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EMÍLIA FERREIRA

CARTOGRAFIA ÍNTIMA

(Prémio Literário Vergílio Ferreira 2008)


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Prémio Literário Vergílio Ferreira 2008

Júri:
Alípio de Melo (pela C.M. de Gouveia)
Cristina Robalo Cordeiro
José Correia Tavares
Liberto Cruz
Silvina Lopes Rodrigues

© 2009, Medialivros, S. A.
Todos os direitos de publicação desta obra em língua portuguesa reservados por:

Denominação Social — Medialivros – Actividades Editoriais, S.A.


Sede Social — Campo de Santa Clara, 160, C/D
1100-475 Lisboa
Telef: 21 885 50 30
Fax: 21 887 50 50
www.medialivros.pt
E-mail: info.geral@medialivros.pt
Contribuinte n.O — 501 917 373

Capa: Design de Sandra Carvalho sobre fotografia de Getty Images


Paginação: Cítrica Design
Imagens no miolo: Arranjo gráfico de Cítrica Design sobre desenhos de Cristina Ataíde
(ver no final informação completa)
Revisão: Cláudia Duarte
Impressão e acabamento: António Coelho Dias, S. A.
Depósito Legal n.O 288928/09
ISBN 978-972-29-0932-7

Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor


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À minha família e aos meus amigos. Sempre.


Para o Pedro.
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norte

TRAÇAR A CONSCIÊNCIA
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Ela sabe que as palavras são mais do que caligrafia, uma norma para
os gestos, codificação da forma com vista à legibilidade e apura-
mento do grau de civilidade do seu autor. Ela sabe-o, mas não é isso
que lhe interessa no verbo declinado no suporte. É o gesto inconti-
do como uma maré, como um avanço de águas. A onda de Hokusai,
a contenção da linha prestes a tornar-se espuma, pura força, energia.
Um fio desfiado, desalojado do sentido, como um tricô desfei-
to. Como um novelo que se refaz depois de desfazer uma camisola,
um peito, umas costas. Uma respiração. Um texto que se reescreve.
Que está prestes a reordenar-se, mantendo no entanto algo do pul-
sar do anterior. Ela sabe. E vai desfazendo a sua escrita ao correr da
pena, ao correr da água e dos dias, no discorrer do vento ou no cor-
rer do fio — puxado, puxado até ao limite, sem mais nós do que
aqueles que ficam, cicatriz de gestos, resquícios de uma outra escri-
ta, de um texto apagado agora, para sempre ilegível. Irrecuperável.
Ela olha para o chão onde o novelo se avoluma, como que sedi-
mentado, desgastado pelo ar; acumulado, sem camadas definidas,
indefinindo um traçado. Tenta decifrar o indecifrável, essa linha
sem nexo, sem verbo, sem narrativa, que contudo diz. Diz que é
irrecuperável. Esse monte de uma linha imensa sem sentido, sem
destino, sem um ponto cardeal aonde dirigir-se, perdida no emara-
nhado de puxões deliberados, liderados por um ritmo preciso mas
algo insensato, que edifica a seus pés a escrita do acaso transcreven-
do labirintos, agarra-lhe os olhos, prende-lhe a imaginação. É uma
música constante, cheia de vazios, cheia de paragens. De actos sus-
pensos. A camisola já acabou nas suas mãos, mas ela continua a
repetir o gesto. Puxa o fio, puxa ainda, mesmo que já nada
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corra entre os seus dedos. E o gesto, sem a linha material, é liso e


puro, não tem acidentes, evolui fluído no espaço como uma dança,
sem nada que o entrave, nem atavios ou nós que o prendam. Ela
repete o movimento na limpidez do seu silêncio, livre de narrativa.
Porque o gesto sem o fio não tem nada que o conte. É pura música.
Abstracção. Momento de luz.
Às escuras, ela avança pela casa. Conhece os espaços de cor,
evolui com os pés nus como numa coreografia ditada pela pele.
A música só existe nos seus gestos, nos traços com que rejeita a
madrugada dos seus passos. O mundo tem escritas várias; ela só
queria entender a raiz de uma delas, a que o une, a que esclarece,
mesmo que vagamente, os mapas e os lugares de cada um de nós.
De cada um dos nossos intrincados nós. A que fica numa carta des-
botada pelo tempo e pelas lágrimas, ou pela água de uma cheia, ou
na areia, cujos vestígios de passos foram apagados sob o avanço da
maré, ou no chão, em curvas sobrepostas, no fio de uma camisola
desfeita. Como quem tenta apagar o passado, apagar um afago. Ou
revê-la, recapturá-la, compreender o seu sentido.

Nada sob o céu é tão novo como o azul dessa linha de tinta com
que percorre o caderno, desobedecendo à voz da professora, torna-
da fio lá ao longe, como horizonte distante, intocável, impossível.
Escrever direito com letras bonitas, definidas, para que todos as
reconheçam e apreendam, para que não se desvie nem perca o sen-
tido, para que tudo seja coberto de completude. E comunicação.
Mas ela busca o intangível e ele é silencioso e fugidio, não carece
de obediências nem sentidos obrigatórios, comunitários, não exige
geometrias exteriores às da alma. A linha é um plano onde o seu
coração avança, percorrendo os caminhos em sobressaltos ritmados.
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O médico olha para o aparelho e verifica se o desenho que nele ins-


creve o coração de Helena repete caligrafias predeterminadas como
adequadas, normais, não imediatamente perecíveis. Ela escolhe
ignorá-lo como à professora, um dia. E retoma a onda de Hokusai,
tantos traços puros resultantes dos labirintos de uma mão.
No chão, a camisola permanece desfeita. Ela deu ordens claras
para que semelhantes despojos não abandonem a sala, as imedia-
ções de si mesma, sentido prestes a desaparecer para sempre. Tal
como o seu corpo, o fio desfeito mostra uma estória. Formas que
jamais recuperarão a sua limpidez original, de linha sem mácula,
direita e por estrear. Agora, tal como ela, tal como a sua pele, o fio
ostenta a cicatriz do que já foi. Das formas que compôs. E, desfei-
to, mostra mais: algo que um dia as negou.
Esta é uma metáfora para si mesma. A mais adequada. Sem que
o médico se aperceba, ela sorri, mas o movimento de tantos múscu-
los não se intromete na linha cujos picos se tornam progressivamen-
te menores, indiferenciados e cadenciados dentro da medida. Ela
sorri. Mesmo que alguém um dia refaça a camisola, mesmo que ela
própria um dia a refizesse, coisa que ela sabe que jamais fará, nada
seria igual, o corpo dessa escrita jamais repetiria o original, mani-
festando a frustração das águas, o plano do que fica e, sobretudo,
o do olvido, como marcas ou rugas numa pele.
É o tempo a escrever o seu nome na superfície de um rio.
Parménides teria razão. Ou talvez não. O mundo é assim uma escri-
ta que tende para um indecifrável horizonte onde nem sempre o dia
é claro e luminoso.
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Abelardo sabe que a camisola jamais será refeita, muito menos ter-
minada, embora raramente esse pensamento lhe ocupe tempo e
reflexão. Nos últimos dias, tem-se dedicado a seguir com cuidado o
traçado que sucessivamente se levanta e mergulha a verde no hori-
zonte negro do ecrã, ao lado da cama. Esta é uma paciente de que
se ocupa há pouco tempo. Ele é ainda um jovem médico. Sabe já,
contudo, que não pode salvar o mundo. Nem mesmo se ele lhe for
apresentado numa mesa de operações, membro a membro, ponto a
ponto. Ainda assim, não desistiu do sonho de adiar o inevitável. Por
isso mantém o olhar tão atento. Sopesando sinais. Pedindo ajuda,
sempre que disso sente necessidade. Dando ajuda, sempre que para
isso se sente capaz. Mesmo com o gesto mais trivial. Ou com o mais
excepcional. Segurando nas mãos um coração, se preciso for. Como
há dois dias, com Helena. O vermelho surgiu como um disparo de
seiva de dragoeiro rompendo o branco da pele quando o bisturi o
cortou. Por escassos segundos, Abelardo viajou até à infância, nas
Canárias, na cinza de uma paisagem em que aprendera a amar o
desenho do mundo. Relembrou o sangue dessas árvores que a pin-
tura usara durante tantos séculos para mimar a seiva que corria dos
mártires, dos heróis, dos sacrificados. Fora nesses dias tingidos a
grafite que decidira ser médico, para intervir no possível, no coração
do mundo, livrando-o de mártires desnecessários. «Cardiologista,
pai», escreveu-lhe de Lisboa, logo cedo, na entrada em Medicina.
Porque a mecânica da vida, mesmo não podendo ser como Descartes
a descrevera nas páginas pormenorizadas que o pai amava, tinha tanto
de misterioso como de matemático.
Os segundos passaram e Abelardo reencontrou-se na sala de ope-
rações. Um pouco abaixo, um coração batia. Em seu torno, o tempo
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embrulhava-o como um lençol mortuário. Uns instantes antes tudo


parecera cessar. Ali estava uma massa vermelha, com desenhos na
superfície. Um músculo que devia bater e tinha parado. Agarrou-o.
Nesse momento de colapso, Abelardo massajara-o com as próprias
mãos, envolvendo-se inteiro no mistério e nos traçados que já sabe de
cor, na mecânica que quase tudo explica. Foi a resposta possível para
o instante que ali se contorcia e fechava, dando um nó que impediu
que a morte desde logo se instalasse e o sinal deixasse de se erguer e
de mergulhar no horizonte do ecrã. Uma equipa inteira fitara-o como
se estivesse a presenciar algo de impensável, um envolvimento tão
pessoal e íntimo, uma coisa antiga, primária, pouco científica. Pouco
asséptica. Mas ele nem os vira. Envolvido só nesse ímpeto de salvar
uma vida.

— Helena — diz Abelardo —, ainda não é tempo de se reduzir


ao silêncio. Ainda não é tempo de ir para a sua ilha branca.
Helena sorri. Justifica.
— Minha mãe era íntima de Homero. Talvez vítima de
Homero.
Como o fora dos medievais o pai do seu cardiologista. Estranhos
caminhos os das relações que nada explicam, sobretudo através do
tempo. Abelardo, nome fatídico para um amante, pensara Helena ao
ouvir o médico apresentar-se. Ele sorrira ao sorriso dela.
— Com o nome que tem, espero que qualquer amor que encon-
tre não se chame Heloísa.
O médico franziu o sobrolho. Isso o pai não pudera prever.
Nem ele. Nem nunca pensara nisso. Coisas de pouco interesse para
uma mente científica.
— Se tiver um filho, não lhe chame Astrolábio. — Helena insis-
tia. Palavras de obrigação, para agradecer o permanecer
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viva. Como se agradece tal coisa a não ser com o silêncio? Abelardo
fizera da boca uma linha, com os cantos a apontar para as estrelas.
Um zombo de um sorriso a fingir que tudo era banal.
Agora, dois dias passados, ele permanece atento às variações
dessa outra linha. Do outro lado da cama, contra todas as indicações
e todas as vontades e coordenadas do hospital e da família, um fio
de lã vermelha amontoa-se encaracolado sobre os mosaicos cinzen-
tos. A família pede desculpa, os auxiliares encolhem os ombros e o
cardiologista diz que não faz mal, deixá-lo, se é tão importante para
a paciente. De um lado, o verde eléctrico e bicudo, picando o ar em
soluços ritmados. Do outro, o vermelho, quente e orgânico, em cur-
vas imóveis. Nada mais. O médico vigia sem nada dizer. Espera ter
feito Cronos recuar nas suas decisões finais.
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O coração não é sentido, nem faz sentido tantas vezes na vida o baru-
lho que ele faz. Um simples órgão que nos baralha as percepções.
Uma máquina complexa que nos mantém vivos ou que pára, simples-
mente, um dia, acabando com tudo, deixando tudo suspenso. Botão
da finitude. Eis o que pensara Helena, olhando para a escrita que o
coração desenha no ecrã. Recorda as coisas que leu sobre o funciona-
mento do coração, os esquemas como casas, primeiro as fachadas,
depois os alçados, logo as plantas com a sua arquitectura complexa.
Mas um coração é, afinal, mais do que uma casa, é um labirinto de
relações, um lugar de muitos caminhos, um mapa das nossas perdas.
Também aí se inscreverão os nossos ganhos?
Helena voltara a sorrir sem que o médico a visse. Pensara nas
múltiplas páginas onde a sua dança íntima se inscreve. Se precipi-
ta. De vez em quando parece que uma mão lhe puxa a alma para o
alto, para logo a deixar cair na tentação do sangue. Picos maiores
do que montanhas. Helena sorri. Como teria sido a vida da outra
Helena se não tivesse regressado para Menelau, aceitando a vitória
e o veredicto dos gregos? Como teria sido se jamais tivesse saído
dos braços de Páris, esse homem que levou à perdição a sua pró-
pria cidade, a sua família, o seu sangue? Como teria sido se,
mesmo morto o amante, ela tivesse aceite um destino de errância,
traçando o seu caminho pelo mundo, carregando a maldição dos
sem pátria? Helena não pode deixar de pensar em Helena, a outra,
e em cada alternância é sempre em si mesma que pensa. Como
todos nós. Deitada na cama do hospital, ela roda os olhos pela sala.
Eis o centro do seu mundo actual. Um lugar asséptico e branco,
com uma luz que fere os olhos de tão limpa, onde os únicos pon-
tos de cor são as batas destoantes do pessoal hospitalar e
alguns cabos eléctricos.
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Será que uma paixão deixa algum tipo de nó no traçado do coração?


Um dia, uma cigana lera-lhe a mão. Então, era ela jovem e achou
graça a essa contradição de a cigana ser completamente cega para
as linhas da escrita e tão clarividente para as marcas criadas pelos
movimentos cerrados das suas mãos. Que se pode ler aqui que não
seja universal? Mas a cigana criou-lhe um futuro, ali mesmo, em
confluência temporal, traçando-o com o passado e o presente, uma
tessitura complexa e aventureira, talvez levada no dorso da imagi-
nação pelo ar exótico dessa Helena de então, cabelos longos e
negros, os olhos grandes e as unhas rosadas como o sorriso da auro-
ra. Helena volta a sorrir porque hoje ainda recorda, mas sobretudo
hoje já sabe que nada do que a outra viu estava lá. Nunca houve
caminhadas sobre as dunas, nunca ela cruzou o grande mar num
navio, nunca ela caminhou no gelo rente às almas dos Inuit.
O seu lugar foi ponderado e quase sem sobressaltos. Coisas
comezinhas, como se espera de alguém como ela. As suas maiores
viagens apenas as fez quieta, sentada no seu quarto. Sim, viajou, é
claro, como se impõe hoje a qualquer pessoa de bem e de posses.
Mas terá mesmo estado nesses lugares? Tantas cidades, tantas ida-
des, e Helena palmilhou ruas como quem confirma o traçado dos
mapas, mas pouco se entregou a esses lugares porque pouco se per-
deu neles, nessas geografias exteriores às suas. Talvez fosse nova de
mais. E talvez depois se tornasse tarde de mais. Foi sempre caute-
losa em tudo, até no amor, embora talvez menos no amor, preferin-
do a dor a lugar nenhum, preferindo o risco a espaços apagados e
perfeitos e sem história. Não que apenas tivesse havido dor. Mas,
quando ela veio, Helena não a rejeitou. Amou por vezes. Amou
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algumas vezes. Amou sobretudo mais depois de descobrir que sofria


do coração e que era imperativo deixá-lo à solta para se ferir, deixá-
-lo à chuva, à intempérie, para justificar o facto de ter sobrevivido.
De que serve um coração novinho em folha quando tudo já passou?
Depois da operação, perguntou ao cirurgião:
— Encontrou alguma coisa no meu peito?
— Um coração — respondeu ele. — Foi esta a mão que o apertou.
E sorriu. Helena sorriu também, mas sabe, melhor do que ele,
apesar da evidência do seu acto, que a mão do cirurgião foi apenas
uma das muitas que apertaram o seu coração. São muitos anos de
apertos, pensa ela sem deixar de sorrir, agora já só para si mesma,
sozinha no quarto isolado dos cuidados intensivos.
A seu lado, o aparelho atento marca o ritmo dos seus passos
interiores. Tudo parece correr bem. Mais uma vitória. Helena pensa
na morte e diz-lhe baixinho:
Ainda não. Dar-me-ás mais algum tempo. Restam-me ainda
algumas caminhadas por fazer.
«O coração não é um sentido; é um nó», dissera-lhe um dia a
avó. Tinha razão. E nada há de mais desconhecido que o pretérito.
Porque já nada sabemos dele. Porque aconteceu a alguém que já não
somos.
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Passaram já dois meses. Contra todos os prognósticos, Helena vol-


tou a casa. Ao entrar na sua ilha, Helena não pode deixar de sorrir.
É um regresso e todos os regressos nos colocam obstáculos. O olhar
atravessa o espaço, mede-o, espia-o para detectar mudanças, para
confirmar permanências. Que manobras teriam os filhos operado
preparando o seu retorno? Que decisões teriam tomado se ela não
tivesse voltado? A quem distribuiriam os despojos da sua vida? Que
histórias evocariam? O que calariam?
Regressar a casa é voltar à ilha, pensa de novo Helena que
ainda não morreu.
É inevitável que, nesse regresso de uma morte adiada, ela se
meça pela Helena de cuja fama herdou o nome. Eduarda, sua mãe,
era íntima de Homero. Uma intimidade tecida de muitos serões, par-
tilhando com Penélope um marido ausente. Não pela guerra, mas
pela alma. Essas leituras, logo no início do casamento, haviam-na
feito decidir dar à filha um nome provocador. Escassa forma de vin-
gança. Na sua vida, Eduarda fora obediente em tudo. Como voltaria
a ser depois, até ao fim. Apenas na escolha do nome da filha tivera
ela fôlego para alguma rebelião. Escolhera o nome da adúltera por-
que a fascinara essa mulher que caía no ardil dos deuses, mas que os
deixava convencer-se de que vivia um grande e imperdível e trágico
amor. Ao marido, a mãe da nova promitente adúltera justificava a
escolha pela beleza do nome, pela sua simplicidade e tradição. E o
marido, oficial do exército pouco dado a leituras e nada íntimo de
associações clássicas, aceitou com a temperada dose de inevitabili-
dade, enfado e alívio, a decisão da mulher.
Helena ficou, pois. E bela como a bela Helena, Helena a nova
cresceu na sombra da homérica. Sem rasgos nem aventuras desig-
nadas por deuses malévolos. Apenas entregue ao seu destino. Como
o nome que atravessa séculos também a sua memória pessoal pare-
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ce ser inflexível, impermeável à destruição. Sorte e maldição, dirá.


Nada desaparece do seu pensamento, nada se apaga. Ou não o sufi-
ciente. Por isso ela conhece e reconhece todos os pormenores da sua
habitação, como os da sua pele. Helena entra em casa e o seu nome
ressoa lá dentro.
— Sou Helena e acabo de regressar.
Os filhos nunca se haviam sentido à-vontade com essa sua
estranha mania de acordar o lugar, de se anunciar ao espírito que
nele habita.
— Que manias tão estranhas para uma católica, mãe — repe-
tiam. Helena teria de sorrir, neste dia mais do que nos outros. Sente-
-se pouco católica, neste dia, menos porventura do que em todos os
outros da sua longa e insistente existência.
A casa precisa de obras, pensa. Mas que as façam eles depois
da minha morte. Agora não aguentaria o pó, a desorganização, a
novidade. Adentrou-se pela sala e sentou-se no lugar habitual do seu
sofá, em frente ao fogo e em frente ao mar.
— Talvez precise de um chá — anunciou com suavidade.
O filho mais novo deslizou docemente para a cozinha e pôs a cha-
leira ao lume. Preparou o bule, a chávena, o tabuleiro. Escaldou as
loiças e voltou à sala para anunciar o tempo.
— São só uns minutos, mãe.
Helena assentiu. Só uns minutos. As folhas abrirão e soltarão o
seu perfume, partilhando-o com a água. E, nessa partilha simples,
Helena fará mais uma breve viagem.
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As folhas abririam daí a dias, rasgando para o céu a sua alacridade.


Verde, um verde casado com prata. Folhas de cor dupla, como uma
dupla natureza. Helena pensa. Para lá da janela está o mundo e ela
não sabe o que fazer com ele. Disseram-lhe no hospital que a vida
continua, mas a ritmo lento. A Primavera retorna e ela reencontra o
caminho de casa. As suas mãos não são já as que aqui recorda.
Como pode o tempo passar sem se fazer ouvir e, ainda assim, gra-
var, tão profunda e irreversivelmente, o seu curso no mundo?
A tília, como ela. Cada uma no seu sítio, cada uma no seu
tempo. Os nós do corpo da árvore, como os nós no seu, caminham
em direcção a um altíssimo que apenas conhecem pela cor. A existir
algum acerto no mundo será exactamente esse, de aquilo que conhe-
cemos pelas sensações, que descobrimos pela superfície cromática,
ser exactamente o que rima com o que se conhece pelo coração.
As folhas já abriram no bule. Ao estender a mão para deitar o
chá na chávena, Helena hesita. Olha-a. O cenário é o de sempre.
Mas tudo mudou. O tempo passa todos os dias um bocadinho só.
Porque será que apenas o reconhecemos às fatias, em golpes pro-
fundos, que tornam avessos os lugares de sempre? Agora a sua mão
tornou-se outra, como o seu braço, como o seu corpo, como toda
ela. Não é só a consciência da morte. É sobretudo a consciência do
tempo. O tempo é um problema insolúvel porque não tem corpo.
Apodera-se, por isso, do corpo do mundo, dos corpos que nele
encontra. A mão que agora se estende sobre a mesa é a de Helena,
mas não é a de Helena. Que outra mão poderia ser a sua, então?
Nada do que foi no passado mantém ainda concordância consigo.
Não sabe como é que, enquanto dormia, comia, bebia, tomava
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banho e se envolvia no corpo dos amantes, enquanto paria e dava de


mamar, enquanto limpava o ranho dos filhos e os amparava no
medo e os preparava para a escola e para o mais que não sabia, o
tempo conseguiu a subtileza de lhe escrever tudo em cima e por
dentro, e nos olhos. Tudo, tudo o que viveu e tudo o que não viveu.
Por falta de coragem ou falta de tempo ou falta de jeito. Ou por
alguma outra falta que tivesse cometido. Se tivesse coragem, acaba-
ria com tudo ali mesmo naquela tília, um último nó levando-a para
o fundo. Mas o mar lá está, brilhando e levando-a de novo para a
promessa da ilha. Para quê precipitar o prometido? Helena pega na
chávena e sorve o chá.
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Que lhe dissera a avó? Que o chá era para crentes. Era mais do que
uma bebida. Era quase uma religião. Certamente uma cultura.
Helena não entendera, nesse dia. Viria mais tarde a descobrir essa
frase, como um mandamento, num livro pequeno assinado por um
oficial de marinha do século XIX, um português que se apaixonara
pelo Japão e pelas suas mulheres, amando-as muito, por vezes mais
do que uma de cada vez, como se em cada uma delas melhor mer-
gulhasse no espírito da nação pela qual deixara o seu país. A avó
devia saber do que falava. Era uma especialista em ervas. Sabia
para que servia cada uma e quais os deleites que produziam nos seus
consumidores. Conhecia-as pelo cheiro, pelo tacto, pelas proprieda-
des. A avó gostava de revelações. Depois de velha decidira perder a
vergonha e manter com a neta conversas que a etiqueta desaconse-
lhava por completo.
— O chá, minha filha, é como as lichias. Por ele se reconhece
a pele dos amantes, o seu perfume, a sua suavidade. Por exemplo:
soube que o teu avô seria um bom amante quando um dia, inespe-
radamente, ele me ofereceu lichias. Nesse tempo era difícil encon-
trá-las. Mas ele conseguiu, por uns conhecimentos que tinha, que as
lichias chegassem intactas e frescas do Oriente longínquo.
— Como fez ele isso, avó?
— Nunca soube, filha, mas isso não era o mais importante.
O que interessa é que conseguiu. Sobretudo conseguiu dizer-me, de
uma maneira muito acertada, que o sexo era importante para ele.
Helena corara. Ainda não sabia o que era sexo e ali estava a
avó, uma mulher de um outro tempo, a falar nisso com tanto à-von-
tade. Às escondidas de toda a gente, no meio do perfume do chá,
enquanto as folhas abriam, Beatriz revelava um mundo novo à neta.
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— Como soube isso tudo, avó?


— Não sei, intuí. A primeira lichia que comi foi uma revelação.
Não sei como, soube que era a isso que me ia saber o sexo daquele
homem.
— Avó!... Era o meu avô!
— Sim, e foi o meu marido. E ainda bem que soube desde logo
que ia ser bom. Não é bom não se saber nada. E se não se gosta?
— Mas donde tirou a avó essas ideias? Gostar não é para as
mulheres. Pelo menos não para as sérias.
A avó rira-se. Gostar não é para as mulheres sérias, diz-se. Mas
ela tivera mestres, livros que não lhe tinham conseguido esconder.
Livros de filosofia, de literatura, até de medicina. Livros sobre o
mundo, livros que a tinham libertado. Lera também o Moraes, esse
louco que amava o Japão mais do que a lusa pátria. Lera o Moraes
e atrevera-se a pensar. Com ele descobrira o chá, e com o chá os
perfumes do Oriente, e as visões de outros povos, de outros modos,
e com eles e por outras vias a luxúria e o pensamento do corpo, e o
sentimento do corpo. E bem lhe fizera saber essas coisas antes
mesmo de as conhecer porque fora invulgarmente feliz no casamen-
to, invulgarmente amante, invulgarmente amada.
— Não queres saber, Helena?
— O quê, avó?
— Se esse homem sabia a lichias?
— Mas era o meu avô…!
— Sim. Mas isso foi depois. Naquela época era apenas o meu
homem. — Beatriz sorriu. — E sim, sabia a lichias.

Não, o marido de Helena nunca lhe saberia a lichias. Não cabe a


todos a mesma sorte. A si soubera-lhe a pouco. Quando
Helena casou, a avó já morrera havia uns meses. Não
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26 CARTOGRAFIA ÍNTIMA

estava lá para lhe voltar a falar dos prazeres secretos, dos segredos
do corpo. E, fora essa mulher que lia livros que ninguém consegui-
ra manter longe dela, mais ninguém na sua família se atrevera a pas-
sar a Taprobana, mais ninguém se atrevera a ir mais além do que os
limites que as convenções impunham. A vida é tão curta e ninguém
se arroja a vivê-la com medo do juízo dos outros. A sua família era
um bom exemplo disso. Presos ao olhar de toda a gente, presos à
palavra de qualquer um, presos a tudo o que viesse de fora, sem
jamais se atreverem a ouvir o que a vida lhes pedia, o que o corpo
lhes gritava, o que o tempo lhes exigia. O pai, a mãe, com os seus
espíritos tão santos. Tão dentro de uma conveniente forma.

Helena recorda hoje o dia em que descobriu, numa alta prateleira da


biblioteca, deitado por trás de uns volumes vistosos da enciclopé-
dia, e coberto de um pó antigo de décadas, uma velha edição do
pequeno volume de Moraes sobre o chá. Recorda a emoção da des-
coberta com o mesmo nervoso com que se encontra numa qualquer
rua um velho amante. Sim, hoje ela já conhece essa emoção, porque
já a viveu. Hoje é outra mulher, e recorda a avó de um outro modo.
Um dia ela também já encontrou um antigo amante numa rua per-
dida da cidade. Um encontro esquivo, sem pecado, mas cheio da
energia do pecado, da sua memória. Da memória da pele exultando.
Da memória da seiva brotando.
— Ainda achas que é pecado, Helena? — Quase ouve a voz da
sua avó.
— Não, avó, já não. Mas convenhamos que o pecado lhe dava
alguma graça. O perigo do sexo, antes destas doenças de agora, e
mesmo havendo então outras também terminais, também conspí-
cuas, que desfiguravam e nos comiam por dentro, martirizando as
entranhas, punindo, como diziam os padres, o perigo do sexo era
sobretudo o do inferno e esse era quase divino, por vezes.
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— O que é o divino, Helena?


— Não sei, avó.
— É a graça, minha filha. A graça de que o corpo faz parte. Não
o corpo que resiste à graça. Relê o Pico, filha. Livra-te desses pen-
sadores bolorentos e dessa mentalidade que te persegue por dentro
e por fora. A vida é tão curta. Não deixes que a tua pele chegue lisa
e impoluta à tua última morada.

A pele não chegou lisa e impoluta. A mão tem manchas. Pelos bra-
ços prossegue esse emaranhado de linhas que se lança à conquista
do corpo logo desde a ponta dos dedos, passado o rigor duro das
unhas. Dos braços, ele avança para o tronco, abrindo brechas maio-
res. No banho, a água avança por geografias que se crivaram de
obstáculos. Mergulhando na água a mão direita que agarra a espon-
ja, concedendo-se o luxo de uma banheira cheia, Helena segue a
luz que a água reflecte sobre a sua pele. Com tantas provas de que
viveu, de que atravessou tempos e lugares, de que sobre ela tudo
ficou provado, permanece um desacerto entre o que sabe, o que vê,
o que recorda. O que sente. É sem dúvida este o seu corpo. Ou é
sem dúvida ela que aqui está, que ocupa o lugar, que age, que
pensa. É sem dúvida a mesma desde o dia em que foi parida. E con-
tudo não é ela, como não é o mesmo rio que sempre corre. Como
não são as mesmas as margens que o acolhem. Olhamos um mapa
e tudo permanece — desde que se nomearam os lugares, os rios, as
cidades. Algumas mudaram de nome, mas a maioria porventura
exibe ainda o baptismo quase intacto da primeira definição. E con-
tudo os seus contornos mudaram, o seu corpo alterou-se, cresceu,
derrubou barreiras e apagou ruas, arrasou casas, quarteirões. Gente
nasceu e morreu. Também assim os rios. Com as margens
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28 CARTOGRAFIA ÍNTIMA

e os cursos redesenhados. E todavia continuamos a dizê-los como


ontem, como há tanto tempo. Este é o Tejo, como esta é Lisboa e
como esta sou eu olhando-me hoje sobre os escombros de mim
mesma, e sobrevivendo ainda.
Fazendo um balanço, como o marido tanto gostava, Helena
sabe que teve sorte. Sorri. Livrou-se dele. Não foi preciso espe-
rar pela sua morte. Bastou-lhe afirmar a sua vida. As suas deci-
sões. A sua escrita.
Na pele tudo se escreve. Mas a memória do corpo é maior. Pode
não ser sublime. Pode nada ter a ver com conceitos esmagadores.
Mas não deixa de ser maior do que tudo o que se imagina no come-
ço de uma vida. Ficam as mazelas das chuvadas que se apanharam
na juventude, do frio excessivo, do sol que tudo varreu. Como as
das cirurgias e das feridas que rasgaram a pele, que cortaram a
carne. Mas ficam também as que não deixam vestígios na superfí-
cie, aquelas cuja escrita foi mais vagarosa e incisiva. Mais feroz e
determinada. Não vale a pena protegermo-nos. Mesmo os que guar-
dam a lisura da pele ou os que enganam a lisura da pele com inci-
sões precisas de bisturi para fintar o tempo, irão precipitar-se inevi-
tavelmente para o mesmo lugar. Em todos, afinal, o mesmo rio
corre. Sem parar.

Sim. A avó tinha razão. O chá é quase o corpo dos amantes. Helena
tornou-se uma amante sábia. Ilustrada, ganhou sabedoria nos livros
com imagens, aprendeu neles o que mais ninguém lhe quis ensinar.
Nem o marido. Sobretudo não o marido. Divertiu-se depois a sur-
preender os amantes. A criar uma personagem viajada e sabedora
das muitas variedades dessa geografia íntima, das muitas e fartas
geografias dos corpos.
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É clara a memória como clara é a água, como claro é o chá.


Como clara é a luz – na preia-mar, rondando os pés nus. Os seus e
os dos seus filhos. As cores são pastel e sobre elas cai o oiro fino
das manhãs de Verão, para sempre cristalizadas na memória.
Mesmo que as cores vividas tenham sido outras.
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Para Helena, a morte é uma palavra doce. Tem algo de irremediável


e sedutor. Não que ela pense hoje precipitar-se nos seus braços. Mas
sabe que há que merecê-la, honrá-la no brilho da espada para o últi-
mo, o derradeiro dia.
Vê a estranheza da sua família que se inquieta pelo facto de ela
não exibir sinais de inquietação. Como poderão compreender?
Nunca a esperaram, fazem de conta que, com sorte, qualquer cirur-
gião possa removê-la dos seus futuros a par das rugas, deitadas para
trás das costas ou, na verdade, para trás das orelhas, precipitando o
tempo numa cosedura de peles, fechando-o aí, ignorado. Não
ouvem o passar dos dias, deitados face ao ocaso como a ilha de
Ulisses. Não percebem que a cada amanhecer o sol ilumina mais
claramente o incessante labor de Cronos. Aracneia morreria de
novo, hábil tecedora, a morte, ágeis dedos de quem se deita nos bra-
ços do tempo, remador implacável.
Helena olha a Aurora, a de belas tranças, como em certos ver-
sos a descreveu Homero. Olha a madrugada e espia os avanços do
tempo, o namoro que a morte semeia no seu corpo, fingindo adiar o
encontro, como se não pudesse a qualquer instante tomá-la em
pleno voo. Sobe pelas escadas franzidas da sua pele da mão que há
muito exibe os sinais da passagem pelo mundo. Toca-se e nada lhe
diz que é ela e tudo lhe diz que é ela, muralha impenetrável onde se
esquecem os sonhos de que foi detentora, depositária, há tantas
décadas.
Envelhecer é uma glória, Helena sabe-o. Desde que se possa
envelhecer em glória, é claro. Porque, caso contrário, não vale a
pena. Não há glória que o compense. Nem todos temos a fortuna
predestinada. Seja na vida como na qualidade dos anos, no tempo
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que nos separa da morte. Há os que perdem o corpo, os que perdem


a alma, os que se perdem no meio da adversidade e da voracidade
do tempo. Helena tem sorte. Não perdeu nenhuma parte de si.
Mantém intacto o corpo, por dentro e por fora. Nada de membros
amputados, nada de substituições invasivas e assustadoras. Nada
de próteses. Tem os dentes bem preservados, pode continuar a mor-
der a vida. Tem os olhos em pleno funcionamento, ainda que pre-
cise de algumas lentes correctivas; ainda assim, bem mais ligeiras
do que as da maioria dos seus amigos sobreviventes. E tem a
memória intocada.
Sim, ela sabe bem a sorte que tem. Apenas a pele acusa o tempo
com toda a clareza. As manchas nas costas das mãos, o pescoço que
cede — que cedeu há muito —, o rosto no qual a sua biografia se
pode ler quase tão claramente como num livro. Mais fina do que
antes, mais seca que antes, a pele do corpo perdeu também parte da
sua cor, tomando-se de transparências que antes ali não se encontra-
vam. Sim, apenas a pele a transforma em relação ao passado. Mas
a pele é um registo para o exterior. E ainda assim só ela sabe o que
aí corre de íntimo e pessoal. De resto, do interior para o exterior, são
os olhos o que mais e sempre a significam. Helena sabe.
Tem sorte de o corpo, apesar de tudo, permanecer com alguma
rectidão face às necessidades do quotidiano. Tem sorte de a doença
não a apoquentar tanto como a tantos. É apenas o coração que a
incomoda.
— Mas, mãe, o coração é tudo, não é?
— Sim, filha, o coração é tudo, mas imagina que eu não sabia
quem era, imagina que o coração era jovem, sem mácula, sem pato-
logias, mas que eu não sabia quem era.
Imagina um buraco cravado no real, expandindo-se por dentro
de mim, como aconteceu com a tua tia-avó. E, mais tarde, com a tua
avó. Imagina deixar para trás as memórias de uma vida, tudo o que
és, tu própria, para ficares a vegetar numa cadeira, de
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frente para o mar o dia inteiro. Sem sonhos, sem nada que te atire
de vez em qualquer direcção, seja para a frente seja para trás.
A filha olha para ela sem saber o que é melhor. Nunca passou
por nenhuma doença, tem o corpo invicto. Invicto até da vida.
Nunca passou sequer por nenhum amor, por nenhum amante.
Critica tudo e todos, está demasiado ocupada a olhar para o mundo
de modo enviesado, de um enviesado que toma por analítico.
Desconhece algo essencial: só se pode ser analítico depois de
conhecer. E só se conhece o que se experimenta. Como se analisa o
que se não vê? Como se analisa o que nunca nos tocou na pele?
Helena olha para a filha e lamenta não ter sabido passar-lhe parte do
seu conhecimento. Mas sabe que o conhecimento tem os seus tem-
pos, os seus modos. A seu tempo, a filha saberá.

Helena sabe. O coração há-de parar um dia, como o de todos. Mas


sente-se feliz por lhe ter arrancado um tempo mais, mesmo que esse
tempo sirva para se preparar para o impreparável. Porque o impre-
parável não é a morte, mas a consciência do escasso tempo que dela
nos separa. Como se vive com essa consciência? Helena olha direc-
tamente no eixo dos seus olhos, e sabe que aí se encontra com o
mais verdadeiro de si. É ela quem aí reside, o mesmo olhar desde o
primeiro dia, por vezes turvado pelo medo, outras vezes afogado em
perdas a que nunca se habituou. Outras vezes brilhando com o riso
ou a água mais doce de um beijo.
Os filhos, que se arreliam com o namoro assumido com os pas-
sos derradeiros, desconhecem esse brilho. Não se olha nos olhos dos
moribundos. Ela sabe que é isso que eles pensam, temendo o contá-
gio. Não sabem que já têm o fim inscrito nos seus dias. Não sabem
que vão um dia passar por esse mesmo lugar, uma casa atapetada de
memórias — algumas confusas, outras finamente vivas —, de amar-
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guras e decisões. Não sabem sequer que não basta deixar o tempo
passar. Não sabem que não é preciso esperar pela derrocada da pele,
dos músculos, para que a morte nos encontre. Ou sabem mas prefe-
rem ignorar, não se deixar contaminar pela necessidade de honra,
pela urgência da honra, de trilhar um caminho de cabeça erguida,
pelo gozo e orgulho final de exibir os cursos de rios que sobre nós
passaram.
Helena revê-se a cada manhã, deixa a janela aberta para que o
frio caia directo sobre a sua pele branca como o leite. É um deser-
to. Sobre ela passou uma civilização e eis que agora todo o seu
corpo se prepara para reencontrar o leito do rio, seco há muito, pó
de regresso ao pó. Vê a sua casa preparar-se para a levar como uma
concha, vestígio, extracto de um tempo antigo, que por ela passou.
Olha para o seu corpo e traça nele um mapa. Aqui o rio por onde
saiu o seu filho. Uma memória fina na pele milagrosamente intacta
após o corte, de novo consolidada por células que não se deixaram
ofuscar pelo poder da lâmina. Mais ali o traçado de um caminho que
mudou o seu destino, adiando-lhe a finitude. Por ali entrou a única
mão que tocou literalmente o seu coração. Que o massajou, o repa-
rou, lhe deu mais anos de vida. Por ali ficaram bordados os gestos
de quem coseu o seu peito contra a morte, essa que apenas se adia,
que nos aguarda com doçura, esperando sempre, não desistindo
nunca. Fiel.
Helena sabe. Não pode olhá-la como inimiga. Tem sido ela a
iluminar as suas decisões.
Vive-se uma vez, sussurra-lhe a morte nos dias mais obscuros.
Queres mesmo aninhar-te já no meu regaço, dobrada sobre ti
mesma dentro do meu corpo como uma criança por nascer? Ou tra-
rás antes o fio de muitos dias para me contares na eternidade?
Há que merecer. A morte não a assusta, embora ela se
indigne de ter ao seu alcance tão pouco de tudo o que há
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34 CARTOGRAFIA ÍNTIMA

para ver e amar. A morte é o que nós podemos saber, embora jamais lhe
tenhamos visto o rosto e nos limitemos a pronunciar o seu nome, abusi-
vamente. Ela que um dia a acolherá, como a todos nós enfim, no cami-
nho que ela escolher, qualquer um, ela lá estará, sem falhar, certa e só,
como uma mãe, para lhe dar a mão e seguir consigo. Para nunca mais.

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