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A ECONOMIA
1
Livro Segundo das Saudades da Terra, P.D., 1979, p. 93.
2
Crónica de Guiné, Porto, 1973, p. 347.
3
Ob. cit., p. 94 e 97.
4
Ob. cit., p. 347.
5
Ob. cit., p. 113.
À mão de todos estavam as madeiras resultantes do abundante
arvoredo que cobria a ilha da Madeira6. O arroteamento das terras
implicava o seu desbaste. E foi aí que o colono encontrou uma das
primeiras riquezas, verdadeira dádiva da natureza. Com as
madeiras foi possível avançar na contrução naval e civil,
beneficiando a marinha e a cidade de Lisboa. Assim o refere
Jerónimo Dias Leite7: "E neste tempo pela muita madeira que daqui
levavão pera o reino começarão com ela a fazer navios de gavea, e
castello da vante, porque dantes não havia no reino..."
Todavia, esta riqueza e preciosidade das madeiras foi efémera. Em
pouco tempo aquilo que existia em abundância passou a ser uma
raridade, contribuindo para isso a necessidade de desbravar a
densa floresta para abrir as arroteias.
6
Confronte-se O manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 111-112.
7
Ob. cit., p. 20.
As queimadas comuns na Europa, tiveram aqui lugar e forão
responsáveis por um duradoiro incêndio. É o que refere João de
Barros: "...assim tomou o fogo posse da roça e do mais arvoredo,
que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a
natureza tinha criado avia tantas centenas de aunos. A qual
destruição de madeira posto que foi proveitosa para os primeiros
povoadores logo em breve começarem lograr as novidades da terra:
os presentes sentem bem este dano, por a falta que tem de madeira
e lenha: porque mais queimou aquele primeiro fogo do que
lentamente ora podera delepar força de braço e machado. Cousa que
o infante muito sentio e parece que como profecia vio esta
necessidade presente que a ilha tem de lenha: porque dizem que
mandava que todos plantassem matas,..."8. Algumas das fontes
insistem na durabilidade do incêndio que ateou na ilha o próprio
João Gonçalves Zarco para abrir clareiras. Todos os autores
referem o terrível espectáculo do fogo e o facto de Zargo e
companheiros terem fugido de terra, abandonando os seus haveres.
Hoje todos estão de acordo que este incêndio não durou sete nem
nove anos, devendo ser entendido como o sucedâneo de queimadas
para abrir clareiras onde lançar a semente e construir a casa de
habitação. Este fogo certamente que não atingiu a encosta norte
da ilha, que permaneceu por muito tempo como uma densa floresta,
aos poucos debastada para retirar a lenha necessária como
combustível e as madeiras para construir habitações e engenhos.
A importância das madeiras está bem patente no facto de o
infante ter determinado, nas cartas de doação e lembranças e
regimentos, de tributar o seu aproveitamento. Ele tinha direito
ao dizimo das madeiras usadas na construção de habitações e
latadas, das lenhas para uso caseiro e industrial. Todas estas,
mesmo em terras de sesmaria, eram sua propriedade, como se pode
inferir da doação na Madalena a Henrique Alemão: "com condição
que das ditas terras e lugar não pague senão o dizímo de tudo o
que seus der em ele, salvando paus de teixo, vino, canas e
quaisquer tintas que houver e gomas, que tudo seja para mim"9.
Contra isto reclamaram em 1461 os moradores do Funchal ao infante
D. Fernando no que não tiveram qualquer apoio. Também nas cartas
de doação das capitanias refere-se a esta importante industria.
Assim aqueles que construíssem serras de água10 deveriam entregar
ao capitão "um marco de prata em cada um ano ou seu certo valor
ou duas tábuas cada semana das que costumarem serrar", enquanto
ao infante era devido "o dizímo de todas as ditas serras segundo
pagam das outras coisas o que serrar as ditas serras". Acresce
que nos capítulos do regimento atribuído a D. João I está
valorizada esta actividade ligada ao aproveitamento das madeiras.
Aí alude-se os "de menos, que vivam do seu trabalho e de cortar
de talhar madeiras...", o que quererá significar que foi uma
actividade muito importante no primeiro momento de ocupação da
ilha.
8
Ásia, década primeira, Coimbra, 1932, p. 19.
9
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 31v1.
10
Veja-se Jordão de FREITAS, Serras de Água da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1937.
A par disso é de notar o aproveitamento de outros recursos
que na época tinham grande valor comercial. Referimo-nos ao
sangue de drago11. Em ambas as ilhas eram abundantes os
dragoeiros, mas especialmente no Porto Santo ele mereceu maior
atenção dos povoadores, por ser o primeiro e principal recurso
disponível.
Outra importante fonte de riqueza terá sido a criação de
gado. Não obstante, alguns cronistas referirem a existência de
gado selvagem no Porto Santo, onde os castelhanos faziam
carnagem12, o certo é que nas ilhas não se encontrava qualquer
espécie animal indígena com utilidade para o homem. É por isso
que aqui, a exemplo do que virá a suceder nos Açores, o processo
de povoamento inicia-se com o lançamento de gado trazido do
reino13. Isto era uma forma, não só de testar a capacidade de
sobrevivência dos seres vivos, mas também de assegurar um
primeiro suplemento alimentar aos primeiros colonos14. Daqui
resultou que a criação de gado se transformou numa das primeiras
e principais riquezas. Assim o testemunha, em meados do século
XV, Cadamosto. Quanto ao Porto Santo ele refere que "é abundante
de carne de vaca, porcos selvagens e infinitos coelhos", enquanto
a Madeira é "abundante em carnes". Esta reserva de pastos
propiciava o desenvolvimento da pecuária, provocada pelo uso na
alimentação dos primeiros habitantes da ilha, mas também para o
abastecimento das embarcações que demandavam a costa africana
que, desde 1455, segundo nos informa Zurara, tinham aqui escala
obrigatória na ilha.
11
Diz Cadamosto: "é uma goma, que eles estilam em certo tempo do ano, e se colhe por
esta maneira: fazem alguns golpes de cutelo no pé da árvore, e no auno seguinte em certo tempo,
as ditas cortaduras estilam a goma que cozem, e purificam e assim se faz o sangue".
12
Valentim Fernandes refere: Os castelhanos em conquistando as Canárias vieram ter a
esta ilha do Porto Santo em tempo, e acharam n'ella as cabras de que fizeram carnagem (...). E de
ahi avante quando iam sobre os canários sempre vinham a dita ilha fazer carnagem".
13
"cada veram mandava navios com animaes domesticos, ferro, e asso, e gado que tudo
frutificava grandemente" (Jerónimo Dias LEITE, ob. cit., p. 19).
14
Note-se o que sucederá mais tarde nos Açores e aqui com a ilha Deserta. O testemunho
de Zurara é paradigmático: "E fez lançar gado em outra ilha, que está a sete léguas da ilha da
Madeira, com intenção de a mandar povoar como as outras, a qual se chama a ilha Deserta..."
(ob.cit., cap.LXXXIII, p.349).
As condições em que se estabeleceram as primeiras arroteias
fizeram com que as sementes de cereal, lançadas sobre as cinzas
das queimadas, frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias
Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto
Diogo Gomes refere "que uma medida dava cincoenta e mais".
Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta relação foi
baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a
ilha produzia 3000 moios de trigo de que só tinha necessidade de
um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o diz
Diogo Gomes: "E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal,
que por todos os anos ali iam, quase por nada o compravam". Em
data, que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique ou o
rei a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o que
era considerado, na década de sessenta um vexame para os
funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da ilha,
no que não tiveram grande acolhimento por ser "trato de el-Rei".
Até à década de 70, a paisagem agrícola madeirense foi dominada
pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura
cerealífera dominava, então, a economia madeirense. A este
propósito refere Fernando Jasmins Pereira que no período
henriquino os cereais constituíram a base da colonização da
ilha15.
A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com
que esta cultura atingisse níveis de produção espectaculares, que
a historiografia quatrocentista e quinhentista anuncia com
assiduidade, notando que o cereal se exportava para o reino e
praças africanas. Em meados do século, segundo Cadamosto, a ilha
produzia 3000 moios de trigo, que excedia em mais de 65% as
necessidades da parca população16. Este excedente, avaliado em
cerca de 2/3 da produção, era exportado para o reino e, segundo
os cronistas, vendido ao preço de quatro reais17. Desde 1461,
1000 moios foram suprir as carências dos assentamentos africanos,
ficando conhecidos como o saco da Guiné18.
15
. Fernando Jasmins Pereira, Alguns elementos para o estudo da História Económica da
Madeira, 99.
16
. Segundo Vitorino Magalhães Godinho (ibidem, 233). O consumo rondava entre os 930 e
1100 moios pelo que sobravam 1900 a 2000 moios.
17
. "Relação de Diogo Gomes", in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n1 5, 291-
292; Jerónimo Dias Leite, O Descobrimento da ilha da Madeira /.../, Coimbra, 1947, 180-181.
18
. A.R.M., C.M.F., Registo Geral, T, I., fl. 204-205, 3 de Agosto de 1461,
"Apontamentos e capitolos do Ynfante don Fernando pera ylha", in A.H.M., vol. XV, 11-20.
A partir da década de 60, com a valorização do comércio do
açúcar, as searas diminuíram em superfície e a produção
cerealífera passou a ser deficitária. Por isso, a partir de 1466,
a ilha precisava de importar trigo para sustento dos seus
vizinhos, sendo impossível manter as escápulas estabelecidas19.
Em em 1479, referia-se que a produção dava apenas para quatro
meses. Tudo isto derivou da acção dominadora dos canaviais,
aliada ao rápido esgotamento do solo e inadequação da cultura,
resultante de uma exploração intensiva, sem recurso a qualquer
técnica de arroteamento. O agravamento do défice cerealífero nas
décadas de 70 e 80, que conduziu à fome em 1485, foi a principal
preocupação das autoridades locais e centrais. Primeiro procurou-
se colmatar a falta com o recurso à Berberia, Porto, Setúbal,
Salónica; depois foi necessário definir uma área externa
produtora, capaz de suprir as necessidades dos madeirenses. Assim
sucedeu, desde 1508, com a definição dos Açores como principal
área cerealífera do Atlântico português: as ilhas açorianas
actuam como o celeiro de provimento da Madeira e capaz de a
substituir no fornecimento às praças africanas. A Madeira, que se
havia afirmado no período henriquino, como um importante mercado
de fornecimento de trigo, passou no governo fernandino à situação
de comprador, adquirindo mais de metade do seu consumo nas ilhas
vizinhas: Açores, Canárias20. Felizmente que a crise cerealífera
madeirense é concomitante com a sua afirmação no solo açoriano. O
rápido incentivo do povoamento deste arquipélago nas décadas de
60 e 70, conduziu ao igual desenvolvimento da cultura
cerealífera, de modo que esta se afirmava, em finais do século,
como a principal área produtora de trigo do Novo Mundo.
A insuficiente colheita cerealífera insular, acompanhada da
incidência de crises de produção, conduziram à valorização da
componente leguminosa e frutícola na dieta insular. Assim a
fruticultura e horticultura apresentar-se-ão como componentes
importantíssimas na economia de subsistência. Gaspar Frutuoso, em
finais do século XVI, alude com frequência às hortas e quintais,
que ornamentavam a paisagem humanizada, onde se produzia um
conjunto variado de legumes e frutas21. Estes, para além do uso
na dieta alimentar, eram também valorizados pelo uso no
provimento das caravelas que aportavam com assiduidade ao porto
do Funchal.
19
. Cadamosto, em meados do século XV, refere que de uma produção inicial de 1:60 se
havia passado para 1:30 ou 1:40 ("Navegações de Luís de Cadamosto", in A. Aragão, A Madeira vista
por estrangeiros). Giullio Landi ("Descrição da ilha da Madeira", ibidem, 84), em cerca de 1530,
dá conta dessa situação de modo explícito: "A ilha produziria em maior quantidade se semeasse.
Mas a ambição das riquezas fez com que os habitantes, descuidando-se de semear trigo, se dediquem
apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores proventos, o que explica não se colher na
ilha trigo para mais de seis meses, por isso há uma carestia de trigo pois em grande abundância é
importado das ilhas vizinhas".
20
. Giulio Landi em 1530 refere a sua importação das ilhas vizinhas (Ibidem) e Pompeo
Arditi em 1567 refere que o "trigo que aí se colhe é muito bom, mas tão pouco que não chega para
a terça parte da ilha; por isso são obrigados a importá-los das Canárias e das ilhas dos Açores"
"Viagem à ilha da Madeira e aos Açores", in ibidem, 130). Gaspar Frutuoso (ob.cit., L1 II, 114) em
finais do século, elucida que a ilha precisa de importar anualmente doze mil moios de trigo.
21
. Saudades da Terra, L1 I; caps. XII-XX; L1 II, caps. IX, XV-XIX; L1 III, caps. LVI-
LVIII; L1 VI, caps. III-IV, XXXII-XXXIII, XXXVII, XLI, XLVII.
Os cabouqueiros peninsulares transportam conjuntamente com
os poucos grãos de cereal alguns bacelos das boas cepas
existentes no reino, de modo a poderem dispor do precioso
rubinéctar para o ritual cristão e alimento diário. A videira
adaptou-se com facilidade ao solo insular e conquistou uma
posição importante na economia de troca. Cadamosto, que em meados
do século XV visitou a Madeira, ficou deslumbrado com o rápido
crescimento da cultura, aduzindo que a ilha "tem vinhos,
muitíssimo bons; se se considerar que (...) é habitada há pouco
tempo são em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se
exportam muitos deles"22. A partir da segunda metade do século
XVI procedeu-se a uma transformação na vida agrícola madeirense.
Os trigais e os canaviais deram lugar ás latadas e balseiras, a
vinha tornou-se a cultura exclusiva do colono madeirense, à qual
passou a dedicar toda a sua acção e engenho. O vinho adquiriu o
primeiro lugar na economia madeirense, mantendo-se por cerca de
três séculos.
A evolução viti-vinícola madeirense é apresentada de modo
exemplar por alguns visitantes. Em 1547 Hans Standen definia a
economia da ilha pelo binómio vinho/açúcar, enquanto, em Maio
desse ano a vereação funchalense decidia o preço do vinho, uma
vez que "as mais pessoas della vivem de vinhos"23. O reforço
disto sucede na década de 70, altura em que o vinho viria a
apresentar-se como o primeiro e principal produto de
exportação24. Em 1583 T. Nichols referia que "la producción
principal de este país es una gran cantidad de vino
excepcionalmente bueno, que se lleva a muchos lugares"25. E, em
1590, Torriani dava conta da abundância de vinho na ilha,
referindo que "superou em mucho lo que en su tiempo habia visto
Alvise da Mosto"26.
22
. "Navegação /.../", in António Aragão, ob. cit., 37.
23
. A.R.M., C.M.F., n1 1308, fl. 44, 14 de Maio de 1547.
24
. Segundo Duarte Lopes em 1578, Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., III, 244.
25
. Alejandro Cioranescu, ob. cit., 122.
26
. Descripcion e Historia de la islas Canarias /.../, Santa Cruz de Tenerife, 1978,
266.
açúcar. Os incentivos da coroa e municípios, aliados à elevada
procura pelos agentes europeus, actuaram como mecanismo de
desenvolvimento e expansão da cultura. A cana-de-açúcar, pelo
alto valor económico no mercado europeu-mediterrânico foi um dos
primeiros e principais produtos que a Europa legou e impôs às
novas áreas de ocupação. Primeiro chegou à Madeira e daí passou
para os Açores e Canárias.
A cana-de-açúcar, na primeira experiência além-Europa,
evidenciou grandes possibilidades de desenvolvimento fora do
habitat mediterrânico. Esta evidência catalizou as atenções do
capital estrangeiro e nacional, que apostaram no crescimento e
promoção desta cultura na ilha. Só assim se poderá compreender
este rápido avanço. Se nos primórdios da ocupação do solo insular
se apresentava como uma cultura subsidiária, a partir das últimas
décadas do século XV aparece como o produto dominante, situação
que se manteve até à primeira metade do século XVI.
Os canaviais aparecem, num segundo momento, por iniciativa
do infante que os mandou vir da Sicília. Neste caso os
testemunhos são claros27, sendo de referir Cadamosto: "E por ser
banhada por muitas águas, o dito senhor mandou pôr nesta ilha
muitas canas de açúcar, que deram muito boa prova"28. Isto é
documentado, mais tarde em 1511, por Simão Gonçalves da Câmara:
*que vendo a calidade da terra desta ilha e a temperamça della
pareceo-lhe que se podia dar açucares e sabendo a aspeza da terra
e os grandes trabalhos que os primeiros pouoadores tinham em a
romperem determinou como muito virtuoso ajudar a seus lavradores
e tambem pelo proveito que lhe disso seguia de mandar trazer a
planta das canas a esta terra e ordenou e quiz que pondo ele a
dita pranta em cada um ano e os lauradores pudessem o esmoutar e
tirar e laurar e plantar+29. A primeira plantação teve lugar no
Funchal, num terreno do infante, conhecido como o campo do duque.
Daqui os canaviais foram levados para Machico, onde se fabricou o
primeiro açúcar - 13 arrobas -, que foi vendido a cinco cruzados
a arroba30.
Sabe-se que o infante permitiu aos povoadores a construção
de engenhos para a laboração do açúcar sujeitando-se ao pagamento
de 1/3 da produção. Destes apenas temos notícia do construído por
Diogo Teive, conforme autorização escrita do próprio infante de
145231. Daqui se infere da existência de um lagar propriedade do
senhor infante. O fabrico do açúcar fazia-se em exclusivo neste
lagar já existente e no novo engenho de água, pois "que eu não dê
lugar a ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo
todo fazer que eu dê lugar a quem me prouver que faça outro".
27
Confronte-se J. Dias LEITE, ob. cit.; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., p. 146.
28
Ob. cit., p. 37.
29
ANTT, C.C., 10 parte, maço. 27, doc. 22.
30
J. Dias LEITE, ob. cit., p. 102; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., p. 146.
31
RGCMF, T. I, fls. 132-132v1, publ. AHM, Vol. XV, pp. 7/8.
Do primeiro açúcar começou a fazer-se exportação. Assim
Cadamosto dá conta da promissora produção: "... e fabricaram-se
açúcares pela quantidade de quatrocentos cântaros, tanto na
primeira cozedura, como da mistura e pelo que posso perceber,
far-se-á com o tempo maior quantidade (...). Fazem-se ali também
muitos doces cobertos com suma perfeição". Para Diogo Gomes os da
ilha "fabricam açúcar em tal quantidade que é exportado para as
regiões orientais e ocidentais".
A cana sacarina usufruindo do apoio e protecção do senhorio
e da coroa, conquista o espaço arroteado das searas, expandindo-
se a todo o solo arável da ilha. Aí poderemos distinguir duas
áreas: a) a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um
clima quente e abrigada dos alíseos, onde os canaviais atingem os
400 m de altitude; b) o nordeste, dominado pelas plantações da
capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em
que as condições mesológicas não permitem a sua cultura além dos
200m, nem uma produção idêntica à primeira área.
A capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores
terras para a produção do açúcar, ocupando a quase totalidade do
espaço da vertente meridional. À capitania de Machico restava
apenas uma ínfima parcela desta área e todo um vasto espaço
acidentado impróprio para a cultura. Assim, em 1494, do açúcar
produzido na ilha, apenas 20% da capitania de Machico e o
sobrante da capitania do Funchal; em 1520 a primeira atinge 25% e
a segunda os 75%.
Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo
ao investimento de capitais na cultura da cana-de-açúcar e
comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da
administração, a cana estava em condições de prosperar e de se
afirmar, por algum tempo, como o produto dominante da economia
madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrâneo e nórdico
aceleraram este processo expansionista.
No século dezasseis alterou-se a situação preferencial do
açúcar madeirense. Na década de 30 consumou-se em pleno a crise
da economia açucareira, e o ilhéu viu-se na necessidade de
abandonar os canaviais ou de os substitiur pelos vinhedos, o que
sucedeu de modo evidente a partir de meados do século XVI. A
historiografia tradicional vem apresentando múltiplas explicações
para esta crise, assentes fundamentalmente na actuação de
factores externos. No entanto Fernando Jasmins Pereira com o seu
estudo sobre o açúcar madeirense, contraria essa opinião fazendo
assentar a crise em determinantes comdições ecológicas e sócio-
económicas da ilha, definindo como primordial o primeiro factor:
"...a decadência da produção madeirense é primordialmente
motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da
superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente
a capacidade produtiva"32. Deste modo, a crise da economia
açucareira madeirense não se explica apenas pela concorrência do
açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas, acima de
tudo, pela conjugação de vários factores de ordem interna: a
carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as
32
. Ibidem, p. 150.
alterações climáticas. A concorrência do açúcar das restantes
áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a
falta de mão-de-obra vieram agravar a situação de crise do açúcar
madeirense.
O COMÉRCIO
MERCADOS E PRODUTOS
34
. Ibidem, fl. 278v1-279, Sintra, 21 de Agosto de 1508, "carta del rey noso Señor em que
faz cidade a este Funchal, publ. in A.H.M., XVIII, 512-513.
35
. "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, 1981, 83.
36
. Ibidem, 86.
37
. "Viagem à ilha da Madeira e aos Açores /.../, in Ibidem, 130.
Estas memórias de viagem, distanciadas no tempo em trinta e sete
anos, atestam que a crise açucareira da primeira metade do século
não provocou o colapso da economia madeirense. Primeiro, porque o
açúcar local, não obstante a quebra sofrida, continuou a ser um
dos mais valorizados e procurados pelo mercado europeu. Depois, o
vinho veio preencher a lacuna deixada em aberto.
O momento de esplendor de finais do século, conforme
descrições de Frutuoso e Torriani, resulta certamente do comércio
do vinho que, desde a década de 70, vinha conquistando mercados
na Europa e a América. O primeiro exalta a opulência madeirense:
"A ilha da Madeira (...) tão afamada e guerreira com seus
ilustres e cavaleiros capitães, e tão magnânimos, e com generosos
e grandiosos moradores; rica com seus frutos; celebrada com seu
comércio que Deus põe no mar oceano ocidental por escala,
refúgio, colheita e remédio dos navegantes que de Portugal e de
outro reynos vão, e de outros portos e navegações vêm para que
diversas partes, além dos que de força ela somente navegam,
levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito dinheiro para se
aproveitar do retorno que dela lutam para suas terras,(...) com
seu licor e doçura, como um néctar e ambrosio provê as Índias
ambas, a Oriental aromática e a Ocidental dourada, chegando e
adoçando seus frutos de extremo a extremo quase o mundo todo"38.
O segundo salienta a intensa actividade comercial do porto
funchalense com a África e a Europa: "El comercio es muy
importante, y se hace navios que vienen a esta ciudad de Funchal
de todas las partes del África Cristiana, de Itália, España,
França, Alemana y Escocia, de modo que se ha apodado de "pequeña
Lisboa"39. Esta piccola lixbona inseria-se de modo evidente na
economia europeia atlântica, participando do trato com o Velho e
o Novo Mundo, servindo de entreposto de comércio para as suas
riquezas e das áreas vizinhas. A oferta madeirense baseava-se,
essencialmente, na produção agrícola.
A economia alicerçou-se no confronto das solicitações da
economia de subsistência e de mercado: no primeiro caso
condicionaram a valorização dos componentes da dieta alimentar (o
vinho, os cereais), enquanto no segundo implicaram a inserção da
economia insular na europeia através da exploração de produtos,
como o açúcar e o pastel. Os produtos referenciados, pelas razões
apontadas, impuseram-se no mercado insular, galvanizando todo o
sistema de trocas.
38
. Saudades da Terra, L1 II, 1968, 99, 100.
39
. Descripcion e Historia del Reino de las islas Canarias, 266.
A Madeira, até à afirmação da economia açucareira, a partir
de meados do século XV, evidenciou-se como o principal celeiro
atlântico, fornecedor das praças e das áreas carecidas dele no
litoral português. Para isso, a coroa traçou uma política
cerealífera, definida pela abertura de duas rotas de escoamento:
uma orientada no sentido dos portos do reino (Lisboa, Porto,
Lagos), incentivada em 1439 por meio de isenções fiscais; outra
imposta por D. Afonso V, tinha como finalidade o abastecimento
das praças do litoral africano e guineense. Esta última solução
definia-se pelo monopólio ou direito preferencial com um contrato
firmado com os mercadores40. As dificuldades sentidas, a partir
de 1461, agravadas na década seguinte, ditaram profundas
alterações da economia madeirense que conduziram a uma inversão
do comércio do cereal. As tentativas do Infante D. Fernando, em
1461 e 1466, para manter a dominante cerealífera na economia
madeirense e as consequentes rotas de escoamento esbarraram com a
alta rentabilidade e valorização da cultura do açúcar. Deste
modo, o impulso da safra açucareira e o aumento populacional
estão na origem de uma insuficiente produção cerealífera e na
necessidade de definição de um mercado fornecedor. Esta evidência
implicou a tomada de medidas no sentido de estabelecer uma área
abastecedora do cereal que a ilha carecia. O que veio a acontecer
a partir de 1483, com a definição da saca do trigo necessário ao
consumo madeirense nas ilhas vizinhas41. Para atrair este produto
a coroa estipulara em 1508 a isenção da dízima de entrada e a
partir de 1527 foram custeados os encargos com a descarga, sacos
e armazenamento42.
A coroa, ao mesmo tempo que procurava definir um celeiro de
abastecimento da Madeira, actuava no sentido de preencher a
lacuna deixada em aberto pela ausência do trigo madeirense. A sua
concretização só foi possível mediante uma constante e rigorosa
intervenção régia. No século XVI, definido de modo rigoroso o
celeiro de provimento nas ilhas vizinhas, a questão cerealífera
atenua-se, agravando-se apenas com as crises sazonais das áreas
produtoras. Este insuficiente aprovisionamento obrigou o ilhéu a
socorrer-se do velho continente, com quem manteve um activo
comércio a troco de açúcar. Assim a Madeira recebeu 42% de cereal
da Europa e 40% das Canárias, enquanto na Europa domina o mercado
flamengo com 32%.
A cultura da vinha alastrou a todo o espaço insular e o
vinho adquiriu um lugar importante nas trocas externas,
nomeadamente no mercado afro-americano. Até à união das duas
coroas a Madeira manteve o monopólio do comércio de vinho com os
portos afro-brasileiros. A partir de 1598, com a proibição do
comércio com o Brasil, como forma de evitar o contrabando do
40
. Vitorino Magalhães Godinho, Ibidem, III, 234.
41
. Documento de 10 de Dezembro transcrito por A.A.Sarmento, A Madeira e as praças de
África, Funchal, 1932, 43-45.
42
. A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fl. 196v1, 17 de Agosto de 1508, "carta de
meryces que el Rey noso Señor fez a esta Villa do Funchall", A.H.M., XVIII,506-508; Ibidem, n1
1305, fl. 273, Vereação de 28 de Junho de 1527.
açúcar brasileiro, a Madeira perde a posição favorável que
detinha neste mercado. Desde meados do século XV que se exportava
o vinho madeirense para as diversas partes do mundo, sendo muito
apreciado pelo europeu, onde chegava junto com o açúcar às
principais praças nórdicas, como Ruão, Orleans, Flandres e
Londres. Além disso era fornecido ás naus da rota da Índia e
Brasil e enviava-se às praças marroquinas e às feitorias da área
do Golfo da Guiné.
O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e
XVI, segundo opinião de Vitorino Magalhães Godinho, "vai oscilar
entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da
coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o
monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de
monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra
banda"43. Deste modo o comércio apenas se manteve em regime livre
até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a
intervenção do senhorio, que estipulou o exclusivo do seu
comércio aos mercadores de Lisboa44. O madeirense, habituado a
negociar com os estrangeiros, reagiu veementemente contra esta
decisão, pelo que o Infante D. Fernando, restringidas as suas
possibilidades, arrematou em 1471 todo o açúcar a uma companhia
formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim,
Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem45. Desta decisão
resultou um conflito aceso entre a vereação e os referidos
contratadores. Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda
com uma conjuntura difícil no comércio açucareiro, pelo que a
coroa retomou em 1488 e 1495 a pretensão de monopólio do
comércio, mas apenas conseguiu impõr um conjunto de medidas
regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em
1490 e 1496. Esta política, definida no sentido da defesa do
rendimento do açúcar, saldou-se mais uma vez num fracasso. Por
isso, em 1498 foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento
de um contingente de cento e vinte mil arrobas para exportação,
distribuídas por diversas escápulas europeias.
Estabilizada a produção e definidos os mercados de comércio
do açúcar, a economia madeirense não necessitava desta rigorosa
regulamentação, pelo que em 1499 o monarca revogou algumas das
prerrogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no
entanto, até 1508 o regime de contrato para a sua venda. Só nesta
data foi revogada toda a legislação anterior, activando-se o
regime de liberdade comercial46. O estabelecimento das escápulas
43
. Ob. cit., IV, 87.
44
. A.R.M., C.M.F., registo geral, T, I, fls. 1-1v1, Alcochete, 14 de Julho de 1469,
carta do infante sobre o trato do açúcar, in D.A.H.M., XV, 45-47;Ibidem, fls.1v1-2v1, 25 de
Setembro de 1469, carta dos regedores do Funchal in A.H.M., XV, 47-49; Ibidem, fls. 5v1-6, Lisboa,
16 de Outubro de 1478, carta régia sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV,57; Ernesto Gonçalves,
"João Gomes da Ilha", in A.H.M., XV, 40-47; Idem "João Afonso do Estreito",in D.A.H.M., n1 17
(1954), 4-8.
45
. A.R.M., C.M.F., n1 1296, fls. 30v1-31v1, 11 e 28 de Outubro de 1471; Ibidem, n1 1296,
fl. 41, 12 de Fevereiro de 1472, Ibidem, n1 2, 1296, fls. 52v1-53, 17 de Agosto de 1472.
46
. A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fls. 308v1-309, Sintra, 7 e 8 de Agosto de 1508,
alvará régio, publ. A.H.M., XVIII, 503-504.
em 1498 definia de modo preciso o mercado consumidor do açúcar
madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas: o reino,
a Europa nórdica e mediterrânica. As praças do Mar do Norte
dominavam este comércio, recebendo mais de metade das referidas
escápulas. Entre elas evidenciava-se a Flandres, enquanto no
Mediterrâneo igual posição é atribuída a Veneza, conjuntamente
com as três cidades levantinas:e Chios e Constantinopla.
Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às
diversas praças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se
que o mercado daqui emergente não estava muito aquém da
realidade. As únicas diferenças relevantes surgem com a Turquia,
França e Itália, sendo de salientar na última um reforço da
posição. Todavia esta diferença (quase 22%) poderá resultar da
actuação das cidades italianas como centros de redistribuição no
mercado mediterrânico.
Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira,
neste período, evidenciam a constância dos mercados flamengo e
italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do
Castelo, surge em terceiro lugar apenas com 10%. Observe-se que o
último porto adquiriu, desde 1511, grande importância no comércio
do açúcar com o reino e daí para Castela e Europa nórdica. No
período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado
nas exportações de açúcar, mantendo uma posição inferior a 1490-
155047. Nas transações com o mundo mediterrânico existiam
igualmente alguns entrepostos, como sãoos casos de Cádiz e
Barcelona. Estas cidades surgem no período de 1493 a 1537 com os
portos de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e
Águas Mortas.
47
. Joel Serrão, "Nota sobre o comércio do açúcar entre Viana do Castelo e o
Funchal...", in Revista de Economia, III, 209-212.
A ordenança de 1498 não determinava apenas o contingente
das diversas escápulas mas também a forma da sua comercialização.
A coroa, para facilitar o seu escoamento, monopoliza as escápulas
de Roma e Veneza, vinte mil arrobas de Flandres e três mil de
Inglaterra, num total de quarenta mil arrobas, o equivalente a
33% do total. A este açúcar juntava-se o quantitativo do quinto
ou quarto e da dízima de exportação, que o rei carregava por meio
de contrato estabelecido com as grandes companhias nacionais e
internacionais. Os réditos arrecadados com os direitos era
exportado para Flandres e Veneza. No período de 1495 e 1526
receberam, respectivamente cento e sessenta mil e vinte e seis
mil arrobas. As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos
reais eram canalizados para o comércio europeu, quer por
carregação directa, quer por negócio livre ou a troco de pimenta.
Este açúcar era arrendado por mercadores.
1.O DESCOBRIMENTO
48
É de notar a forma como tudo surge na "Relação de Francisco Alcoforado". O autor,
depois de referir o descobrimento de Machim, refere que el-Rei ordenou a João Gonçalves Zarco que
"fose descobrir aquella terra".
ilhas na vizinhança, ocupação e necessidade de cristianização. A
contra-argumentação do bispo de Burgos nega os pressupostos
portugueses e define as três formas que legitimam a posse:
nascimento, descoberta e ocupação.
A questão do descobrimento de Madeira entroca nesta
realidade. Francisco Alcoforado, o nosso primeiro cronista do
descobrimento, refere que Machim e companheiros ao depararem-se
com a Madeira entenderam "que era terra nova puzerão em vontade
pedirem aos reis de Espanha", talvez, pensando na sua proximidade
à Tingitânia. Por outro lado, Jerónimo Dias Leite, outro cronista
madeirense da segunda metade do século XVI, testemunha diferente
opção dos portugueses: "E pelos padres mandou benzer agua que
andarão aspargindo pelo ar e pela terra, como quem desfazia
encantamento, ou tomava posse em nome de Deus daquela terra
brava, e nova nunca lavrada nem conhecida desde o principio do
mundo até aquela hora". O acto de posse em nome da coroa
portuguesa era justificada pelo facto de nunca ter sido conhecida
e ocupada.
Concluídos os grandes descobrimentos, os argumentos que
legitimarão a soberania estão assentes na posse a partir da
ocupação. Esta tese fez escola no século XIX e comandou o
processo de partilha do continente Africano com a conferência de
Madrid. Descobridores e novos colonizadores decidem que só a
ocupação efectiva legitima o direito de soberania. Correlacionada
com a questão dos fundamentos legitimadores da soberania está a
visão da Historiografia da época dos descobrimentos e
oitocentista. O século XIX foi o momento mais importante para a
Historiografia dos descobrimentos49. Em plena euforia
nacionalista e colonial nasce a História e a visão que ficou a
marcar o nosso imaginário até ao presente: o hino Nacional e o 10
de Junho são exemplo disso. No momento da partilha todos se
arvoram em descobridores e os portugueses sentem-se no direito de
reclamar a anterioridade da sua acção, dos seus conhecimentos e
direitos históricos. Foi esta a função do Visconde de Santarém,
Joaquim Bensaúde.
É de acordo com esta realidade que deve ser enquadrada a
discussão sobre a descoberta da Madeira. A prioridade portuguesa
do descobrimento da Madeira, surge também em 149350, na voz de D.
João II: "porquanto essa ilha não foi de nossos antepassados nem
dela tiveram direito algum ou domínio antes de ser descoberta e
ocupada pelo senhor rei nosso bisavô...". O mesmo sucede nas
crónicas oficiais, conforme se poderá verificar pelos textos de
Francisco Alcoforado e Jerónimo Dias Leite51. Todavia, as fontes
narrativas do século XVI não são unânimes quanto a isto, sendo
49
. Pierre Chaunu, Expansão europeia do século XIII a XV, S. Paulo, 1978, pp.179-195.
50
Saudades da Terra, ed. 1873, p. 675-677.
51
Esta mesma argumentação foi aduzida no debate em torno do descobrimento da ilha por
Roberto Machim, no século XIV. Para alguns, foram os ingleses que criaram a "lenda" no século
XVII para mais facilmente conseguiram a sua posse, como se vinha reclamando no dote de infanta D.
Catarina. Confronte-se Eduardo PEREIRA, Ilhas de Zargo, Vol. II, Funchal, 1989, pp. 856-865; "A
Lenda de Machim" in Congresso do Mundo Português, Vol. III, T. I, Lisboa, 1940, pp. 189-207.
possivel reunir uma diversidade de versões, muitas delas
contrárias da oficial, defendida pelo infante e a coroa.
Hoje, parece ganhar consistência a ideia de que o
descobrimento das ilhas teve lugar em época anterior à primeira
presença dos portugueses, sendo sua a acção no século XV
entendida como reconhecimento, ou como o referem alguns,
descobrimento oficial52. As duvidas surgem quando procuramos
resposta para os aspectos de pormenor. A eterna questão de quem,
como e quando foi descoberto o arquipélago não parece de fácil
solução. Os inúmeros estudos sobre o tema lançaram-nos para um
mar de dúvidas e incertezas. As datas exactas do encontro e de
início do povoamento, situação que serve as efemérides e o
empenho da sociedade política, não encontram fundamento
histórico, porque algumas das mais credíveis fontes coevas
divergem neste particular. A isto associa-se a dificuldade em
identificar os verdadeiros protagonistas: quem ordenou as
expedições quatrocentistas e quem as comandou? A tradição, que
filia a ideia do encontro quatrocentista, releva o protagonismo
dos homens da casa do infante D. Henrique -- isto é, de João
Gonçalves Zarco com Tristão Vaz--, que é como quem diz do próprio
infante. De fora ficam Roberto Machim, os anónimos castelhanos e
o incógnito navegador, Afonso Fernandes, este último referido
apenas por Diogo Gomes53.
Outra duvida de não menor importância prende-se com o
protagonismo da coroa e do infante no processo de reconhecimento
e ocupação da Madeira. A ela está associada outra, mais geral,
sobre o protagonismo da coroa e da casa do infante nos
descobrimentos. O debate não é novo e tão pouco deverá
considerar-se encerrado54. Tudo isto foi sustentado por Gomes
Eanes de Zurara, com o texto que ficou conhecido por Crónica de
Guiné, o seu panegírico do infante. O próprio Infante refere que,
desde 1425, participou activamente no arquipélago madeirense mas
a documentação oficial só o menciona como tal a partir de 1433,
data em que recebeu do rei o direito de posse. Compiladas
informações disponíveis, nomeadamente nos cronistas, é evidente a
52
Durante muito tempo discutiu-se o alcance dos seguintes conceitos: reconhecimento,
descobrimento e achamento. Veja-se J. VIDAGO, O conceito da palavra descobrimento no século XVI,
separata n1 155-156 revista Vértice; Gago COUTINHO, Nautica dos descobrimentos, vol. II, Lisboa,
1952; Jaime CORTESÃO, "O que é o descobrimento ?", in Os descobrimentos portugueses, vol. IV,
Lisboa, 1981, pp.909-923; Armando CORTESÃO, "Descobrimento e descobrimentos", in Garcia da Orta,
n1 especial, 1972, pp.191-200; Joaquim Barradas de CARVALHO, "A prè-história e a história das
palavras Descobrir e descobrimento (1055-1567)-(em busca da especificidade da expansão
portuguesa)" in História, n1.6, Lisboa, Abril de 1980, 30-38; Luís de ALBUQUERQUE, "Algumas
reflexões a proposito da palavra descobrimento", in Islenha, n1.1(1987), 7-11.
53
As Relações do descobrimento de Guiné e das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde,
sep. do Boletim da Sociedade de Geografia, 1898-1899.
54
Tenha-se em conta as comemorações do IV centenário de sua morte (1960) que teve
reflexos evidentes nesta realidade, sendo de realçar a colecção henriquina da responsabilidade de
Costa Brochado. Veja-se Duarte LEITE, Coisas de Vária História, Lisboa, 1941; António Domingues
de Sousa COSTA, Infante D. Hemrique na Expansão Portuguesa, Braga, 1963 A Madeira não ficou
alheia a isto como se pode verificar pelo volume do Arquivo Histórico de Madeira (XII-1960-61). A
este propósito é de realçar os textos publicados por Eduardo PEREIRA, "Infante Don Henrique e a
Geografia Histórica das capitanias de Madeira" in AHM, XII, 21-54; "V Centenário henriquino, Sua
projecção na História da Madeira", AHM, XIII, (1962-63), 42-70; Ernesto GONÇALVES, "O infante e a
Madeira", in Portugal e a Ilha,Funchal, 1992, 19-22.
dificuldade em diferenciar até onde chegou o real protagonismo de
ambos. A única certeza é de que a partir de 1433 o infante D.
Henrique actuou de pleno direito no arquipélago, sendo o seu
senhor.
É, na verdade, a partir da década de trinta que as ilhas
passaram a assumir importância nos descobrimentos portugueses.
Elas afirmam-se com áreas de cultivo de produtos com alto valor
mercantil, caso dos cereais, vinho e açúcar, e como porta
charneira para a expansão além-atlântico, uma vez perdidas as
esperanças henriquinas na posse e conquista das Canárias.
AS VERSÕES DO DESCOBRIMENTO
55
Note-se que até esta data é questionada à luz de um estudo do calendário, uma vez que
em 1419 o dia 2 de Julho não foi num domingo, como o pretende afirmar Gaspar Frutuoso. Por
curiosidade anote-se que em 1590, uma das datas apontadas para a redação do livro sobre a
Madeira, o dia 2 de Julho coincide com um domingo o que poderá ter levado o autor a semelhante
equívoco.
O descobrimento da Madeira, tal como Gaspar Frutuoso o
apresenta, embora considerado como uma verdade adquirida e
intransponível, carece de fundamentação e merece, à luz da
crítica histórica, inúmeros reparos. Estamos perante uma opção
oitocentista que teve como base os testemunhos dos cronistas dos
séculos XV e XVI, mais divulgados e que possibilitam a
fundamentação desta tese oficial, isto é, de Gomes Eanes de
Zurara56, João de Barros57, Gaspar Frutuoso58.
Na actualidade, com a revelação de algumas fontes, como os
textos de Francisco Alcoforado (1878-1961), de Jerónimo Dias
Leite (1947) e o aparecimento de novos dados, é possível avançar
novos dados sobre o descobrimento da ilha. Eis uma sintese das
nossas conclusões. Todos os autores que abordam a questão são
unânimes em considerar o povoamento do arquipélago como obra
portuguesa, tendo como obreiro o infante D. Henrique e por
executor João Gonçalves Zarco, com ou sem o apoio de Tristão Vaz.
Apenas Giulio Landi é de opinião diferente, afirmando que tudo
foi feito por Machim. A polémica tem lugar quanto à data do
descobrimento e à sua autoria. Para uns, as ilhas foram
descobertas por portugueses: João Gonçalves Zarco com Tristão
Vaz, ou Afonso Fernandes. Para outros é da iniciativa de
estrangeiros: castelhanos (o Porto Santo), ou ingleses (Madeira).
Numa breve sinopse podemos estabelecer quatro versões
coevas do descobrimento da Madeira, que serviram de base a todas
as restantes:
56
Crónica de Guiné, Porto, 1937, cap. CXXXII, pp.189-196.
57
Asia, decada I, livro I, caps. II e III.
58
Saudades da Terra. livro segundo, Ponta Delgada, 1979, cap.I a VIII
59
"Relações do descobrimento da Guiné e das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde", in
Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1898-99, pp. 25-28.
Anote-se que os textos de João de Barros e Gaspar Frutuoso
foram e continuam a ser o principal sustentáculo da tese oficial
do descobrimento henriquino. Os seus arautos, aproveitando-se das
lacunas do texto de Zurara, afinam pela visão posterior de
Barros, repetida com grande evidência em Frutuoso. No entanto,
quanto a este último, apenas o fazem de modo parcelar, uma vez
que ignoram todas as outras versões aí compiladas. A divulgação
de fontes inéditas, que apresentam argumentos contraditórios
desta versão, não os convencem, pois tudo o que o contrariasse
era considerado como falso ou apócrifo.
O debate que começou no século XIX, tendo como ponto de
partida o estudo de Álvaro Rodrigues de Azevedo60, deu origem ao
aparecimento de várias teses sobre o descobrimento da Madeira. A
polémica recrudesceu na décadas de cinquenta e sessenta do nosso
século, por altura da comemoração da morte do Infante D.
Henrique61. Entretanto, para tràs ficara a evocação do quarto
centenário do descobrimento da Madeira, uma importante
manifestação histórica e política do primeiro quartel do
século62.
Não obstante, o vasto número de estudos existentes que, de
um ou de outro modo, abordam a questão do descobrimento, podemos
dizer que todas versões orientam-se de acordo com quatro ideias-
base, que resumem toda a informação e fundamento do problema:
60
"Nota III. Descobrimento do archipelago da Madeira Por Zargo e Tristão Vaz", "Nota
IV. Descobrimento do archipelago da Madeira: diversas tradições, lendas e noticias", "Nota V.
Descobrimento da ilha da Madeira por ingleses: caso de Machim e Anna de Arfet", publicado in
Saudades da Terra(...), Funchal, 1873, pp. 329-339, 340-348, 348-429.
61
Confronte-se Arquivo Histórico da Madeira, vol. XII, 1960-61.
62
Pe. Fernando Augusto da SILVA, "Quincentenario do descobrimento da Madeira", in
Elucidário Madeirense, vol. III, pp. 163-168. A propósito disto foi feita um publicação
comemorativa: V centenário do descobrimento da Madeira, Funchal, 1922.
descobrimento temos em 1894 Brito Rebelo63 que, baseado num
documento de 1379, tenta esboçar uma explicação para o topónimo
Machico. Segundo ele teria sido um certo Machico, mestre de
barca, quem descobriu a ilha da Madeira, tendo desembarcado no
local que mereceu o seu nome.
63
Livro de Marinharia, Lisboa, 1903.
3. TESE DE MACHIM, os que argumentam, em complemento da
segunda tese, que o conhecimento do arquipélago resultou da
aventura de Robert Machim. É vasta bibliografica sobre esta tese,
sendo, no entanto, poucas as perspectivas aí enunciadas, uma vez
que é evidente o apego às visões clássicas, quer na afirmativa,
quer na negação. Neste último caso a ideia expressa-se de acordo
com o enunciado de Álvaro Rodrigues de Azevedo64 e Eduardo
Pereira65. Assim, em 1873, o primeiro referia já sete
interpretações diferentes da referida tese, que no essencial se
resumem a três opiniões, amplamente divulgadas:
64
Ob.cit., nota V.
65
"A lenda de Machim", in Congresso do Mundo Português, vol. III, tomo 1, Lisboa, 1940,
pp. 188-208.
Esta versão do descobrimento foi definida pela primeira
vez, em 1812, por N. C. Pitta66, a que se seguiu, em 1869, H.
Major67. No entanto, só a partir deste último mereceu a sanha de
Álvaro Rodrigues de Azevedo e Camilo Castelo Branco68, que
lançaram uma onda de descrédito sobre a aventura de Machim. Na
actualidade, A. G. Rodrigues69, Pita Ferreira70 e Armando
Cortesão71 retomaram-na procurando apagar o descrédito vigente. O
primeiro preocupou-se em comprovar documentalmente a existência
das personalidades envolvidas no relato, através de uma busca nos
arquivos ingleses. O segundo, por seu turno, fundamenta a
veracidade do relato dado por Francisco Alcoforado e os factos
que se relacionam com o achado da cruz, que o testemunha, por
Robert Page72. Entretanto, Armando Cortesão, contraria a critica
dos seus detractores ao referir que as versões da aventura são
todas portuguesas, não sendo razoável a opinião divulgada da sua
origem inglesa. A intenção destes dois últimos não foi a defesa
da descoberta de Machim, mas sim enquadrar o facto no
conhecimento trecentista, ou na tradição remota, conforme atestam
as fontes greco-romanas.
A defesa da ideia do descobrimento da ilha por Machim está
subjacente à existência e veracidade da relação de Francisco
Alcoforado. Para muitos é uma criação do século XVII e, por isso
mesmo, carece de fundamento a versão que veicula. Muito se
escreveu sobre isto, mas apenas Ernesto Gonçalves73 teve a
coragem de avançar com uma análise de crítica interna, onde veio
a revelar-nos alguns problemas. Mais recentemente, Luís de Sousa
Melo74 retomou este tipo de análise com novos dados. A isto
acresce a aportação de David Pinto Correia que estabelece o seu
66
Account of the island of Madeira, Londres, 1812.
67
Vida do Infante D. Henrique, Lisboa, 1876.
68
Sentimentalismo e História, Porto, 1897.
69
D. Francisco Manuel de Melo e o descobrimento da Madeira, Lisboa, 1935, sep. Biblos;
"Machim, Machico, Melo e Madeira", in Biblos, vol. XVI, t.II, pp. 567-571.
70
Notas Para a História da ilha da Madeira. Descoberta e inicio do povoamento, Funchal,
1957; A relação de Francisco Alcoforado, Funchal, 1961(sep.DAHM, n1.31); "O caso Machim à face dos
documentos", in Das Artes e Da História da Madeira, n1.25-26-27, 1957.
71
"O descobrimento do Porto Santo e da Madeira e o Infante D. Henrique", Revista da
Universidade de Coimbra, vol. XXIII, 1973, pp.305-317; "A História do descobrimento da ilha da
MAdeira por Roberto Machim em fins do século XIV", in Revista da Universidade de Coimbra, vol.
XXIII, pp. 292-409.
72
Isto valeu-lhe um ataque cerrado do Visconde do Porto da Cruz(Revista Portuguesa,
n1.84) e Eduardo Pereira("Adenda", in Ilhas de Zargo, vol. II, pp. 857-865). A resposta do autor
surgiu em "As notas para a História da ilha da Madeira"no Pelourinho, Funchal, 1959.
73
"Estudo da *Relação de Francisco Alcoforado+", "Algo mais acerca da *Relação de
Francisco Alcoforado+", im Portugal e a Ilha, Funchal, 1992, pp. 235-255, 257-268.
74
"O texto de Francisco Alcoforado", in Atlântico, n1.5, 1986, pp. 19-26.
enquadramento no panorama literário quatrocentista75.
75
"Da história à literatura-ainda o descobrimento da Madeira", in Actas III Colóquio
Internacional de História da Madeira, Funchal, 1993, pp.201-206.
76
Quando foi descoberta a Madeira ?, Lisboa, 1911.
77
"O conhecimento dos arquipélagos no século XV",in História da Expansão Portuguesa no
Mundo, vol. I, pp. 269-273; "A relação de Francisco Alcoforado", in Arquivo Histórico da Marinha,
vol.I, 1936, pp.317-329.
78
Descobrimentos, guerras e conquistas dos Portugueses em terras do ultramar nos
séculos XV e XVI, Lisboa, 1881-82.
2. A OCUPAÇÃO DAS ILHAS
79
Descobrimento da Ilha da Madeira (...), Coimbra, 1957, p. 9.
80
Confronte-se o que diz a este propósito Carreiro da
COSTA em Esboço Histórico dos Açores, Ponta Delgada, 1978, p.53
Um dos muitos aspectos polémicos sobre os primórdios da
História da Madeira é a data em que o solo virgem começou a ser
desbravado pelos primeiros colonos europeus. Os cronistas são
unânimes em definir o ano de 1420 como o de começo. Todavia,
surgem opiniões diferentes, como a do infante D. Henrique, que em
1460 declarava: "começei a povoar a minha ilha da Madeira averá
ora XXXb anos...", isto é, a partir de 1425 ele iniciara o
povoamento da ilha. Mas, na doação régia de 1433, o monarca
afirmara "que agora novamente o dito infante per nossa autoridade
pobra". Quererá isto dizer que só nesta data o infante assumiu o
comando do processo ? Não. Pelo menos esta não é a opinião do
infante, que nas cartas de doação das capitanias apresenta João
Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo, como os
primeiros povoadores por seu mandado. Será que só podemos falar
de povoamento a partir de 1425 ou 1433, contrariando a opinião
dos cronistas ? A resposta parece ser também negativa, à luz
daquilo que nos dizem dois documentos. Primeiro, uma sentença do
Duque D. Diogo de 6 de Fevereiro de 148381 refere que "podia
haver cinquenta e sete anos, pouco mais ou menos, que a essa ilha
fora João Gonçalves Zargo, capitão que fora nessa ilha, levando
consigo sua mulher e filhos e outra gente...". Depois, noutra
sentença Diogo Pinheiro, vigário de Tomar em 1499, afirma:
"podera bem haver oitenta anos que a dita ilha era achada pouco
mais ou menos e se começara a povoar"82. Esta versão é
corroborada em 27 de Julho de 1519 por acórdão da Câmara do
Funchal em que se dá conta do início do povoamento há cem anos
atrás. Ambos os documentos abonam versões diversas: enquanto o
primeiro coincide com a data apontada pelo infante, o segundo
corrobora os cronistas. Por tudo isto a única conclusão plausível
é de que o povoamento efectivo terá começado a partir do fim do
último quartel do século XV. Os seis anos que medeiam entre esta
data e o seu reconhecimento não deverão ser encarados como de
total alheamento, pois nada nos leva a afirmar que o processo
tivesse parado.
De acordo com as crónicas quatrocentistas e quinhentistas,
o processo, que decorreu a partir de 1418, foi faseado. Zurara
refere quatro expedições à ilha antes que o infante ordenasse o
envio dos primeiros colonos e clérigos para o arranque da
ocupação e aproveitamento económico. A mesma ideia surge na
"Relação de Francisco Alcoforado". Pe. Manuel Juvenal Pita
Ferreira83 especifica melhor as quatro viagens:
83
Notas para a História de Madeira. I. Descoberta e início do povoamento, Funchal,
1957.
84
Note-se que Jordão de FREITAS (*Madeira, Porto Santo e Deserta. Ilhas que o infante
"novamente achou e povoou"+, in C.M.P., Vol. III, T.1, Lisboa, 1940, 169-172). Considera que a
primeira viagem só teve lugar em 1419.
Porto Santo;
85
Crónica da Guiné, cap. XXXII.
86
J. Dias LEITE, ob.cit., 15-16; Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., 53.
87
Esta carta foi pela primeira vez referenciada por Álvaro Rodrigues de AZEVEDO sendo,
todavia considerada apócrifa por alguns historiadores, como José Hermano SARAIVA (Temas de
História de Portugal, vol. II, pp.109-112)
do dito foro+88. Isto prova, mais uma vez, que a primeira
iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao
monarca. O infante, fazendo uso destas prerrogativas, delegou nos
capitães parte dos seus poderes de distribuição de terras. A isso
junta-se um novo regimento ou foral, que confirma as ordenações
régias, estipulando que as terras deverião ser dadas apenas por
um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse
e a possibilidade de nova concessão.
88
A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fl. 128-132, publ. in Arquivo Histórico da
Madeira, vol. XV, pp.20-25.
A primeira missão dos capitães foi proceder à divisão de
terras, como testemunha Francisco Alcoforado, ao referir que João
Gonçalves Zarco, após a segunda viagem, empenhou-se em tal
tarefa. Uma das prerrogativas desta função era a possibilidade de
reservar para si e familiares algumas das sesmarias. E foi isso
que o mesmo fez. Ainda, segundo Francisco Alcoforado, João
Gonçalves Zarco apropriou-se do alto de Santa Catarina, no
Funchal e as terras altas de Câmara de Lobos. Mais além, na
Calheta, tomou dois Lombas para os seus filhos João Gonçalves e
Beatriz Gonçalves.
Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a
legitimação da sua posse geraram vários conflitos, que implicaram
a intervenção do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461,
os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para
aproveitamento das terras, dizendo que estas eram *bravas e
fragosas e de muitos arvoredos+. Contudo, o infante D. Fernando
não abdicou do preceituado no foral henriquino e apenas concedeu
a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise
circunstanciada de cada caso pelo almoxarife89. Desde 1433 e até
1495, a concessão de terras de sesmaria era feita pelo capitão,
em nome do donatário. A carta deveria ser lavrada pelo escrivão
do almoxarifado, na presença do capitão e do almoxarife. No seu
enunciado constavam obrigatoriamente as condições gerais que
regulavam este tipo de concessão do terreno, capacidade de
produção e a cultura adequada à sua exploração, bem como o prazo
de aproveitamento. O colono ou sesmeiro estava obrigado a cumprir
o clausulado e apenas findo o prazo estabelecido podia vender,
doar, *escambar o fazer dela e em ela como sua própria coisa+.
De todas as cartas de doação de terras a mais completa é a
datada de 1457. Aí surgem exaradas as condições em que foi
estabelecida a posse das terras. Esta poderá ser considerada uma
carta modelo, pois aí estão todas as recomendações: limites da
terra, as benfeitorias a implantar e o tipo de culturas (vinhas,
canaviais, horta).
OS LUGARES E FREGUESIAS
OS POVOADORES
91
Sobre a presença e importância das gentes da casa do infante veja-se João Silva de
SOUSA, "A casa do infante D. Henrique e o arquipélago de Madeira (algumas notas para o seu
estudo)", in Colóquio Internacional de História da Madeira, Vol. I, Funchal, 1989, 108-127.
92
Saudades da Terra, 217-218.
93
Confronte-se Jerónimo Dias LEITE, ob.cit., p.16.
1.na década de vinte tivemos os aventureiros e companheiros
de Zargo e Tristão,
94
Ob. cit., 16; Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., 54.
95
Luís Francisco de Sousa MELO, "A imigração da Madeira" in História e Sociedade, n1 6,
1979, 39-57; Idem, "O Problema de origem geográfica do povoamento" in Islenha, n1 3, 1988, 19-34.
96
O Algarve e a Madeira no Século XV, Lisboa, 1974, sep. de Ultramar; confronte-se com
a crítica de Fernando J. PEREIRA em O Algarve e a Madeira, Braga, 1975.
97
Fernando Augusto da SILVA, *Do começo do povoamento madeirense+, in Das Artes e
História da Madeira, Vol. VIII, n1 37, 5; Joel SERRÃO, *Na alvorada do mundo atlântico+, in
Ibidem, vol. VI, n1 31, 1961, 6.
98
*No Minho ao sol de Verão+, in Ibidem, vol. IV, n1 21, 1955, 45-46; Fernando Vaz
PEREIRA Famílias da Madeira e Porto Santo, vol. I, Funchal, s.d., pp. 224 (n1 1) e 248 (n1 1).
certo que do norte de Portugal, nomeadamente da região de Entre
Douro e Minho, tivemos os cabouqueiros necessários ao
desbravamento da densa floresta e preparar o solo para as
culturas mediterrânicas - cereal, vinha, cana-de-açúcar e pastel.
O Norte de Portugal, quer pelo facto de ser a região do país mais
densamente povoada, quer pela sua permanente vinculação à
economia madeirense, exerceu por isso uma decisiva influência na
sociedade nascente.
3. AS INSTITUIÇÕES
4.1. As capitanias
100
ANTT, Provedoria da Fazenda do Funchal, n1 1150, fl. 101, publ. J. M. Silva MARQUES,
ob. cit., supl. Vol. I, pp. 109-110.
1. A doação é vitalícia;
101
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 19, fl. 19v1, publ. por Monumenta Henricina,
VI (1964), pp. 316-317.
102
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 37, fl. 52v1, publ. ob. cit., Vol. X (1969),
p. 34.
103
. ARM, CMF, t.I, fls.272v1-275, in AHM, vol. XVII(1973), 363-364.
Tal como estava preceituado na primeira doação de 1433 o
infante D. Henrique tinha poder de proceder à divisão das terras
das ilhas e distribui-las como entendesse, estando apenas
limitado quanto aos direitos adquiridos resultantes da
intervenção da coroa. É o caso de João Gonçalves Zarco e Tristão
Vaz, os primeiros obreiros do reconhecimento das ilhas. Eles
recebem o encargo de, em nome do infante, coordenarem as tarefas
de povoamento dos novos espaços. São os capitães em representação
do donatário, por isso, ficaram conhecidos como capitães do
donatário e não capitães donatários como são impropriamente
referidos por alguma bibliografia. Note-se que esta última
situação quer dizer que os mesmos eram em simultâneo capitães e
donatários, como sucedeu, por exemplo em S. Tomé. O documento que
o estabelece juridicamente não surge em simultâneo para as três
áreas, existindo entre eles alguns anos de diferença. O primeiro
a ser contemplado foi Tristão Vaz que em 8 de Maio de 1440104
recebeu o "carrego" das terras entre o Caniço e a Ponta de
Tristão que ficou conhecida como a capitania de Machico.
Este diploma é uma peça fundamental, uma vez que estabelece
os mecanismos de intervenção dos interessados e preludia uma nova
estrutura de mando. Assim, Tristão Vaz exercia o governo em nome
do infante - "que elle a mantenha por mym em justiça e em
direiro" - de acordo com as seguintes condições:
104
ANTT, Chancelaria D. João III, 1055, fl. 184, publ. J. M. Silva MARQUES, ob.cit.,
Vol.I, pp. 403-404.
105
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, l1.33, fl. 85, publ. J. M. Silva MARQUES, ob.cit.,
Vol. I, pp. 449-450.
2. Possibilidade de venda das terras de sesmarias;
OS REGIMENTOS
106
ANTT, Chancelaria D. Afonso V, l1.37, fl. 52v1,publ.J. M. Silva MARQUES, ob. cit.,
Vol. I, pp. 488-489.
107
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 21, publ. J. M. Silva MARQUES, ob. cit, pp. 490-491.
108
Ibidem, fls. 28-29, publ. por J. M. Silva MARQUES, ob. cit., pp. 547-549; com
confirmação régia de 17 de Agosto de 1459, publicada in Archivo dos Açores, II, pp. 11-14.
109
Conforme confirmação régia de 15 de Março de 1473, ANTT, Livro das ilhas, fl.93v1.
Confronte-se Gaspar FRUTUOSO, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 66.
Durante o período de senhorio o arquipélago conheceu cinco
donatários com uma intervenção diversa. A documentação disponível
é o espelho disso. Do governo de vinte e sete anos do infante D.
Henrique ficaram poucos documentos. Esta lacuna poderá ser
resultado da sua perda, mas fundamentalmente da sua não
existência, pois a administração das ilhas no começo do
povoamento fazia-se com poucos regimentos. O fundamental era o
foral do infante e as cartas de doação. Do primeiro sabe-se
apenas ter existido, pois é o infante quem o anuncia em 1440, na
carta de doação da capitania de Machico: "E o que eu ey daver na
dita ilha he comtheudo no forall que pera ella mandey fazer". O
mesmo aparece em Jerónimo Dias Leite110 que da conta de "humas
lembranças" do infante "em que lhe encomendava muito ha justiça
principalmente, e ha lavrança da terra (...)". Delas o autor
enuncia algumas, rematando: "e outras cousas mais meudas com o
tudo se contem no regimento e lembrança (que ficão em meu
poder)".
A herança legada pelo infante D. Henrique ao seu filho
adoptivo, o infante D. Fernando, era merecedora de uma aturada
atenção. Por isso os madeirenses enviaram os seus procuradores ao
reino com um extenso rol de reclamações. A todos os domínios
atendeu o novo senhor, mas manteve sempre a fidelidade aos
princípios do seu antecessor. Estas exigências dos moradores
espelham o progresso social e económico da ilha. Da intervenção
do senhorio ressalta a vinda em 1465 do ouvidor, Dinis Anes de
Grã, e a posição assumida pelos juízes ordinários na
administração da justiça. A actividade de D. Beatriz vai no
sentido da organização do sistema tributário com a criação em
1477 das alfândegas do Funchal e Machico, e o delineamento de um
sistema defensivo que, por oposição dos moradores, só veio a ser
concretizado mais tarde. É, todavia, como o governo de D. Manuel,
como senhorio e rei, que ficaram sedimentadas as estruturas
institucionais. Estámos perante um conjunto de medidas que
preparam o Funchal para ser cidade e, depois, sede de bispado.
O MUNICÍPIO
111
Privilégio de isenção da dizima e portagens nas mercadorias enviadas ao reino: ANTT,
Chancelaria de D. Afonso V, l1. 19, fl.17v1, carta de 1 de Junho de 1439, publ., J. M. S. MARQUES,
ob.cit., vol.I, Lisboa, 1988, pp.400; ANTT, Chancelaria de D.Afonso V, l1.25, fl. 13v1, carta de
18 de julho de 1449, publ. in idem, ibidem, pp.439-440.
O infante D. Fernando, ao assumir, em 1460, o governo da
casa senhorial do seu tio, herdou um pesado fardo político-
administrativo, por isso,procurando adequar o governo de ilha à
nova conjuntura política e à satisfação das reclamações dos
procuradores enviados ao Reino, definiu em Agosto de 1461 uma
nova dinâmica institucional, económica e religiosa através dos
seus *apontamentos+112. Os poderes discricionários e os
privilégios dos capitães sofreram uma grande machadada mercê da
aplicação plena da jurisdição exarada nas doações de que se faz
uma pública-forma de modo que não possa "entender aalem delle em
poer outros foros e a costumes". Ao mesmo tempo estabeleceu-se a
necessária vinculação da jurisdição do capitão às directivas
régias e da estrutura municipal, conjugadas com o reforço da
intervenção do almoxarifado. O avanço mais significativo é dado
com o município, que se libertou do controlo e intervenção
discricionária do capitão, passando os seus oficiais a serem
eleitos entre os homens-bons, que fazem parte do rol aprovado
pelo senhorio. Esta autonomia é expressa ainda na concessão do
selo e da bandeira. No campo económico, os referidos apontamentos
anotam a necessidade de adequar a orgânica administrativa ao
nível do desenvolvimento económico da ilha. Primeiro procura-se
estabelecer uma adequada repartição das águas, tão necessárias à
faina açucareira, depois, é o apoio indispensável aos
assalariados e pequenos proprietários. No domínio comercial, a
intervenção fernandina foi pautada por uma abertura da ilha aos
agentes de comércio nacionais e estrangeiros, que motiva a sua
discordância em favor da pretensão dos madeirenses para a
expulsão dos judeus e genoveses.
Era chegado o momento de mudança, pois havia-se ultrapassado
o estado zero de desenvolvimento e a ilha só poderia avançar com
estas mudanças. A sociedade complexifica-se e requere
regulamentos adequados a todas as solicitações do quotidiano. Foi
esta a principal tarefa do infante D. Fernando, que teve
continuidade nos seus sucessores, nomeadamente D. Manuel, na
qualidade de senhorio e rei. O Infante D. Henrique havia lançado
a semente, cabendo ao seu herdeiro fazê-la medrar e colher o
fruto e foi isso que na realidade aconteceu com os diversos
regimentos e normativas que se seguiram.
As primeiras décadas do século XVI são definidas por uma
profunda alteração na estrutura municipal madeirense. Assim os
municipios sede das capitanias foram desmenbrados dando lugar a
novos. No Funchal tivemos a criação dos da Ponta de Sol(1501) e
Calheta(1502), enquanto em Machico foi apenas o de Santa
Cruz(1515), ficando toda a costa norte sob a alçada de Machico
até 1744, altura em que surgiu o primeiro município em S.
Vicente.
IGREJA
112
Veja-se Joel SERRÃO, "O infante D. Fernando e a Madeira, 1461-1470", in Das Artes e
da História da Madeira, 4, 1950, 10-17; Manuel J. Pita FERREIRA, "O infante D. Fernando, terceiro
senhor do arquipélago da Madeira, 1460-1470", in ibidem, 33, 1963, 1-22.
A dois de Julho de 1420 desembarcou João Gonçalves Zarco no
vale de Machico e, de imediato, procedu à posse da terra em nome
do rei e à sua sagração com a primeira missa, rezada pelos
franciscanos que o acompanharam na viagem. O texto de Francisco
Alcoforado é muito claro: "(...) determinou sair em terra e levar
consigo dois padres que trazia, saindo em terra deu graça a Deus
mandou benzer agua e aspargela pelo ar (...) mandou dizer missa
(...) Foi a primeira missa que se disse (...) "113
Em Maio do ano imediato, João Gonçalves Zarco regressou à
ilha com três navios e a disposição de proceder ao seu
povoamento. De novo o desembarque em Machico e "a primeira coisa
que fez foi traçar uma igreja de Invocação de Cristo..."114.
Depois, foi o novo reconhecimento da costa, com o assentamento de
colonos. Todos os actos eram precedidos pela construção de uma
igreja ou ermida. No Funchal foram as capelas de Santa Catarina e
a de Nossa Senhora do Calhau, sendo a última considerada pelo
autor "a primeira casa de igreja que se fez na ilha"115. Mais além
em Câmara de Lobos a do Espírito Santo, na Quinta Grande a de
Vera Cruz, nos Canhas a de Santiago, na Estrela (Calheta) a de
Nossa Senhora da Estrela. E conclui o cronista: "...começou a por
em obra a edificação das igrejas e lavrança da terra". O templo
religioso é o ponto de divergência do processo de povoamento e
foi em torno dele que surgiram as primeiras habitações de madeira
para dar abrigo aos colonos. Daqui resultou a importância
fundamental da igreja em todo o processo.
De acordo com a doação régia de 26 de Setembro 1433116 o
infante, como mestre da Ordem de Cristo, recebeu também a
capacidade de intervenção na esperitualidade do novo espaço. O
Vigário de Tomar, local sede da ordem, era quem, em nome do
infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os
ministros. Apenas a arrecadação dos dízimos eclesiásticos
permanecia a cargo do almoxarife do infante117. O governo
espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de
Cristo e na condição de nullius diocese118, enquanto ao
administrador da ordem competia a construção dos templos, nomear
os ministros e pagar o seu vencimento. À parte isso, todas as
ilhas, estabeleceram-se ouvidorias com o objectivo de organizar e
exercer o governo eclesiástico. A situação mudou em 1514 com a
criação do bispado do Funchal e, depois em 30 de Dezembro de 1551
com o regresso à coroa do padroado.
113
A Relação de Francisco Alcoforado, publ. por José Manuel de CASTRO, Descobrimento de
Ilha da Madeira ano 1420..., Lisboa, SD, p. 90.
114
Ibidem, p. 93.
115
Ibidem, p. 93.
116
J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 273, 400.
117
Fernando Jasmins PEREIRA, "Bens Eclesiásticos - Diocese do Funchal" in Estudos sobre
História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 325-327.
118
. Isto é, não sujeita a qualquer diocese.
Para cada capitania foi nomeado um vigário, que dependia
directamente do de Tomar, tendo como função administrar a
esperitualidade no recinto da sua jurisdição. Destes apenas se
conhece o nome dos de Machico e Funchal, respectivamente Frei
João Garcia e João Gonçalves. Parece que esta situação perdurou
por todo o governo do infante D. Henrique, uma vez que em 1461119
uma das exigências dos moradores do Funchal era o aumento do
clero, de modo que fosse assegurado o serviço religioso aos
moradores de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Arco
da Calheta. O próprio infante preocupou-se com a administração
religiosa do arquipélago, ordenando a construção de igrejas e
capelas, conforme se deduz do seu testamento de 1460120.
Não agradou ao infante a pretensão dos franciscanos das
Canárias de quererem introduzir-se na ilha, ficando subordinados
ao vigário dessas, tal como o estabelecia a letra "dum ad
prellara" do papa Nicolau V em 10 de Dezembro de 1450121. Estes
havião-se fixado no arquipélago vizinho desde 1436, mediante
autorização do Papa Eugénio IV. Tal situação era entendida como
uma ingerência nos direitos adquiridos pela Ordem de Cristo e uma
afronta, tendo em conta o empenho do infante na conquista de
algumas dessas ilhas. Mesmo assim a ordem seráfica firmou-se na
vida religiosa madeirense criando conventos no Funchal, Câmara de
Lobos, Santa Cruz(1476), Ribeira Brava, Calheta(1670) e Machico.
Neste contexto relevam-se os conventos de S.Francisco do Funchal
e o de Santa Clara. O primeiro, para albergar os frades, foi
construído a partir de 1474, enquanto o segundo, de freiras, foi
erguido por iniciativa de João Gonçalves Camara, segundo capitão
do Funchal, no espaço onde o seu pai havia edificado a sua capela
da Conceição de Cima( em oposição à da Conceição de Baixo,
construída junto ao mar). Antes disto tivemos os primeiros
cenóbios de S. João da Ribeira (Funchal) e S. Bernardino de
Sena(Câmara de Lobos).
Quanto aos diversos templos religiosos, que foram erguendo
os povoadores em toda a ilha, não existe consenso entre os
diversos historiadores nem dados que abonem com segurança a data
exacta de construção122. É de salientar que a tradição veiculada
por Álvaro Rodrigues de Azevedo123 e o Pe. Fernando Augusto da
Silva124 apresenta algumas paróquias criadas em 1430, 1440 e 1450.
119
RGCMF, T. I, fls. 204-209, publ. AHM, XV, pp. 11-20. Vejamos o que é dito: "Em esa
parte da ylha ho sennor ynfante meu padre que Deos aja nunca pos mays de hum capellam porque
emtam a gente era pouca E agora he em mays multiplicaçam asy que hum soo capellam nom pode
abrajer a todollos logares..."
120
J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 590.
121
Confronte-se Monumenta Henricina, III, (1961), pp. 53-54.
122
Confronte-se Padre Fernando Augusto da SILVA, Subsídios para a História da Diocese
do Funchal, Funchal, 1946, pp. 22-35, 299-376; Padre Manuel Juvenal Pita FERREIRA, O Arquipélago
da Madeira Terra do Senhor Infante de 1420 a 1460, Funchal, 1859, pp. 308-352.
123
"Notas", Saudades da Terra, Funchal, 1873, pp.534-566.
124
Subsídios para a História da Diocese do Funchal, pp.22-35.
Não sabemos em que se fundamenta tal ideia, uma vez que nas
reclamações dos moradores do Funchal em 1461, documento já
citado, refere-se a existência de um só capelão que dizia missa
no Funchal125.
125
Em 1466 continua a referir-se só um vigário (RGCMF, I, fls. 216-219v1, publ. AHM, XV,
pp. 36-40).
Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de
Tomar continuou a superintender o governo eclesiástico das ilhas
até que em 12 de Junho de 1514, pela bula "Pro excellenti", foi
criado o bispado do Funchal com jurisdição sobre toda a área ocu-
pada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até esta data todo
o serviço episcopal era feito por bispos titulares aí enviados
pelo vigário de Tomar, sendo de referir as visitas a Angra em
1487 e aos arquipélagos da Madeira e Açores (entenda-se Funchal,
Angra e Ponta Delgada) em 1507 e 1508. Mas o progresso económico
e social deste vasto espaço levou à criação em 1534 de novas
dioceses, cujas áreas foram desanexadas do Funchal: as de Goa,
Angra, Santiago e S. Tomé. Entretanto em 31 de Janeiro de 1533 a
diocese do Funchal foi elevada à categoria de metropolitana e
primaz, englobando "a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e
Selvagens, aquela parte continental de åfrica, que entesta com a
diocese de Safi[m] e bem assim as terras do Brasil, tanto as já
descobertas, como as que se vierem a descobrir". Esta foi uma
situação passageira. Além disso a bula papal não foi expedida do
Vaticano, por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da
existência real do arcebispado do Funchal. Em 1551 o papa Júlio
III revogou passando o Funchal para simples bispado sufragâneo de
Lisboa, que passará a assumir a função de primaz das terras
atlânticas, enquanto a de Goa preencherá idênticas funções para
as terras orientais.
NOME GOVERNO