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UMA LUZ

SOBRE O
PASSADO Na ilha de Marajó, cacos da
cerâmica de antigas civilizações
iluminam os estudos sobre a
desconhecida pré-história do Brasil.
TEXTO E FOTOS POR Maurício de Paiva
e Mônica Trindade Canejo

Rio Jurupari, vila de Santa Júlia:


o trapiche por onde caminha
o garoto foi construído sobre
um aterro em que, há 1,6 mil
anos, vivia o povo marajoara.

91
cenário lembra as savanas africanas. O calor é

O
Os fragmentos de cerâmica espalham-se pelo chão de áreas inundáveis
tórrido, e a falta de chuvas do verão amazônico secou áreas ou de mata (página oposta), mas a maioria dos moradores pouco sabe
sempre inundadas e esvaziou lagos e igarapés, berços sobre a importância histórica da ilha. A arqueóloga Denise Schaan
da diversidade de Marajó, a maior ilha fluviomarinha do (à esquerda na foto acima) sempre visita as casas em áreas próximas aos
mundo. A aridez, contudo, facilita o trabalho da arqueóloga sítios para explicar sua pesquisa e entender as reflexões dos moradores a
Denise Pahl Schaan, que desta vez inspeciona um sítio na região da vila respeito das relíquias antigas que eventualmente encontram.
de Santa Cruz. O trabalho segue sem surpresas até que um dos rapazes
da equipe localiza uma lâmina de machado com suas aletas ainda intactas.
O rosto de Denise, empapado de suor sob o chapéu de abas largas, exulta. Um dos principais sinais de sua passagem são os chamados “tesos”,
Pesquisadora do museu paraense Emilio Goeldi e da Universidade espécie de colinas artificiais que chegavam a ter até 12 metros de altura
Federal do Pará, Denise há mais de dez anos investiga a cultura marajoara, e podiam ostentar grandes casas coletivas, cada qual com capacidade para
resquícios de uma nação que habitou a ilha entre os anos 450 e 1350, abrigar 20 ou 30 famílias. Os tesos tinham também a função de proteger os
e de outros povos ancestrais da região (veja na página 96). Acostumada com moradores contra a água, pois o interior da ilha fica alagado boa parte do
as dificuldades da prospecção, é mulher que não se entusiasma fácil. Mas ano. Assim como os atuais ribeirinhos, os marajoaras represavam igarapés
agora tem motivos: o material do qual é feito o machadinho, uma pedra de para criar lagos. Com redes e armadilhas de fibras ou madeira, pescavam e
basalto, não existe em Marajó. Isso ajuda a comprovar a tese, sugerida já na secavam os peixes ao Sol, garantindo comida ao longo de todo o ano. Em
década de 1950 pelo americano Donald Lathrap, do intercâmbio cultural e suas canoas, viajavam para se relacionar com outros povos e fazer trocas –
comercial entre os povos da Amazônia pré-colombiana – caso dos por exemplo, de vasilhas, tecidos e cestaria por mandioca processada e
influentes tapajônicos, que viviam mais distantes, no interior. “Como não objetos líticos. E nos rios e lagos buscavam a argila para produzir uma das
existem na ilha vestígios desse tipo de rocha, parece improvável que os mais sofisticadas cerâmicas arqueológicas conhecidas em todo o mundo.
marajoaras a tenham trazido de fora para fabricar o machadinho. O objeto A cerâmica marajoara, a exemplo de qualquer outra autêntica forma de
é um sinal claro de que havia trocas entre os povos”, avalia. arte, perpetuou-se. Ao redor das vilas, na beira da água e em tesos ocultos
Quando os navegadores espanhóis penetraram no Amazonas, em meados na mata, fragmentos ou artefatos inteiros estão à espera de ser localizados.
do século 16, eles já observaram tribos populosas ao longo do vasto rio. Na vila Tessalônica, município de Afuá, encontrar um tesouro arqueológico
Os portugueses vieram depois, e uma descrição mais acurada sobre povos é questão de tempo: o povoado está assentado sobre um antigo espaço
da ilha de Marajó só veio no século 17, em relatos do padre Antônio Vieira. de rituais. Pela manhã, quando as águas do rio baixam, as crianças retiram
Segundo os estudiosos, sua sociedade complexa – com divisão de trabalho, das margens cacos de peças há séculos soterradas. “Quarenta anos atrás,
hierarquia e noção de Estado – poderia ser comparada à dos incas. quando me mudei para cá, havia ainda mais vasilhas inteiras. Muita coisa
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AP
A estação seca facilita o trabalho dos arqueólogos nos sítios marajoaras Os pesquisadores sabem
Santa Ilha Caviana goso
(mapa). O teso dos Bichos (página oposta) foi escavado várias vezes pela J´ulia
de Fora Peri Oceano que uma releitura mais
americana Anna Roosevelt, uma pioneira nos estudos sobre os povos da al
Ilha Atlˆantico cristalina dessa pré-história da
an Mexiana
as C Can
Amazônia. Muitas das peças vão parar no singelo Museu de Marajó, on Afu´a al do Sul vida brasileira só terá futuro se

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criado em 1983 pelo falecido padre Giovanni Gallo em Cachoeira do os achados forem preservados

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Arari. O professor Lino Ramos (acima) cuida do acervo local. Lago


e estudados. Aí nasce o drama:

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Santa E Arari Baía de
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Maraj́o
como a legislação brasileira
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Soure
prevê que toda peça
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se perdeu”, diz Joaquim Ferreira, 67 anos, o mais antigo morador do lugar. arqueológica é propriedade da
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ÁREA
“Os desenhos das peças também dizem muito sobre seus autores”, pensa União, as mais conservadas

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PA AMPLIADA Cachoeira
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do Arari
a arqueóloga Denise. Depois de estudar 34 tesos, ela considera que o simples seguem para o mercado negro

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ESítios arqueol´ogicos
fato de os marajoaras terem desenvolvido uma cerâmica tão rica já é indício de antiguidades. Centenas de

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marajoaras Bel´em

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suficiente de organização social. “Para chegar a tal nível de elaboração, eles 0 km 72
objetos já foram achados

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precisavam ter artesãos especializados. E isso significa que havia divisão de dentro da fazenda de
trabalho – ou seja, hierarquia – dentro da comunidade”, conta. Heronides Acatauassu Nunes, conhecida como dona Dita, 96 anos, no
A morte, explica ela, exigia rituais elaborados. Os marajoaras praticavam município de Soure. Em museus do país e do exterior, sempre há algum
o chamado enterramento secundário, no qual os ossos eram pintados e artefato marcado com seu nome. Mas, depois que ela se mudou para Belém,
armazenados em urnas que eram sepultadas próximo da superfície para vários saques foram feitos em sua propriedade – registra-se até a história de
que, de tempos em tempos, pudessem ser exumadas para rituais. “Pode-se um ex-funcionário que vendeu peças para um contrabandista que as teria
imaginar, no alto dos tesos, dezenas de pessoas reunidas nessas grandiosas levado para a Europa de barco, ironicamente acomodadas em um caixão
cerimônias”, diz Denise. No cardápio, servido em largos pratos, peixes, funerário. “Mesmo que sejam recuperadas, o prejuízo está consumado”, diz
farinha de mandioca, castanha, abacaxi, açaí. Os sacerdotes, sob o efeito de dona Dita. De fato, as relíquias precisavam ser estudadas antes de ser
drogas alucinógenas, invocavam o espírito dos ancestrais e faziam oferendas retiradas, pois dados como localização e profundidade em que estavam são
a seus deuses. Algumas urnas traziam desenhos de mulheres grávidas, preciosos quando se trata de observar padrões para se chegar a conclusões.
simbolizando morte e renascimento. Os participantes usavam pinturas A dúvida que ainda tira o sono dos cientistas é: por quê, depois
corporais, com grafismos intrincados, e as mulheres vestiam-se com suas de um período tão rico, a cultura marajoara se extinguiu? A hipótese mais
melhores tangas de cerâmica – um peculiar tapa-sexo com desenhos que, aceita diz que um conjunto de fatores determinou a decadência, como
assim como as urnas, representavam laços familiares e posições sociais. a chegada de povos guerreiros e uma seca ou uma cheia prolongada.
94 nat i onal ge o g raphic • setembro 2 006 MAPA LUIZ FERNANDO MARTINI m a r a joa r a s 95
ARTISTAS PRIMITIVOS A solicitude da vida em comunidade entre os ribeirinhos de hoje talvez
Espalhadas por uma região de influência da ilha seja um traço comum entre o passado e o presente de Marajó. O caboclo
de Marajó, na foz do rio Amazonas, relíquias típico da ilha vive com o filho e a família à beira do rio. Lidam na roça,
de cerâmica ilustram a presença de cinco distintas pescam em suas canoas, mantêm macacos e aves coloridas no quintal.
civilizações: ananatuba (um povo que viveu entre E, sempre que a maré baixa, encontram fragmentos de cerâmica – e de
980 a.C. e 200 a.C.), mangueira (por volta de seus ancestrais – a meros 10 metros de sua palafita.
100 d.C.), formiga (de 10 d.C. a 400 d.C.),
marajoara (de 400 a 1350) e aruã (até 1820).
Os marajoaras, que predominaram dentre todas Como eram muito místicos, os marajoaras podiam entender tais alterações
essas culturas, construíam suas cidades sobre climáticas como intervenção divina, e isso teria acabado com a coesão
aterros monumentais – os tesos (acima) –, e se social. “O mais provável é que os chefes e pajés tenham perdido a confiança
organizavam em sociedades complexas, rudimentos da população. Com isso, seu poder político enfraqueceu”, acredita Denise.
do que chamamos de Estado. As cerâmicas ou Esse misticismo impregna a cultura dos habitantes de Marajó e
as pinturas em seus corpos (à direita) revelam arredores. Em muitas áreas da vizinha ilha Mexiana, onde o rio Amazonas
grafismos cujos significados se assemelham a um encontra o oceano Atlântico, a luz elétrica ainda não chegou. A noite é
tipo de escrita. “A iconografia funcionava como escura como breu. Nós seguimos numa caminhada pela mata em busca de
código, compreendido por todos na comunidade”, um possível sítio arqueológico, onde, nos disseram, urnas funerárias estão
diz Denise Schaan. Até os anos 1980, acreditava-se enterradas, algumas até expostas. Então, nosso guia relembra de como,
que a arte marajoara tinha influência dos povos numa noite igual a esta, ele e seu primo foram atacados por “espíritos da
andinos, supostamente mais desenvolvidos. Mas a mata”. Ele diz apenas ter ouvido assobios que pareciam querer afugentá-lo
arqueóloga Anna Roosevelt mudou tudo: a bisneta do local, mas seu companheiro chegou a ser espancado por “criaturas
do presidente Theodore Roosevelt datou peças que invisíveis”. Ao fim do relato, impera um incômodo silêncio. Nossa
mostram que a cerâmica paraense é anterior, em imaginação voa longe. Quando afinal chegamos a um local onde restos de
séculos, a outras de estilos semelhantes produzidas cerâmica indicam a presença de um antigo cemitério indígena, percebemos
mais a oeste na América do Sul. Isso significa que se que, neste canto da Amazônia, a pré-história do Brasil não apenas alimenta
pode considerar Marajó antes um local de invenção as crenças dos moradores – ela é também surpreendentemente palpável. j
do que de importação de influências, e a cultura
marajoara como uma das mais importantes – Amazônia antiga Encontre links com outros estudos sobre os povos
talvez a mais – entre as amazônicas. pré-colombianos da floresta em www.ngbrasil.com.br/0609

96 nat i onal ge o g raphic • setembro 2 006 ILUSTRAÇÕES DE ALEXANDRE JUBRAN m a r a joa r a s 97

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