. III tornaram-se lamosos os
concilios regionais de Cartago, iniciados em 220 pelo bispo Agripino
desta cidade; outros loram sendo celebrados em Icónio na Asia
menor (230 e 235) e Antioquia (264 e 269). Firmiliano, bispo de
Cesaréia na Capadócia, atestava a celebracáo anual de concilios em
sua regiáo.
O objeto dessas assembléias eram ou heresias recém-oriundas
ou questóes de disciplina; délas participavam bispos, presbíteros
e diáconos, aos quais se podiam associar alguns fiéis leigos na quali-
dade de observadores.
No inicio do séc. IV, notorios sao os concilios de Elvira (Espanha)
entre 300 e 306, Arles (Gália) e Ancira (Asia menor) em 314, Ale-
xandria em 320, Neo-Cesaréia, na mesma época. Preparavam as
vias ao primeiro concilio ecuménico, realizado em Nicéia (Asia menor)
no ano de 325..Como se compreende, sómente após a cessacáo das
perseguigoes (323) é que se puderam convocar assembléias de bispos
do mundo inteiro, pois reunióes désse género exigiam nao sómente
tranqUilidade de ánimos, mas também a colaboragáo positiva do
poder civil que facilitasse o uso de correios e as viagens dos prelados.
Interessa-nos agora percorrer a serie dos vinte concilios ecumé
nicos, que se inicia no séc. IV.

1. Resenha histórica

1) Concilio de Nicéia, na Asia menor (325), convocado


sob o pontificado do Papa Sao Silvestre.
Desde 315 disseminava-se a heresia de Ario, que negava
a Divindade de Cristo, atribuindo a Éste o título de «primeira
criatura do Pai, pela qual as demais foram feitas». Sao Jeró
nimo (f 420) afirmava que o Arianismo era mais perigoso

— 230 —
para a subsistencia da Cristandade do que as perseguigóes
sangrentas dos séculos anteriores. Dado o enorme alcance
religioso e civil da nova heresia, o Imperador Constantino,
recém-convertido á fé crista, nao hesitou em promover apri-
meira assembléia geral do episcopado. Esta contou cérea de
318 bispos e definiu ser o Filho «da mesma substancia que o
Pai», isto é, simpiesmente Deus como o Pai. Em conseqüéncia,
o símbolo de Nicéia, ainda hoje recitado na Missa, professa:
«... Jesús Cristo, gerado, nao feito, consubstancial com o Pai».
2) Concilio de Constantinopla I (381), sob o Papa Sao
Dámaso e o Imperador Teodósio o Grande. Visando as idéias
de Macedónio, que negava a Divindade do Espirito Santo, de
finiu a doutrina controvertida, acrescentando ao símbolo de
Nicéia as palavras : «(Espirito Santo)... Senhor e vivificante,
o qual procede do Pai; juntamente com o Pai e o Filho é
adorado e glorificado, tendo falado pelos Profetas».
3) Concilio de Éfeso, na Asia menor (431), sob o pon
tificado do Papa Celestino leo reinado de Teodósio o Jovem.
Contra as inovagóes do Patriarca Nestório de Constantinopla,
definiu haver em Cristo urna só Pessoa (a divina) de modo
que María, tendo geradpj- Cristo, gerou a Pessoa do Filho de
Deus unida á carne humana ; compete-lhe, pois,. com razáo, o
título de «Máe de Deus» ou Theotókos, visto que o termo da
geragáo é sempre a pessoa (esta é que constituí um sujeito
de agóes ; cf. «F. R.» 6/1957, qu. 3).
4) Concilio de Calcedonia, na Asia menor (451), sob
Sao Leáo Magno Papa e Marciano Imperador. Constituiu o
complemento do anterior, afirmando, contra o Monofisismo,
que a unicidade de Pessoa em Cristo nao excluí dualidade de
naturezas (divina e humana) no Senhor. Em outros termos:
Cristo teve um só «Eu», que agia ora como verdadeiro Deus,
ora como verdadeiro homem. Éste concilio, contando 630 Pa
dres sinodais, foi o mais freqüentado de todos os concilios
celebrados no Oriente.
5) Concilio de Constantinopla II (553), convocado pelo
Imperador Justiniano, á revelia do Papa Vigílio, que se
opunha a política cesaropapísta do monarca. A assembléia
condenou os chamados «Tres Capítulos», tidos como expres-
sóes de Nestorianismo : a saber, 1) Teodoro de Mopsuéstia
(t 428) e suas obras; 2) os escritos de Teodoreto de Ciro
(t 458) contra S. Cirilo de Alexandria e o concilio de Éfeso ;
3) a carta de Ibas de Edessa (f 457) a Maris.
Éste concilio só adquiriu autoridade de sínodo ecuménico, quando,
após a sua celebracáo, o Papa Vigilio, que por motivo de prudencia
se Ihe mantivera alheio. houve por bem aprovar as decisSes da
assembléia.

— 231 —
6) Concilio de Constantinopla in (680/681), convocado
sob o Papa Agatáo leo Imperador Constantino IV. Rejeitou
o Monotelitismo ou a doutrina que só reconhecia urna von-
tade em Cristo — a vontade divina —, proposigáo que cons
tituía urna das últimas e mais sorrateiras expressóes do Mo-
nofisismo.

Éste concilio pos termo ás disputas cristológicas, defecando, urna


vez por todas, definidas as grandes linhas da doutrina concernente
á Trindade SSma. e ao Senhor Jesús. Mais de seis séculos de estudos
e arduo aprimoramento de conceitos, eis o que hoje está latente sob
as breves fórmulas do Catecismo Cristáo atinentes a Deus e ao
Salvador. Nao foi fácil á razáo humana chegar a tal delimitacao de
conceitos; por isto os grandes fautores da reta fé nos sete primeiros
séculos sao chamados por excelencia «os Padres (ou os Pais)» da
Igreja; conservaran! e burilaram, em favor das geracóes subseqüen-
tes, a Palavra de Deus, na qual está a Vida.
Ocorre aínda um concilio em que é abordada importante contro
versia, desta vez. porém, mais relacionada com a piedade do que
com a especulacáo teológica.

7) Concilio de Nicéia H (787), sob o pontificado de


Adriano I Papa e a regencia da Imperatriz Irene. Foi iniciado
em Constantinopla, mas, em vista dos tumultos provocados
pelos iconoclastas, transferido para Nicéia ; pronunciou-se em
favor do culto das imagens, excluindo explícitamente a ado-
racáo das mesmas — atitude que só a Deus se presta — para
professar veneracao, ... veneragáo que é toda relativa, pois,
em última análise, se dirige ás pessoas santas representadas
por suas efigies.
8) Concilio de Constantinopla IV (869/70), durante os
governos do Papa Adriano II e do Imperador Basilio n. Depós
Fócio, usurpador da sé patriarcal de Constantinopla, extin-
guindo assim o cisma entre cristáos orientáis e ocidentais
aberto pelo intruso.
Como se vé, éste concilio reflete urna fase da historia da Igreja
assaz diferente das anteriores; é o «bizantinismo» (sutileza de gdsto
subjetivo) que, em lugar das grandes idéias dogmáticas, move os
orientáis.
Em breve (1054) verificar-se-á o cisma definitivo de Bizáncio,
e o cenário da vida da Igreja, com seus concilios sempre caracterís
ticos das respectivas épocas, se transferirá para o Ocidente.
O objeto das deliberares dos próximos sínodos universais seráo
principalmente questfies de disciplina prática e de piedade. A dogmá
tica crista estando suficientemente definida, trata-se apenas de garan
tir a liberdade de acáo de Igreja perante o Estado, reieitar falsas
tendencias ascéticas e místicas e implantar urna condiita de vida
coerente entre os cristáos sempre sujeitos á fraqueza humana.

9) Concilio do Latrao I, em Roma (1123), sob o Papa


Calixto II. É o primeiro concilio ecuménico realizado no

— 232 —
mundo latino. Pos fim á luta das Investiduras, isto é, ao
combate da Igreja contra a intrusáo dos principes seculares
que se arrogavam o direito de nomear e empossar bispos e
abades em suas fungóes eclesiásticas. Em vista disto, o Con
cilio confirmou a Concordata de Worms oti o acordó ante
riormente travado. entre o Papa Calixto II e o Imperador
Henrique V. Além do que, o concilio exortou os príncipes
cristáos a tomarem a cruz para libertar a Térra Santa (movi-
mento das cruzadas).
10) Concilio do Latráo II (1139), sob o Papa Inocen
cio II. Condenou as maquinagóes dos adeptos do antipapa Pier-
leone (Anacleto II) recém-falecido, assim como as idéias de
revolugáo religiosa e social disseminadas na península itálica
pelo demagogo Arnaldo de Bréscia.
11) Concilio do Latrao III (1179), durante o pontificado
de Alexandre m. Legislou principalmente sobre o modo de
eleger os Papas, estipulando a necessidade e suficiencia de
dois tersos dos votos dos Cardeais eleitores; com isto os
Padres conciliares visavam evitar a repetigáo de litigios e
cismas semelhantes aos que haviam sido anteriormente provo
cados pelo Imperador Frederico Barbarroxa e por antipapas.
12) Concilio do Latrao IV (1215), sob a presidencia do
Papa Inocencio m. Pelas doutrinas que formulou e as medidas
disciplinares que adotou, vem a ser um dos mais importantes
concilios da historia, realmente digno do grande Pontífice que
o orientou.
A assembléia repudiou os erros dos Cataros e Valdenses
(dualismo que considerava a materia má em si mesma) ;
reviu e precisou a legislacáo concernente aos impedimentos
matrimoniáis; impós a todos os fiéis a obrigagáo de confissáo
e comunháo anuais (a piedade crista, na época, apesar de sua
exuberancia, pouco se nutria dos sacramentos). Além do mais,
o concilio resolveu promover nova cruzada ao Oriente.
13) Concilio de Liao I, na Franca (1245), sob o Papa
Inocencio IV. Proferiu sentenca de deposigáo sobre o Impe
rador Frederico n, que se tornara usurpador dos bens e
opressor da liberdade da Igreja.
14) Concilio de Liao H (1274), sob o Pontífice Grego
rio X. Conseguiu a uniáo dos cristáos bizantinos, chefiados
pelo Imperador Miguel o Paleólogo, de Constantinopla, com a
Santa Igreja ; os orientáis reconheceram entáo a legitimidade
da partícula Filioque, outrora inserida no texto latino do
símbolo de fé (partícula mediante a qual se afirma que o
Espirito Santo procede do Pai e do Filho) ; professaram ou-

— 233 —
trossim o primado do Pontífice Romano. — A uniáo, porém,
foi efémera (cf. «P. R.» 10/1958, qu. 10 e 11).
15) Concilio de Viena, na Franga (1311/12), sob o pon
tificado de Clemente V. Afim de prover á paz e ao bem
comum, declarou extinta a Ordem dos' Cavaleiros Templarios
(cf. «P. R.» 16/1959, qu. 7) ; também repudiou certas cor-
rentes de mística errónea e sectaria (entre as quais, as dos
dulcinianos e begüinos).
16) Concilio de Constanca, na Germánia de entáo (1418).
É ecuménico em sua fase final. Reunido em 1414 durante o
Grande Cisma do Ocidente, sem a aquiescencia do Papa legí
timo Gregorio XII, em 1415 aceitou a autoridade legal que
éste Pontífice lhe conferiu; após a renuncia espontánea de
Gregorio XII, a assembléia procedeu em novembro de 1417 á
eleigáo de novo Papa : Martinho V. Após o conclave, as sessóes
sinodais continuaram a se realizar, já entáo sob a presidencia
do legítimo Sumo Pontífice, a fim de deliberar sobre assuntos
doutrinários e disciplinares (condenagáo das heresias de
Wyclif e Hus, saneamento de desordens acarretadas pelo
cisma anterior). Sao as últimas sessóes (da 42* á 45»), apoia-
das pela presenca e a colaboragáo do Papa Martinho V, bem
como ratificadas pelos Romanos Pontífices subseqüentes, que
constituem o concilio ecuménio de Constanga ; cf. «P R »
13/1959, qu. 9.
17) Concilio de Florenca, na Italia (1439/1445). Con
vocado pelo Papa Eugenio IV, em seus dois últimos anos teve
sede em Roma. Tratou nao sómente de questóes de disciplina
da Igreja, ainda abalada pelo cisma anterior, mas também da
volta dos orientáis dissidentes ao aprisco comum. Os bizan
tinos de fato se uniram mais urna vez a Roma, sendo nisto
imitados sucessivamente pelos armenios em 1439, pelos sirios
jacobitas (monofisitas) em 1442, pelos cristáos da Mesopo-
támia em 1444, pelos caldeus nestorianos e (como dizem varios
historiadores) pelos maronitas da ilha de Chipre em 1445.
18) Concilio do Latráo V (1512/1517), convocado pelo
Papa Julio II e continuado por seu sucessor Leáo X. Os Pa
dres sinodais se propunham como objetivo a reforma da dis
ciplina do clero e dos fiéis; mas o exiguo número de partici
pantes (cérea de cem prelados apenas, e quase todos da Ita
lia), assim como outras circunstancias, dificultaram a tarefa
do concilio. Éste, nao obstante, tomou algumas medidas re-
pressivas de abusos, e investiu contra teorías da época que
negavam a imortalidade da alma.
19) Concilio de Trento, na regiáo do Tirol (1545/1563).
Foi convocado pelo Papa Paulo III e aberto em Trento no

— 234 —
mes de dezémb'ro de 1545 ; após a sua 10* sessáo (margo de
1547), foi suspenso em virtude de difícil situagáo criada por
reivindicacóes do Imperador Carlos V. O Papa Julio m o
reabriu em Trento a 1* de maio de 1551; complicacóes,
porém, internacionais provocaram nova suspensáo do con
cilio a 28 de abril de 1552, após a 16» sessáo. Por fim, Pió IV
instalou de novo a assembléia, que passou a se reunir de j'a-
neiro de 1562 a dezembro de 1563 (da 17» á 25» sessáo).
O Concilio de Trento tornou-se famoso por suas declara-
góes dogmáticas opostas as inovagóes protestantes, assim
como por seus decretos disciplinares, .que acarretaram a ge-
nuína Reforma da Cristandade ; até hoje as sentengas e fór
mulas elaboradas em Trento sao assiduamente evocadas em
Teología e em Direito Eclesiástico.

Mais de trezentos anos decorreram a partir do concilio de Trento


sem que algum sínodo universal se tenha reunido. Nesses tres séculos
as grandes deliberagóes e atitudes da Santa Igreja eram tomadas
diretamente pelos Sumos Pontífices, cuja autoridade (táo antiga
quanto o Evangelho; cf. Mt 16,18s) se evidenciava cada vez mais
ao mundo cristáo. O próximo concilio ecuménico devia reunir-se
justamente para exprimir de .modo soiene essa consciéncia do primado
do sucessor de Pedro. "'

20) Concilio do Vaticano (1870). Inaugurado por Pió IX


aos 8 de dezembro de 1869, foi, em virtude da guerra franco-
-alema e da ocupagáo militar de Roma, suspenso aos 20 de
outubro de 1870. Até hoje nao está oficialmente encerrado...
Em quatro sessóes, muito trabalhosas e fecundas, promulgou
duas Constituigóes doutrinárias de vasto alcance : a primeira
comdenava os erros do materialismo e do racionalismo mo
dernos, ao passo que a segunda definia o primado e o magis
terio infalível do Pontífice Romano.

2. Breve reflexao

Levando-se em conta as circunstancias e o raio de alcance dos


diversos concilios ecuménicos, pode-se distribuir a serie até aqui
enunciada em tres grupos distintos, grupos cuja configuracjio é
assaz significativa para se apreender o rumo geral que a historia
da Igreja foi tomando no decorrer dos séculos :
. 1) Os oito primeiros concilios ecuménicos (desde o de Nicéia I,
325, até o de Constantinopla IV. 869/870) se realizaram no Oriente;
a maioria dos Padres sinodais se compunha de orientáis, sendo entáo
o Romano Pontífice representado por legados seus. As questoes
debatidas por tais assembléias eram problemas dogmáticos referentes
á SSma. Trindade, a Cristo e as imagens, problemas oriundos no
Oriente mesmo e alimentados em parte pela sutileza do genio e da
dialética bizantinos; tais questoes empolgavam nao sómente os
eclesiásticos, mas também os fiéis leigos, provocando agitacáo em
populagBes inteiras. Dai a participacao extraordinaria dos Imperadores

— 235 —
bizantinos na convocacáo e no andamento désses concilios, assim
como na promulgacjko e observancia de seus decretos. Passou-se,
porém, a época das tendencias cesaropapistas...
2) O nono concilio ecuménico já se reuniu após o cisma bizan
tino induzido por Miguel Cerulário em 1054; cérea de 250 anos (870-
-1123) haviam decorrido após o último sínodo universal, intervalo
éste que se explica pelo lato de já estarem entáo latentes na Cristan-
dade os gérmens do cisma iminente.
Do 1* Concilio do Latráo (1123) ao de Trento, ou seja, do 9*
ao 19' sínodo ecuménico, o cenário é ocidental; a maioria dos Padres
sinodais consta de bispos de rito latino; o Sumo Pontífice exerce
agáo soberana, convocando os membros conciliares, por vézes presi-
dindo pessoalmente as assembléias, de sorte que nao raro os decretos
conciliares tomaram a forma de ConstituicOes Pontificias redigidas
em nome do Papa, com a observacao «sacro approbante concilio (com
a aprovagáo do Sagrado Concilio)».

Contudo, dadas as boas relagóes vigentes entre a Igreja e muitos


principes seculares na Idade Media, estes eram convidados a assistir
ou a Inandar representantes seus aos Concilios, com direito a voto
consultivo e a honras especiáis. Assim no Concilio do Latrao II
estéve presente o rei Conrado II da Alemanha; no de Liao I
apareceram os reis Balduíno II, de Jerusalém, Sao Luís IX da
Franga, assim como legados de Frederico II da Alemanha; ao
Concilio de Viena compareceu o rei Filipé IV o Belo, da Franga, e
mandaram representantes os monarcas da Inglaterra e de AragSo;
ao Concilio de Florenca estéve presente o Imperador Joáo o Paleólogo
de Bizáncio; ao do Latrao V, o Imperador Maximiliano I da Alemanha.
O Concilio de Trento ainda manteve de certo modo essa praxe,
procurando satisfazei* na medida do possivel aos pedidos dos monar
cas católicos, mormente aos de Carlos V, Imperador da Alemanha.
Contudo essa tradigáo já entáo se comprovou pouco favorável aos
genuínos interésses da Cristandade, visto que a mentalidade dos
povos e de seus monarcas se ia laicizando progressivamente; o
próprio Carlos V, apesar de seu desejo de colaborar na restauracáo
católica, tornou-se urna das causas preponderantes do andamento
acidentado do Concilio de Trento.

3) Por fim, após trezentos anos de intervalo, o Concilio do


Vaticano constituí, sob certo aspecto, um terceiro tipo de concilio
na historia: pela primeira vez os principes católicos (outrora tutores
dos concilios) nao foram convidados a se fazer representar na
assembléia (era impossivel convidá-los, já que o rei da Italia estava
excomungado; na Austria, o govérno era anticlerical;' na América do
Sul, varios chefes de Estado estavam imbuidos de maconaria). Veri-
ficou-se mesmo que mais de um Chefe de govérno chegou a mani
festar reservas, antes que disposigdes amigáveis para com o grande
certame.
Aos 9 de outubro de 1869, por exemplo, o marqués de Banneville,
embaixador da Franga junto á Santa Sé, recomendava ao Santo Padre,
em tom cortés, que na realizagao do Concilio usasse de «excessiva
prudencia» para nao. agitar os povos e nao comprometer a liberdade
da Igreja; acrescentava que todos os governos do mundo haviam
adotado o ponto de vista francés.
Qual a posigáo do próximo concilio ecuménico nessa linha de
fatos?

— 236 —
AMIGO DA FRANQA (Río de Janeiro) :

3) «Qual o trámite observado na celebracao de um con


cilio ecuménico e qual a antoridade que a éste compete na
vida da Igreja ?»

A legislacáo da Igreja hoje em dia é muito explícita no tocante


aos concilios ecuménicos (cf. C. J. C. can. 222-229). Das disposigóes
que regem tais assembléias, podem-se destacar as seguintes :

1) Quem participa de um concilio ecuménico ?


a) Por direito divino e ordinario, devem ser chamados
a concilio universal todos os bispos (arcebispos, primazes, pa
triarcas) residenciáis, ou seja, dotados de jurisdigáo atual e
ordinaria em determinada diocese. Ésses prelados sao, sim, os
sucessores dos Apostólos que o Espirito Santo designou para
na hora presente constituirem a Igreja docente, depositaría de
infalibilidade doutrinária.

Ao lado dos bispos residenciáis, existem na Igreja bispos titulares.


Sao verdadeiros bispos, portadores da plenitude do sacramento da
Ordem, aos quais nao está confiado o govérno ordinario de urna
diocese; tal é o caso, por exeníplo, dos auxiliares de um bispo residen
cial (a diocese própria désses bispos é um bispado antigo do Oriente
ou da África, hoje ocupado por mugulmanos ou pagaos; tais bispos
trabalham entáo em diocese alheia como «auxiliares»). É natural e
conveniente — nao, porém, obrigatório — chamar ésses prelados a
concilio ecuménico; urna vez admitidos na assembléia, compete-lhes
voz deliberativa.
A historia dos oito primeiros concilios ensina que outrora, em
vista das dificuldades de correio e viagem, só se convocavam os
arcebispos metropolitas, os quais se encarregavam de levar ao sínodo
geral alguns de seus sufragáneos (cf. «P. R.s> 17/1959, qu. 7). Exigia-se
que ao menos cada um dos Patriarcados (Roma, Antioquia, Alexandria,
Jerusalém, Constantinopla) estivesse representado no concilio; dadas
as grandes distancias, o Patriarcado de Roma ou do Ocidente féz-se
representar nos oito primeiros concilios (celebrados todos no Oriente)
quase 'únicamente pelos legados do Patriarca de Roma ou do Papa.
Note-se, por exemplo, que o concilio de Calcedonia em 451 reuniu
a cifra extraordinaria de 630 participantes; déstes, porém, apenas
cinco eram ocidentais, sendo dois provenientes da África setentrional
e tres legados papáis, aos quais (fato muito significativo) íoi dada
a presidencia do concilio!

b) Pela legislagáo eclesiástica hoje vigente, sao igual


mente convocados a concilio, com direito de voto :
todos os Cardeais, ainda que nao possuam o caráter epis
copal (cf. «P. R.» 17/1959, qu. 7) ;
os Abades e Prelados «Nullius» que tenham jurisdicáo
ordinaria sobre determinado territorio;
os Abades presidentes ou Gerais de Congregagóes mo-
násticas ;

— 237 —
os Superiores Gerais das Ordens Religiosas.
Além désses membros efetivos do concilio, entende-se que
cértos teólogos e canonistas sejam admitidos, a título de con
sultores e relatores, a participar de sessóes da assembléia.
2) Quem tem o direito de convocar um concilio
ecuménico ?
Toca exclusivamente ao Sumo Pontífice o direito de reu
nir uní sínodo universal. Isto se compreende a duplo título:
a) todo concilio ecuménico é essencialmente urna assem
bléia que visa deliberar sobre assuntos religiosos. Ora no plano
da religiáo ninguém tem competencia para decidir auténtica
mente senáo a Igreja que Cristo instituiu, entregando-lhe o
depósito da Revelagáo Divina. E dentro da Igreja ninguém tem
autoridade para obrigar os bispos do mundo inteiro a se reunir
em época e lugar determinados a fim de deliberar sobre tais
e tais assuntos senáo o bispo a quem Jesús confiou a primazia
entre os demais bispos, isto é, o sucessor de S. Pedro ou o Papa.
Donde se segué que sómente o Papa tem o direito de convocar
um concilio ecuménico.
b) Os Padres conciliares exercem atos de autoridade so
bre a Cristandade inteira, tornando-se juízes, legisladores e
doutores para os fiéis de toda a Sta. Igreja. Ora, essa juris-
dicáo universal, nenhum bispo, exceto o de Roma, a tem de
per si; donde se segué que os Padres sinodais devem neces-
sáriamente receber do bispo de Roma os poderes que éles
exercem ñas reunióes do concilio. Por conseguinte é ao Ro
mano Pontífice, e sómente a éste, que toca convocar os Padres
conciliares, habilitando-os destarte a exercer suas fungóes
sinodais.

Verdade é que a convocacáo dos oito primeiros concilios ecumé


nicos foi íeita pelos Imperadores bizantinos. Tal fato, porém, nao
derroga á doutrina ácima. Com eíeito; num ou noutro caso documen
tos antigos atestam que os Imperadores procederam á convocagáo
ou por comissao do bispo de Roma ou com o consentimento déste.
Em todo e qualquer caso, porém, consta que as assembléias convo
cadas pelos monarcas civis só lograram a autoridade de concilios
ecuménicos quando o Papa lhes prestou sua adesáo ou participando,
por meio de legados, das sessdes e deliberacóes respectivas, ou
aprovando posteriormente as conclusóes dos Padres sinodais; sem
éste reconhecimento da parte do Papa, nenhuma assembléia antiga,
por mais concorrida e solene que íósse, foi considerada concilio
ecuménico.
Disso se deduz que a adesao do Sumo Pontífice a urna assembléia
previamente convocada pelo Imperador constituí o que se chama
a convocagáo formal do concilio, ao passo que a tarefa previamente
prestada pelo Imperador em tais casos equivale á convocacáo material
apenas, isto é. convocagáo da qual nao resulta um sinodo ecuménico
própriamente dito. — Entende-se que os Papas na antigüidade tenham
confiado ou ao menos deixado aos Imperadores a convocacáo dos

— 238 —
bispos a concilios; entende-se mesmo que os monarcas por iniciativa
própria tenham empreendido esta obra, pois sómente o Imperador
estava em condigóes de prestar tarefa que exigía ampia colaboracáo
dos exiguos servigos de correios, locomogáo e hospedagem da época.

3) Qual o protocolo observado ñas sessoes de um con


cilio ecuménico ? .

A presidencia autoritativa e efetiva da assembléia com


pete exclusivamente áo Pontífice Romano ; se só éste tem o
direito de convocar os Padres sinodais, comunicando-lhes algo
de sua suprema autoridade, só ele tem também a faculdade
de governar os debates respectivos ; o Sumo Pontífice pode
exercer éste seu direito pessoalmente (como Pió IX no con
cilio do Vaticano) ou por delegados (caso mais freqüente na
historia). Os imperadores bizantinos ocuparam nos oito pri-
meiros concilios ecuménicos a presidencia de honra ou a pre
sidencia de protecao, fungóes estas que nao implicavam Ínter-
veneno nos debates e ñas resolugóes da assembléia.

É, por conseguinte, o Sumo Pontífice quem propóe as questóes


a ser estudadas pelos Padres conciliares, íicando aos bispos o direito
de apresentar outros tema?''previamente aprovados pelo Papa. Nos
debates, cada um dos membros sinodais goza de plena liberdade de
se manifestar; encerrada a discussáo do tema, procede-se á votagáo.

As votagóes realizadas em concilio ecuménico nao sao


necessáriamente decididas por maioria numérica de sufragios
(dois tergos ou a metade mais um ou cifra semelhante). Dá-se
grande atengáo, sem dúvida, á sentenga da maioria dos vo
tantes ; pode-se presumir que essa sentenga prevaleca habi-
tualmente como definicáo conciliar. Contudo tal criterio admite
excegóes. O que em todo e qualquer caso prepondera, é o alvi-
tre da parte mais sabia (pars sanior), parte caracterizada
pelo sufragio e o apóio do Sumo Pontífice. Éste, por sua re-
provagáo, pode destituir de todo vigor urna decisáo votada
pela maioria dos membros da assembléia, e, vice-versa, apro-
vando e promulgando o alvitre da minoría, pode comunicar a
éste a autoridade de lei universal.

Isto equivale a dizer que urna decisáo conciliar jamáis pode


entrar em vigor se o Romano Pontífice nao a aprova;- tal aprovagáo
nao lhe é meramente acidental, mas essencial, como a cabega nao é
acidental, mas essencial, para a vida do corpo. A aprovagáo papal
pode ser concedida antecedentemente ao concilio (caso, por exemplo,
o Papa confie instrugóes e poderes a legados seus) ou concomitante-
mente (dado que o Papa assista pessoalmente & assembléia) ou
posteriormente (se o Sumo Pontífice houver por berri ratificar reso-
lugSes tomadas sem a sua participagáo).

— 239 —
A respeito do número de participantes necessário para
que um concilio possa ser tido como ecuménico, nada há de
estipulado nem na praxe nem na legislagáo da Igreja. É certo
que nao se requer a presenga material de todos os bispos do
mundo, pois isto seria moralmente impossível; nem se exige
o comparecimento da maioria absoluta (equivalente á quase
totalidade) dos prelados. Basta, ao contrario, que o número
de bispos reunidos represente a parte mais sabia e significativa
(pars sanior) do episcopado. Ora isto se verifica desde que
os Padres sinodais estejam unidos ao Romano Pontífice e (con-
digáo nao menos importante) éste os reconhega como mem-
bros integrantes de um concilio ecuménico.
Sem tal reconhecimento do Papa, nao há assembléia episcopal
(por mais vultuosa que seja) que merega o título de sínodo universal.
Apontam-se mesmo casos em que o Sumo Pontífice desautorou
decisivamente vultuosas assembléias de bispos que se arrogavam as
íacuidades de sínodo ecuménico: o Papa Sao Leáo Magno, por
exemplo, tornou váo o pseudo-concilio de Éfeso (chamado «latrocinio
efésio») que, reunido em 449 com foros de sínodo universal e auto-
ridade do Imperador, visava impor á Cristandade a heresia mono-
íisita; o Papa Estéváo III em 769 condenou o conciliábulo de Constan-
tinopla reunido em 754 e integrado por 338 bispos iconoclastas, que
o Imperador Constantino Coprónimo subjugava moralmente; os Papas
Julio II (1503-13) e Leáo X (1513-21) anularam as resolugñes do
concilio de Pisa, que, íreqüentado por diversos Cardeais, nutria pre-
tensóes de sínodo ecuménico.

4) Qual a autoriúade de um concilio ecuménico ?


Pode-se dizer que o concilio ecuménico goza da autori-
dade máxima e mais solene possível dentro da Igreja, pois
está habilitado a proferir fórmulas infalíveis em materia de
fé e costumes (note-se bem o ámbito próprio dessa infalibili-
dade conciliar ; nao abrange assuntos de ciencia profana).
É preciso, porém, frisar que a autoridade de concilio nao
se justapóe á do Papa, mas, ao contrario, supóe-na e déla
depende. A autoridade que um concilio exerce, quando devida-
mente unido ao Sumo Pontífice, éste a pode exercer a sos
desde que intencione falar ex cathedra, isto é, qual mestre
da Igreja universal em assuntos de fé e de moral. É, antes,
por estensáo da autoridade papal que o concilio ecuménico
possui sua autoridade. Os poderes legislativos de um sinodo
universal só comecam a existir desde que o Papa os queira
suscitar, convocando os Padres conciliares ; só se estende aos
objetos que o Sumo Pontífice deseje propor á assembléia e só
dura o tempo que o mesmo Pontífice lhe queira assinalar
(quando morre o Papa durante a celebragáo de um concilio,
sao imediatamente suspensas as atividades déste, até que o
respectivo sucessor as queira oficialmente reencetar).

_ 240 —
Errónea, portento, é a chamada «teoría conciliarista», posta em
voga nos séc. XIV/XV, a qual apregoava a supremacía do concilio
sobre o Papa e a possibilidade de se apelar para um sínodo universal
contra alguma sentenca do Sumo Pontífice. O conciliarismo oriundo
por ocasiáo do cisma ocidental, foi formulado, á guisa de definicjio
dogmática, pelos Padres sinodais reunidos ñas sess5es 3» e 5* do
concilio de Constanca (marco e abril de 1415); apesar de tudo, nao
se p6de impor á cohsciéncia da Cristandade; os teólogos e canonistas,
assim como os concilios e Papas posteriores, rejeitaram repetidamente
tal concepcáo. Nos séc. XVII e XVIII a Declaracao Galicana de
1682, sob o rei Luís XIV da Franca, assim como o famoso sínodo
de Pistoia na Toscana (1786), reafirmaran! o conciliarismo; em váo,
porém. Pió VI em 1794, interpretando o senso comum dos fiéis, repeliu
como herética a proposicao que asseverava ser «o Pontífice Romano
o Chefe ministerial da Igreja», teto é, o chefe comissionado portador
de autoridade a ele delegada pela coletividade dos cristao's. Após a
definigáo do primado papal no concilio do Vaticano (1870), tornou-se
mais do que nunca evidente a inconsistencia do conciliarismo. Apenas
se deve dizer que a autoridade de um concilio ecuménico, embora nao
seja superior á do Papa, pode por vézes gozar de mais prestigio e
de acáo mais eficaz junto aos fiéis e ao mundo nao católico, em
virtude do número e das qualidades pessoais dos prelados que inte-
gram urna tal assembléia.

É precisamente éste fato que justifica a oportunidade de


se convocar, em determinadas circunstancias da historia, um
concilio ecuménico. Com efeito, foi geralmente em fases tur
bulentas da vida da Igreja que se reuniram os bispos do mundo
inteiro a fim de proferir mais solenemente a palavra da Ver
dade e da Vida ; conseguiram desta forma levar a termo defi
nitivo controversias que se protraíam durante decenios. Os
concilios ecuménicos, por conseguinte, sempre foram suscita
dos por situagóes extraordinarias da Cristandade. Ora os tem-
pos presentes, táo imbuidos de ateísmo e ceticismo, táo casti
gados pela ruina material e a lassidáo das mentes, parecem
constituir urna dessas fases particularmente arduas da his
toria ; torna-se assim muito oportuna, nos dias atuais, a con-
vocagáo de um concilio que Iembre aos homens de modo mais
marcante as verdades atinentes a Cristo e á Igreja, ou seja,
á salvagáo eterna.

De quanto acaba de ser dito, ainda se depreende nao ser neces-


sário que todos os dogmas de fé tenham sido no passado ou venham
a ser no futuro definidos por algum sínodo universal. Tomariam,
pois, atitude pouco condizente com a praxe da Igreja os católicos
que pleiteassem a definicáo solene, por parte de um concilio ecumé
nico, de urna verdade de fé pacificamente proíessada pela Cristandade.
Para prover, em circunstancias normáis, ás necessidades de seu
magisterio, a Igreja possui o testemunho dos bispos espalhados pelo
orbe e postos em comunhSo com o Romano Pontífice (desde que
unánime, éste testemunho é auténtico órgáo da verdade).

O concilio de Constanca, em sua 39* sessáo (ainda nao ecuménica),


decretou que os futuros Papas deveriam de dez em d

— 241 —
sínodos universais... Váo era tal decreto; os Papas nao estao obriga-
dos a aceitar determinacdes de concilios, pois o seu poder lhes vem
diretamente do Divino Fundador da Igreja e nao é sujeito ao controle
de algum intermediario. De resto, em breve evidenciou-se que pouco
acertada era a decisáo dos Padres de Constanca — o que explica que
ela nunca tenha entrado em vigor.

IH. SAGRADA ESCRITURA

BENEDITA (Sorocaba) :

4) «Dada a moderna mudanca da exegese dos primeiros


capítulos do Génesis (1-11), reina confusáo entre catequistas
e apologistas sobre a maneira de propor o conteúdo désses
textos (a doutrina da criacáo, do primeiro pecado, etc.) em
aulas e conferencias.
Nao se poderiam indicar algumas normas a propósito?»
Nao há dúvida, grande é a coníusáo no setor apontado, porque,
enquanto alguns fiéis católicos, váo abracando novas explicacSes de
Gen 1-11, outros, receando racionalismo, se fecham na interpretagáo
antiga, simplesmente literal...
Procuremos estabelecer ordem no assunto, fixando alguns prin
cipios :

1) Tenha o leitor consciéncia de que o que levou os


exegetas católicos a remodelar a interpretagáo de Gen 1-11,
abandonando cá e lá o sentido literal para adotar o sentido
figurado, nao é de modo nenhum o médo de admitir milagres
ou a tendencia a se adaptarem á mentalidade racionalista de
nossa época. A mudanga se deve a um criterio nao filosófico,
mas filológico e literario (único criterio que possa e deva
realmente ser aplicado no caso) ; com efeito, descobriram-se,
a partir do sáculo passado, no Oriente documentos profanos
contemporáneos aos primeiros escritores bíblicos (séc. XIH
a. C.), documentos que projetaram luz sobre o texto da Biblia,
dando a ver que certas expressóes, até os últimos tempos
entendidas ao pé da letra, nao tém na verdade o significado
que os antigos lhes atribuiam, mas sao auténticas figuras de
linguagem, comuns entre os orientáis anteriores a Cristo ;
tornou-se entáo necessário aos exegetas reformar as interpre-
tacóes clássicas, deixando de afirmar certas proposigóes
usuais na Idade Media.

Entre outras descobertas notáveis, está a do ampio emprégo


simbolista das cifras; estas, na mentalidade antiga, indicavam fre-
qüentemente qualidades, verdades filosóficas, e nao quantidades ou
verdades das ciencias naturais. Conscientes disto, os exegetas abando-
naram o sentido realista ou matemático atribuido á «longevidades de
Adáo, Matusalém, etc. em Gen 5 e 11; os comentadores desistiram

— 242 —
de dizer em nome da Biblia que o género humano sobre a térra
tem 4 ou 5 mil anos apenas (cí. «P. R.» 17/1959, qu. 5); positiva
mente aíirmam que os Patriarcas bíblicos, tendo vivido x anos em
época x (há centenas de milenios atrás), sao apresentados pela Biblia
como figuras veneráveis e fidedignas testemunhas da tradicao religiosa.

Se, de um lado, o exegeta católico nao é movido pelo médo


dos milagres ou pela tendencia a se acomodar á mentalidade
racionalista de nossos dias, ele, de outro lado, nao se deve
deixar sugestionar pelo desejo de encontrar na Escritura pro-
posicóes de fé ou de mística preconcebidas, ... de encontrar
tais e tais cenas edificantes ou tais e tais manifestagóes re
tumbantes da Onipoténcia Divina.

Em urna palavra : nem o racionalismo nem a mística preconcebidos


sao criterio de exegese. Nao a filosofía, mas a lingüistica usada com
objetividade tem fornecido ao comentador católico as chaves para
penetrar no texto sagrado e interpretá-lo de maneira nova. A Biblia
é um documento literario cuja face visível há de ser analisada com
os instrumentos de análise de qualquer peca literaria; sómente após
o exame filológico do texto sagrado será lícito recorrer á filosofía
e á mística para se penetrar cabalmente a mensagem escriturística.

2) Se nos primeirps capítulos do Génesis há varias me


táforas, vé-se que o mestre de Religiáo nao pode limitar sua
tarcfa a narrar simplesmente o que se le no texto sagrado (há
quem julgue — erradamente — fazer obra especialmente me
ritoria, acentuando os pormenores da letra da narrativa bíblica,
a fim de mais excitar a fantasía dos ouvintes e tornar a ex-
planacáo mais «interessante»). Será absolutamente necessário,
após breve relato da narrativa bíblica, explicar o sentido ou
a mensagem doutrinária da respectiva passagem e de suas
metáforas; o mestre deverá inculcar bem aos discípulos que
essa mensagem do texto é coisa muito mais importante do
que a sua roupagem literaria.
Frisemo-lo : faz-se mister expor com muita objetividade (evitando
excitar a imaginacáo) a face externa do texto bíblico e sem demora
dizer que tal e tal expressáo contingente se encontra no texto para
significar tal e tal verdade religiosa perene; assim evitar-se-á que
o discípulo se deixe absorver por questñes que nao merecem grande
atencáo: de que tipo era a fruta proibida (maca, figo)? Como se explica
que a serpente tenha podido comunicar-se com a mulher no paraíso?
Quais as teorías científicas que habilitaram o autor sagrado a dizer
que a luz teve origem antes dos astros? Em que parte do globo
(Asia, África, América...) ficava o paraíso terrestre? Quantos nao
f azem dessas questóes o grande objeto de suas preocupares, ignoran
do que nao era ésse em absoluto c tema de ensinamento visado pelo
autor sagrado! Erróneo seria o método catequético que deixasse o
discípulo ficar preso a perguntas táo alheias ás preocupares do
hagiógrafo.

_ 243 —
3) Há quem queira evitar tal desvio de atengáo do dis
cípulo, propondo que nao se Ihe relatem os elementos meta
fóricos contidos em Gen 1-11, mas se aprésente direta e táo
sómente a doutrina religiosa veiculada por tais figuras. A
solugáo, porém, nao parece de bom alvitre. Equivaleria a um
menosprézo da Palavra de Deus tal como ela quis apresen-
tar-se a nos, em sua face humana e literaria ; ademáis ésse.
silencio poderia provocar grave problema quando mais tarde
o discípulo viesse a verificar que a Biblia emprega linguagem
táo diferente da linguagem técnica usada por seu mestre.
Sendo assim, é de desejar que éste nao deixe de apresentar
diretamente o texto bíblico ; faga-o, porém, após esta cláusula
introdutória :

«Assim falava, no século XIII a. C, um chefe de beduinos (Moisés)


a seus súditos (os filhos de Israel), quando após urna jornada de cami-
nhada pelo deserto se reuniam em ser5es para evocar as tradicóes
patrias, que deviam alimentar a coragem do povo peregrino.
Os filhos de Israel propunham a Moisés as questfies capitais que
afloram a todo espirito humano: 'Donde vimos nos, os mortais? Para
onde vamos? Qual a sorte futura que nos aguarda?... E éste mundo
que nos cerca, que significado e valor tem? Merecerá ser cultuado e
adorado á guisa de Deus?... E o mal, o sofrimento como entraram no
mundo? Seráo efeitos de um principio mau eterno?... ou algo de contin
gente?... E qual a garantía do éxito de nossa travessia no deserto?
Qual a missáo de Israel na historia do mundo?'».

Posto éste quadro, o mestre de Religiáo poderá tranqui


lamente relatar ou ler o que a Biblia Sagrada apresenta; o
discípulo estará habilitado a compreender que se trata de um
modo de falar de época e ambiente bem diferentes dos nos-
sos ; estará habilitado a compreender que Moisés só podia
recorrer ás concepgóes simples de seus rudes ouvintes para
ensinar, nao astronomía nem geología ou biología, mas ver
dades filosóficas e religiosas de valor perene. Em conseqüéncia,
ou o aluno se sentirá impelido, após o relato ou a leitura bí
blica, a pedir ao professor que Ihe explique em linguagem do
séc. XX o significado do episodio escriturístico ; ou, caso o
discípulo nao formule espontáneamente tal pedido, o profes
sor, ao menos, estará em condigóes de o fazer (deverá, alias,
em qualquer caso fazé-lo) sem que, com isto, dé a impressáo
de se estar contradizendo ou de estar contradizendo á Biblia.
A transigáo do aparato literario para a mensagem perene será
orgánica, pois terá sido preparada desde o inicio da prelegáo.
4) Na catequese de criangas, nao seria lícito separar
estas duas etapas do ensinamento (apresentagáo da face ex
terna e contingente do texto, explanagáo de sua mensagem
perene), protelando-se para anos posteriores o ensinamento

— 244 —
propnamente religioso ou teológico, sob pretexto de que a
cnanga, em sua mentalidade infantil, se deleita simplesmente
com as metáforas bíblicas. «Mais tarde, quando as dúvidas sur-
girem, poderia pensar o catequista, dir-se-á ao adolescente
que tais metáforas nao sao a última palavra da Biblia, mas
que tém de ser entendidas em sentido superior».
Falso seria ésse método, pois muitas pessoas ficam ape
nas com um ensinamento rudimentar de Religiáo, nao fre-
qüentando o segundo ou o terceiro ano de catecismo. Além
disto, dado que o adolescente volte mais tarde ao professor
de Religiáo e lhe aprésente suas dúvidas, pode acontecer que
o ensinamento superior ou a interpretagáo auténtica da Biblia
já nao encontrem acolhimento no jovem ; pareceráo talvez
um «arranjo» postigo ou urna «saída» imaginada na hora pelo
mestre. Em geral, o discípulo tende a conservar as primeiras
impressóes de Religiáo que o catequista lhe comunica ñas
aulas iniciáis ; a Religiáo, por conseguinte, apresentada em
termos puramente infantis, poderá parecer a muitos, por todo
o resto da vida, ser algo de infantil e bagagem inútil na idade
varonil.

Muito sabias sao as advertencias de experimentado pedagogo trans


critas abaixo ¡
«Desde os primeiros ensinamentos de historia sagrada, evitar-se-á
suscitar idéias e concepcóes falsas concernentes a ésses textos. Com
efeito, já está preparando para o futuro um abalo da confianca
na veracidade da Sagrada Escritura o mestre que incute inicialmente
urna especie de fé macica em todos os pormenores extrínsecos do
texto sagrado, prestes a remover mais tarde as dúvidas que necessá-
riamente se levantaráo na mente do aluno, dizendo-lhe entao:
'Isso significa coisa muito diferente". Tais explicacóes vém tarde
(lemais quando elas só vém como respostas a objecSes. É claro, no
primeiro contato dos jovens com o Antigo Testamento, nao nos é
possível introduzí-los simultáneamente em todas as questoes minu
ciosas, mas é preciso, desde o inicio, que demos urna concepcáo do
Antigo Testamento... capaz de se adaptar e desenvolver, concepgáo
que posteriormente se enriquecerá gracas a observagdes ocasionáis
e mediante estudo aprofundado dos principáis problemas» (H. Junker,
citado por C. Hauret, Origines. Paris 1952, 205).

5) Ainda em se tratando da catequese de criangas ou de


adultos de cultura simples, está claro que o mestre de Religiáo
deverá evitar encher a mente de seus ouvintes com as diver
sas sentengas discutidas ñas escolas dos eruditos ; tal lastro
científico só faria gerar confusáo nos discípulos. O mestre
deverá pessoalmente, sim, estar a par (na medida do possível)
das diversas interpretagóes de que é suscetível o texto expli
cado ; deverá também conhecer os rumos da exegese católica
contemporánea, a fim de poder discernir o valor das varias
sentengas. De posse désses conhecimentos, procurará apresen-

— 245 —
tar a seus discípulos urna explicagáo do texto sobria, tal, po-
rém, que possa mais tarde ser orgánicamente desenvolvida
pelo raciocinio do adulto. Assim o ensinamento se fará pro-
gressiva e homogéneamente. É melhor ensinar a principio
poucas proposicóes, mas proposigóes que nao precisem de ser
retocadas mais tarde, do que transmitir as criancas muitas
coisas, coisas que no momento satisfazem á imaginacáo do
pequenino, mas em idade posterior se tornam um fardo que
sufoca a mente e deve ser removido.

De modo geral, o mestre de Religiáo abster-se-á de impor a seus


discípulos determinada interpretagáo (o fixismo, por exemplo, ou
alguma modalidade de evolucionismo) como se lósse a única autén
tica, nos casos em que a Santa Igreja reconhece a legitimidade de
outras interpretares. Nao queira o professor de Religiáo ou o
apologista, por seu modo de falar direto ou indireto, tolher a liberdade
de escolha que seus discípulos ou no momento ou mais tarde háo de
querer exercer, desde que a Sta. Igreja mesma nao tolha essa liberdade
(erróneo, por exemplo, seria pretender impor ou o fixismo ou- deter
minada teoria evolucionista; pois que nada se encontra a respeito
na Biblia e a Sta. Igreja nao repudia o evolucionismo aplicado ao
corpo humano).

5) «Gomo explicar, em particular, a narrativa da queda


dos primeiros país (Génesis 3) ? A fruta proibida era reali-
dade ou símbolo ? A serpente falava e tinha patas no
paraíso ?»

1. Previa observacáo

A narrativa da queda dos primeiros pais (Gen 3) pertence ao


bloco literario de Gen 1-11, que a Pontiiicia Comissáo Bíblica classiíica
de historia «sui generis», isto é, narrativa que, de um lado, nao é
mito nem lenda, mas, de outro lado, nao cai sob as categorías da
historiografía clássica :
«O problema das formas literarias dos onze primeiros capítulos
do Génesis é muito... obscuro e intrincado. Estas formas literarias
nao corresponden! a alguma das categorías clássicas e nao podem
ser julgadas segundo os géneros literarios greco-latinos ou modernos.
Nao se lhes pode portanto negar ou afirmar a historicidade em bloco
sem lhes aplicar indevidamente as normas de um género literario
sob o qual nao podem ser classificadas. Podemos concordar em que
ésses capítulos nao íormam urna historia no sentido clássico e moder
no; mas é preciso confessar também que os atuais dados científicos
nao permitem dar solugáo positiva a todos os problemas que éles
suscitam...
Proclamar de antemao que tais narrativas nao sao históricas no
sentido moderno da palavra induziria fácilmente a se acreditar que
elas nao o sao em nenhum sentido, quando na realidade relatam
as verdades fundamentáis pressupostas á dispensacáo da salvacáo,
em linguagem simples e figurada, adaptada as inteligencias de urna
humanidade pouco desenvolvida, juntamente com a descrigáo popular
da origem do género humano e do povo escolhido» (carta ao Cardeal
Suhard. 16 de Janeiro de 1948, AAS 40, 46s).

— 246 —
A declaragáo ácima, assim como criteriosos estudos de exegese,
levam os comentadores a afirmar que no relato da queda dos primei-
ros país um núcleo histórico é apresentado revestido de elementos
artificiosos que o autor sagrado tomou de empréstimo ao ambiente
em que vivia, ou seja, á literatura e ao expressionismo dos antigos
orientáis. Esta verificacáo permite-nos concluir que nem todos os
pormenores do texto poderáo ser elucidados com igual clareza pelo
exegeta moderno; éste e, conseqüentemente, o catequista teráo que
ser, por vézes, sobrios ñas suas explicares para nao se arriscar a
cometer erros doutrinários.
Feita esta advertencia, passemos á explanado do texto de Gen 3.

2. Como explicar...

Urna leitura atenta de Gen 3 dá logo a ver que o autor


sagrado visava formular a sua resposta ou a resposta de Deus
a urna das questóes mais graves de toda a Filosofía : qual a
origem e qual o significado do mal neste mundo ? Para ex
planar o problema, o autor sagrado, em estilo literario muito
simples, percorreu as seguintes etapas :
1) Deus quis que os primeiros homens (Adáo e Eva)
gozassem de equilibrio,; moral e felicidade perfeita. — Para
dizé-lo, o hagiógrafo refere que o Criador colocou o primeiro
casal no paraíso terrestre, isto é, num lugar cuja descrigáo
evoca certamente bem-estar e harmonía. Nao se pergunte
onde ficava o paraíso terrestre, pois esta questáo de geo
grafía estava fora das cogitagóes do autor ; retenha-se ape
nas que Adáo e Eva inicialmehte usufruiam de toda a cola-
boracáo e da felicidade que a natureza e a graga podem pro
porcionar ; cf. «P. R.» 3/1958, qu. 7.

2) Para designar o dom da vida, ou melhor, o «poder nao


morrer» de que estavam dotados os primeiros pais, o hagiógrafo
menciona em particular a existencia, no paraíso, de urna árvore
misteriosa dita «a árvore da vida». Terá sido árvore real, cujos
frutos eram como que o sacramental da imortalidade? Ou tratar-se-á
de imagem literaria? É coisa que os exegetas discutem;... nao era
raro na literatura antiga falar-se de árvores simbólicas para designar
os dons da Divindade aos homens; por conseguinte, pode-se admitir
que o hagiógrafo tenha recorrido a ésse tópico de estilística. — Como
quer que seja, independentemente da sua realidade histórica ou nao,
a «árvore da vida» em Gen 2,9 é mencionada para dizer ao leitor que
Adáo e Eva gozavam da íaculdade de nao morrer.

3) A felicidade inicial tendo sido outorgada a seres inte


ligentes e livres como eram os homens, Deus quis que estes
reconhecessem e dessem seu livre consentimento ao dom do
Criador. Por isto houve por bem apresentar-lhes um preceito
determinado, ao qual o primeiro casal devia dizer o seu «sim»;
ésse preceito daría ensejo a que o homem afírmasse sua ade-

— 247 —
sao incondicional a todo o plano de Deus ; assim servindo ao
Criador, os primeiros pais reinariam, isto é, seriam confirma
dos definitivamente na posse da felicidade paradisíaca. Caso,
porém, nao obedecessem ao referido preceito, isto é, nao acei-
tassem o plano de Deus, o Senhor nao os forgaria, mas dei-
xá-los-ia incorrer na miseria e na morte conseqüentes do
afastamento da Vida e da Bem-aventuranga.

Para significar éste procedimento de Deus, a Biblia narra


que o Criador plantou no paraíso a «árvore da ciencia do bem
e do mal» e proibiu, sob pena de morte, que os primeiros pais
comessem de seus frutos. — Que tipo de árvore era ésse? É
possível que Deus tenha desejado impor ao homem a absti
nencia de um fruto real. De outro lado, nada impede que se
atribua á expressáo «árvore da ciencia...» sentido meramente
metafórico (como diziamos sob o n« 2, a literatura religiosa
antiga nao raro usava o termo «árvore» em acepgáo figu
rada); neste caso, ficar-nos-ia desconhecida a materia do
mandamento. Em toda e qualquer hipótese, porém, o que
importava a Deus nao era o objeto (fruta ou outra coisa) assi-
nalado pelo preceito, mas, sim, a entrega total da personali-
dade que o homem exerceria ao obedecer (ninguém julgará
que o Senhor se comprouve em brincar ou «judiar» com a
sua criatura, impondo-lhe restrigóes mesquinhas ou preparan-
do-lhe armadilhas na vida).

Urna sentenca antiga entende o preceito paradisiaco como se


fóra a proibicao do ato conjugal; por conseguinte, Adáo e Eva teriam
pecado por um ato luxurioso. Tal interpretacáo, porém, carece de
fundamento suficiente no texto (cf. «P. R.» 3/1957, qu. 9); seus
fautores pleiteiam tal transposicáo de versículos e táo alegórico uso
de vocábulos que já nao merecem audiencia.

Quanto ao titulo da árvore misteriosa («árvore da ciencia do


bem e do mal»), ele significa nao os frutos (maca, figo...) de um
vegetal, mas os efeitos que para o homem decorreriam do uso do
objeto assinalado: por éste objeto os primeiros pais ficariam tendo
um conhecimento pleno, experimental, e nao apenas teórico, daquilo
que é o bem (a virtude, a obediencia) e o mal (o pecado, a deso
bediencia).

Mais nada se poderia dizer com seguranza sobre tais questóes.


O mestre de Religiáo, portanto, nao insistirá na realidade da árvore
e de seu fruto nem em algum objeto preciso ao qual Deus tenha
dado «estranho aprego», vedando-o ao uso do homem; ao contrario,
chamará a atengáo dos discipulos primordialmente para o fato de
que Deus no paraíso quis suscitar a consciente e livre adesáo do
homem ao seu Autor, livre adesáo que faria justamente a grandeza
do homem, distanciando-o dos irracionais e autdmatos.

— 248 —
4) Colocados diante do preceito divino, os primeiros pais
foram interpelados por outra criatura, ou seja, pelo demonio.

E quem era o demonio? — Deus, antes de fazer o homem, criou


espíritus nao unidos á materia, ou anjos; estes, solicitados pelo
Criador á semelhanca do homem, em parte abusaram do seu livre
arbitrio, recusando servir aos designios de Deus; tornaram-se entao
endurecidos no mal e sequiosos de atrair outras criaturas á rebeldía
contra seu Autor. Tais sao os anjos maus ou demonios, cuja existencia
é atestada nao sámente pela Biblia, mas também pelas narrativas
religiosas de varios povos antigos (a crenca no demonio parece
pertencer ao patrimonio ideológico de todo o género humano); cf. a
documentacao em «Ciencia e Fé na historia dos primordios» (ed.
AGIR) cap. VIII.

O Todo-poderoso em sua sabedoria concede aos anjos maus


certa liberdade de acáo, a qual direta ou indiretamente deve
concorrer para o bem do homem. Aproximou-se, pois, de Eva
o demonio para a tentar. — O autor sagrado apresenta o es
pirito mau sob a forma de serpente. Neste ponto, o mestre de
Religiáo deve incutir ao discipulo que o que importa nao é a
alusáo á serpente, mas a presenga do anjo mau junto a Eva.
A serpente mencionadar.no texto pode ter sido um animal
real do qual o tentador se terá servido, fazendo que por suas
atitudes (nao por sua fala) sugerisse á mulher a rebeldía
contra Deus. Pode também ter significado meramente alegó
rico, pois a serpente simboliza ótimamente a hipocrisia e a
dissimulacáo ; ademáis era freqüentemente emblema dos fal
sos deuses ñas religióes pagas ; por estes motivos o autor bí
blico pode ter concebido a idéia de apresentar o tentador sob
a forma de serpente ; tratar-se-ia entáo de serpente mera
mente literaria, nao real.

Sendo aceitáveis urna e outra destas duas interpretagSes, é mister


nao insistir junto aos discípulos sobre a realidade da serpente, nem
deve o catequista descrever o animal «a alongar o pescoco para
entrar em conversa com Eva» nem tentar explicar «como é que a
mulher nao tinha médo junto a tao grande animal»!... Essas expla-
nac6es so íariam acumular bagagem inútil na mente do ouvinte,
desviando-lhe a atengáo da mensagem central do texto.

O Maligno nao podia sugerir um pecado da carne, pois


esta estava inteiramente subordinada ao espirito; era pre
ciso, sim, agredir diretamente o espirito do homem ; ora o
pecado do espirito é a soberba. Por isto o tentador propós aos
primeiros pais, adquirissem a semelhanga com Deus indepen-
dentemente de Deus, ou seja, rejeitando o plano concebido
pelo Criador «invejoso». A sugestáo foi suficiente para desen-
cadear o orgulho no casal; éste orgulho se exerceu no ato

— 249 —
de desobediencia ao preceito formulado pelo Senhor, tendo
por objeto u'a materia x (consumo de um fruto ou algo de
semelhante?). É o que em esquema assim se reproduz :

orgulho > desobediencia ——> objeto que nao estamos


habilitados a definir.

Diante déste quadro, será preciso sublinhar bem perante os


discípulos que a desobediencia dos primeiros pais nao significava
apenas transgressáo de urna ordem acidental do Senhor, mas equivalía
á recusa de entregar a personalidade humana ao seu Autor ou, em
termos positivos, equivalía ao endeusamento da criatura praticado
por individuos plenamente concientes do que faziam (os primeiros
pais gozavam de ciencia infusa, com a qual nao lhes era possivel
enganar-se neste ponto). É désse caráter de totalidade que decorre
a gravidade do ato cometido por Ad&o e Eva.

6) Deus é bom ; mas também é justo. Por isto nao pode


deixar de reprimir os abusos e punir. Quando pune, porém,
nao «inventa» castigos; apenas permite que as leis da natu-
reza se exergam até as últimas conseqüencias.

Foi o que se deu no caso dos primeiros pais. Estes, ten-


do-se afastado do Senhor, que é Bem-aventuranga e Vida, só
podiam doravante experimentar desgraga e morte. É esta
futura sorte dos pecadores que o autor sagrado propóe, colo
cando nos labios de Deus a sentenga condenatoria sobre
os réus:

a) O varáo é atingido no seu papel característico de


trabalhador e chefe de familia. Estas fungóes lhe seráo peno
sas ; o ganha-páo lhe custará arduas fadigas, pois a natureza
e os elementos nao colaboraráo com o homem, mas se revol-
taráo contra éste, como éste se revoltou contra Deus. Por
fim a morte pora termo á dura existencia da criatura sobre
a térra.

b) A mulher é visada em sua qualidade tipica de esposa


e máe : dará a luz em meio as dores e estará sujeita ao do
minio do marido.

Estes dizeres simples do Génesis tém significado profundo, pois


exprimem a resposta, a única resposta auténtica, ao problema da
existencia do mal no mundo. Em linguagem de escola, poderiamos
formulá-la distinguindo entre mal físico e mal moral nos seguintes
termos:

o mal físico (dores, doenga e morte) é conseqüéncia do mal


moral (pecado);
o mal moral, por sua vez, é obra da livre vontade do homem.

— 250 —
Em última análise. o livre arbitrio da criatura, abusando dos
dons de Deus, vem a ser o responsável por toda a desgraca moral
e física existente sobre a térra. Nao fóra o abuso da liberdade ou
o pecado, e o homem nao soíreria miserias nesta vida («Deus nao
fez a morte, nem se alegra pela perda dos vivos», diz o livro da
Sabedoria 1,13).

Entende-se bem o processo delineado:

o espirito soberbo do homem revoltou-se contra o Criador;

em conseqüéncia, as facilidades corpóreas do individuo, que


estavam ¡mediatamente sujeitas ao espirito, por sua vez se insubor-
dinaram contra o espirito, sonegando-lhe colaboracáo; instalaram-se
entáo desordem, indisciplina, dor, doenga e morte dentro do rei da
criagáo, já que éste havia introduzido desordem ñas suas relacSes
com o Soberano Rei;

quanto ao terceiro vínculo da criagáo, o que estabelecia harmonía


entre as criaturas inferiores urnas com as outras e com o homem,
também éste se rompeu; minerais, vegetáis e animáis irracionais já
náq convergem dócilmente para o homem, visto que éste nao quis
mais reconhecer a Deus por Soberano.

Sao tais verdades de valor perene que o mestre de Religiáo


deve colocar em foco ao ^explicar a sen tenga proferida por Deus
sobre os primeiros país.

c) Também a serpente é envolvida na condenagáo...


Amaldicoada pelo Senhor, é condenada a rastejar sobre a
térra e a comer poeira... Se a serpente no texto sagrado é
o lugar-tenente (real ou literario, pouco importa) do demonio,
está claro que a sentenca ácima vai atingir o anjo tentador.

E como o atinge ?

Sabe-se que as expressóes usadas pelo Génesis sao deri


vadas da praxe bélica : outrora o rei vencido em batalha era
nao raro obrigado a servir de supedáneo ao vencedor, que
destarte o constrangia a sorver ou lamber a poeira do solo ;
donde se segué que em linguagem metafórica as locucóes «ras-
tejar» e «comer poeira» significam «estar derrotado». Ora,
aplicando tais expressóes ao demonio, o texto sagrado quer
dizer que o tentador, apesar da vitória que obteve sobre os
primeiros pais no paraíso, é, nao obstante, um vencido ; a sua
acáo hostil aos homens, mesmo que, por permissáo de Deus,
se prolongue através dos tempos, nao obterá a vitória final..
É esta verdade que deve interessar o catequista e seus ouvintes.

Quanto á serpente, váo seria indagar se tinha patas e falava


antes da condenagáo referida pelo Génesis; o que é certo, é que o

— 251 —
castigo infligido por Deus visava o demonio. Pode-se assegurar que
a sexpente como tal sempre se arrastou e nunca falou, pois o pecado
nao alterou a constituicáo natural das criaturas; a serpente portante
sempre teve as características que ela hoje apresenta. Acontece,
porém, que, aos olhos do cristáo, éste animal por sua configuracáo
é apto a simbolizar a maldicáo e o castigo em que incorreu o demonio.

7) Por fim, um raio de esperanza refulge através das


sombras do quadro descrito. Deus nao condenou apenas, mas
prometeu reconciliar consigo o género humano. É o que se
acha expresso no vaticinio proferido pelo Senhor ao Maligno:
«Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua li
nhagem e a linhagem déla. Esta (a linhagem da mulher) te
ferirá a cabega, e tu has de lhe ferir o calcanhar» (Gen 3,15).

Esta passagem constitui a primeira profecia bíblica da Vitoria


que a prole da mulher por excelencia (Cristo)) e sua Máe Santissima
(Maria) haveriam de obter, na plenitude do tempos, sobre o Maligno
e todos os seus sequazes.

8) Urna conseqüéncia aínda decorre de quanto foi dito.


Adáo, se tivesse perseverado no estado de santidade inicial,
teria comunicado a seu filhos a natureza humana ornada de
todos os dons preternaturais e sobrenaturais de que ele go-
zava. Após o pecado, é claro que só pode transmitir a natu
reza despojada de tais dons e sujeita as tristes conseqüéncias
da miseria e da morte derivadas da desobediencia. Cada des
cendente de Adáo, portante, até hoje nasce, por assim dizer,
disforme aos olhos de Deus, ou seja, alheio ao exemplar que,
segundo a reta ordem das coisas, ele deveria reproduzir. Tal
disformidade constitui urna nódoa na alma de todo ser humano,
nódoa que se chama «o pecado original».

Éste, sem dúvida, nao constitui urna culpa pessoal; Deus nao
o trata como trata o «pecado atual», em que a vontade do individuo
toma parte consciente e direta. Nao obstante, a disformidade original
faz que o respectivo individuo nao possa gozar da visáo de Deus
face a face ou da bem-aventuranca sobrenatural caso morra com
tal nódoa na alma (neste caso, julgam os teólogos que a alma vai
para o limbo, isto é, passa a gozar para todo o sempre da bem-
-aventuranca de que é capaz a natureza humana como tal, o que nSo
implica em condenacao nem castigo própriamente ditos).

Sao estas verdades que o texto insinúa ao dizer que Deus


expulsou do paraíso os primeiros homens e lhes vedou peren
toriamente o acesso désse parque, colocando a sua entrada
um querubim portador de espada de fogo. O querubim, na
arquitetónica oriental, era urna figura de pedra que, postada
á porta dos templos, significava ser o ingresso proibido aos
estranhos.

— 252 —
Consciente desta mensagem teológica do texto sagrado, o cate
quista ialará da propagacáo do pecado de Adáo ou do pecado original,
mostrando bem que nao se trata de punicáo arbitrariamente infligida
por Deus aos descendentes do primeiro casal, mas que é conseqüéncia
lógica do lato de que o pecado despojou a natureza humana de dons
que deviam ter sido conservados e transmitidos pelos primeiros
pais (a respeito da propagacáo do pecado original, cf. «P. R.»
8/1957, qu. 6).

A guisa de conclusáo, segue-se em esquema a «tradugáo» dos


principáis traeos da narrativa biblica atinentes á queda de Adáo e Eva :

ApresentacJío literaria Licúo que se deve deduzir

O Criador colocou o homem no Deus elevou o homem a um


jardim do Éden (Gen 2,15). estado de gracas e dons que
ultrapassavam as exigencias da
natureza humana — estado dito
«preternatural» e «sobrenatural».
O ambiente harmonioso ou pa
radisiaco (sem deixar de ser
urna realidade genuina) signifi
ca a harmonía de corpo e alma
que caracterizava o primeiro
casal.

No Éden se achava a árvore Os primeiros pais gozavam da


da vida (Gen 2,9). faculdade de nao morrer.

No paraíso também se encon- A felicidade originaria, assim


trava a árvore da ciencia do concebida, estava subordinada a
bem e do mal, cujo uso Deus um ato de obediencia ou de ade-
proibiu aos homens (Gen 3,3). sáo consciente que o homem
devia prestar a Deus.

A serpente entrou em conver O demonio tentou Eva.


sa com a mulher (Gen 3,1-3).

A mulher seduzida lomou a Eva sucumbiu á tentacao, e


fruta e déla comeu (3,6). desobedeceu movida pela soberba.

A mulher apresentou a fruta O primeiro homem, influencia


proibida a Adáo, que também do pela esposa, desobedeceu,
déla comeu (Gen 3,6). igualmente eivado de orgulho.
Nao se poderia especificar qual
o objeto da desobediencia.

O Senhor expulsou os primei Os primeiros homens, após o


ros pais do paraíso, colocando á pecado, perderam a intimidade
porta déste um querubim porta com Deus e os privilegios do
dor de espada chamejant? (Gen estado inicial. Estes dons foram
3,23s). subtraldos a toda a posteridade
de Adáo.

Contudo a linhagem da mulher Deus prometeu um Salvador,


havia de ferir a cabeca da ser que restauraría a amizade do
pente (Gen 3,15). género humano com seu Autor.

— 253 —
Se em aula alguma crianca, mais vivaz, insistir em perguntar
se as árvores do paraíso e a serpente eram reais ou nao, responderá
o mestre que a doutrina da íé nao tem sentenca definida sobre
ésses assuntos, mas que, real ou nao, a serpente no texto representa
certamente o demonio; real ou nao, a árvore da vida significa a
felicidade dos primeiros pais; real ou nao, a árvore da ciencia
significa a provacáo a que foram submetidos.

Seguindo o método ácima, o catequista estará incutindo a seus


discipulos a impressáo de que a narrativa de Gen 3 é realmente
portadora de urna das mensagens mais importantes para o pensa-
mento humano.

IV. MORAL,

REÍS (Sao Paulo) :

6) «Diz-se geralmente que nem toda verdade deve ser


proferida. Será licito entáo recorrer a mentira, para nao con-
fessar a verdade ?»

Responderemos, propondo primeiramente as grandes nor


mas que iluminam o problema; a seguir, trataremos breve
mente do histórico da questáo.

1. Mentira moral e consciéncia crista

1. Diz-se que alguém profere mentira quando fala con


trariamente ao seu modo de pensar, tendo a intencáo de en
gañar o próximo.

«Falar», nessa definigáo, significa todo e qualquer modo de


comunicar o pensamento, abrangendo, por conseguinte, a locugáo
oral, a escrita, o uso de gestos e outros sinais equivalentes. As atitudes
hipócritas vém a ser urna forma especial de mentira.

«... contrariamente ao seu modo de pensar». Portanto... nao


em contradicáo necessária com a verdade objetiva. Urna afirmagáo
falsa em si (isto é, nao correspondente á realidade como tal) pode
nao ser mentira, caso a pessoa que a profere julgue estar dizendo a
verdade. Vice-versa: alguém pode estar mentindo mesmo que diga
urna proposigáo objetivamente verídica, contanto que fale contraria
mente ao seu modo de pensar.

«...com a intencáo de engañar». É esta intencao que, segundo


o senso moral comum, constituí a malicia da mentira. Tal intencao,
porém, falta — e ninguém a pressupSe — em quem refere urna
fábula como fábula, um romance, urna afirmacjio paradoxal (isto é,
evidentemente absurda: «apareceu um asno a voar») ou ainda no
caso dos atores que representam pecas teatrais e enredos de cinema.

— 254 —
A mentira, entendida nos termos da definigáo ácima, é
ato intrínsecamente mau e, por isto, contrario á consciéncia
crista. Dois sao os motivos que levam a proferir tal juízo:

a) A palavra foi pelo Criador dada ao homem primaria


mente para que. éste manifesté o seu modo de pensar. Por
conseguinte, profana a palavra e derroga ao designio do Cria
dor o individuo que use da linguagem a fim de exprimir o
contrario daquilo que ele pensa.

b) O homem é, por natureza, animal social. Ora a vida


na sociedade se baseia sobre a confianga mutua e a colabora-
gáo dos individuos entre si. A mentira, porém, destrói essa
confianga e transforma a vida comum em insuportável rede
de diadas.

Donde se vé que, a duplo título, a mentira contraria á


natureza do homem como tal e, conseqüentemente, á lei
de Deus.

Sendo a mentira intrínsecamente má, conclui-se que nem mesmo


urna finalidade sadia (como o exercício da caridade, a utilidade
pública) a pode justificar. O fim nao santifica os meios; por conse
guinte um meio mau em si nao se torna honesto, mesmo que vise
um objetivo bom. — Também se deve notar que nao é licita sequer
a mentira jocosa, ou seja, o desejo de engañar o próximo por
brincadeira, sem conseqüéncia funestas. Reconhecer-se-á, porém, que
a malicia da mentira jocosa vem a ser mais tenue do que a da
mentira proferida com a intencáo de danificar.

2. Eis, porémvque na vida prática se apresentam situa-


góes embaragosas no tocante á comunicagáo da verdade. Tais
emergencias se podem distribuir em duas classes principáis:

a) Ora parece que determinada pessoa nao tem o direito


de dizer a verdade, pois, assim fazendo, prejudicaria grave
mente a um terceiro ou a urna coletividade.

É o que se dá, por exemplo, quando um homem inocente perse


guido por um bando de assassinos se refugia em casa de certa
familia, que o oculta. Os malfeitores, ao seu encalco, entram no domi
cilio e indagam sobre a presenca da vítima. Caso o chefe da casa
refira a verdade, lavra, por assim dizer, o decreto de morte do
inocente;" caso, porém, negué frontalmente a realidade, profere u'a
mentira, isto é, comete um ato mau em si. Urna resposta hesitante
ou a sonegacáo de resposta, em tais circunstancias, já equivaleriam a
denuncia, ou seja, á entrega da vítima aos seus algozes.

Analisando tal situacao, 0 filosofe Emanuel Kant (t 1804), movido


pelo principio do dever categórico, sustentava que a revelacáo da

— 255 —
verdade seria, apesar de tudo, urna obrigacáo Inelutável; o daño
causado ao inocente nao lhe parecía poder derrogar ao pretenso
dever de proferir positivamente toda a verdade. Benjamim Constant
(tl830), porém, replicava que a verdade só é devida a quem tem
direito a ela e que precisamente o perseguidor da vitima inocente
perdeu tal direito (el. Ruyssen, Kant. Paris 1900, 257).

Que diria a Moral católica no caso?

Antes de responder, lembremos ainda outras situagóes embara-


cosas. a lim de focalizarmos ainda com mais clareza a problemática.

Tenha-se era vista um oficial militar que cai prisioneiro de


guerra... Os inimigos o assaltam com perguntas a respeito dos
planos do seu Estado-Maior. A manifestacao da verdade ou urna
resposta vacilante comprometerSo a patria do prisioneiro, equiva-
lendo á traicáo. Ainda terá éste a obrigacáo de dizer a verdade?
Ou ser-lhe-á tal vez lícito proferir o contrario do que ele sabe?

Leve-se em conta também o caso do sacerdote interrogado sobre


faltas que um penitente lhe revelou em confissáo sacramental;...
o do médico solicitado a violar o segrédo profissional;... o do amigo
intimado a manifestar o que ele prometeu ao amigo guardar em
segrédo... Nao haverá obrigagao estrita de nao revelar a realidade
em tais circunstancias? E, se há tal obrigagáo, como ainda condenar
a mentira, ao menos em tais emergencias?

b) Além dessas, há as situagóes em que alguém parece


possuir o direito (embora nao tenha o deyer) de nao dizer a
verdade. É o que acontece quando um cidádáo importuno pro-
póe perguntas capciosas, visando explorar interesseiramente a
próspera situagáo em que o próximo se encontré, ... quando
um amigo importuno em ocasiáo impropria indaga se o Sr. \
ou a Sra. estáo em casa...

Pergunta-se : como há de proceder o cristáo diante de


semelhantes impasses ?

3. Remova-se ¡mediatamente a solugáo pelo recurso á


mentira. Éste ato engañador, como foi dito, nunca se pode
tornar licito.

Observe-se, porém, que, se de um lado alguém tem a


obrigagáo de jamáis dizer o contrario daquilo que pensa, de
outro lado nao está sempre obrigado a dizer tudo que pensa e
sabe. Urna coisa, sim, é falar contrariamente ao que se pensa;
e outra coisa é nao manifestar tudo que se pensa ; a franqueza
proibe-nos afirmar o que julgamos falso, mas nao nos obriga
a expor á curiosidade de estranhos ou de adversarios nossos
sentimentos íntimos e projetos ; confiar tudo a todos já nao

— 256 —
é virtude, mas é carencia da virtude de discernimento ou in
fantilismo reprovável.

Por conseguinte, em desacordó com Kánt, a Moral crista


reconhece casos em que realmente a pessoa tenha o direito,
até mesmo o deyer, de nao referir tudo que sabe (embora,
note-se bem, mesmo entáo nao tenha o direito de dizer o con
trario do que sabe).

Como, portante, procederá tal cristáo ?

Se puder livrar-se do embarago mediante o silencio ou


resposta evasiva (isto é, dizendo algo que nao toque direta-
mente o tema melindroso), faca-o sem hesitar.

Em algumas situacóes, porém, acontece que o silencio e


a resposta evasiva já equivalem a denuncia ou traigáo.

Em tais casos, será lícito a. pessoa interpelada recorrer ao


que se chama «restrigáo mental em sentido largo». O que quer
dizer : poderá usar, em sua resposta, de alguma expressáo sus-
cetível de duas interpretagóes ; conseqüentemente, o ouvinte
nao conseguirá formular um juizo claro sobre o assunto e nao
chegará ao exato conhecimento da verdade... É preciso, con-
tudo, frisar bem que tal modo de responder só se torna lícito,
caso as circunstancias permitam ao ouvinte suspeitar da dupla
interpretagáo que a expressáo usada pelo interlocutor admite ;
um homem prudente deve poder tomar consciéncia de estar
diante de urna resposta talvez equívoca. Se em nada transpa-
rega a possibilidade de equívoco, tal modo de responder tor-
na-se ilícito ; chama-se ehtáo «restrigáo mental em sentido
estrito».

a) Exemplo de res'tricáo mental em sentido largo (lícita, por


conseguinte) é a resposta: «O patráo nao está em casa», que o
doméstico por vézes dá aos que batem á porta ou tocam o telefone;
quem conhece a praxe tradicionalmente vigente na sociedade, saberá
milito bem que tal resposta nao quer ser tomada ao pé da letra,
mas significa apenas: «O patráo nao está em condicóes de atender
(seja por motivo de ausencia seja por outra razáo qualquer)»; as
circunstancias da resposta sao suficientemente claras para que o
visitante nao se iluda no caso.

Exemplo análogo seria o seguinte: o conviva de cerimónia tem


o direito de responder «Sim» á dona dé casa que Ihe pergunte, num
almóco solene, se tal ou tal prato é de seu gósto; tal resposta pertence
a um cerimonial mais ou menos convencional, podendo ser tida como
praxe cujo sentido a ninguém engaña. Ademáis a resposta negativa
provocaría mal-estar e agitacáo num ambiente em que a urbanidade
deve ser respeitada -ao máximo.

— 257 —
Também as fórmulas com, que se costumam encerrar cartas
(«servo dedicado..., atencioso e penhoradissimo...») sao lícitas,
porque nao provocam ilusóes nos leitores habituados á vida social
(o próprio Kant as aceitava, opondo-se no caso a Schopenhauer).

A quem pega dinheiro emprestado, será lícito responder: «Nao


tenho (a saber, o que te possa emprestar)», desde que haja motivos
para nao atender a tal pedido; quem ouve, sabe geralmente inter
pretar a resposta sem se iludir.

Tais atitudes nao podem ser tachadas de hipocrisia, pois o seu


sentido é perceptível aos homens que tenham a medida de prudencia
ordinaria e indispensável a todo cidadáo.

b) Eis agora um espécime de restricáo mental em sentido estrito


e, por isto mesmo, ilícita: Tito me pergunta se vi Pedro; respondo
que sim, subentendendo nao a pessoa, mas a fotografía do nomeado;
no caso a restrigáo que imponho ao objeto (Pedro, nao como pessoa,
mas como fotografía) nao transparece em meu «Sim», nem pode
ser de algum modo conjeturada pelas circunstancias do coloquio (desde
que éste se realize em condigoes normáis).

Mais um exemplo congénere: alguém me pergunta simplesmente


se cometí tal agáo indigna; respondo que nao, subentendendo
comigo mesmo «hoje», embora de fato ontem tenha cometido o mal
apontado. Neste caso, minha resposta, nao dando ocasiáo a que o
ouvinte suspeite da restrigáo, vem a ser fraudulencia e mentira;
por conseguinte,... algo de desonesto.

Donde se vé que a dita «restrigáo mental» so é lícita pelo


fato de nao ser exclusivamente mental, mas transparecer ñas
palavras ou ñas circunstancias da frase de quem fala. Em
conseqüéncia, alguns moralistas modernos preferem dar a
ésse expediente outra denominagáo, nao havendo, porém,
unanimidade sobre á nova nomenclatura.

Nao se poderá deixar de incutir com clareza que a restrigáo


mental em sentido largo só é licita desde que vise evitar graves
males que o simples silencio ou a evasiva nao bastariam para
remover. Pecaría, portante, quem recorresse, como que habitualmente,
á restrigáo mental em assuntos de pouca monta, pois destar te preju-
dicaria notávelmente a confianga e a colaboragáo entre os homens.
Doutro lado, devem-se reconhecer casos em que a restrigáo mental
nao sómente é licita, mas vem a ser obligatoria; sao as situagoes,
por exemplo, em que a manifestagáo da verdade ou urna resposta
evasiva implicariam violagáo do sigilo sacramental ou do segrédo
profissional ou acarretariam grave detrimento para o bem alheio.
Em tais casos, a resposta «Nao sei» é plenamente legitima, pois quem
a ouve tem a obrigagáo de levar em conta que a pessoa interrogada
nao pode responder.

Como criterio para se discernir se urna restricáo mental é


lícita ou nao, pode-se adotar a seguinte norma : se a pessoa

— 258 —
que interroga tem estrito direito a conhecer a verdade (o que
certamente se dá, desde que esteja em foco algurna cláusula
essencial de um contrato oneroso), nao é em absoluto lícito
ocultar-lhe a verdade, nem mesmo por urna restrigáo mental
em sentido largo. Dado, porém, que alguém interrogue de
maneira importuna e injusta sobre assuntos que nao sao da
sua algada, a consciéncia crista nao proibe a restricáo men
tal larga.

Embora a Moral católica reconhega a liceicidade da restricáo


em tais circunstancias, ela recomenda primordialmente aos fiéis que
considerem tal expediente como remedio de excecáo para situacoes
de excegáo; procurem, pois, evitar tal recurso sempre que o puderem
evitar. A linguagem do cristáo há de ser, vía de regra, simples e
clara, conforme a admoestacáo do Senhor Jesús: «Seja a vossa
palavra 'Sim, sim'; 'Nao, nao'» (Mt 5,37). De resto, o cristáo que
viva profundamente unido a Deus, permitindo a livre acáo dos dons
do Espirito Santo, será, ñas ocasióes oportunas, especialmente ilumi
nado pelo dom do conselho, a fim de conceber entáo a resposta
adequada, que nao seja nem mentira nem também indevida manifes-
tacáo da verdade.

2. Um pouco de historia da casuística

As restricóes mentáis tém sido objeto de ampios debates dos


teólogos católicos entre si e com autores nao católicos, provocando
ora mal-entendidos, ora a censura de laxismo e hipocrisia infligida
a tal e tal grupo de escritores.

Vejamos o que a historia registra a propósito.

Documento importante para o histórico da controversia é urna


página do Cardeal Caetano de Vio O. P. (11534). Éste autor refere
a opiniáo de muitos contemporáneos seus, que afirmavam ser
lícito jurar, formulando palavras acompanhadas de cláusulas e reser
vas tácitamente guardadas no espirito de quem jura; conseqüente-
mente permitiam que alguém jurasse entregar determinada quantia
a um injusto agressor, acrescentando, porém, a condiejio meramente
mental: «...se é que de fato estou obrigado a te consignar tal
quantia».

Caetano, porém, e outros autores do séc. XVI desaprovavam


essa sentenga. A controversia s6bre o assunto se foi desenvolvendo...;
enquanto permaneceu nos. círculos de eclesiásticos, • manteve-se dentro
dos limites da seriedade científica e da dignidade moral. No séc. XVII,
porém, participaran! dos debates controversistas estranhos a ésses
círculos, desencadeando polémica mais ou menos apaixonada assim
como casuística sutil, quase zombeteira; os cavilosos litigios acesos
por ocasiáo do jansenismo na Franca dos séc. XVII/XVIII, com todos
os subterfugios a que recorriam, só faziam mais e mais exacerbar
os ánimos. Em conseqüéncia, o Papa Inocencio XI, por meio do
Sto. Oficio, interveio aos 2 de marco de 1679, considerando como
«escandalosas» e «nocivas na vida prática» as tres seguintes propo-
slcóes focalizadas e, em parte, defendidas pelos casuistas:

— 259 —
«Se alguém, a sos ou em presenga de outrem, quer seja interro
gado, quer íale por própria iniciativa, a título de recreio ou por
qualquer outro motivo, jure nao ter feito alguma coisa que na reali-
dade haja cometido, subentendendo consigo mesmo outra coisa ou
um meio diverso do que ele utilizou ou outra circunstancia real,
nao está mentindo nem deve ser incriminado de perjurio».
«Há motivo suficiente para recorrer a tais locugoes ambiguas
desde que sejam necessárias ou- convenientes para salvar a vida do
corpo, a honra, o patrimonio da familia ou para praticar qualquer
ato de virtude, em circunstancias tais que o individuo julgue oportuno"
e útil ocultar a verdade».
«Quem é promovido á magistratura ou a um cargo público gracas
a urna recomendagáo ou a um presente, pode usar de restricao
mental ao prestar o juramento geralmente exigido por ordem do rei
em casos análogos, sem levar em conta a intengáo de quem exige
tal juramento, pois ninguém está obrigado a professar em público urna
sua falta secreta» (Denziger, Enchiridion' l}76-78).
Tais proposigóes — note-se — foram explícitamente rejeitadas
pela autoridade eclesiástica.
Foi após tal censura (datada de 1679) que os moralistas resol-
veram reexaminar as doutrinas concernentes á restrigáo mental e
deram vigor definitivo á distingáo (já anteriormente proposta por
alguns autores, como Caramuel, 11682, e Póncio, 11629) entre restrigáo
mental em sentido largo e restricao mental em sentido estrito. Veri-
ficaram que esta última modalidade é que fóra atingida pela condena-
gáo da Santa Sé, ao passo que a primeira ficava incólume, podendo
por conseguinte ser adotada como expediente lícito — lícito, porém,
apenas ñas circunstancias que discriminamos atrás.
A Companhia de Jesús sofreu de modo especial as conseqüéncias
da controversia, pois os padres jesuítas foram tidos como inventores
e patrocinadores das restricoes mentáis, o que moveu contra éles a
animosidade e o poder difamatorio de nao poucos adversarios (prin
cipalmente do famoso pensador Blaise Pascal, 11662, em suas «Lettres
Provinciales»). Na verdade, será preciso reconhecer que a doutrina
da restrigáo mental já era proposta e defendida por teólogos desde
os tempos de Caetano (tl534) ou mesmo desde Angelo de Chivasso
(t 1495), quando certamente ainda nao existia a Companhia de Jesús
(fundada em 1540). Muitos jesuítas notáveis nao aceitaram a restricao
mental; por exemplo, Suarez (tl617) a considerava como expediente
apenas provávelmente licito, ao passo que A. Coninck (tl633),
Laymann (tl635) e De Lugo (tl660) a rejeitaram formalmente.

V. HISTORIA

HAGO DO GÁSTELO (Rio de Janeiro) :

7) «Qual a origem dos festejos de Sao Joao com seus


fogos característicos ?»

Em resposta, parece oportuno recordar primeiramente algumas


das celebracóes típicas que nesla ou naquela regiao se prendem á festa
de Sao Joáo Batista (24 de junho); após o que, seráo indicados os
dois motivos que as devem ter originariamente inspirado.

— 260 —
1. Os festejos

A Europa inteira, da Escandinávia á ilha de Malta, da Rússia á


Espanha, conhece as lamosas festividades joaninas, que ocupam maior
ou menor número de dias do mes de junho, terminando geralmente a
29, com a solenidade dos Apostólos Sao Pedro e Sao Paulo. Da Europa
os costumes passaram para a América, onde tomaram notorio relevo.

A manifestacSo popular predominante nessas comemoracSes con


siste em acender íogueiras mais ou menos majestosas, em torno das
quais urna assembléia íestiva canta e danca. Há quem ouse pular por
cima das chamas, na expectativa de se ver livre de doencas diversas.
Sobre o íogo ou sobre as respectivas cinzas, os camponeses fazem
passar até mesmo o gado, visando íinalidade terapéutica ou profi-
lática. Os respectivos carvSes apagados sao expostos ñas casas de
iamília a lim de protegerán os moradores contra os temporais.
Há quem diga que as aguas e certas ervas (a camomila, a tilia,
a hortelá, o sabugueiro...) adquirem na noite de Sao Joao poder
medicinal próprio... Donde, em algumas regi8es, o costume dos
«banhos de Sao Joáo», assim como a praxe de conservar «aguas»
e «ervas de Sao Joáo».

Nessa mesma data as donzelas por vézes tiram a sorte para se


informarem sobre o seu possível matrimonio: lancam em agua
pedagos de chumbo derretido e, da configuragáo que éste toma,
pretendem deduzir a profissáo e algumas características do futuro
esposo. Contraem-se freqüentemente noivados por essa ocasiáo.
Enfim urna serie de afirmagoes maravilhosas se relaciona
igualmente com a festa do Precursor em um ou outro recanto da
Europa: na noite de Sao Joáo, asseguram alguns que os animáis se
saciam com racáo de alimento insignificante, os cávalos falam, a
agua se transforma em vinho, tesouros ocultos se tornam manifestos,
do seio das montanhas partem vozes de queixume e pranto; cidades
e castelos submersos vém á tona; tochas acesas p6em-se a girar
em torno dos campanarios, desaparecendo em breve. Na Noruega,
dizem que os troll, espíritos malignos, saem das cavernas das monta
nhas, que mágicamente se abrem na noite de Sao Joao. Ñas zonas
á beira-mar, há quem espere ansiosamente o nascer do sol, pois,
conforme se eré, o astro-rei danga sobre as aguas até atingir certa
altura ou, segundo outros, ele se mergulha tres vézes no mar, sendo
que de cada vez urna nuvenzinha branca lhe enxuga a face. Na esfera
do sol, há quem «veja» o vulto de Sao Joao a se lavar no mar dentro
de urna concha de ouro; outros há que contemplam a sua cabega
a derramar sangue...

Eis varias das práticas e crencas que o folclore associa á festa


de Sao Joáo Batista.

Pergunta-se agora qual o motivo por que tais observancias se


relacionam com a figura do Precursor.

2. As origens

Os -festejos do fogo de junho sao em sua origem inde-


pendentes da estima devotada ao Batista; derivam-se de

— 261 —
costumes outrora vigentes entre os pagaos, costumes que, de
purados de qualquer profissáo de fé politeísta, encontraran!
acolhimento no povo cristáo. Com efeito,

1) o primeiro motivo inspirador das mencionadas come-


moragóes é o culto do fogo e, em particular, do sol, que os
pagaos observavam com carinho.

Na Gália, a veneracáo do fogo parece ter sido introduzida pelos


celtas, mormente pelos seus sacerdotes, chamados «druidas»; nos
países em que o Cristianismo só mais tarde penetrou, ainda se
notam, nos festejos de junlio, vestigios de ritos pré-cristáos, com
alusñes (que já nao sao profissóes de fé) a divindades pagas, como
seja o deus Balder na Noruega, o deus Ligo na Letónia, o deus
Kupalo na Rússia.

Está claro que o culto do fogo e do sol tomava suas ex-


pressóes mais características por ocasiáo do solsticio do veráo,
quando o dia atinge o auge de sua duragáo no hemisferio se-
tentrional; a 24 de junho o sol se encontra no trópico do Cán
cer, chegado ao ponto de distancia máxima do equador; ai
parece demorar-se alguns dias, dando ocasiáo ao solsticio do
veráo, que passou a ser celebrado pelos pagaos como festa
do astro-rei.

Ora aconteceu que entre os cristáos foi fixada a celebra-


eáo da natividade de Sao Joáo Batista no dia 24 de junho. A
razáo disto, como se compreende, era bem diversa da que ins
pirara a festa do fogo : efetivamente, sendo a Anunciagáo do
anjo a María comemorada pela Liturgia a 25 de margo (nove
meses antes da data convencionalmente marcada para o nata
licio de Cristo; cf. «P.R.» 3/1958, qu. 8), devia o nascimento
de Sao Joáo Batista ser festejado tres meses após a Anunda-
Qáo, pois o anjo Gabriel comunicava a Maria que Elisabete, a
máe do Precursor, entáo se achava no sexto mes de sua ges-
tagáo (cf. Le 1,36).

Foi por esta convergencia de motivos, nao premeditada,


que vieram a coincidir na mesma data as celebragóes do fogo
e a solenidade de Sao Joáo Batista.

Compreende-se que a incidencia de festas tenha provo


cado confusáo na mente do povo cristáo. É o que se depreende
das repetidas exortagóes de bispos e concilios de inicios da
Idade Media que chamavam a atengáo dos fiéis para a neces-
sidade de nao cederem a práticas pagas ou supersticiosas por
ocasiáo da comemoragáo de Sao Joáo Batista. Lé-se, por
exemplo, num sermáo de S. Eligió, bispo do séc. VII:

— 232 —
«Na íesta de Sao Joáo ou em qualquer solenidade que seja,
ninguém celebre os solsticios nem se entregue a dancas girantes ou
saltantes... ou a cánticos diabólicos».
Urna lei do reino dos francos datada de 21 de abril de 742
prescrevia:
«Esforce-se o bispo, de acordó com o conde (oficial civil), para
que o povo nao se entregue a observancias pagas.
Mandamos que, segundo os cánones dos concilios, cada bispo
em sua diocese tome as providencias, com o auxilio do conde (gravio),
que é o defensor da Igreja, para que o povo de Deus nao se dé ás
práticas pagas, mas abandone e repudie essas ignominias dos gentíos;
proibam cuidadosamente os sacrificios dos morios [ritos supersticiosos
praticados sobre os túmulos], os sortilegios dos magos, as consultas
dos adivinhos, os amuletos, os agouros ou encantamentos ou imola-
cóes do vítimas, que homens insensatos realizam junto ás igrejas
segundo o rito pagáo, invocando os nomes de santos mártires ou
confessores, provocando assim a cólera de Deus ou dos seus santos;
proibam também aqueles fogos sacrilegos que ehamam nied fyr, e
todas as práticas dos pagaos, quaisquer que sejam» (Boretius, Capitu
laría regum francorum t. I pág. 25).
Éste texto é particularmente interessante por mencionar fogos
sacrilegos, que comumente eram chamados nied fyr (lé-se em outros
documentos nod fyr, nied feor, nied fies...). Que significa esta
expressáo? — Fyr, no dialeto ^os francos, designava o fogo. ao passo
que nied era o prazer, o diyertimento. Ésses fogos de prazer ou
divertimento, na passagem ácima, sao tidos como sacrilegos porque
considerados próprios dos rituais pagaos. Sabe-se, com efeito, que
urna das notas características do fogo usado em cerimónias dos
gentíos era a de ser produzido pelo atrito da madeira (uso éste
inspirado por crengas supersticiosas), ao passo que a via regular e,
por assim dizer, ortodoxa para a producáo do fogo entre os cristáos
da Gália era o choque do ferro contra a pedra. Ora encontra-se
num «Catálogo de supersticñes e usos pagaos» (Indiculus superst!tlo:
num et pagttníarum) recriminados pela Igreja na Franga antiga o
seguinte titulo: De igne fricato de ligno, quod vocant nodfyr (A
respeito do fogo obtido por atrito da madeira, fogo que chanam
nodfyr). Ao nodfyr assim produzido se prendía urna serie de crengas
estranhas: quem saltasse sobre o nodfyr era tido como imunizado de
males futuros; á. fumaca désse fogo expunham-se vestes, que depois
eram usadas contra a febre; em algumas regióes, atirava-se no
nodfyr urna cabega de cávalo, no intuito de forgar as bruxas da vizi-
nhanga a se mostrarem...

Dada a ampia difusáo das comemoragóes pagas do fogo que


coincidiam com a celebragSo de Sao Joáo Batista, os bispos, em vez de
combater diretamente as observancias, houveram por bem utilizá-las
para fomentar a verdadeira piedade; resolveram, portanto, dar aos usos
dos antigos francos (na medida em que nao eram necessáriamente
urna profissáo de paganismo) um sentido cristáo (foi, alias, o que
aconteceu com mais de um costume dos antigos gentios, ñas propor-
góes em que tal uso era suscetivel de ser cristianizado). — As ceri
mónias do fogo de Sao Joáo Batista assim comegaram a gozar de
tolerancia por parte dos prelados, que as explicavam aos fiéis á luz
dos principios do Evangelho. Eis, por exemplo, como a respeito se
exprimia o teólogo e liturgista Joáo Beleth (em 1162 aproximadamente):

— 263 —
«Na festa de Sao Joáo Batista sao carregadas publicamente
tochas ardentes c acendem-se íogos, que sao o símbolo de Sao Joao,
o qual foi luz e chama ardente a preceder a verdadeira luz. — Feruntur
quoque (in íesto Johannis Baptistae) brandeae seu faces ardentes et
íiunt ignes, qui signiíicant sanctum Joannem, qui fuit lumen et
lucerna ardens, praecedens et praecursor verae lucis» (Summa de
divinis oíficiis. Dillingen 1572, c. CXXXVII).
Éste mesmo texto foi, no século XIII, reproduzido pelo liturgista
Durando de Mende (tl296).
Assim enquadrados dentro da ideología crista, os festejos do
fogo de junho já nao constituiam urna expressáo de paganismo. Tor-
naram-se licitos aos cristáos a título de manifestacáo de alegría popular
— coisa que o S. Evangelho nao repudia, mas que naturalmente deve
ser sujeita a controle a fim de nao degenerar em orgia.
2) Historiadores recentes tém apontado ainda outro fator que
haverá influenciado as celebrac.6es de junho: tal fator seriam antigos
ritos campestres de purificacáo, profilaxia e propiciacáo. Éste elemento
é que terá sugerido a estima do «banho de Sao Joño» (locáo nos rios
praticada a horas noturnas) e da «erva de Sao Joáo» (plantas colhidas
a 23 e 24 de junho e pretensamente dotadas de especial poder contra
doengas da boca, contra epidemias e raios, em favor dos homens e do
gado).

Esta outra classe de manifestac6es se aproxima da superstigáo e,


como tal, nao pode merecer aceitacáo nem reconhecimento por parte
da Sta. Igreja.
Em conclusáo verifica-se que as festas do fogo de junho procedem
de antigos costumes nao-cristáos que a Igreja procurou cristianizar
e que Ela reconhece como legítimos na medida em que nao se opoem
á Moral do Evangelho.

CORRESPONDENCIA MIÚDA : Por falta de espago, nao nos é


possível responder neste fascículo aos prezados amigos que nao nos en-
viaramenderéco. Se tivéssemos sua diregáo, escrever-lhes-íamos direta-

D. ESTÉVAO BETTENCOUBT O. S. B.

* «PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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