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EMÍLIA FERREIRA
CARTOGRAFIA ÍNTIMA
Júri:
Alípio de Melo (pela C.M. de Gouveia)
Cristina Robalo Cordeiro
José Correia Tavares
Liberto Cruz
Silvina Lopes Rodrigues
© 2009, Medialivros, S. A.
Todos os direitos de publicação desta obra em língua portuguesa reservados por:
norte
TRAÇAR A CONSCIÊNCIA
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Ela sabe que as palavras são mais do que caligrafia, uma norma para
os gestos, codificação da forma com vista à legibilidade e apura-
mento do grau de civilidade do seu autor. Ela sabe-o, mas não é isso
que lhe interessa no verbo declinado no suporte. É o gesto inconti-
do como uma maré, como um avanço de águas. A onda de Hokusai,
a contenção da linha prestes a tornar-se espuma, pura força, energia.
Um fio desfiado, desalojado do sentido, como um tricô desfei-
to. Como um novelo que se refaz depois de desfazer uma camisola,
um peito, umas costas. Uma respiração. Um texto que se reescreve.
Que está prestes a reordenar-se, mantendo no entanto algo do pul-
sar do anterior. Ela sabe. E vai desfazendo a sua escrita ao correr da
pena, ao correr da água e dos dias, no discorrer do vento ou no cor-
rer do fio — puxado, puxado até ao limite, sem mais nós do que
aqueles que ficam, cicatriz de gestos, resquícios de uma outra escri-
ta, de um texto apagado agora, para sempre ilegível. Irrecuperável.
Ela olha para o chão onde o novelo se avoluma, como que sedi-
mentado, desgastado pelo ar; acumulado, sem camadas definidas,
indefinindo um traçado. Tenta decifrar o indecifrável, essa linha
sem nexo, sem verbo, sem narrativa, que contudo diz. Diz que é
irrecuperável. Esse monte de uma linha imensa sem sentido, sem
destino, sem um ponto cardeal aonde dirigir-se, perdida no emara-
nhado de puxões deliberados, liderados por um ritmo preciso mas
algo insensato, que edifica a seus pés a escrita do acaso transcreven-
do labirintos, agarra-lhe os olhos, prende-lhe a imaginação. É uma
música constante, cheia de vazios, cheia de paragens. De actos sus-
pensos. A camisola já acabou nas suas mãos, mas ela continua a
repetir o gesto. Puxa o fio, puxa ainda, mesmo que já nada
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Nada sob o céu é tão novo como o azul dessa linha de tinta com
que percorre o caderno, desobedecendo à voz da professora, torna-
da fio lá ao longe, como horizonte distante, intocável, impossível.
Escrever direito com letras bonitas, definidas, para que todos as
reconheçam e apreendam, para que não se desvie nem perca o sen-
tido, para que tudo seja coberto de completude. E comunicação.
Mas ela busca o intangível e ele é silencioso e fugidio, não carece
de obediências nem sentidos obrigatórios, comunitários, não exige
geometrias exteriores às da alma. A linha é um plano onde o seu
coração avança, percorrendo os caminhos em sobressaltos ritmados.
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Abelardo sabe que a camisola jamais será refeita, muito menos ter-
minada, embora raramente esse pensamento lhe ocupe tempo e
reflexão. Nos últimos dias, tem-se dedicado a seguir com cuidado o
traçado que sucessivamente se levanta e mergulha a verde no hori-
zonte negro do ecrã, ao lado da cama. Esta é uma paciente de que
se ocupa há pouco tempo. Ele é ainda um jovem médico. Sabe já,
contudo, que não pode salvar o mundo. Nem mesmo se ele lhe for
apresentado numa mesa de operações, membro a membro, ponto a
ponto. Ainda assim, não desistiu do sonho de adiar o inevitável. Por
isso mantém o olhar tão atento. Sopesando sinais. Pedindo ajuda,
sempre que disso sente necessidade. Dando ajuda, sempre que para
isso se sente capaz. Mesmo com o gesto mais trivial. Ou com o mais
excepcional. Segurando nas mãos um coração, se preciso for. Como
há dois dias, com Helena. O vermelho surgiu como um disparo de
seiva de dragoeiro rompendo o branco da pele quando o bisturi o
cortou. Por escassos segundos, Abelardo viajou até à infância, nas
Canárias, na cinza de uma paisagem em que aprendera a amar o
desenho do mundo. Relembrou o sangue dessas árvores que a pin-
tura usara durante tantos séculos para mimar a seiva que corria dos
mártires, dos heróis, dos sacrificados. Fora nesses dias tingidos a
grafite que decidira ser médico, para intervir no possível, no coração
do mundo, livrando-o de mártires desnecessários. «Cardiologista,
pai», escreveu-lhe de Lisboa, logo cedo, na entrada em Medicina.
Porque a mecânica da vida, mesmo não podendo ser como Descartes
a descrevera nas páginas pormenorizadas que o pai amava, tinha tanto
de misterioso como de matemático.
Os segundos passaram e Abelardo reencontrou-se na sala de ope-
rações. Um pouco abaixo, um coração batia. Em seu torno, o tempo
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viva. Como se agradece tal coisa a não ser com o silêncio? Abelardo
fizera da boca uma linha, com os cantos a apontar para as estrelas.
Um zombo de um sorriso a fingir que tudo era banal.
Agora, dois dias passados, ele permanece atento às variações
dessa outra linha. Do outro lado da cama, contra todas as indicações
e todas as vontades e coordenadas do hospital e da família, um fio
de lã vermelha amontoa-se encaracolado sobre os mosaicos cinzen-
tos. A família pede desculpa, os auxiliares encolhem os ombros e o
cardiologista diz que não faz mal, deixá-lo, se é tão importante para
a paciente. De um lado, o verde eléctrico e bicudo, picando o ar em
soluços ritmados. Do outro, o vermelho, quente e orgânico, em cur-
vas imóveis. Nada mais. O médico vigia sem nada dizer. Espera ter
feito Cronos recuar nas suas decisões finais.
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O coração não é sentido, nem faz sentido tantas vezes na vida o baru-
lho que ele faz. Um simples órgão que nos baralha as percepções.
Uma máquina complexa que nos mantém vivos ou que pára, simples-
mente, um dia, acabando com tudo, deixando tudo suspenso. Botão
da finitude. Eis o que pensara Helena, olhando para a escrita que o
coração desenha no ecrã. Recorda as coisas que leu sobre o funciona-
mento do coração, os esquemas como casas, primeiro as fachadas,
depois os alçados, logo as plantas com a sua arquitectura complexa.
Mas um coração é, afinal, mais do que uma casa, é um labirinto de
relações, um lugar de muitos caminhos, um mapa das nossas perdas.
Também aí se inscreverão os nossos ganhos?
Helena voltara a sorrir sem que o médico a visse. Pensara nas
múltiplas páginas onde a sua dança íntima se inscreve. Se precipi-
ta. De vez em quando parece que uma mão lhe puxa a alma para o
alto, para logo a deixar cair na tentação do sangue. Picos maiores
do que montanhas. Helena sorri. Como teria sido a vida da outra
Helena se não tivesse regressado para Menelau, aceitando a vitória
e o veredicto dos gregos? Como teria sido se jamais tivesse saído
dos braços de Páris, esse homem que levou à perdição a sua pró-
pria cidade, a sua família, o seu sangue? Como teria sido se,
mesmo morto o amante, ela tivesse aceite um destino de errância,
traçando o seu caminho pelo mundo, carregando a maldição dos
sem pátria? Helena não pode deixar de pensar em Helena, a outra,
e em cada alternância é sempre em si mesma que pensa. Como
todos nós. Deitada na cama do hospital, ela roda os olhos pela sala.
Eis o centro do seu mundo actual. Um lugar asséptico e branco,
com uma luz que fere os olhos de tão limpa, onde os únicos pon-
tos de cor são as batas destoantes do pessoal hospitalar e
alguns cabos eléctricos.
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Que lhe dissera a avó? Que o chá era para crentes. Era mais do que
uma bebida. Era quase uma religião. Certamente uma cultura.
Helena não entendera, nesse dia. Viria mais tarde a descobrir essa
frase, como um mandamento, num livro pequeno assinado por um
oficial de marinha do século XIX, um português que se apaixonara
pelo Japão e pelas suas mulheres, amando-as muito, por vezes mais
do que uma de cada vez, como se em cada uma delas melhor mer-
gulhasse no espírito da nação pela qual deixara o seu país. A avó
devia saber do que falava. Era uma especialista em ervas. Sabia
para que servia cada uma e quais os deleites que produziam nos seus
consumidores. Conhecia-as pelo cheiro, pelo tacto, pelas proprieda-
des. A avó gostava de revelações. Depois de velha decidira perder a
vergonha e manter com a neta conversas que a etiqueta desaconse-
lhava por completo.
— O chá, minha filha, é como as lichias. Por ele se reconhece
a pele dos amantes, o seu perfume, a sua suavidade. Por exemplo:
soube que o teu avô seria um bom amante quando um dia, inespe-
radamente, ele me ofereceu lichias. Nesse tempo era difícil encon-
trá-las. Mas ele conseguiu, por uns conhecimentos que tinha, que as
lichias chegassem intactas e frescas do Oriente longínquo.
— Como fez ele isso, avó?
— Nunca soube, filha, mas isso não era o mais importante.
O que interessa é que conseguiu. Sobretudo conseguiu dizer-me, de
uma maneira muito acertada, que o sexo era importante para ele.
Helena corara. Ainda não sabia o que era sexo e ali estava a
avó, uma mulher de um outro tempo, a falar nisso com tanto à-von-
tade. Às escondidas de toda a gente, no meio do perfume do chá,
enquanto as folhas abriam, Beatriz revelava um mundo novo à neta.
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estava lá para lhe voltar a falar dos prazeres secretos, dos segredos
do corpo. E, fora essa mulher que lia livros que ninguém consegui-
ra manter longe dela, mais ninguém na sua família se atrevera a pas-
sar a Taprobana, mais ninguém se atrevera a ir mais além do que os
limites que as convenções impunham. A vida é tão curta e ninguém
se arroja a vivê-la com medo do juízo dos outros. A sua família era
um bom exemplo disso. Presos ao olhar de toda a gente, presos à
palavra de qualquer um, presos a tudo o que viesse de fora, sem
jamais se atreverem a ouvir o que a vida lhes pedia, o que o corpo
lhes gritava, o que o tempo lhes exigia. O pai, a mãe, com os seus
espíritos tão santos. Tão dentro de uma conveniente forma.
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A pele não chegou lisa e impoluta. A mão tem manchas. Pelos bra-
ços prossegue esse emaranhado de linhas que se lança à conquista
do corpo logo desde a ponta dos dedos, passado o rigor duro das
unhas. Dos braços, ele avança para o tronco, abrindo brechas maio-
res. No banho, a água avança por geografias que se crivaram de
obstáculos. Mergulhando na água a mão direita que agarra a espon-
ja, concedendo-se o luxo de uma banheira cheia, Helena segue a
luz que a água reflecte sobre a sua pele. Com tantas provas de que
viveu, de que atravessou tempos e lugares, de que sobre ela tudo
ficou provado, permanece um desacerto entre o que sabe, o que vê,
o que recorda. O que sente. É sem dúvida este o seu corpo. Ou é
sem dúvida ela que aqui está, que ocupa o lugar, que age, que
pensa. É sem dúvida a mesma desde o dia em que foi parida. E con-
tudo não é ela, como não é o mesmo rio que sempre corre. Como
não são as mesmas as margens que o acolhem. Olhamos um mapa
e tudo permanece — desde que se nomearam os lugares, os rios, as
cidades. Algumas mudaram de nome, mas a maioria porventura
exibe ainda o baptismo quase intacto da primeira definição. E con-
tudo os seus contornos mudaram, o seu corpo alterou-se, cresceu,
derrubou barreiras e apagou ruas, arrasou casas, quarteirões. Gente
nasceu e morreu. Também assim os rios. Com as margens
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Sim. A avó tinha razão. O chá é quase o corpo dos amantes. Helena
tornou-se uma amante sábia. Ilustrada, ganhou sabedoria nos livros
com imagens, aprendeu neles o que mais ninguém lhe quis ensinar.
Nem o marido. Sobretudo não o marido. Divertiu-se depois a sur-
preender os amantes. A criar uma personagem viajada e sabedora
das muitas variedades dessa geografia íntima, das muitas e fartas
geografias dos corpos.
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frente para o mar o dia inteiro. Sem sonhos, sem nada que te atire
de vez em qualquer direcção, seja para a frente seja para trás.
A filha olha para ela sem saber o que é melhor. Nunca passou
por nenhuma doença, tem o corpo invicto. Invicto até da vida.
Nunca passou sequer por nenhum amor, por nenhum amante.
Critica tudo e todos, está demasiado ocupada a olhar para o mundo
de modo enviesado, de um enviesado que toma por analítico.
Desconhece algo essencial: só se pode ser analítico depois de
conhecer. E só se conhece o que se experimenta. Como se analisa o
que se não vê? Como se analisa o que nunca nos tocou na pele?
Helena olha para a filha e lamenta não ter sabido passar-lhe parte do
seu conhecimento. Mas sabe que o conhecimento tem os seus tem-
pos, os seus modos. A seu tempo, a filha saberá.
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guras e decisões. Não sabem sequer que não basta deixar o tempo
passar. Não sabem que não é preciso esperar pela derrocada da pele,
dos músculos, para que a morte nos encontre. Ou sabem mas prefe-
rem ignorar, não se deixar contaminar pela necessidade de honra,
pela urgência da honra, de trilhar um caminho de cabeça erguida,
pelo gozo e orgulho final de exibir os cursos de rios que sobre nós
passaram.
Helena revê-se a cada manhã, deixa a janela aberta para que o
frio caia directo sobre a sua pele branca como o leite. É um deser-
to. Sobre ela passou uma civilização e eis que agora todo o seu
corpo se prepara para reencontrar o leito do rio, seco há muito, pó
de regresso ao pó. Vê a sua casa preparar-se para a levar como uma
concha, vestígio, extracto de um tempo antigo, que por ela passou.
Olha para o seu corpo e traça nele um mapa. Aqui o rio por onde
saiu o seu filho. Uma memória fina na pele milagrosamente intacta
após o corte, de novo consolidada por células que não se deixaram
ofuscar pelo poder da lâmina. Mais ali o traçado de um caminho que
mudou o seu destino, adiando-lhe a finitude. Por ali entrou a única
mão que tocou literalmente o seu coração. Que o massajou, o repa-
rou, lhe deu mais anos de vida. Por ali ficaram bordados os gestos
de quem coseu o seu peito contra a morte, essa que apenas se adia,
que nos aguarda com doçura, esperando sempre, não desistindo
nunca. Fiel.
Helena sabe. Não pode olhá-la como inimiga. Tem sido ela a
iluminar as suas decisões.
Vive-se uma vez, sussurra-lhe a morte nos dias mais obscuros.
Queres mesmo aninhar-te já no meu regaço, dobrada sobre ti
mesma dentro do meu corpo como uma criança por nascer? Ou tra-
rás antes o fio de muitos dias para me contares na eternidade?
Há que merecer. A morte não a assusta, embora ela se
indigne de ter ao seu alcance tão pouco de tudo o que há
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para ver e amar. A morte é o que nós podemos saber, embora jamais lhe
tenhamos visto o rosto e nos limitemos a pronunciar o seu nome, abusi-
vamente. Ela que um dia a acolherá, como a todos nós enfim, no cami-
nho que ela escolher, qualquer um, ela lá estará, sem falhar, certa e só,
como uma mãe, para lhe dar a mão e seguir consigo. Para nunca mais.