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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
9_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
11 I >
I I 'i . '

ANO VIH N? 90 JUNHO 19<


ÍNDICE

Pág.

I. FILOSOFÍA E EELJGIAO

1) "Que é o Zen-Budismo ou mmptesmente o Zen ?

Como julgá-lo do ponto de vista eristSo ?" SSS

II. SAGRADA ESCRITURA

2) '"Quem era o homem Jesús ?'

Que dizer do artigo que a revista 'REAL1DADE' publican


com éste titulo em mareo de 1907 ?

Pouco ou nada se pode dizer a respeito de Jesus ?" 342

III. DOGMÁTICA

3) "Amda estáo em uso as indulgencias na Igreja ?

Que disse a respeito o Papa Paulo VI nos líftitnos lempos T" 252

U) "Poderia a ordenaeáo sacerdotal ser conferida As mu-


Iheres f

Quais os pros e contras dessa qtiestáo ?" . sel

IV. LITURGIA

S) "Pode-xe crer que um dia a S. Comunhño venlia a ser


entregue nos maos dos fiéis comungantes V 270

CORRESPONDENCIA MIÚDA S76

COM APEOVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano VIII — N« 90 — Junho de 1967

I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

ENGENHEIKO AMIGO (Santos) :

1) «Que é o Zen-Budismo ou simplesmente o Zen ?


Gomo julgá-lo do ponto de vista cristao ?»

Nao se poderia responder adequadamente as perguntas


ácima, se nao se propusesse primeiramente urna síntese das
principáis idéias do Budismo, do qual o Zen é urna ramificacáo.
Por consegrante, percorreremos abaixo as grandes linhas do
Budismo e as peculiaridades do Zen, terminando com algumas
reflexóes sobre o assunto.

1. Na escola do Budismo

O Budismo é um sistema de pensamento derivado de Siddártha,


cognominado «tCakyamuni» (= o Sabio do clá dos Cakya) ou também
«Buda» (= o Iluminado), o qual viveu na India entre 563 e 4S3 a.C.
aproximadamente.
As doutrinas o os preceitos da Buda adotaram tragos do antigo
patrimonio religioso da india (hinduísmo e bramanismo); depuraram-
-no, porém, e interiorizaran! no profundamente. Á medida que passa-
ram da India para as demais nac5es do Medio e Extremo Oriente,
íoram-se ramificando em diversas correntes.

O Budismo primitivo se apresenta com as seguintes carac


terísticas :

Nao intenciona desenvolver urna teología nem mesmo urna


filosofía. É, própriamente dito, um sistema de vida que pres-
supóe

a) o panteísmo ou monismo, isto é, a identiíicagáo da Divirídade


e da natureza (irracional e racional ou humana). Nao reconhece,
portanto, um Deus essencialmente diverso do mundo e do homem,
Criador de todas as coisas;

b) a transmigrado das almas de corpo em corpo (samsara),


ou seja, do corpo de um animal irracional para o de um homem ou
o de utn semi-deus;

— 233 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 1

c) a lei do karman, segundo a qual sao os nossos atos, ora mais,


ora menos valiosos, que decidem o tipo de nossa próxima reencar-
nagáo; esta poderá ser ou mais ou menos íeliz, de acordó com o nosso
procedimento na presente encarnagfio.

Dentro déste conjunto de idéias, o Budismo toma como


ponto de partida de suas reflexóes o problema da dor. Esta
é um fato, que exige do homem remedios aptos a extingui-la.

Donde, pois, provém a dor ?


A dor provém da nossa sede de existencia. E a nossa sede
de existencia provém da nossa natural inclinagáo para as coi
sas sensiveis e para o conhecimento empírico. Essa inclinagáo,
por sua vez, provém de nossas existencias passadas ou de
nossas encarnacóes anteriores; recebemo-la, por assim dizer,
como heran?a. Essa heranga, a seu turno, deriva-se da nossa
ignorancia (avidya); é a ignorancia que nos leva a aceitar
como nossos os sucessivos estados de consciéncia em que vive
mos envolvidos. O eu que cada um julga ser no momento pre
sente, nao é senáo um conjunto de estados psicológicos, que
durante milenios se acumularam sobre o nosso fundo verdadeiro
á guisa de vestes ou estrados artificiáis. O eu com que nos
apresentamos a nos mesmos e ao mundo, nao é o nosso verda
deiro ser.

Ve-se, pois, que, para superar a dor, é preciso comeear


por dissipar a ignorancia; é necessário que o homem se con
venga da cadeia de causalidades atrás enunciadas. Assim nos
elevamos ácima dos nossos estados psicológicos; damos cada
vez menos importancia ao que experimentamos; desapegamo-
-nos das coisas sensíveis, do amor á vida no corpo e neste
mundo. Conseqüentemente, vamos neutralizando ou extinguindo
a lei do karman; emancipamo-nos do ciclo das transmigragóes,
e finalmente obtemos o ninana (extingáo). — O nirvana é,
antes do mais, um estado negativo, indefinido, em que nao
teremos mais a consciéncia do eu que agora nos define e limita;
seremos mergulhados sem barreiras na infinita Substancia do
Absoluto Divino. O nirvana nao é o nada, nem significa ani-
quilacáo, mas também nao é um estado de bem-aventuranca.

Na prática, o Budismo recomenda a vida media, isto é, a equidis


tancia tanto dos prazeres quanto das maceragSes corporais. Preconiza
oito formas de retidáo a ser observadas por quem se quer libertar
da dor:

reta íé (em relacáo as doutrinas atrás expostas),


reta decisáo,

— 234 —
O ZEN-BUDISMO

reta palavra,
reta acao,
reta vida,
reto esíórco,
reto pensamento,
reta concentracáo.

O Budismo incute também a compaixáo para com todos os seres,


o respcito á vida alheia, o perdáo das injurias e o altruismo capaz
de chegar ao sacrificio total do próprio sujeito. É preciso destruir
as paixóes, cultivar a pureza de sentimentos e a lealdade de cons-
ciencia. Ninguém está excluido da salvacáo, qualquer que seja a sua
casta ou condicáo social.

Desde remotos tempos, o Budismo foi dando origem a


seitas, em número sempre crescente. Assimilou mais e mais
a si formas da primitiva religiosidade popular. Em conseqüén-
cia, tem-se dito que o Budismo erudito é urna religiáo sem Deus,
ao passo que o Budismo popular admite nao raro urna Divindade
suprema e deuses subalternos.
No séc. n da era crista, sob a influencia de filosofías persas
e ocidentais, foi-se introduzindo em certos grupos budistas urna
acentuada tendencia ao transcendental. Daí a grande separagáo
do Budismo em «Pequeño» e «Grande Veículo» (= meio de
salvacáo).

O «Pequeño Veículo» ou hinayana se apresenta como conservador:


considera Buda como mero homem e apregoa a salvacáo individual
pela estrita observancia dos preceitos moráis. Foi cognominado «Pe
queño», porque, como diziam seus adversarios, oferecia urna via
muito estreita de salvagáo, acessivel apenas a exiguo número dé
homens.

O «Grande Veículo* ou mahayana admite um Buda primordial


que periódicamente se maniíesta sobre a térra sob forma de um
homem iluminado (avatar); Cakyamuni era urna das manifestacóes
transitorias do Buda primordial. O Grande Veiculo, conseqüentemente,
admite o aparecimento de muitos Budas (= iluminados) no decorrer
da historia; cada um déles possui um paraiso, lugar de delicias onde
as almas puras renascem antes de atingir o nirvana. — Acontece,
porém, que os Budas já se emanciparam do ciclo das reencarnagoes;
por conseguinte, nao podem mais auxiliar os homens mortais a con
quistar a salvacáo. O Grande Veiculo admite entáo seres intermedia
rios entre os Budas e os homens : os lxxlliisattva, figuras de luz e
misericordia. Os bodlilsattva já adquiriram todas as perfeicóes neces-
sárias para chegar ao nirvana, sao virtualmente Budas; mas fizeram
voto de se reencarnar e nao abandonar o ciclo das transmigracóes
enquanto houver no universo um só ente necessitado de instrugáo
e salvacáo.

Na China, o Grande Veículo suscitou o chamado «Zen», que


prosperou principalmente no Japáo.

— 235 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 1

2. O Zen

Entre 520 e 530 d. C, Bodhidharma, oriundo da india meridional,


desembarcou em Cantáo e se íixou em Ho-nan (China). AS perma-
neceu nove anos imóvel em profunda concentrado de espirito, tendo
o rosto voltado para urna parede. Deu assim origem á escola budista
do Tch'an (= concentracáo, meditacáo, em chinés), palavra esta
derivada do sánscrito dhyona.
No séc. XIII, a corrente do Tch'an passou para o Japáo, por
obra do bonzo (monge) Dogen (1200-1253). Em sua nova patria, tal
escola tomou o nome de Zen, abreviacáo do termo japonés zazen
(za = sentarse, zazen = sentar-se de pernas cruzadas sobre o solo
para meditar).

Que ensina o Zen ?

O Zen nao é própriamente urna doutrina, mas urna atitude


de vjda, que supóe urna realidade inefável, e visa fazer que o
homem chegue a percebé-lá.
Mais precisamente: tudo que existe constituí um Grande
Todo, cujos predicados nao podem ser compreendidos dentro
das habituáis categorías do pénsamento humano ou dentro do
«Sim» (afirmacóes) e do «Nao» (negagóes). Nos, homens, es
tamos envolvidos dentro dessa realidade inefável; fazemos parte
déla, sem o saber. As coisas sensíveis e o nosso costumeiro
modo de pensar (táo dependente dos sentidos) nos impedem
de chegar á percepgáo do ámago ou da face intima do Grande
Todo.
Em conseqüéncia, o Zen nao se propóe explicar coisa al-
guma a respeito da Divindade, do universo ou do homem. Quer
apenas educar o discípulo para que se emancipe da maneira
comum de pensar, e faga experiencias inefáveis, entrando em
contato intuitivo com o fundo da realidade.
Qualquer nome que se dé as coisas, é relativo; ao mesmo
tempo que afirma a realidade, nega-a (diz algo, mas nao diz
tudo).

O Zen nao realiza culto algum, como se depreende dessas pre-


missas. Cultiva, porém, a Yoga com seus exercicios respiratorios,
pois estes favorecem a diminuigáo das atividades psíquicas; a cons-
ciéncia se esvazia das impressdes sensiveis e pode concentrar-se
profundamente.

O Zen preconiza, como algo de característicamente seu,


o exercicio do koan. Esta palavra designa um diálogo entre
mestre e discípulos; visa despertar a curiosidade dos jovens e
fazé-los meditar; as vézes, tem índole paradoxal, constituindo
como que um desafio á sá razáo. Mediante o koan, os mestres

— 236 —
O ZEN-BUDISMO

do Zen julgam que podem fazer aflorar á consciéncia dos discí


pulos conhecimentos coñudos no seu subconsciente.
Os exercícios de concentragáo levam finalmente o homem
á iluminacáo (satori, em japonés), que é urna experiencia re
pentina da realidáde, na qual o Ser se manifesta com novo
fulgor. O espirito iluminado ultrapassa as categorías ou o dua
lismo de sujeito e objeto, e percebe o fundo de todos os seres,
fundo no qual as coisas múltiplas sao urna só. Ele também se
liberta de si mesmo ou dos limites da própria individualidade
e reconhece ser um só Todo com o Cosmos. Assim concebida,
a técnica do Zen é muito praticada por monges, que vivem
em grandes mosteiros no Japáo.

Como se vé, a mensagem do Zen é assaz simples. A guisa de


complemento, váo aqui reproduzidos alguns episodios em que se
exerce o koan; bem manifestam a atitude de espirito do Zen.

1) Um monge perguntou :

«Onde fíca a morada da mente ?»


— «A mente mora onde nao há morada», respondeu o Mestre.
— «Que significa 'nao ter morada' ?
— Quando nao mora em objeto algum, dizemos que ela mora
onde nao há morada.
— Que significa 'nao morar em objeto algum' ?
— Significa nao aceitar o dualismo do bem e do mal, do ser e
do náo-ser, do pensamento e da materia. Significa nao permanecer
no vazio nem no náo-vazio, nem na tranqiülidade. Onde nao há lugar
para residir, está verdaderamente localizada a morada da mente».

2) Os monges queriam que seu mestre Hyakujo (Paichang)


lhes desse urna instrugáo sobre o Zen. file disse:

«Ide lavrar a térra, que mais tarde vos direi algo sobre o Zen».
Terminado o trabalho, pediram ao mestre que cumprisse a pro-
messa. Ele entáo abriu os bracos, e nao disse urna palavra sequer.
Éste foi o seu grande sermáo.

3) Um monge dirigiu-se a seu mestre, dizendo :

«Faz algum tempo que venho cá diariamente, a fim de ser ins


truido no santo caminho do Buda, mas até agora nao me deste sugestáo
alguma a ésse respeito. Eu te imploro, sejas mais caridoso».

Recebeu entao a seguinte resposta :

«Que queres, meu filho ? Cada manhá me saúdas, e eu te res


pondo. Quando me trazes urna xícara de cha, eu a aceito e me delicio
tomando-a. Além disso, que outras instrugOes desejas de mim ?>

Esta passagem é assim comentada por D. T. Suzuki:

«Um erudito confuciano escreve: *Éles procuram a verdade muito


longe; no entanto ela está táo próxima déles'. A mesma coisa pederá
ser dita do Zen. Buscamos seus segredos onde é menos provável

— 237 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967. qu. 1
i

encontrá-los, istp é, no meio de abstracOes verbais e sutilezas meta


físicas, ao passó que a verdade Zen se acha ñas coisas concretas da
nossa vida diaria» (Introducto ao Zen-Budismo, pág. 87).
Os seguintes episodios tém algo de desafiador, a fim de agucar
a reílexao dos discípulos ou a fim de os desarraigar do seu habitual
modo de pensar.

4) Joshu certa vez perguntou a um monge:

«Já estiveste alguma vez aqui ?»


Ao que o monge respondeu: «Sim, senhor; já estive».
Disse entáo o mestre: «Toma urna xlcara de cha».
Mais tarde, aproximou-se outro monge, a quem o Mestre também
perguntou : «Já estiveste alguma vez aqui ?»
A resposta foi contraria á anterior: «Nunca estive aqui, senhor».
O velho Mestre, entretanto, respondeu da mesma forma: «Toma
entáo urna xícara de cha».
A seguir, o Inju (monge administrador do mosteiro) perguntou
ao Mestre: «Porque ofereces a mesma xicara de cha, qualquer que
seja a resposta do monge ?»
O velho Mestre entáo interpclou-o: «ó Inju !»
Exclamou Inju : «Sim, Mestre !»
Ao que Joshu respondeu: «Toma entáo urna xicara de cha !»

5) Ao terminar suas ferias de veráo, Kyozan fez urna visita


a Yisan, que o interrogou :
«Nao te vi por aquí durante todo o veráo; que fizeste por lá?>
Respondeu Kyozan : «Estive cultivando um pedaco de térra, e
terminei de semear uns graos».
Ao que Yisan observou: «Entilo nao desperdicaste o teu veráo».
Chegou'a vez de Kyogan interrogar Yisan sobre as suas ativi-
dades de veráo:
«E tu, como passaste o veráo ?
— Urna refeicáo por dia, e um bom sonó á. noite?.
Isto levou Kyosan a comentar : <•
«Entáo nao desperdicaste o teu veráo!»

6) Nos mosteiros Zen, os monges recitam pela manhá e antes


de cada refeigáo a seguinte fórmula:
«Assim, ó Sariputra, todas as coisas tém o caráter do vazio. Nao
tém principio nem íim, nao sáodesprovidas de falha nem sao falhas.
Portanto, Sariputra, aqui no vazio nao há forma, nem percepgáo,
nem nome, nem conceitos, nem conheclmentos. Nem ólho, nem nariz,
nem llngua, nem corpo, nem mente. Nem forma, nem som, nem
cheiro, nem paladar, nem tato, nem objetos... Nüo há nem conheci-
mento, nem ignorancia, nem destruicáo da ignorancia... Nao há
nem decadencia nem marte. Nao há nem as quatro verdades, isto é,
nao há nem dor, nem origem da dor, nem cessacáo da dor, nem o
caminho que leve á cessacáo da dor».
Grande repertorio de semelhantes episodios se encentra em D. T.
Suzuki, Introducto ao Zen-Budismo. Rio de Janeiro 1961.
Os dados ácima já fornecem base para que procuremos formular

— 238 —
O ZEN-BÜDISMO

3. Um juizo sobre o Zen

Analisemos brevemente os pontos cardeais que norteiam


a atitude do Zen.

1) A razao humana e o Absoluto

O Zen parte do pressuposto de que é impossível chegarmos


ao conhecimento da verdadeira realidade usando a razáo e as
suas categorías ou os seus principios espontáneos (o «Sim»
e o «Nao», o principio de identidade, o de contradicáo...).
O Absoluto seria de todo inefável.

Diante desta posicáo, a sá filosofía assevera :

a) existe, sim, um Ser Absoluto, Infinito, o Ser simples-


mente dito (Deus). A sua existencia é exigida pelo fato de
que há seres contingentes, finitos, isto é, seres que nao se
explicam por si mesmos e que por isto só se podem justificar
se existe o Absoluto.
b) O Ser Absoluto, por definicáo, nao se identifica com
os seres contingentes e finitos, isto é, com o homem ,e as cria
turas visíveis que o cercam. Nao pude haver continuidade entre
o finito e o Infinito; o1 Infinito nao é a soma de muitos seres
finitos; o Absoluto nao é o conjunto de numerosíssimos relativos,
mas é radicalmente diverso de tudo que é finito e relativo.
Donde se vé que o homem nao pode ser a própria Divindade,
diminuida ou encoberta pela materia ou pelo corpo.

c) Embora o Absoluto (Deus) seja transcendente em


relagáo ao homem e ao mundo, Ele pode ser apreendido pela
razáo humana. A razáo (ou inteligencia) é um dom de Deus
ao homem; é um reflexo criado e finito da Inteligencia divina;
por conseguinte, assim como Deus, do seu modo infinitamente
perfeito, conhece a realidade ou a Verdade, assim também a
razáo humana, do seu modo finito, é capaz de conhecer a rea
lidade ou a Verdade.

Em outros termos: nos temos o conceito de ser; tudo que conhe-


cemos, conhecemo-lo na medida em que é iim ser... Por conseguinte,
dos seres finitos nossa razáo passa naturalmente ao Ser Infinito
(Deus). Ela percebe que as perfeicfies que se encontram nos seres
finitos, devem existir em grau eminente no Ser Infinito. Assim o
conhecimento, o amor, a bondade, a justiga, a comunicabilidade, que
se refletem ñas criaturas, devem ser atribuidas ao Ser Subsistente
por si ou a Deus. Dir-se-á, portanto, que Deus conhece (... conhece
a Si e as criaturas), que Deus ama, que Deus é bom, misericordioso,
justo...

— 239 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 1

Contudo a razáo percebe que, ao mesmo tempo que ela afirma


algo a respeito de Deus, ela é obrigada a acrescentar urna restricto...
Com efeito, verificamos que
Deus conhece realmente, mas nao conhece como as criaturas
finitas,
Deus ama com verdadeiro amor, mas nao ama como as criaturas
finitas amam,
Deus é bom, mas nao é bom como as criaturas finitas o sao.
Há urna diferenca no modo: tudo que existe ñas criaturas, existe
de modo limitado; é mesclado de nao-ser, sujeito á íalibilidade e ao
erro. Ao contrario, tudo que existe em Deus, existe de modo ilimitado,
isto é, sem a mínima sombra de nao-ser, de deficiencia ou de imper-
feicáo.
Com outras palavras: existe urna analogía de proporcáo entre
as criaturas e as suas perfeicóes, de um lado, e o Criador e as suas
perfeigoes, de outro lado. Assim como a criatura está para as suas
perfeicoes, assim está Deus para as suas.
Depreende-se, pois, que. embara nao haja univocidade, mas. sim
analogía proporcional entre Deus e as criaturas, as mesmas perfeig3es
podem e devem ser atribuidas a Deus e as criaturas. Deus nao está
fora das categorías da lógica, nao é ilógico, mas, ao contrario, é o
fundamento de toda a ordem que depreendemos em nos mesmos.

2) Razáo e Mística

Nao se poderia crer que a Mística dispense ou suplante


a razáo humana ?

— Diz-se que há vida mística quando o homem conhece,


por experiencia, que Deus está no íntimo de sua alma. Os
místicos nao conhecem diretamente pelo raciocinio, mas, sim,
pela aflnidade ou conaturalidade com Deus que o amor lhes
comunica; o amor tem suas «antenas» ou seus olhos próprios.
A Mística estende-se, portante, além do conhecimento racional
ou lógico, mas de' modo nenhum contradiz á lógica. O conhe
cimento místico tem que partir das categorías da lógica e dei-
xar-se guiar constantemente por elas, a fim de nao cair no
arbitrario, no fantasista ou no absurdo. A razáo é, em todas
as fases da vida humana, o guia natural mais seguro. Claro
está que nos místicos cristáos a razáo é iluminada pela fé, que
comunica um modo de ver superior; a fé, porém, nao derroga
á razáo.

A respeito de Mística e da posslbilidade de vida mística em nao-


•cristtos, cf. «P. R.» 33/1960, qu. 3. — É possivel, sim, que os justos
náocristaos tenham a experiencia de Deus em sua alma, caso estéjam
em absoluta boa fé e cumpram fielmente os ditames de sua consciéncia.

Os santos sempre admitiram a inefabilidade de Deus.


Assim Sao Paulo asseverava ter ouvido, em éxtase, palavras

— 240 —
O ZEN-BUDISMO

inenarráveis (cf. 2 Cor 12,2-4); afirmava outrossim que o


Espirito Santo fala a Deus Pai ñas almas dos justos com gemí-
dos inenarráveis (cf. Rom 8,26). S. Tomás de Aquino, por sua
vez, ensinava que «a respeito de Deus é mais fácil dizer o que
¿le nao é do que p que Ele é».
Tenha-se em vista também o significativo trecho de S.
Joáo da Cruz:

«Nunca procures contentar-te com o que compreendes de Deus;


regozija-te, antes, daquilo que nTSle nao compreendes. Nunca ponhas
tua felicidade ou tuas delicias naquilo que podes ouvir ou experimentar
d"Éle, mas, antes, naquilo que nao podes nem experimentar nem
ouvir... Menos compreendemos, mais nos aproximamos d"í¡le» (Cán
tico Espiritual, Cant. B, comentario da estrole I).

Tais assercóes póem em relevo o aspecto transcendental


de Deus. Nunca julgue o homem haver «finalmente» compre-
endido com a sua inteligencia o Infinito Ser de Deus. Só para
o próprio Deus é que Deus nao é novo nem surpreendente;
para os justos no céu, Ele será eternamente novo e surpreen
dente. Toda criatura naturalmente se deleita em saber que
Deus ainda é mais perfeito do que o que podemos imaginar de
mais perfeito. Contudo os místicos cristáos sempre se guiaram
pela Escritura Sagrada, que fala de Deus em proposigóes lógicas
e mediante analogías sugeridas pelas criaturas sensíveis, Em
conseqüéncia, puderam asseverar que Deus se comporta conosco
como um Pai, nos nos relacionamos com Ele como filhos; somos
chamados a vé-Lo face a face e a compartilhar de sua bem-
-aventuran<?a.

O Zen é digno de aprégo pelo fato de estimular o homem


á reflexáo sobre a realidade, excitando-o a conceber o Absoluto;
é destarte místico, como todo o pensamento oriental. Fode-se
dizer que é esta nota mística que o torna átraente a adguns
dos nossos contemporáneos ocidentais. — Contudo o Zen falha
por exaltar a Mística a ponto de menosprezar a razáo ou as
categorías do «Sim» e do «Nao».

De resto, para negar o valor da razáo humana, o homem tem


que usar da própria razao, supondo que ela é capaz de fazer a critica
de si mesma, de reconhecer seus limites ou sua incapacidade. Nin-
guém, pois, pode asseverar que a razáo humana é inepta senáo depois
de aíirmar implícitamente que ela é apta a conhecer a vérdade.

3) Asccso e Zen

O Zen preconiza severa disciplina do homem sobre si


mesmo, a fim de poder alcancar a intuigáo do Absoluto. Essa

— 241 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 2

disciplina é o que se costuma designar pelo termo grego


«áskesis» (ascese). Nao constituí caracteristica própria do Zen
ou da Yoga, mas é patrimonio de todo sistema filosófico ou
religioso.

Também o Cristianismo incute o dominio do cristáo sdbre os


seus sentidos e as paixóes; sem tal auto-dominio, é impossivel a
quem quer que seja, utilizar sabiamente a sua razáo e aplicar seu
amor aos verdadeiros bens, a fim de chegar finalmente á visSo de
Deus face a face.

Um trago, porém, diferencia a ascese crista da náo-cristá:


o discípulo de Cristo sabe que nada conseguirá na luta contra
a natureza desregrada senáo por auxilio da graca de Deus;
é o Senhor quem robustece o homem para que venga suas
paixóes. Em urna palavra : segundo o Cristianismo, Deus toma
a seus cuidados a salvacáo do homem.
No Zen, como alias no Budismo, supóe-se que o homem
seja seu próprio Salvador; é o homem que, por seu heroísmo,
se liberta do ciclo das reencarnagóes. Isto, em última análise,...
porque nao há um Deus distinto do homem e da natureza,
mas a Divindade e o homem se identificam na grande Subs
tancia do Universo.

O cristáo póe t&da a sua confianca em Deus, que jamáis o teria


criado se nao houvesse simultáneamente decretado dar tudo para
íazer o homem participar da sua eterna bem-aventuranca.

II. SAGRADA ESCRITURA

RENATO (Rio de Janeiro) :

2) «'Quem era o homem Jesús ?'


Que dizer do artigo que a revista 'REALEDADE' publico»
com éste título em margo de 1967 ?
Pouco ou nada se pode saber a respeito de Jesús ?»

A revista «REALIDADE» é assaz infeliz em seus artigos


religiosos; em particular, os que se referem á Biblia Sagrada,
sao crivados de imprecisóes e interpretagóes tendenciosas. Por
vias ambiguas, dizendo «Sim» e «Nao» a Religiáo, disseminam
o ceticismo e o relativismo. Sua tática é particularmente cap-

— 242 —
«QUEM ERA O HOMEM JESUS¿

ciosa por servir-se do aparato de urna falsa erudicáo, que pode


engañar as pessoas simples, mas nao resiste á crítica de quem
conhece o assunto.

Examinaremos abaixo o artigo «Quem era o homem Jesús» de


«REALIDADE» marco de 1967, pág. 60-74.

1. A síntcsc do artigo

O articulista (Robert Coughlan) comeca notando que até


o séc. XVIII os cristáos nao se preocuparam com o estudo
científico dos Evangelhos e da documentacáo antiga referente
a Jesús.
O professor hamburgués H. S. Reimarus (t 1768) deu
origem á crítica literaria e histórica dos Evangelhos. Nume
rosos estudiosos se Ihe seguiram nessa tarefa, os quais, no
inicio do séc. XX, chegaram á conclusáo de que pouca coisa
se pode apurar a respeito de Jesús : existiu no principio da
era crista; passou a maior parte da sua vida em Nazaré, na
Galiléia; um belo dia proclamou-se mestre itinerante, chegando
até Jerusalém; contudo foi vitima da hostilidade das autoridades
civis e religiosas, que o pregaram a. cruz. «Entáo 'algo' acon-
teceu para convencer a seus discípulos de que ele tinha ressus-
citado da morte; era divino e imortal; tinha sido enviado por
Deus para salvar os homens e voltaria para julgá-los» (pág. 64).
E porque haveráo chegado os estudiosos a tal conclusáo ?
Porque a redagáo dos Evangelhos se deve a urna época
tardía, assaz distanciada de Jesús.

Com efeito, nos primeiros decenios após a partida de Cristo os


discípulos nao pensaram em escrever algo a respeito do Senhor,
porque aguardavam como iminente a sua segunda vinda. Nos anos
66-70, porém, deu-se a tnvasao da Palestina por parte dos exércitos
romanos, terminando com a ruina de Jerusalém e do Templo; durante
essa campanha bélica foram destruidos os documentos religiosos dos
judeus e dos cristáos — inclusive as atas do processo de Jesús perante
o sinedrio ou os juizes judaicos. Caso os governadores romanos tives-
sem feito relatórios a respeito de Jesús, também estes (segundo o
articulista) teriam sido destruidos... ou durante a guerra de 66-70
na Palestina ou no grande incendio de 64, que devorou o edificio dos
arquivos do Imperio em Roma.

Depois da destruicáo do Templo de Jerusalém, propuse-


ram-se os cristáos escrever algo a respeito de Jesús, a fim de
nao perderem as recordagóes do Mestre. Em conseqüéncia,
tiveram origem os Evangelhos; estes, porém, nao sao documen
tos exatos, pois contém contradigoes, lacunas, passagens am-

— 243 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 2 .

bíguas; devem-se muito mais ia imaginacáo e ao fervor religioso


dos discípulos dos Apostólos do que ao criterio de historiadores
seguros.

Depois de explanar essas idéias, R. Coughlan procura


dissipar o pessimismo possivel, disseminado em seus leitores:
lembra que em 1947 foram descobertos interessantes manus
critos junto ao Mar Morto (Palestina); tais documentos,
datando em grande parte dos tempos de Jesús, poderáo «ajudar
a decifrar a historia» (pág. 74), isto é, projetaráo talvez novas
luzes sobre os ditos e feitos do Senhor Jesús...
Eis, em grandes linhas, o conteúdo do artigo de «REALI-
DADE». Os pormenores do artigo sao, por vézes, inexatos ou
francamente contrarios á verdade, como se depreenderá das
consideragóes abaixo.

2. Orígem dos Evangelhos

No século passado e em principio déste século, os críticos pre


concebidamente procuravam o mais possivel distanciar de Jesús his
tórico a redagáo dos Evangelhos; teriam sido escritos no decorrer do
séc. II ou no íim do séc. I. Os estudiosos se empcnhavam em esta-
belecer tao grande intervalo entre Jesús e os Evangelistas, para poder
dizer que os Evangelhos contém narrativas forjadas e mitos a respeito
de Jesús; naturalmente, as lendas a propósito de um morto só se
formam devagar, á medida que váo desaparecendo os contemporá
neos do herói falecido.

Robert Coughlan, em «REALJDADE»,- embora admita que


os Evangelhos tenham sido compostos a partir do ano de 70,
pretende desarraigá-los totalmente dos documentos históricos
anteriores concernentes a Jesús: urna guerra e um incendio
teriam destruido a estes, ocasionando a redagáo dos Evangelhos
sem base ñas descrigóes que os Apostólos fizeram a respeito
de Jesús. .

Ora tal teoría está longe de coincidir com os resultados


mais modernos da crítica. Com efeito,
1) É vá a idéia de que terá sido destruida em 66-70 a
documentagáo referente a Jesús. Como sabe o estudioso que
existía tal documentagáo ?... e que ela foi destruida ? — O
articulista versa no campo da hipótese gratuita. Na verdade,
o processo de redagáo dos Evangelhos nada tem que ver com
ésses presumidos arquivos judaicos e romanos.
2) Mais importante ainda é o seguinte: a. crítica hoje
em dia admite, tenham sido os Evangelhos sinúticos (Mateus,
Marcos e Lucas)

— 244 —
«QUEM ERA O HOMEM JESUS>

redigidos antes do ano de 70, ou seja, antes da destruigáo


do Templo de Jerusalém,
e... redigidos na base de documentos anteriores e tradi-
coes oráis que remontavam aos Apostólos e imediatos discípulos
de Jesús.
Redigidos antes do ano de 70... Em verdade, S. Mateus,
S. Marcos e S. Lucas referem a profecía de Jesús concemente
á ruina do Templo, que se deu em 70. Todavía nao consignam
o cumplimento dessa predicáo, o que teria grande valor apolo
gético para os cristáos. Tal silencio so se explica pelo fato de
que os tres Evangelistas, ao escrever, ainda nao haviam presen
ciado a catástrofe; redigiram, pois, antes do ano de 70.

Éste argumento, entre outros, é bastante ponderável para se


estabelecer a data de composicáo dos Evangelhos. Levando em conta
outros dados históricos e literarios, os críticos chegam a propor as
seguintes datas para as origens dos Evangelhos :

Mateus — entre 50 e 60;


Marcos — entre 52 e 62;
Lucas — entre 60 e 63;
Joáo — por volta do ano 100.

Redigidos na base de documentos e tradicoes anteriores...


Os estudiosos, depois de háver examinado os aspectos litera
rios dos Evangelhos e as circunstancias de vida das primeiras
comunidades cristas, julgam poder reconstituir do seguinte
modo o processo de formacáo dos Evangelhos :
Deve ter havido urna forma primitiva de catequese ou de
pregacáo do Misterio de Cristo, concebida em aramaico para
ser usada na Palestina. Essa forma inicial se deve provável-
mente ao Apostólo Sao Pedro, que já no dia de Pentecostés
deu pela primeira vez a «Boa-Nova» ao povo de Israel e de
entáo por diante costumava tomar a dianteira no ministerio
apostólico (cf. At &1-25; 4,8-14; 5,3-11.29-32; 10,34-43). O
esquema de catequese devia compreender a vida de Jesús desde
a pregagáo de Joáo Batista e o batismo do Senhor até a sua
exaltacáo gloriosa, mencionando os ensinamentos e os feitos
principáis de Cristo nesse periodo (cf. At 1,22; 10,37-43), a
fim de incutir a todos a conviccáo de que o Crucificado era
o Messias e Salvador aguardado no Antigo Testamento.

O esquema de catequese concebido por Sao Pedro parece ter


servido de base para a pregacáo da Boa-Nova por parte dos outros
Apostólos; constantemente repetida como era, tendía naturalmente
a tomar forma cada vez mais firme e rígida — resultado para o
qual concordara, sem dúvida, a tenacidade e a destreza de memoria
dos orientáis.

— 245 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 2

A catequese primitiva petrina foi sendo aos poucos consignada


por escrito a fim de poder ser mais fácilmente assimilada pelos
ouvintes: constituiram-se entáo pequeños blocos literarios, esparsos,
diriamos, em «fólhas volantes», blocos dos quais um dos mais famosos
devia ser o relato da Paixáo do Senhor (táo uniforme nos quatro
Evangelhos); outros blocos deviam conter urna serie de parábolas
ou urna serie de milagres ou um conjunto de episodios marcantes
da vida do Senhor ou um grupo de aforismos ou disticos típicos do
Mestre. A redacto escrita concorreu para tornar ainda mais estável
a.maneira de se anunciar a Boa-Nova.

Em breve, ou seja, á medida que as testemunhas da pri-


meira hora iam desaparecendo, os Apostólos pensaram em dar
redagáo escrita la catequese primitiva inteira, de modo a pro
porcionar aos seus fiéis um compéndiozinho da vida e dos
ensinamentos de Jesús. Desta tarefa foi incumbido o Apostólo
S. Mateus, o mais habituado a manejar o estilete. Mateus con-
feccionou assim o primeiro Evangelho, em aramaico, como se
entende; conservou á catequese petrina o seu caráter marca
damente judaico, visando fazer a apología de Cristo a partir
principalmente das profecías do Antigo Testamento. Na sua
obra de síntese, usou naturalmente os blocos literarios já exis
tentes, agrupando-os segundo a ordem lógica mais do que
segundo a ordem cronológica.

A catequese primitiva de Pedro, estendendo-se da Palestina para


o mundo gentío, foi sofrendo adaptacdes ditadas pelos pressupostos
da cultura dos novos ouvintes, sem que por isto perdesse a sua estru-
tura característica ou se desvirtuasse a sua doutrina.

Ela adquiriu, por conseguinte, o seu tipo romano, por


ocasiáo da pregacáo de S. Pedro em Roma. Ésse tipo foi con
signado por escrito, por obra de Joao Marcos, o secretario
e intérprete de Pedro. Note-se que o Evangelho de S. Marcos
reproduz exatamente o tragado da pregacáo de S. Pedro; come-
ga com o batismo administrado por Joño no deserto e encer-
ra-se com a Ascensáo do Senhor (Mateus e Lucas antepuse-
ram a ésse esquema algumas narrativas da infancia de Jesús).
Em Antioquia, a catequese primitiva revestiu-se de suas
modalidades antioquenas, a fim de atender ao mundo sirio
pagáo ao qual ela se dirigia. Sao Lucas, oriundo dessa cidade
e provávelmente ai convertido, tornou-se o autor de nova
redagáo da mensagem evangélica, dotada naturalmente do seu
caráter antioqueno.

Quanto ao Evangelho de S. Joüo, reproduz a catequese concebida


por éste Apostólo na Asia Menor, tendo em vista cristáos convertidos
do paganismo. Usou termos e conceitos caros á cultura helenista
(«Logos», verdade, testemunho, vida, luz...). Escrevendo já no fim

— 246 —
«QUEM ERA O HOMEM JESÚS»

do séc. I, o Apostólo nao quis repetir quanto haviam dito os sinóticos,


mas selecionou poucos ieitos e longos discursos de Jesús, que comple
mentan! os Evangelhos anteriores.

3. A fidelidade histórica dos Evangelhos

1. De quanto foi dito ácima, depreende-se que os Evan


gelhos reproduzem um ensinamento oral concebido pelos Apos
tólos desde a primeira hora da catequese crista em Jerusalém;
por isto eram outrora chamados «Memorias dos Apostólos»
(cf. S. Justino, t cérea de 165, Apol. I, 66; Dial. 103,8). Nao
há, pois, própriamente um intervalo entre a vida e a morte
de Jesús, de um lado, e, de outro lado, a redacáo das fontes
(oráis e escritas) que serviram para a composicáo dos Evan
gelhos; em vez de lacuna entre Cristo e os Evangelhos, há,
antes, continuidade. Se acontece, portante, que nos Evangelhos
Jesús se mostra nítidamente como Filho de Deus, igual ao Pai
(cf., por exemplo, Mt 11,27; Me 1,1), isto se pode explicar
pelo fato de que Jesús realmente asseverou ser o FUho de Deus
e se comprovou como tal aos seus Apostólos e discípulos; foi
pelo contato mesmo com o Mestre que os discípulos adquiriram
a certeza de que Jesús era o Filho de Deus. A proximidade
e continuidade existente entre Jesús e os Evangelhos nao deixa
ocasiáo a que se criassem mitos e lendas em torno de Jesús,
nem permite que do «mero homem Jesús» os discípulos fizes-
sem o «Deus Jesús».
Ademáis, observe-se que aos Apostólos nao ficava margem
para inventarem algo ao referirem a vida de Cristo; se hou-
vessem recorrido a éste expediente, teriam sido prontamente
denunciados como embusteiros. Com efeito; sabe-se que nao
faltavam entre os fariseus e o povo da Palestina testemunhas
da vida de Cristo hostis a Jesús e a seus discípulos; essas
testemunhas estavam certamente prontas a rebater qualquer
tentativa de mistificacáo por parte dos Apostólos; qualquer
mentira, fraude ou «invencáo imaginativa» haveria sido denun
ciada sem demora e nao passaria impune...
Também é de crer que urna pregacáo falsa, baseada na
mentira, nunca teria conseguido abalar a populagáo cética e
comodista do Imperio greco-romano, levando-a a abragar urna
Religiáo de moral táo exigente como era o Cristianismo.

2. Em particular, a respeito da ressurrelcSo de Cristo, observe-se


o seguinte: os Apóstalos, após a morte do Senhor, estavam longe de
esperar que file revivesse; perderam o animo e julgaram frustradas
as suas expectativas; nao estavam, pois, em condicSes psicológicas

— 247 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 2

para deixar-se alucinar pela idéia íixa de que Jesús ressuscitara;


mesmo depois que lhes foi anunciada a noticia da ressurrelcáo,
recusaram-se a lhe dar crédito (cf. Le 24,21-25. 36-43; Me 16,6-8;
Jo 20,9. 25). Doutro lado, o mundo judaico era infenso a mensagem
da ressurreicáo; os sacerdotes dos judeus mandaram por guardas
junto ao sepulcro de Cristo para que seus discípulos náo.roubassem
o cadáver do Senhor (cf. Mt 27,62-66). O mundo pagao, no qual o
Evangelho foi apregoado, por sua vez, era hostil á ideia de ressurreigao
dos mortos; isto equivaleria, para um cidadúo helenista, á volta da
alma ao cárcere do corpo; o ideal, para o homem greco-romano, era
emancipar-se do corpo.

Ora sábese que, apesar de todos ésses íatóres fortemente nega


tivos, a idéia da ressurreicáo de Jesús foi apregoada pelos discípulos
de Jesús; os Apostólos, de tímidos que eram, passaram a ser férvidos
arautos de tal mensagem e deram a vida por ela. Os judeus e pagaos
dos tres primeiros sáculos, por mais intensos que fóssem aos cristáos,
nao encontraram meios de denunciar um possivel erro ou urna fraude
qualquer na noticia da ressurreicáo de Jesús. Esta mensagem passou
através dos séculos até hoje.

Pergunta-se entáo: nao seria razoável admitir que a ressurreicáo


do Senhor tenha sido um fato histórico ? Ou pode-se razoávelmente
sustentar que a alucinacáo, a fraude, a mentira tenham sido o pedestal
de vinte séculos de Cristianismo? O mundo antigo foi iludido, deixando
passar a falsa noticia de que Cristo ressuscitou ? Diante de tais
alternativas, urna reflexáo de bom senso parece levar á seguinte
conclusáo: acreditar que fraude ou alucinacáo tenham dado o fun
damento a vinte séculos de Cristianismo requer maior fé do que .
acreditar na própria .ressurreicáo de Jesús; é o que reconhecem os
mais sinceros críticos de nossos dias. Se a fé na ressurreicáo de Jesús
prevaleceu, apesar das indisposigóes dos próprios Apostólos, do mundo
judaico e do ambiente greco-romano, isto só se pode explicar pelo
íato mesmo da ressurreicáo; esta deve ter sido um acontecimento
histórico, ao qual os Apostólos e discípulos de Cristo tiveram que
se render e contra o qual os adversarios de Jesús e dos cristáos nao
puderam apresentar contra-argumento algum.

3. Aínda urna observagáo permite comprovar que os


Apostólos e os primeiros discípulos de Jesús foram fiéis arautos
dos ensinamentos e dos feitos de Jesús. Com efeito, os conceitos
de «testemunho», «testemunha» c «testemunhar» ocorrem mais
de 150 vézes no Novo Testamento.

Ora «testemunha» é a pessoa que está habilitada a fazer


afirmacóes verídicas, pois tem o conhecimento de causa mais
seguro, que é a própria experiencia pessoal.

É interessante notar a insistencia com que os Apostólos


se apresentam como testemunhas de Jesús; afirmam nao trans
mitir senáo o que viram e ouviram. Parece, de certo, que a
regra de «testemunhar apenas», sem nada acrescentar de falso,
marcava profundamente a vida e a profissáo de fé das antigás

— 248 —
«QUEM ERA O HOMEM JESÚS»

comunidades cristas. Tenham-se em vista as seguintes passa-


gens.:

Quando entre a Ascensáo e Pentecostés os Apostólos trataram


de substituir Judas, o traidor, estipularam, como qualidade própria
do novo Apostólo, a de testemunha, e... testemunha principalmente
da ressurreicáo do Senhor. Tais íoram entáo as palavras de Sao Pertro:
«Convém que, dentre ésses homens que tém estado em nossa
companhia todo o tempo em que o Senhor Jesús viveu entre nos, a
comecar do batismo de Joáo até o dia em que de nosso meio foi arre
batado, um déles seja incluido em nosso número, como testclnunha
da sua ressurreig&o» (At 1, 21s).
No dia de Pentecostés, afirmava Sao Pedro: «A ésse Jesús,
Deus ressuscitou. Disto todos nos somos testemunhas» (At 2,32).
No seu segundo sermáo, voltava a dizer Sao Pedro: «Matastes
o principe da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos. Disto nos
somos testemunhas» (At 3,15).

Diante do sinedrio, Pedro e os Apostólos responderam :


«Foi Deus quem, com a sua destra, elevou (a Jesús) como Prín
cipe e Salvador para dar a Israel o arrependimento e a remissáo dos
pecados. E nos somos testemunhas dessas coisas, nos e o Espirito
Santo, que Deus deu a todos os que lhe obedecen» (At 5,31s).
Em casa de CornéUo, dizia S. Pedro: «E nos ¡somos testemunhas
de tudo que (Jesús) íéz no país dos judeus e em Jerusalém. files
O mataram, suspendendo-O a um madeiro. Deus, porém, O ressuscitou
ao terceiro dia, e permitiu-Lhe aparecer de modo visivel, nao a todo
o povo, mas as testemunhas antes escolhidas por Deus : a nos, que
que comemos e bebemos com Ele, depois que ressuscitou dos mortos»
(At 10, 39-41).

Palavras de Sao Paulo: «... Mas Deus O (Jesús) ressuscitou


dos mortos. Por muitos dias apareceu aqueles que com Ele tinham
subido da Galiléia para Jerusalém e que sao agora suas testemunhas
perante o povo» (At 13, 30s).

Sao Paulo, ao cantar sua conversáo, refere a seguinte ordem


de Deus :
«Levanta-te e p6e-te em pé, pois eu te apareci para te constituir
ministro e testemunha das coisas que viste, e de outras para as quais
hei de me manifestar a tb (At 26, 16).

Sao Paulo fazia questáo de lembrar aos corintios as principáis


testemunhas da ressurreicáo :
«Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; íoi
sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as mesmas Escri
turas; apareceu a Cefas e depois aos doze. Posteriormente, apareceu,
de urna vez, a mais de quinhentos irmaos, dos quais a maior parte
vive até hoje, tendo alguns falecido. Depois apareceu a Tiago e, em
seguida, a todos os apostólos. Por fim, depois de todos, apareceu
também a mim, como a um abortivo».

— 249 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 2

Por fim, Sao Pedro escrevia aos fiéis da Asia Menor:

«Eu, presbítero... e testemunha dos sofrimentos de Cristo . >


(1 Pdr 5,1).

Alias, ao acentuar o seu papel de testemunhas, os Apostólos nao


faziam senáo cumprir os dizeres do Mestre: «Seréis minhas testo-
numlios» (At 1,8; cí. Le 24,48).

Intencionando, pois, passar por testemunhas, os Apostólos


teráo tomado o devido cuidado para ser fiéis á mensagem
de Cristo.

4. Imprecisoes e falhas menores

Eis algumas das varias afirmagóes pouco corretas das


páginas de «REALEDADE» aqui comentadas :

1) P&g. 71, coluna 2: «Já no íim da vida, a pedido insistente dos


apostólos que aínda viviam, Joáo resolveu escrever sua versao do
Evangelho. Mas Joáo havia envelhecido e tendia naturalmente a ser
um tanto rabugento e dogmático, e também a confundir as datas e
seqüéncias de acontecimentos já táo distantes».

Note-se : Sao Joáo viveu até cérea do ano 100 e escreveu


o Evangelho no fim da sua vida; foi o Apostólo que sobreviveu
aos demais, pois havia sido chamado muito jovem e virgem.
Por conseguinte, nao escreveu.«a pedido insistente dos Apos
tólos que aínda viviam».
Está comprovado que Sao Joáo, longe de confundir os
dados da vida de Jesús, foi, dentre os Evangelistas, o que mais
se esmerou tanto em cronología como em topografía.

Assim é sómente Sao Joáo quem nos dá a saber que o ministerio


público de Jesús durou cérea de tres anos, pois refere no mínimo
tres festas de Páscoa, por ocásiao das quais Jesús subiu da Galiléla
a Jerusalém; cí. 2,13; 5,1; 12,12. O mesmo Evangelista faz exata
mencáo das circunstancias de lugar, dia, hora e pessoas, o que supGe
urna testemunha ocular dos acontecimentos referidos; tenha-se em
vista:

1,29.35 — «no dia seguinte...»;


1,39 — «por volta da décima hora...»¡
2,1 — «tres dias depois...»;
4,6 — «a margem do poco, á sexta hora aproximada
mente»;
4,52 — «ontem a hora sétima»;
6.19 — «tendo remado cérea de 25 ou 30 estadios...>
(Mt 14,24s e Me 6,47 silenciam éste pormenor);
8.20 — «junto ao Tesouro»;
11,6 — «Jesús esperou dois dias...»;
18,16 — «Pedro ficava junto á porta, do lado de fora».

— 250 —
«QUEM ERA O HOMEM JESÚS»

A arqueología recentemente confirmou algumas indicagóes topo


gráficas de Sao Joáo, projetando luz sdbre o texto do Evangelista;
assim a piscina de Bethzatha (cí. Jo 5,2) e o LIthóstrotos de Pila tos
(cf. Jo 19,13) foram ültimamente descobertos.

2) Pág. 66, col. 2": «... saduceus, a seita majoritária em Jeru-


saléiro.

É notorio que os saduceus constituiam urna élite intelec


tual, dada á cultura helenista, em oposicáo á facgáo majoritária
e popular de Jerusalém, que era a dos fariseus.

3) Pág. 68, col. 2: «Joáo Marcos provávelmente aprendeu grego


táo bem quanto latim».

Sao Marcos, filho de familia de Jerusalém, falava o ara-


maico como lingua materna. Aprendeu o grego, que era o
idioma oficial do Imperio Romano; o grego de S. Marcos, porém,
é pouco categorizado, muito simples e cheio de construgóes
semíticas. Pouco provável é que tenha aprendido o latim, que
no séc. I nao era senáo um dialeto — o dialeto do Lacio.

4) Pág. 6*. coL 1: a historia judaica até o nascimento de


Cristo durou milenios !

Na verdade, a historia de Israel comegou com Abraáo,


1850 anos antes de Cristo — o que nao perfaz dois milenios.

5) Pág. 74, mánchete: «Manuscrito milenar ajuda a deciírar a


historia».

O articulista tem em vista os manuscritos descobertos em


1947 junto ao Mar Morto. Datam do limiar da era crista (pouco
antes e depois de Cristo); tém, portanto, quase dois mil anos
(sao bimilenares). — Tais manuscritos nao se referem la vida
de Jesús, mas aos textos bíblicos do Antígo Testamento e á
vida da comunidade de monges judaicos (essénios) que se esta-
beleceram ñas grutas próximas ao Mar Morto pouco antes de
Cristo. Jesús e seus discípulos constituem urna sociedade bem
diversa da dos essénios; estáo ultrapassadas as teses dos críti
cos que queriam ver em Jesús urna segunda edicáo do «Mestre
de Justiga» essénio; cf. «P. R.» 4/1958, qu. 9.
Ainda varias observagóes se poderiam fazer ao artigo de
Coughlan. Estas, porém, bastam para evidenciar que nao expri
me as conclusóes dos estudos mais. serios sobre a figura humana
de Jesús.

— 251 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 90/1967, qu. 3

III. DOGMÁTICA

LUCIO (Niterói) :

3) «Aínda estáo em uso as indulgencias na Igreja ?


Qne dissc a respeito o Papa Paulo VI nos últimos tempos ?»

O tema «indulgencias» deu ansa a numerosos escritos e


debates nos últimos séculos. Tanto a piedade popular católica
como a crítica náo-católica sugeriram erróneas concepQóes a
respeito. Tais mal-entendidos constituem, sem dúvida, notável
obstáculo á uniáo dos cristáos. Por isto os Padres conciliares
do Vaticano n exprimiram o voto de que se reformulasse o
instituto das indulgencias (o que nao quer dizer, fóssem reto
cados os pontos dogmáticos ai envolvidos), a fim de que se
dissipassem os equívocos sobre o significado e o valor das
indulgencias.
Atendendo a tal desejo, o S. Padre Paulo VI, a iyi/1967,
promulgou a Constituido Apostólica «Indulgentiarum doc
trina», na qual propóe em termos simples e claros tanto os
aspectos dogmáticos como as normas jurídicas e práticas do
instituto das indulgencias. A nova apresentacáo das idéias,
ricamente fundamentada na S. Escritura e na Tradigáo, será
abaixo explanada em suas grandes linhas.

Em «P. R.» 2/1958, qu. 2; 8/1958. qu. 4, já tratamos do tema


«indulgencias» do ponto de vista histórico, ou seja, mostrando como
e com que sentido surgiram na praxe da Igreja.

1. Quatro grandes pontos doutrinários

Quatro sao as proposigóes dogmáticas donde se deriva


lógicamente o instituto das indulgencias :

1) Todo pecado acarreta a necessidade de expiagáo;

2) Em vista da expiacjio, existe na Igreja o tcsouro infinito


dos méritos de Cristo, que Irutiíicou nos méritos da Bemaventurada
Virgem Maria e dos demais santos;

3) Cristo confiou a sua Igreja o Roder das chaves para admi


nistrar o tesouro da Redencao;

4) Fazendo uso déste poder, a Igreja, era determinadas circuns


tancias, houve por bem aplicar os méritos de Cristo aos penitentes
dispostos a expiar os pecados.

_ 252 —
AS INDULGENCIAS

Percorramos cada qual • destas proposigóes de per si.


1) Todo pecado acarreto consigo a necessidade de expia-
cáo, depois de haver sido perdoado.

Que quer isto dizer ?


O pecado nao é sómente a transgressáo de urna lei ou de
urna norma jurídica, mas é a violagáo de urna ordem de coisas
harmoniosa, estabelecida pelo próprio Criador; é sempre um
daño infligido tanto ao individuo que peca, como á comunidade
dos homens. Por conseguinte, para que haja plena remissáo
do pecado, nao sómente é necessário que o pecador obtenha
de Deus o respectivo perdáo, mas requer-se outrossim que
repare a ordem violada. Esta reparagáo há de ser sempre
dolorosa, pois significa mortificagáo do velho homem pecador
ou das concupiscencias desregradas que todo homem traz em
si e que o pecado só faz agucar.

A própria Escritura Sagrada, em mais de urna passagem, dá


a ver que o Senhor Deus, mesmo após haver perdoado a culpa do
pecador exigiu reparasse a ordem burlada. Tal exigencia nao era
algo de arbitrario, mas, sim, a expressao da harmonía instituida
pelo Criador.

Tenham-se em vista os seguintes exemplos:


Os primeiros pais, Adáo e Eva, íoram certamente absolvidos do
seu pecado <cf. Sab 10,2). Nao obstante, o Criador os quis submeter
a graves penas até o fim da vida (el. Gen 3,16-19).
Moisés e Aaráo cederam á pouca íé em dado momento da sua
vida. O Senhor Ihes perdoou as faltas, mas, em expiacáo das mesmas,
nao Ihes permitiu entrar na Térra Prometida (cf. Núm 20,12s; 27,12-14;
Dt 34,4.10-12).
Davi culpado de homicidio e adulterio, loi agraciado ao reco-
nhecer suas culpas; nao obstante, teve que soírer a pena de perder
o lilho do adulterio (cf. 2 Sam 12,13s).
Em outros textos bíblicos, o perdáo é estritamente associado a
obras de expiacáo, como o jejum (Jl 2,12s; Is 58,6s), a estnola (Tob
4,lls; Eclo 3,30; 29,12), o uso da misericordia (Dan 4,24).

Caso a reparagáo nao seja prestada nesta vida terrestre,


a Sabedoria de Deus providenciou a que ela possa ser feita na
vida postuma, ou seja, no purgatorio.

De passagem, note-se que o purgatorio postumo nao é algo de


normal, embora se possa crer seja o caso de muitos e muitos cristáos;
a ocasiáo oportuna de nos purificarmos do velho homem e de suas
paixdes 6 esta vida terrestre, que a Providencia Divina sabiamente
vai marcando pola cruz purificadora de cada dia; sofrendo volunta
riamente por amor a Deus e em odio ao pecado, preparamo-nos para
ver a face da Beleza incriada logo após a morte.

— 253 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 3

2) Em vista da expiagáo dos pecados, existe na Igreja


um tesouro infinito de méritos que Cristo adquiriu mediante
a sua Paixáo e Morte; ésse tesouro frutificou nos méritos da
Bem-aventurada Virgem Maria e dos Santos. É chamado o te
souro da Igreja.
Ora essa imensa riqueza espiritual se destina a todos os
homens, em particular a todos os membros do Corpo Místico
de Cristo. Sim; todos aqueles que foram enxertados em Cristo
pela Batismo e vivem em plena comunháo com a Igreja, cons-
tituem urna grande familia, solidaria e unida entre si pela cari-
dade. Em canseqüéncia, os méritos de uns redundam em bene
ficio dos outros; os atos satisfatórios que as almas retas prestam
a Deus, podem auxiliar a outros cristáos que precisem de
expiar, seja aqui na térra, seja no purgatorio. Em outros termos:
pelas nossas preces,- pelas nossas obras boas e pelos nossos
atos de mortificagáo, unidos aos méritos de Cristo, podemos
ser úteis nao só a nos mesmos, mas também a nossos irmáos,
que devam prestar satisfagáo a Deus por seus pecados.

É a essa solidariedade que se dá o nome de «Ckwnisnhao dos


Santos». Tal expressáo data dos primordios do Cristianismo; segundo
os documentos maís antigos em que ocorre, dasigna primariamente
«a comunhao de bens esplrihiais ou de coisas sontas», segundo a
qual vivem os iilhos da Igreja. Saiba-o ou nao, cada membro da Igreja,
por seus atos bons, contribui para aumentar o patrimonio espiritual
da S. Igreja, patrimonio que todos os íiéis católicos possuem em
comum.
Derivadamente, a expressáo «comunháo dos santos» significa
«comunháo de pessoas santas (consagradas a Deus pelo Batismo)».

Paralelamente ao que acaba de ser dito, deve-se acres-


centar que todo demérito ou ato mau de um cristáo redunda
em detrimento da comunidade eclesial. Ninguém peca, com
prejuízo apenas para si mesmo; toda culpa afeta nao sómente
o respectivo sujeito, mas também todos os demais membros
do Corpo Místico. É de grande importancia em cada época da
historia da Igreja e da humanidade o nivel geral de santidade
em que se achem entáo os fiéis católicos; aos olhos de Deus
Pai, a Igreja, embora seja sempre aceita e bem-amada, pode
ser ora mais, ora menos graciosa, de acordó com a riqueza da
graca santificante que cada um dos seus filhos traga em si.
Essa graciosidade variável dos filhos da Igreja nao pode deixar
de repercutir no conjunto do género humano, pois Deus quis
fazer de seu povo um povo sacerdotal em meio aos demais povos.
Entre parénteses, observe-se o imenso valor que tem a vida de
um cristáo, por mais simples e obscura que seja. Pelo fato de estar
enxertada em Cristo, nao é mais a vida de um individuo, com suas

— 254 —
AS INDULGENCIAS

dimensóes muito restritas, mas é a do próprio Cristo e da grande


multidáo de membros de Cristo espalhados pelo orbe. Mesmo os atos
de virtude ou de iníidelidade mais ignorados dos homens váo reper
cutir nos grandes problemas da Igreja e dos povos.

3) Cristo confíou á sua Igreja o poder das chaves para


dispensar o tesouFo da Redencáo. Tal poder toca principalmente
ao Apostólo Pedro e a seus sucessores. — É esta a doutrina
afirmada pelo próprio Senhor Jesús em Mt 16,18s; 18,18.

4) Consciente de tal faculdade, a Igreja, no decorrer dos


tempos, resolveu aplicá-la em favor dos cristaos penitentes
que aínda tivessem de prestar expiágáo por seus pecados.
Com efeito. Sabe-se que nos cinco primeiros séculos os
pecadores que desejassem receber o sacramento da Penitencia,
confessavam seus pecados a um ministro de Deus. Nao eram
imediatamente absolvidos... Antes de dar a absolvigáo sacra
mental, o presbítero (ou o bispo) cuidava de que o penitente
prestasse a devida reparagáo por seus pecados; estipulava,
portanto, urna satisfagáo justa e congrua, correspondente á
gravidade das faltas acusadas. Tal satisfagáo era geralmente
muito penosa: quarentenas de dias ou alguns anos de jejum,
em que o penitente se trajava com sacos e cilicio, ficando
privado de assistir á Liturgia eucarística. — Sómente depois
de terminar a respectiva satisfagáo, era o pecador absolvido.
Julgava-se entáo que estava isento da culpa como de ,tóda
a pena expiatoria devida aos seus pecados.
Compreende-se, porém, que tal praxe exigía grande gene-
rosidade e perseveranga por parte dos penitentes. Já que tais
predicados nao se encontram, nem se podem supor, em todas .
as criaturas humanas (mesmo quando sao membros da Igreja),
a sabedoria materna da Igreja houve por bem alterar paulati
namente o rito de administragáo do sacramento da Penitencia.

A partir do séc. VI, íol estabelecido que o pecador, após coníessar


as suas faltas a um ministro de Deus, seria exortado pelo sacerdote;
éste, a seguir, lhe imporia urna penitencia e daria a absolvigáo, sem
esperar o cumprimento da satisíacáo. Assim o penitente nao passaria
meses ou anos sem ter recebido a absolvicSo dos pecados de que se
tivesse arrependido e confessado.
A penitencia imposta nestas novas circunstancias eontinuava a
ser rigorosa (jejuns, ílagelacñes, longas preces, peregrinacoes:..)
e podía protrair-se por dezenas ou centenas de dias. A nova praxe
aínda exigía predicados que a natureza humana muitas e muitas
vézes nao ápresenta.
Consciente disto, a' Igreja paulatinamente interveio de ndvo nos
usos penitenciáis, levando em conta os graves incómodos e a.fraqueza

— 255 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 90/1967. qu. 3

íisica de seus filhos. Com efeito, foram sendo instituidas as chamadas


«comutac5es» ou «redengóes> de penitencias.
As comutacóes tém seu fundamento na própria Sagrada Escritura:
a Lei de Moisés enumerava casos em que as obrigacdes dos fiéis
eram legítimamente comutadas e mitigadas, desde que se tornassem
demasiado onerosas (cf. Lev 5, 7.11).

Em que consistiam própriamente as comutagóes de peni


tencias na Igreja do século IX ?
Como foi dito, a S. Igreja é a depositarla dos méritos de
Cristo, que frutificaram nos méritos da Bem-aventurada Virgem
María e dos Santos, constituindo o tesouro da Igreja. Ora as
autoridades eclesiásticas julgaram oportuno, a partir do séc.
IX, aplicar ésses méritos em favor dos pecadores absolvidos
que se deviam submeter a rigorosas penitencias. As duras obras
expiatorias dos antigos foram entáo sendo substituidas (comu
tadas) por outras obras mais brandas, obras as quais a S.
Igreja associava diretamente os méritos satisfatórios de Cristo;
assim, em lugar de jejuns, podiam ser impostas oragóes; em
vez de longa peregrinagáo, o pernoitar em um santuario; em
vez de flagelacóes, urna esmola...
Estas obras mais brandas, embora em si tivessem menos
valor expiatorio, eram, nao obstante, igualmente valiosas, pois
a S. Igreja, num gesto de indulgencia, lhes anexava algo da
expiacáo sumamente meritoria do Senhor Jesús. Foram cha
madas «obras indulgenciadas» (enriquecidas de indulgencia).
A remissáo da pena temporal obtida pela prática de tais obras
tomou o nome de «indulgencia».
No séc. XI, os bispos comegaram a conceder indulgencias
gerais, isto é, oferecidas a todos os fiéis, sem se exigir a inter-
vencáo direta de um sacerdote. Em outros termos : os bispos
estipularam que, prestando tal ou tal obra, os fiéis poderiam
obter a remissáo da pena devida aos seus pecados já absolvidos.
Assim, quem colaborasse na construgáo de um santuario ou
qúem rezasse determinadas preces, lucraría urna indulgencia
de 100 dias, 1 ano, 7 anos... Bastaría que os fiéis prestassem
a obra indulgenciada, animados de sincero espirito de peniten
cia, tendo em vista de maneira geral a expiacáo dos seus peca
dos. Esta praxe ficou em vigor até os tempos recentes na Igreja.

Quando se falava de «indulgencia de 100, 300 dias, um ou mais


ariosa, nao se designava um estágio no purgatorio, pois neste nao há
dias nem anos. Com essa contagem indicava-se a remissáo da pena
que alguém outrora expiaria fazendo 100, 300 dias, um ou mais anos de
penitencia rigorosa, avaliada segundo a praxe da Igreja antiga. Até os
tempos mais recentes, a terminología da Igreja nesse setor supunha
o modo de falar e os costumes dos sáculos antigos e medievais.

— 256 —
AS INDULGENCIAS

As consideragóes ácima comprovam suficientemente que,


ao instituir as indulgencias, a Igreja teve em mira auxiliar
os seus filhos que tenham obtido o perdáo de seus pecados,
mas ainda devam prestar reparagáo pelos mesmos.

Hoje em dia, " quando a S. Igreja proclama urna indulgencia, Ela


escolhe determinada obra ou prece e implícitamente interpela cada
um de seus filhos, dizendo-lhe : «Tal ou tal obra, simples e fácil, poderá
equivaler á satisfacao devida aos teus pecados, pois, na qualidade
de Esposa de Cristo e Dispensadora da graga, associo a essa obra
os méritos infinitos do Redentor. É Cristo entáo quem, de manelra
especial invocado pela Igreja, satisfaz por ti, quando realizas tal
obra de virtudes.

É muito importante notar que ninguém pode lucrar indul


gencia sem que haja previamente confessado as suas faltas
(as obras indulgenciadas nao obtém o perdáo do pecado como
tal) e sem que excite em si o espirito de contrigáo que o
levaría a prestar as rigorosas penitencias da Igreja antigaj
sem éste ánimo interior, nada se pode adquirir. Donde se ve
que a praxe das indulgencias está longe de reduzir a religiáo
a formalismo e mercantilismo.

Na verdade, pode-se crer que é muito difícil ganhar urna indul


gencia plenária; quem, ao recitar breve prece indulgenciada ou ao
fazer visita a um santuario, pode ter certeza de estar contrito dos
sous pecados a ponto de nao lhes ter mais o mínimo apego ? O velho
homcm mais ou menos arraigado em cada cristáo, é caprichoso e
sorrateiro; para dominá-lo, é necessária assídua vigilancia com o
auxilio da graca.

Vejamos agora

2. A aplicacao das indulgencias

No fim da Idade Media, a mentalidade do povo cristáo se ressentia


da íalta de sólida íormacSo bíblica e teológica. A gente simples se
deixava fácilmente levar pela imaginacáo, entregando-se a práticas
de piedade, por vézes, estranhas. Dentro déste quadro, o instituto
das indulgencias foi, nao raro, mal-entendido : podia parecer o caminno
mais fácil para «comprar» o perdáo dos pecados e o ceu.
Foi éste desvirtuamento no conceito e na prática das indulgencias
que ocasionou a revolta de Lutero.
O Concilio de Trento (1543-1565), sem desdizer á teología das
indulgencias, coibiu os abusos verificados anteriormente.
Eis, porém, que nos últimos sáculos foi-se aumentando o número
de preces, ohras, "objetos de piedade e santuarios indulgenciados.
Ademáis a contagem de 100, 300 ou mais días de indulgencia perdeu
seu sentido. Nao s&mente nada significava (pois supunha condicOes
Históricas que haviam caído no esquecimento do povo), mas ainda

— 257 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 3

dava lugar a que certos fiéis tentassem fazer sua contabilidade junto
a Deus; adicionavam os días, meses e anos de indulgencias adquiridas,
esquecendo nao raro o espirito religioso (o arrependimento do pecado
e o amor a Deus) sem o qual ninguém lucra indulgencias. Enfim,
o instituto das indulgencias se tornara algo que muitos fiéis católicos
(assim como numerosos cristáos nao-católicos) nao sabiam mais rela
cionar com as grandes verdades da S. Escritura e da genuína Tradi-
cao crista.

Eis por que Sua Santidade Paulo VI quis nao sómente


lembrar aos cristáos as verdades dogmáticas atrás recenseadas,
mas também estabelecer novas disposigóes para a aquisigáo de
indulgencias. Essas normas se acham formuladas em vinte ítens
da Constituigáo «Indulgentiarum doctrina»; podem ser resu
midas nos seguintes pontos:

1) A S. Igreja continua a conceder indulgencias plenárias


e indulgencias parciais. Aquelas significam a remissáo de toda
a pena temporal devida a pecados já absolvidos; estas, a remis
sáo de parte da pena temporal.
Fica, porém, abolida a indicagáo de días e anos de indul
gencia parcial. O valor das indulgencias parciais será doravante
expresso segundo urna fórmula muito mais compreensível aos
fiéis e muito mais inspirada pela teología.
Com efeito, sabe-se que toda boa obra (prece, esmola,
mortificagáo, visita a urna igreja...) tem anexo a si um deter
minado mérito; se alguém realiza tal obra em espirito de
contrigáo ou arrependimento de suas culpas, adquire a remissáo
de urna parte de suas penas purgatorias. Pois bem; o S. Padre
Paulo VI determinou que, para o futuro, quem fizer urna agáo
indulgenciada pela Igreja, obterá (aléirí da remissáo anexa
ao ato bom como tal) urna igual remissáo deyida á intervengáo
da S. Igreja, Isto significa, em última análise, que a medida
das indulgencias parciais é a medida do arrependimento e do
amor a Deus com que alguém pratica a agáo indulgenciada:
se o cristáo a realiza com ánimo rotineiro e tibio, pouco lucra;
ao contrario, quanto maior fervor ele empenhar na execugáo
da obra indulgenciada, tanto máis também será ele indulgen
ciado.
Vé-se como esta disposigáo é apta a fazer do instituto das
indulgencias um estímulo para a renovacáo e o afervoramento
da piedade dos fiéis.
2) O número de indulgencias plenárias será reduzido.
Em vista disto, seráo reformados os catálogos de indulgencias
até hoje vigentes tanto na Igreja universal como em determi
nada Ordem, Congregacáo ou associagáo religiosa.

— 258 —
AS INDULGENCIAS

O motivo da redugáo é o desejo de evitar a rotina e excitar nos


liéis a consciéncia de que a indulgencia plenária é algo de muito
grande, algo que ha de ser bem preparado.

Cada indulgencia plenária só poderá ser adquirida urna


vez por dia. Estáo, pois, supressas as indulgencias plenárias
«toties quoties» (= a ser lucradas todas as vézes que no mesmo
dia se praticasse a obra indulgenciada). Todavia, se alguém
se achar em artigo de morte, poderá sempre obter a indulgencia
plenária anexa á béncáo apostólica, indepepdentemente de outra
indulgencia plenária adquirida no mesmo dia.

As indulgencias parciais poderáo ser lucradas mais de urna


vez por dia.
É certo que permaneceráo
a indulgencia plenária do dia 2 de novembro, a ser aplicada em
sufragio dos fiéis defuntos;
a indulgencia da Porciúncula (2 de agosto), a qual poderá ser
adquirida em qualquer igreja paroquial, e nao sómente na Basílica
de S. María dos Anjos em Assis (a menos que o bispo local determine
outra data mais oportuna para conceder indulgencia plenária aos
seus diocesanos).

3) Nao se fale mais de objetos (medalhas, tercos, cruci-


fixos, escapularios...) indulgenciados nem de lugares (santua
rios, igrejas, basílicas...) indulgenciados, mas, sim, de obras
indulgenciadas mediante o uso de tal ou tal objeto de piedade
ou mediante a visita de tal ou tal igreja. Assim a Igreja quer
dissipar a impressáo de que sao as coisas materiais como fais
que santificam o cristáo; Ela incute que a remissáo dos pecados
é sempre proporcional a piedade de quem usa objetos sagrados;
estes sao apenas a ocasiáo para que o fiel excite sua contricáo
e seu amor a Deus, e assim obtenha indulgencia.

A Igreja nao quis abolir o uso de objetos sagrados na piedade


crista e na prática das indulgencias, porque tais objetos sao muito
consentáneos com a natureza sensivel do homem (das coisas visíveis
o homem naturalmente se eleva ás invisíveis); todavia a Esposa
de Cristo quis atribuir lugar discreto a tais objetos, a fim de salientar
bem a importancia que tem o ánimo ou o espirito com que os fiéis
praticam seus atos de devocáo (beijar um crucifixo, trazer um esca
pulario, rezar com um terco bento... sao atos que santificam na
medida do fervor com que cada fiel pratica tais exercicios).

Portante nao se fará mais a distincáo entre tal objeto


indulgenciado e tal outro... Dizia-se mesmo até época recente
que «tal» objeto de piedade era mais rico de indulgencias do
que «tal outro». — Na verdade, a Igreja apenas quer designar
quais os objetos indulgenciados (um crucifixo, urna medalha,

— 259 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 3

um escapulario...); guem dá a medida da riqueza espiritual


désses objetos, é a piedade ou a devogáo de cada um dos fiéis
que os usam. Crucifixos, medalhas, tercos bentos por um sacer
dote e indulgenciados poderáo ter igual valor espiritual se fórem
utilizados com igual piedade ou fervor.
Mais urna vez importa reconhecer o espirito dessas novas
normas: visam interiorizar a devogáp dos fiéis, excitando-os
a compenetrar-se de que Deus, ácima de tudo, deseja um cora-
gáo contrito e humilde, coragáo cheio de amor ao Senhor (cora
gáo, porém, que, conforme a sua própria índole, nao pode dis
pensar as criaturas sensiveis para subir até o Senhor Deus).

4) Nao haverá mais altar privilegiado, ou seja, altar no


qual se podia celebrar a S. Missa de modo a obter indulgencia
plenária em favor das almas do purgatorio. Todas as SS. Missas
podem do mesmo modo sufragar aos fiéis defuntos, indepen-
dentemente do altar em que sejam celebradas.
A respeito de «altar privilegiado», cf. «P. R.» 8/1958, qu. 4.

5) Para que alguém possa lucrar indulgencia plenária,


requer-se que, além de executar a obra indulgenciada,
faca tuna confissáo sacramental,
receba a comunhSo eucarística,
ore segundo as intencSes do Sumo Pontífice (um «Pai Nosso»
e uma «Ave María» ou outra prece sugerida pela piedade de cada um),
nao guarde o mínimo apego a qualquer pecado, aínda que seja
venial.

Se alguém puder cumprir, mas de fato nao cumprir, estas


condigóes, só lucrará indulgencia parcial.
A confissáo sacramental poderá ser efetuada alguns dias
antes ou depois da obra indulgenciada. A S. Comunháo, porém,
e a oragáo pelo Sumo Pontífice deveráo ter lugar no dia mesmo
em que se realizar a obra.
Basta uma confissáo sacramental para adquirir mais de
uma indulgencia plenária. Requer-se, porém, uma S. Comunháo
e uma oragáo segundo as intengóes do Santo Padre para cada
indulgencia plenária.
Eis as principáis normas que caracterizan! a nova legis-
lagáo das indulgencias na Igreja.

3. Os precedentes da nova Constituigáo

A fim de elaborar o novo documento sobre as indulgencias,


o S. Padre Paulo VI nomeou duas Comissóes de sete membros

— 260 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES ?

cada urna: a primeira, constituida de teólogos; a segunda, de


peritos em Direito Canónico. Essas duas comissóes, embora
tenham trabalhado separadamente, sempre mantiveram contato
entre si no decorrer dos seus estudos.
A comissáo teológica, presidida por D. Carlos Colombo,
bispo titular de Vitoriana, terminou seus trabamos em setem-
bro de 1966. A sua relagáo final foi apresentada ao S. Padre
pelo Cardeal Secretario de Estado aos 26 de outubro de 1966.
A comissáo jurídica, após utilizar os estudos da anterior,
concluiu sua tarefa em novembro de 1966.

Ésses teólogos e juristas recolheram os pareceres de 78 Confe


rencias de Bispos esparsas pelo mundo inteiro. Désses pareceres, 64
eram favoráveis k reforma do instituto das indulgencias; apenas 14
Ihe foram contrarios. Maniíestaramse em favor da reforma princi
palmente os bispos do Oriente, do Norte da Europa e de alguns países
de missSes.

Assim elaborada e promulgada, a nova Constituigáo sobre


as indulgencias vem a ser mais urna expressáo fiel das grandes"
aspiragóes do Vaticano II. /

MARÍA HELENA (Belo Horizonte) : í <* R, G. S

4) «Poderia a ordenacao sacerdotal ser\corap


cndeEida as
mulheres? '"^'¿TífÁ t\
Quais os pros e contras dessa questao ?» ^"^-^ —

O assunto tem sido debatido principalmente na Europa.


Procuraremos reproduzir abaixo os principáis argumentos do
debate, do que resultará urna conclusáo assaz evidente.

1. Em favor...

1. Durante longos sáculos, a mulher exerceu na sociedade


quase exclusivamente as fungóes de esposa e máe, destituida
de influencia na cultura e na vida pública.

A fim de ilustrar a mentalidade que relegava a mulher para


tal condicáo, vai aqui citado um parecer sobre a figura femini'na
inspirado pelo modo de pensar dos antigos :
«A mulher..., um ser dependente, passivo, relativo, que só se
define em vista do homem. Suas qualidades sao a intuicao, a dedicacao,
a doacáo de si mesma, a receptividade, certa 'prudencia', o senso
das relacSes humanas. É hábil, ágil, possui o senso dos pormenores.

— 261 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/19G7, qu. 4

Todavía carece de lógica, de espirito de sintese. É nervosa, infantil,


sujeita fácilmente a cansar-se, incapaz de comandar. É caprichosa,
vaidosa. Ela é ora a pessoa que inspira, a pessoa disponivel, que acolhe,
que recreia e encanta, a pessoa que se dedica e que serve; ora é a
pessoa que coníunde as situacñes e dissemina a discordia. Quem
assim a considera, julga que a única genuina funcáo da mulhcr é a
maternidade. Esta tarefa é muito bela; a mulher nao parece ter sido
feita para desempenhar outros encargos; 'a sua natureza' a impede>
(texto citado por Marie-José Combart de Lauwes em «Images de
la femme dans la société. Conflits et malaises», na coletánea «La
íemme, nature et vocation». París 1963, pág. 11-27).
Leitores e leitoras relevarao a transcrigáo déste texto.
Serve apenas para evidenciar a evolucáo das mentalidades neste
particular.
2. Nos tempos recentes, a mulher tem reivindicado e
obtido para si paridade de direitos com o homem; tem entrado
ñas escolas e Universidades, granjeando respeitável saber e com
petencia técnica, de modo a poder exercer com éxito as profis-
sóes de médico, juiz, advogado, professor, Ministro de Estado,
etc.; tem penetrado também ñas usinas e fábricas, onde, ao lado
dos homens, conquista o ganha-páo. Em quase todos os países
da Europa ocidental, as mulheres gozam do direito de voto
ativo e passivo. A «Declaragáo Universal dos Direitos do
Homem», promulgada em 1948 pela ONU, excluiu toda discri-
minagáo «entre as ragas e os sexos» (art. 2); estipula outrossim
que as possibilidades de trabaiho sejam as mesmas para as
mulheres e para os homens (art. 23). O tratado sobre o Mercado
Comum Europeu, assinado em Roma (1958), obriga os paises
contraentes a conceder as mulheres a mesma remuneragáo
que aos homens, para trabaiho igual.
Compreende-se que essa evolugáo da figura feminina no
mundo moderno tenha despertado a idéia de que a,mulher
poderia ter acesso também ao ministerio sacerdotal, até hoje
reservado aos homens na Igreja.
3. O Concilio Ecuménico do Vaticano n de certo modo
deu margem a essa concepgáo. Admitiu a presenga de mulheres
na assembléia conciliar como «ouvintes». O arcebispo D. Hal-
linan, de Atlanta (U. S. A.), sugeriu aos Padres conciliares
proposigóes assaz inovadoras : pudessem as mulheres tornar-se
leitoras e acolitas no culto sagrado, pregar o Evangelho, ensinar
a teología, administrar os sacramentos do Batismo e da Co-
munháo (como o diácono). — Ademáis, pergunta-se: restau
rando o diaconato permanente, o Concilio nao terá facultado
o exercício de um ministerio que as mulheres bem poderiam
desempenhar ? A escassez de clero masculino tem avivado a
tese de que as mulheres poderiam ser admitidas as ordens
sacras.

— 262 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES ?

4. Há quem apele também para certos fatos verificados


ñas denominacóes protestantes.
Em certos países onde a Religiáo protestante é oficialmente
a do Estado, as reivindicagóes das mulheres á paridade de
trabalho com os homens tiveram conseqüéncias religiosas de
grande vulto.
Na Suécia, por exemplo, as mulheres pleitearam o acesso ao
ministerio pastoral ou ás funcdes de «pastoras». Em 1920, tal voto
fóra rejeitado pela opiniáo pública, que nao estava preparada para
acolher a inovacáo. A questáo tornou-se de novo atual em 1946; após
múltiplos debates públicos, o Sínodo Luterano da Suécia, em 1957,
rejeitou a idéia por 62 votos contra 36. Nao obstante, os movimentos
feministas suecos, em nome de seus 800.000 membros, desenvolveram
industriosa atividade em favor da reivindicagáo; o Parlamento con-
vocou de novo o Sínodo Nacional Luterano, o qual finalmente resolveu
aprovar a inovacáo por 69 vozes contra 29, em 27/IX/1958 (pouco
menos de um ano após a recusa antecedente). Conseqüentemente, em
1960 foram instituidas tres mulheres no ministerio pastoral; em 1964,
o seu número chegou a nove.
Na Dinamarca, há atualmente doze mulheres «pastoras».
Na Franca, o Sínodo da Igreja Reformada (Calvinista), reunido
em Clermont-Ferrand, de 29/IV a 2/W1966, resolveu conceder ás
mulheres os oficios pastorais.
Na Alemanha, as comunidades luteranas de certos territorios
admitem mulheres apenas como assistentes ou suplentes de pastores,
sem o direito de administrar os sacramentos ou pregar a Palavra
de Deus; sao chamadas «Pfarrgehilfinnon, Pfarrhelferinnen, Vikar-
innen». Em sote regióos («Landeskirchen»), porém, as mulheres tém
acesso ao ministerio completo. Contam-se 600 mulheres que estudaram
teología e preenchem funcóes eclesiásticas, sendo 357 «pastoras» pro-
priamente ditas («Pastorin» ou «Pfarrerin»).

Em geral, as denominagóes protestantes julgam que a sua


eclesiologia (concepgóes sobre a Igreja) comporta a delegagáo
de mulheres para as tarefas até aqui reservadas aos pastores.
Por isto, número crescente de comunidades luteranas, pres
biterianas, reformadas (calvinistas), metodistas, congregacio-
nalistas, batistas, tem franqueado o ministerio pastoral ás mu
lheres. Em 1958,48 denominagóes protestantes admitiam mulhe
res em todos os servigos da Igreja, ao passo qué nove outras
denominagóes apenas a alguns outros encargos pastorais.
Os diversos fatos assim recenseados tém contribuido para
que certos grupos católicos pensem mais e mais atentamente
ñas possibilidades de se conferir o sacerdocio ministerial. as
mulheres na S. Igreja.

2. E os textos do Novo Testamento ?


As objecQes contra a ordenacáo sacerdotal de pessoas femininas
no Catolicismo provém, em grande parte, da consideracáo de certos

— 263 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 4
f

textos do Ndvo Testamento. Seráo abaixo sumariamente examinados,


dado que a doutrina dos Evangelhos e de Sao Paulo sdbre o assunto
já foi estudáda em «P. R.» 42/1961, qu. 2.

1) A escolha dos Apostólos

A atitude de Jesús para com as mulheres é algo de inédito


no ambiente judaico e grego em que o Senhor viveu; de fato,
Cristo atribuiu a ambos os sexos os mesmos direitos e as mes-
mas obrigagóes perante Deus (haja vista Mt 18,3: «sfazer-se
espiritualmente como crianca»; Mt 19,5: «dois numa só carne»;
Gal 3,28: «nem judeu, nem grego; nem servo, nem livre; nem
homem, nem mulher»). Quando, porém, quis escolher os Apos
tólos, que •haveriam de continuar a sua obra, Jesús só escolheu
varees. De modo particular, a intengáo do Senhor aparece na
última ceia: só os Apostólos foram admitidos a esta, embora
estivessem presentes na Cidade Santa mulheres do círculo de
colaboradores assiduos de Cristo (cf. Le 8,1-3) e a própria
Virgem Máe do Senhor. A praxe judaica reconhecia a mulheres
e criancas o direito de participaren! da ceia de Páscoa; Jesús,
nao-obstante, derrogou a ésse costume. Entregou apenas aos
Apostólos a Eucaristía e o poder de a celebrar futuramente
ñas assembléias de culto (cf. Le 22,14-20).
Pergunta-se : a escolha de homens para o ministerio apos
tólico nao será indicio de que o Senhor quis estabelecer um
principio válido para todos os tempos, excluindo assim do
sacerdocio as mulheres ?
Ao lado dos estudiosos que o afirmam, encontram-se tam-
bém os que o negam, alegando que Jesús apenas quis proceder
de acordó com os estatutos sociais de seu tempo, sem inten
cionar incutir a conservacáo désses estatutos.

2) As normas de Sao Paulo

Em 1 Cor 14,33-35, o Apostólo escreve:

«Como se faz em todas as igrejas dos santos, estejam caladas


as mulheres ñas rouniSes, pois nao lhes é permitido falar. Devem
estar submissas, conforme diz a Lei. Se quiserem esclarecimentos
sdbre algum ponto, perguntem a seus maridos em casa, pois é inde
coroso para a mulher falar em assembléia».

Ao que o Apostólo acrescenta :

«Se alguém julga ser profeta ou possuir dons espirituals, reco-


nheca, ñas coisas que vos escrevo, um precelto do Senhor» (v. 37).

— 264 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES ?

Em 2 Tim 2,lis, frisa o Apostólo:


«Durante a instrucáo, a mulher deve íicar em silencio, com
ínteira submissáo. Nao permito que a mulher ensine ou tenha dominio
sobre o homem; deve permanecer em silencio».

Em 1 Cor 11, 3. 7-10, Sao Paulo observa que o homem re


presenta diretamente a Cristo; á mulher compete representar,
ou refletir a dignidade do homem e, indiretamente apenas, a
de Cristo :
«O chefe de todo homem é Cristo; o chefe da mulher é o ho
mem... O homem é a imagem e o reflexo de Deus (Cristo); quanto
á mulher, é o reflexo do homem. Em verdade, nao o homem foi tirado
da mulher, mas a mulher é que foi tirada do homem. O homem nao
foi criado para a "Ynulher, mas a mulher é que foi criada para o
homem. Sendo assim, deve a mulher... ter s6bre a cabeca o sinal
de submissáo».
Em Ef 522-33, o Apostólo analisa as relacóes que devem unir
entre si homem e mulher no lar: o marido representa Cristo; por
isto é o chefe da familia; a mulher lhe está subordinada, como a
Igreja está sujeita a Cristo.

Será lícito deduzir dos dizeres do Apostólo a conclusáo


de que as mulheres háo de ser excluidas do ministerio sacer
dotal na Igreja ?
— Há teólogos e exegetas que o depreendem sem hesitacáo;
tenha-se em vista principalmente o Pe. Yves Congar O. P.,
notável perito do Vaticano II («La Documentation Catholique»
3/Vn/66, c. 1247s).
Outros autores, porém, julgam que Sao Paulo (como tam-
bém o Senhor Jesús) procedeu em vista das condieóes da socie-
dade antiga; nao querendo provocar urna revolucáo social,
apenas cuidou de incutir aos cristáos, vivessem santamente
dentro das estruturas vigentes em sua respectiva época.
Por isto, Sao Paulo recomendou aos escravos, guardassem sub-
missáo aos seus senhores (cf. Ef 6,5-8; Col 3,22-25; 1 Tim 6,ls;
1 Cor 7.20-24). Admoestou outrossim os genitores a usarem sabia
mente do direito de dar suas filhas em casamento (1 Cor 7,36-38).
Tais exortagñes do Apostólo, por certo, nao significam que a escra-
vldáo deva ser conservada na sociedade crista ou que a jovem nao
possua o direito de escolher livremente o seu marido; supóem urna
ordcm de coisas hoje em dia licitamente superada e anacrónica. Ora
o mesmo se deveria dizer em relaeño ao papel subordinado que Sao
Paulo atribuí á mulher frente ao homem : terá sido formulado nao
em tom dogmático e definitivo, mas era vista de circunstancias histó
ricas, contingentes, e destinado a vigorar por tempo limitado apenas.

Que dizer diante da hesitacáo dos mestres perante os textos


do S. Evangelho e de Sao Paulo ?

— 265 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 4

3. Urna tentativa de solugáo


Parece que as passagens bíblicas, consideradas em si mesmas,
se prestam realmente as duas interpretares contraditórias que recen-
seamos; há certas normas, no Novo Testamento, de Índole meramente
disciplinar, nao dogmática, normas portante xeformáveis no decorrer
dos tempos.
Se, porém, colocamos os textos dos Evangelhos e de Sao Paulo
dentro do grande quadro da mensagem do Novo Testamento, parece
que o seu sentido se torna mais claro ou mesmo unívoco. — £ o que
o Pe. A.-M. Henry propóe no seguinte raciocinio, publicado no artigo
«Le ministére de la femme dans l'Église» da revista «Forma Gregis»,
maio/1965, pág. lOOs:

O Cristianismo é urna religiáo histórica, ou seja, urna Reli


giáo que tem sua origem dentro de um quadro histórico e
geográfico bem definido. Nisto o Cristianismo se distingue de
religióes meramente filosóficas (como as dos orientáis), vei-
culadas por livros apenas. O Cristianismo é essencialmente a
Beligiao da Encarnacao, Religiáo em que Deus fala aos homens
e os santifica mediante sinais sensiveis (prenhes de conteúdo
sobrenatural) assumidos dentro de determinado povo e deter
minada fase da civilizac.áo. Em outros termos: Deus se en-
camou urna só vez em Jesús Cristo e, mediante essa única
Encarnacáo, quis dirigir-se a todos os homens, utilizando os
costumes e as categorías da vida social do povo em que se
encarnou.

Por isto o Cristianismo é inseparável do seu fundo de cena


judaico. É principalmente inseparável do acontecimento máximo
e da solenidade precipua do Judaismo antigo, que é a Páscoa.
O Cristianismo foi e será sempre a Religiáo que se originou
numa noite de Páscoa, no povo de Israel, entre os anos de
716/718 da era de Roma. Quando a Boa-Nova de Cristo se
expandiu para fora da Palestina, ela levou consigo os seus
precedentes judaicos: a historia da salvagáo foi comunicada
aos gregos, romanos, africanos, asiáticos... na linguagem reli
giosa, com os símbolos e imagens do povo de Israel; essa lingua
gem e ésses símbolos tornaram-se os veiculos que Deus escolheu,
de preferencia a oütros, para atingir todos os homens; sao
os veiculos da verdade e da vida que Deus introduziu na historia.
Em conseqüéncia, mesmo no Extremo-Oriente é até nossos
dias é celebrada a Páscoa de Cristo. E, embora nessa regiáo
o pao e o vinho nao sejam os alimentos habituáis, a Páscoa
de Cristo (ou Eucaristía) ai nao é celebrada com arroz e cha,
mas, sim, com pao e vinho; paralelamente, entre os Esquimos
do Polo a Páscoa nao é celebrada com produtos de foca ou
baleia (alimentos mais usuais), mas com pao e vinho. Estes

— 266 —
ORDENACAO SACERDOTAL, DAS MULHERES ?

elementos sao a materia essencial do sacramento, mesmo no


Extremo-Oriente e ñas regióes árticas. E por qué ? — Porque
nao sao destinados apenas a evocar una alimento espiritual; éles
devem também lembrar, no mundo inteiro, os alimentos da
Páscoa judaica; devem recordar a santa Ceia que Jesús cele-
brou no Cenáculo,, servindo-se de pao e vinho; numa palavra,
devem lembrar a Páscoa de Cristo.
Ora estas consideragóes, plenamente verídicas no tocante
á Eucaristía, aplicam-se outrossim á instituigáo dos Apostólos
e, por conseguinte, do sacerdocio ministerial. Em verdade,
Cristo só escolheu homens para perpetuar a sua Páscoa; talvez
o tenha feito para se conformar (livre e voluntariamente) aos
costumes sociais da sua época; contudo, ao escolher o quadro
social dos judeus (em que só os homens desempenhavam as
fungóes públicas), ao escolher os elementos de Páscoa (pao e
vinho) condicionados pela geografía e a historia de Israel,
Cristo os fez definitivos portadores da sua mensagem e da
santíficagáo do mundo (como, alias, Ele fez da naturéza varonil
assumida de Maria Virgem o instrumento perene da Redengáo
humana). Os sacramentos cristáos (entre os quais, a Eucaristía
e o Sacerdocio) hio de ser vistos á luz do misterio da Encar-
nagáo; éles a prolongam; por isto constam de elementos mate-
riais (pao, vinho, agua, óleo, a naturéza varonil...), que Deus
soberana e definitivamente se dignou escolher.
Por conseguinte, para ser fiéis a Cristo, os Apostólos esco-
lheram seus sucessores (e estes, por sua vez, escolheram seus
substitutos ¡mediatos) como Jesús os escolhera, isto é, dentro
do sexo masculino. Assim a linhagem ou a sucessáo apostólica
é homogénea com o próprio grupo ou colegio dos Apostólos
e manifesta real continuidade com éste.
Naturalmente, as consideragóes do Pe. Henry nao sao
dogmáticas nem dirimentes; merecem, porém, atengáo par
ticular por procurarem projetar luz sobre a questáo a partir
das notas mais características do Cristianismo. Elas ajudam
a compreender outrossim por que os protestantes nao hesitam
tanto quanto os católicos em admitir as mulheres ao ministe
rio pastoral.

Com efeito. Pura os católicos, o sacerdocio exercido na Igr.eja


é sempre urna participacao especial do sacerdocio do Onico Pontífice
Jesús Cristo : essa participacao é outorgada mediante um sacramento
(urna consagragáo ontológica) e através da sucessáo apostólica. En-
tende-se entáo que, entre os católicos, os elementos humanos (a viri-
lidade, em particular) nos quais se realizou a Encarnacáo, sejam
respeitados, desde que se pense em transmitir o sacerdocio de Cristo.

— 267 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 4

Ao contrario, entre os protestantes, o ministro ou pastor nao é


sucessor dos Apostólos nem representante especial (dotado de con-
sagracáo ontológica) de Cristo; todos os fiéis possuem, já por efeito
do batismo, os poderes necessários para realizar as func6es da Igreja;
é a assembléia quem designa aqueles que devem exercer tais funcdes,
levando em canta as qualidades pessoais de cada candidato. A desig-
nagáo para o ministerio pastoral, por conseguimte, nao é um sacra
mento, nao confere novos poderes ontológicos (mas apenas jurídicos).
Por isto os protestantes a dissociam, scm grande dificuldade, do
sinal sacramental, que íoi a santíssima humanidade de Cristo.

Nos debates sobre o assunto, os estudiosos tém evocado


também

4. Kazoes de ordem natural

Certos movimentos feministas modernos, inspirando-se em


parte ñas proposigóes de Simone de Beauvoir, tém pretendido
equiparar, sem restrigóes, a mulher ao homem.
Estudos recentes, porém, dáo a ver que tal equiparagáo
vem a ser contraria a própria natureza feminina. Em verdade,
a mulher nao é um ser inferior ao homem, mas também nao
se identifica com o homem, nem por sua fisiología, nem por
sua psicología; os dois sexos foram feitos nao para se sobrepor
mutuamente ou confundir, mas, sim, para se complementar.
Eis o que observa o biologista holandés Buytendijk:
A natureza do varáo, posta diante do mundo, tende a
conquistá-lo, hitando ou resistindo em vista déste objetivo. A
mulher, ao contrario, tende a considerar o mundo com um
olhar de solicitude ou como algo que merece a sua dedicagáo.
O homem vé fácilmente ñas coisas «meios para conseguir deter
minado fim» ou «material a ser transformado»; a mulher, ao
contrario, tende a respeitar a natureza de todas as coisas,
salvaguardando posigóes e direitos. O homem é polarizado pela
finalidade; a mulher, pela gratuidade. O homem é impulsionado
principalmente pela ética do dever; a mulher, pela do amor.
Em suma, como diz o autor protestante J. J. von Allmen:
«A polarizagáo, seja masculina, seja feminina, dos seres hu
manos, nao é um acídente, mas atinge-os na sua própria íden-
tidade, mesmo em seu misterio mais profundo» («Est-ü legitime
de consacrer des femmes au ministére pastoral ?» em «Verbum
Caro» 65/1963, pág. 5-28).
A escritora francesa Geneviéve Gennari compartilhou durante
certo tempo as idéias de um feminismo irrestrito; contudo, após haver
tentado escrever um livro sobre o assunto, chegou & certeza de que
«há urna diferenca essencial entre o homem e a mulher, e a natureza
feminina é irredutlvel» (cf. «Le dossier de la femme». París 1965).

— 268 —
ORDENACAO SACERDOTAL DAS MULHERES?

Por sua vez, outra notável mulher contemporánea, Ménie Grégoire,


pode afirmar que «o sexo nao é algo de adventicio, mas é um consti-
tuinte fundamental do varáo e da mulher» (cf. «Le métier de la
femme». París 1965).

Sao estas consideragóes que corroboram em muitos teó


logos e pensadores católicos a idéia de que deve haver nao
sómente no lar, mas também na Igreja, urna distingáo entre
os oficios do varáo e os da mulher. Áquele competirá o sacer
docio ministerial, de acordó com toda a mensagem do Novo
Testamento. A mulher nao tocará ficar passiva; mas atribuir-
-se-lhe-áo encargos independentes do sacramento da Ordem.
De resto, a mulher (Religiosa ou nao) já trabalha em muitos
setores do apostolado católico; a Igreja parece querer canfi-
ar-lhe novas e novas tarefas, como tem acontecido nos traba-
Ihos conciliares e pós-conciliares (as mulheres vém integrando
comissóes de estudos), assim como nos territorios subdesen-
volvidos (onde Religiosas tem mesmo distribuido a S. Comu-
nháo).

Em 1961 havia na Alemanha 2ÍJ63 mulheres (630 Religiosas e


2.233 leigas) empenhadas como proflssionais no servieo pastoral. Dis-
punham de dez Centros de Formagao para se especializar no trabalho,
assim como de um Instituto de Assistentes Pastarais. Suas principáis
tarefas sao :
Manter contato entre o centro da paróquia e os paroquianos,
visitando as casas. Cooperar na pastoral das criancas. dos jovens,
das mulheres, em palestras, conversas, encontros. ensino escolar,
dinámica de grupo, formacáo de líderes e educadores. Assistir aos
que vacilam na fé, e sao tentados a se separar da Igreja. Instruir os
que se convertem a Cristo. Dirigir as obras assistenciais da paróquia.
Encarregar-se do Secretariado paroquial.

Em conclusáo: parece nao haver argumento apodíctico


que exclua do sacramento da Ordem as mulheres. Contudo há
um conjunto de razñes que, tomadas de per si, nao convencem
plenamente, mas, consideradas em seu conjunto, dáo a ver que
a equiparagáo do homem e da mulher no exercicio do sacerdo
cio ministerial nao parece corresponder as intengóes do Criador
da natureza nem aos designios do Cristo Redentor.
A última palayra no assunto compete exclusivamente ao
magisterio da Igreja, que possui a assisténcia do Espirito Santo
para discernir fielmente qual a vontade de Deus a respeito do
sacramento da Ordem. Por ora a maioria dos teólogos, apoiáda
em fortes razóes, é desfavorável a qué se derrogue á praxe
de vinte séculos da Igreja. O Pe. Karl Rahner S. J. julga
mesmo que os debates sobre o tema devem ser reservados a
especialistas, e nao movidos em público.

— 269 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 90/1967, qu. 5

IV. LITURGIA

JURACY (Rccife) :

5) «Pode-se crer que tun día a S. Comnnháo venha a


ser entregue ñas maos dos fiéis comungantes ?»

A resposta a esta pergunta só poderia ser dada em termos


auténticos pela suprema autoridade da Igreja, a quem compete
legislar sobre os ritos a ser adotados na S. Liturgia.
Aquí proporemos apenas alguns aspectos históricos da
questáo, aspectos que daráo a compreender a praxe hoje em
día vigente, assim como as possibilidades de reforma da mesma
no futuro.

1. O histórico

1) A praxe primitiva

Nos primeiros sáculos, a S. Comunháo era geralmente


colocada sobre a palma da máo dos fiéis, a fim de que estes
a consumissem. Excetuavam-se apenas os casos de enfermidade,
em que a partícula sagrada era freqüentemente depositada
sobre a língua do comungante.
O mais antigo testemunho que se tem a tal respeito, é a
chamada «Inscrigáo de Pectório» (séc. II), que, em sua lingua-
gem simbolista, assim reza:

«ó estirpe divina do Peixe Celeste,... recebe o alimento doce


como o mel do Salvador dos santos; come segundo a tua íome; trazes
o Peixe ñas maos» (Quasten, Monumenta 26).
Nessa passagem, o «Peixe» designa simbólicamente o Senhor
Jesús. Sábese que o Peixe (em grego, ICHTHY.S) é antiqüíssimo
simbolo de Cristo, pois as cinco letras gregas que compSem éste nome
sao as iniciáis de urna profissao de fé em Cristo :

J(csous) = Jesús
CH(ristós) = Cristo
TH(eou) = de Deus
Y(iós) = Fllho
S(ootér) = Salvador

No séc. III, o escritor cristáo Tertuliano, no norte da


África, repreendia os irmáos que houvessem sacrificado aos
deuses, dizendo que tais cristáos se atreviam a «estender ao
corpo do Senhor as mesmas máos que haviam levado corpos

— 270 —
A COMUNHAO ÑAS MAOS ?

(carnes imoladas) aos demonios... Ó máos dignas de ser


amputadas !» (De idol. 7).

Um dos mais belos depoimentos sobre o rito de Comunháo


na antigüidade é o de Sao Cirilo de Jerusalém (t 381), do qual
vai transcrita aqúi urna passagem dirigida a cristáos adultos
que se preparavam para participar pela primeira vez do mis
terio eucaristico:

«Quando te aproximares, nao caminhes com as máos' estendidas


ou os dedos separados, mas faze com a esquerda um trono para a
direita, que está para receber o Reí; e logo, com a palma da máo,
forma um recipiente; recolhe o corpo dó Senhor, e dize: 'Amém'.
A seguir, santifica com todo o cuidado teus olhos pelo contato do
Corpo Sagrado, e toma-o. Contudo cuida de que nada caia por térra,
pois, o que caisse, tu o perderlas como se fóssem teus próprios
membros. Responde-me: se alguém te houvesse dado ouro em pó,
nao o guardarlas com todo o esmero e nao tomarías cuidado para
que nao te caisse das máos e para que nada se perdesse? Sendo
assim, nao deves com muito mais esmero cuidar de que nao caia nem
urna migalha daquilo que é mais precioso do que o ouro e as pedras
preciosas ?» (Cat. mistagógica V 21s).

Esta instrucao do santo bispo de Jerusalém dá-nos a saber que


no séc. IV os fiéis nao somonte receblam a S. Eucaristía na palma
da máo, mas também passavam a partícula sagrada sobre os olhos
a íim de se santificar.

Outros depoimentos mais ou menos contemporáneos ao


de S. Cirilo confirmam o uso de se entregar a Comunháo na
palma da máo direita do comungante, ficando a esquerda por
babeo desta. Em vista disso, havia urna bacia no adro das
grandes basílicas para que os fiéis lavassem as máos ao entrar
no recinto litúrgico.
Em muitos lugares, era prescrito que os comungantes
colocassem sobre á palma da máo urna pequeña toalha branca
(«dominicale») a fim de receber ai o Corpo do Senhor. Esta
determinagáo na Gália caiu em desuso mais cedo para os
homens do que para as mulheres. É o que no séc. VI atesta
Sao Cesário de Arles (t 542) :
«Todos os homens devem lavar as máos antes de se aproximar
do altar. E todas as mulheres tragam seus panos sagrados, nos quais
háo de receber o corpo de Cristo» (serm. 229).

O concilio regional de Auxerre (585 ou 578), na Gália, era muito


insistente neste último ponto :

«Nao é licito as mulheres receber a Eucaristía sobre a mao des-


coberta. Toda mulher que vai comungar, tenha seu 'dominicale' (paño
sagrado); se alguma nao o trouxer, ficará sem comungar até o
próximo domingo» (Concil. Antissiodor. can. 36. 42).

— 271 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 5

O uso de passar a Eucaristía sobre os olhos e outros


órgáos dos sentidos parece ter tido origem entre os sirios. Foi
provávelmente inspirado pelo texto de Éx 12,7, em que Moisés,
propondo o ritual da Páscoa judaica, mandava ungir com o
sangue do Cordeiro pascal as ombreiras e as vergas das portas
das casas dos israelitas. Estes dizeres, interpretados alegóri
camente, teráo sugerido a praxe de consagrar os sentidos dos
comungantes, mediante o pao eucaristico.
Em certos lugares, os fiéis osculavam a partícula sagrada
recebida em suas máos.

2) Os desvíos

A partir do século IV, aconteceu que a devogáo popular


se foi tornando cada vez mais exuberante no uso da S. Euca
ristía depositada ñas máos dos comungantes.
Segundo um costume antigo, os cristáos, com a devida
autorizagáo dos bispos, levavam o pao consagrado para casa
a fim de comungar nos dias da semana em que nao houvesse
Missa. Todavía, de posse da S. Eucaristía em suas residencias,
os fiéis cediam fácilmente á tendencia de utilizar o sacramento
para finalidades varias, nem sempre consentáneas com o ge
nuino espirito cristáo. Assim, no séc. V, por exemplo, S. Agos-
tinho referia que urna mulher costumava fazer, com a S. Euca
ristía, compressas para seu filho cegó (cf. «Opus imperfectum
contra Iulianum» HI 162).

O pao eucaristico levado para casa tinha, em grego, o nome de


hygieia, «saúde» ou «pao de saúde», «broa de saúde» (nótese que.
em muitos lugares, tanto no Oriente como no Ocidente, se consagrava
pao fermentado, igual ao pao de mesa, e nao pao ázimo; um e outro
tipo de pao sao materia válida para o sacramento).

Quem partía em viagem, freqüentemente levava cánsigo


urna partícula da S. Eucaristía como penhor de protegáo e boa
viagem. Isto se dava principalmente nos casos de travessias
marítimas.
S. Ambrosio (f 397), por exemplo, refere o seguinte caso
ocorrido no séc. IV :

Seu irmáo Sátiro, ainda catecúmeno, viajava da África Seten-


trional para a Italia, quando foi vitima de tremenda tempestada em
alto mar. Vendo-se em perigo iminente de morte, Sátiro dirigiu-se a
seus companheiros de viagem que ¿le sabia ser cristáos, e pediu-
•lhes colocassem numa pequeña toalha um fragmento da S. Eucaristía,
atassem entre si as quatro ponías da toalha e lhe prendessem ao
pescogo ésse precioso depósito. Assim munido, atirou-se ao mar, sem
mesmo cuidar de levar consigo urna tábua de salvagáo; julgava-se

— 272 —
A COMUNHAO ÑAS MAOS ?

suficientemente protegido pela S. Eucaristía, podendo dispensar qual-


quer socorro humano. A coragem de Sátiro nao foi frustrada: enquanto
os marujos perdiam ánimo, ele conseguiu escapar do naufragio e
sobreviver (cf. S. Ambrosio, «De excessu fratris sui Satyri» I 44).
Éste episodio atesta claramente o uso de se levar a S. Eucaristía
em viagem; Sátiro, com toda a sua boa íé, utilizoua para se livrar
do perigo de morte; os cristaos que com ele viajavam, atenderam
com presteza ao pedido de Sátiro, como se julgassem muito natural
e compreensível o plano do companheiro catecúmeno.

Documentos posteriores atestam que a partícula sagrada


era nao raro pendurada ao pescogo dos fiéis, aos leitos, ás
paredes de casa, aos cofres, como se fóra um amuleto, um
feitico dotado de poderes quase mágicos ou um motivo de
profilaxia contra doencas, desgranas, inimigos, etc. — A fungáo
da «Eucaristía-alimento» ia sendo obliterada e esquecida.

Estes tristes fenómenos se devem, em parte grande, ao fato de


que, no séc. IV, tendo os Imperadores Romanos concedido paz e
liberdade á Igreja, as conversoes para o Cristianismo se efetuavam
em grande escala e de maneira por vézes brusca; conseqüenteme ite,
os novos cristaos ainda guardavam consigo traeos da sua antiga
mentalidade paga, muito dada á supersticao. Nao era fácil ás autori
dades da Igreja extirpar o uso popular de amuletos e outros símbolos
de falsa religiosidade.

Em vista dos varios abusos cometidos com a S. Eucaristía,


os concilios regionais desde o século IV foram admoestando
os fiéis. Tenham-se em vista, por exemplo, o concilio de Sara-
goga (Espanha) em 380 (can. 3) e o I de Toledo (Espanha), que
em 400 assim legislava :

«Se alguém nao consumir realmente a Eucaristía recebida do


sacerdote, seja expulso como um sacrilego» (can. 14).

Pouco tempo depois, no Oriente o historiador Sozómeno


consignava um curioso abuso :

Em Constantinopla, o bispo Sao Joao Crisóstomo (t 407) pregava


com grande éxito a vultosas multidoes. Havia na cidade urna faecáo
de herejes ditos «Macedonianos» (adeptos de Macedónio, que negava
a Divindade do Espirito Santo). Certa vez, um membro dessa faecáo
viu-se de tal modo impressionado pelos sermSes de SSo Joáo Crisós
tomo que, ao voltar de casa, intimou sua esposa a se fazer católica
com ele. A mulher, porém, nao lhe deu ouvidos, pois o circulo de suas
amigas a detinha no grupo herético. Declarou entáo o marido: «Se
nao recebares, juntamente comigo, os divinos misterios ( = a S. Euca-
ristia), já nao poderás continuar a ser minha consorte». — Receber a
S. Eucaristía era, sim, segundo a mentalidade da época, o sinal mais
expressivo de adesáo á S. Igreja.
A mulher , intimidada pela ameaca do marido, prometeu satis-
fazer-lhe. Concebeu um plano, que ela comunicou a urna serva de

— 273 —
<tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, qu. 5

toda confianca, e dirigiu-se com o esposo e a doméstica para a Igreja


católica. Na hora da Comunhao, aproximaram-se do altar. A mulher,
tendo recebido na máo a partícula eucaristíca, baixou a cabeca como
se a quisesse adorar e consumir. Nesse momento, porém, a serva,
previamente instruida, passou-lhe &s m5os outra partícula de pao,
ou seja, o pao que em anterior ocasiáo lhe fdra distribuido na assem-
bléia de culto dos macedonianos e que ela havia secretamente levado
de casa para a igreja católica. Assim a espdsa macedoniaina julgou
poder evitar rixas com seu marido, sem contudo violentar a sua
própria consciéncia.

Tal episodio é expressáo típica das circunstancias da vida


crista nos séc. IV/V; nao constituí paradigma para os tempos
modernos. O que nos interessa ai realgar, é o desvirtuamento
da S. Eucaristía entregue as máos da pessoa comungante.

Casos análogos poderiam ser colhidos na literatura crista da


antigüidade e do inicio da Idade Media.

Conscientes dos abusos, as autoridades eclesiásticas foram


recomendando que ñas assembléias eucarísticas se desse a S.
Comunhao na boca dos fiéis, á semelhanga do que se fazia na
administracáo do mesmo sacramento aos enfermos. Em conse-
qüéncia, no séc. IX já devia ser quase geral o costume de se
deportar a S. Eucaristía nao sobre a máo, mas sobre a língua
dos fiéis. O concilio de Ruáo (Franca), por exemplo, baixava
por volta de 878 a seguinte norma geral:

«A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará


a Eucaristía ñas mSos; entrngá-laá sempre na boca» (can. 2).

Nos séc. X/XI o «Ordo VI» (Cerimonial para Missas


pontificáis) guardava um vestigio do antigo uso, estipulando
que aos presbíteros e diáconos fósse dada a Eucaristía ñas
máos; aos subdiáconos, porém, na boca. Em breve, porém, tal
excecáo também caiu em desuso.
A nova prescriejio se generalizou justamente na mesma
época (séc. IX), em que também se difundiu no Ocidente o
uso do pao ázimo como materia do sacramento, em lugar do
pao fermentado : o pao ázimo aderia mais fácilmente á língua
do que os fragmentos (em geral, grandes) de pao fermentado
que anteriormente se usava para a comunhao.

O emprégo do pao ázimo prevaleceu no Ocidente por razóes


diversas: o respeito cada vez maior ao SS. Sacramento, e o conse-
qüente desejo de diferenciar o pao eucaristico do pao profano; o
intuito de usar o pao mais branco e belo possível...; os textos bíblicos
(os relatos da última ceia do Senhor, a passagem de S. Paulo em

— 274 —
A COMUNHAO ÑAS MAOS ?

1 Cor 5,7s; os costumes do Antigo Testamento formulados em Lev


2,4.11; 6,11; Mal 1,11...).

Na Alta Idade Media e em épocas posteriores, aínda se


encontram testemunhos de que os fiéis esporádicamente, ou
em raras circunstancias, recebiam a Comunháo ñas máos. O
costume, porém, se extinguiu por completo até nossos dias,
quando tém sido feitas tentativas de restaurar a entrega da
S. Comunháo ñas máos dos comungantes.

2. Reflexáo final

Á luz das consideragóes precedentes, podem-se formular


duas conclusóes com referencia á questáo abordada neste artigo:
1) A distribuiclo da S. Eucaristía ñas máos dos comun
gantes tem fundamento na praxe dos primeiros séculos do
Cristianismo. De certo modo ela corresponde á agáo natural
de comer; é obvio que cada um dos comensais leve por si mesmo
o alimento á boca.

2) Contudo a ligáo da historia levou a S. Igreja a substi


tuir o uso antigo pela entrega da S. Comunháo na boca dos fiéis.
Evidentes abusos, perda e profanagáo do sacramento, assim
como o respeito cada vez mais consciente para com o dom de
Deus, sugeriram tal modificagáo do rito. Se a Eucaristía é ceia,
ela é essencialmente ceia sagrada ou ato de culto, em que as
atitudes de reverencia e louvor a Deus dáo a .nota marcante
e ditam o respectivo cerimonial de celebragáo.
Por isto, nao se poderia, sem serias ponderagóes, pretender
restaurar o uso de entregar a Comunháo ñas máos dos fiéis.
Se outrora tal costume ocasionou abusos lamentáveis por parte
de fiéis pouco instruidos ou imbuidos de mentalidade supers
ticiosa, assim como por parte de herejes, poder-se-ia dizer que
em nossos dias está afastado o perigo de que tais abusos se
repitam ? É notoria a mentalidade por vezes supersticiosa ou
pouco crista daqUeles que freqüentam as assembléias de culto
católico e até mesmo a S. Comunháo. Esquecer a licáo dos
séculos seria talvez sujeitar-se a ter que deplorar futuramente
novos abusos do SS. Sacramento.
Eis as reflexóes que levam as autoridades da Igreja a
sabia atitude negativa diante das recentes experiencias de dar
a Comunháo na máo dos fiéis.

— 275 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 90/1967, c. m.

CORRESPONDENCIA MIÜDA
P. LUCIO (Rio de Janeiro): A escola a que o amigo se refere, nao
ministra apenas urna terapéutica para o corpo humano e suas funcóes;
incute também urna filosofía panteísta ou monista, que é insustentável aos
olhos da sá razíio; tenham-se em vista os livros do Fundador da escola.

A Yoga pode ser considerada como urna técnica de ginástica e movi-


mentos respiratorios, nao necessáriamente associada a determinada cor-
rente de pensamento ; pode ser exercida com mentalidade crista.

AMINTAS (Rio de Janeiro): Existe urna norma objetiva de mora-


lida.de, que é a Leí de Deus; é preciso que todo homem se conforme a ela.

Para que a pessoa se adapte a essa lei suprema, o Criador deu a cada
ser humano un principio interior de orientacáo, que é a consciéncia. A
consciéncia compete tomar conhecimento exato da Lei de Deus e déla tirar
as conseqüéncias práticas para a vida do individuo. Todo homem tem
obrigacáo de seguir a sua consciéncia, desde que esta formule um juízo
claro e firme sobre o comportamento a adotar.

Se a consciéncia está bem formada, os seus ditames sao retos. Ela


aponta a virtudc objetiva como um \vm a platicar, o o pecado como um
mal a evitar. Entáo o homem, ¡«guindo a sua consciéncia, estará cami-
nhando para Deus.

Admitamos, porcm, que a consciéncia de alguom esteja mal formada.


Em dadas circunstancias, ela poderá (com toda a paz e boa fe) apre-
sentar como virtude o que é pecado. Entáo o homem que siga a sua cons
ciéncia, nao estará pecando formalmente: o seu ato só será pecaminoso
quanto ao aspecto externo, nao, porcm, quanto á intengáo.

A consciéncia poderá também apresentar como pecaminoso algo que


em si é lícito. Entáo o homem terá obrigacáo de saguir a sua consciéncia,
evitando o que esta lhe apresenta como pecado (emtora em si náoseja
ilícito). Caso contradiga, a pessoa peca. Pois — repita-se — a consciéncia
é sempre a Jiorma ¡mediata da conduta humana (desde que ela profira
um juízo isento de hesitacáo).

Destas proposicóes depreende-se quanto é .necessário procurar ter


urna consciéncia esclarecida, bem iluminada pela Verdade i-elisios* e pela
Lei objetiva de Deus. Ninguém deve agir com a consciéncia dubia ou
hesitante, a menos que nao lhe seja possível resolver suas dúvidas.

O pecado podo ser meramente interior ; 6 o que Cns/to indica ao


falar de maus pensamentos o desejos em Mt 15,18s; 5.28. Ha tambero
o pecado de ominarlo, que consiste em nada fazer, quando seria necessá
rio agir.

A propósito da consciéncia como norma ¡mediata da moralidade, cf.


•P. R." 40/1961, qu. G.

D. Estévao Bettoncourt O. S. B.

— 276 —
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