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Ninguém comete erro maior do que não fazer, só porque se pode

fazer pouco
Edmund Burke (1729 – 1797)
14
quinta-feira, 12 de Fevereiro de 2004
Este número do Jornal das Boas Notícias segue na 1000.ª
São Cucufate encheu para ouvir polifonia mensagem do Povo. Para todos os presentes leitores do Povo, o
artigo “A mensagem número 1000” conta como tudo começou.
BERNARDO MARIANO Ao mesmo tempo, O Jornal das Boas Notícias é uma ideia que
In: DN 031218
surgiu de um artigo de João César das Neves, “Boas Notícias”, que
Realizar um festival de música sacra no Inverno no também volto a reproduzir.
Baixo Alentejo requer coragem e uma boa dose de A razão original d’ O Jornal das Boas Notícias continua a existir e,
optimismo, mas foi isso mesmo a que se propuseram a perante a actual situação em que vivemos parece-me cada vez mais
Associação Arte das Musas (através do musicólogo e premente.
cantor Filipe Faria) e o Departamento do Património Um projecto como o GoodNews é preciso cada vez mais na nossa
Histórico e Artística do Diocese de Beja, através do seu sociedade. O Jornal das Boas Notícias não supre esta necessidade.
responsável José António Falcão. Chamaram-lhe É uma iniciativa amadora, que usa algum tempo livre de uma vida
«Terras sem Sombra - 1.º Festival de Música Sacra do profissional normal. Contudo, não é por ser uma coisa pequena
Baixo Alentejo» e termina este fim-de-semana, com um que não se deva fazer. Pretende olhar mais para o que há e menos
concerto em Sines (no sábado) e outro em Santiago do para o que falta, porque esta atitude é fonte de uma positividade
Cacém (no domingo). que dá um gosto novo à vida.
Tivemos o privilégio de assistir a um dos eventos deste Por isso, este número 14 do Jornal das Boas Notícias,
certame, precisamente aquele que decorreu na igreja comemorativo da 1000ª mensagem do Povo, procura olhar para o
matriz de São Cucufate, em Vila de Frades, ali ao lado que nos cerca, mesmo nas coisas mais pequeninas com um olhar
da Vidigueira, no passado dia 6. Decorriam na vila as valorizador. Desde iniciativas aparentemente ineficazes à
«Festas Báquicas», tradição deste «país das uvas», tal valorização do nosso passado e costumes, às grandes figuras do
como descrito por Fialho de Almeida, um filho da terra. Papa e da Beata Teresa de Calcutá que nos apontam caminhos de
A noite fria e com chuva miúda e uma terra (poder-se-ia humanidade mais perfeita, passando pela tomada de consciência do
dizer: uma região) afastada deste tipo de eventos não nosso limite como seres humanos que nos ajuda a pensar a nossa
impediram que o templo, onde se distingue um vida quotidiana.
belíssimo retábulo-mor, se enchesse com mais de 200 Como diz o editor do GoodNews: "é impressionante quanto bem
pessoas, para ouvir «Uma Missa de Natal na Europa existe entre nós, e como resiste ao mal, mesmo quando o mal é tão
Central Renascentista», assim rezava a proposta do forte". Pedro Aguiar Pinto
grupo vocal Officium, dirigido pelo jovem maestro
Pedro Teixeira.
Antes da música, usaram da palavra o padre João Paulo, São Cucufate encheu para ouvir polifonia ................................. 1
O regresso dos reis..................................................................... 1
pároco de Cuba e Vila de Frades, realçando o tempo (o
Os japoneses, os portugueses e a 'tempura' ............................... 2
Advento) em que decorreria este concerto e o dr. José Banco gestor de boas vontades .................................................. 3
António Falcão, dando conta do enorme esforço que Feira de solidariedade Emmaús anima Gare do Oriente........... 4
tem sido realizado pelo departamento que dirige no Usufruir, em vez de rabujar ....................................................... 4
sentido de recuperar, restaurar, organizar e catalogar o O prémio .................................................................................... 5
rico património sacro e de arquitectura religiosa da O papa João Paulo II será agraciado com o prémio da
diocese de Beja (parte dele está agora em exposição no unidade Europeia ....................................................................... 5
Palácio da Ajuda). Os Officium fizeram a sua entrada Karol Wojtyla............................................................................. 6
pelo corredor central, entoando um Tantum ergo Wojtyla ....................................................................................... 6
O Homem da Fé ......................................................................... 6
gregoriano. Já no altar, os 12 cantores desfiaram o
George Weigel faz um balanço dos vinte e cinco anos deste
concentus do Próprio e do Ordinário da liturgia pontificado ................................................................................. 8
natalícia, baseado na missa Pange Lingua, de Josquin Os segredos do "Terço Vivo" ..................................................... 9
Desprez, inserindo algum gregoriano entre as várias Uma breve história do Rosário da Virgem Maria...................... 9
secções em belíssima polifonia renascentista. O grupo, O cartão amarelo ..................................................................... 11
fundado em 2000 e premiado em 2002 num concurso na A humanização da morte, um desafio para a formação cristã . 11
Holanda, mostrou bom nível técnico. Baixos de graves Éz, o anjo.................................................................................. 12
mais redondos, contraltos mais seguros e a adição dum Somos todos limitados. E então?.............................................. 13
terceiro tenor torná-los-iam um caso sério de qualidade. Qualidade de vida de uma sociedade é medida pela atenção
Local. Igreja de Vila de Frades. Intérpretes. Officium. Obras. dada aos deficientes ................................................................. 14
Blasius Amon, Josquin Desprez, Jacob Regnart e G. P. da Palestrina Mão da esperança .................................................................... 14
Aborto ...................................................................................... 15
O regresso dos reis A guerra dos nascidos contra os não-nascidos ........................ 15
O Cartão-de-visita de Madre Teresa de Calcutá ..................... 16
Jaime Nogueira Pinto
In: Expresso, 040124
O Suave Milagre ...................................................................... 17
Resistir ao «Big Brother»......................................................... 18
Se há coisa de que tenho orgulho e a que sou grato, é à
A Pior Televisão É o Melhor Negócio...................................... 18
memória destes reis que fizeram, refizeram, Os Media Ou a Vida................................................................. 19
restauraram Portugal A Constituição e a Europa ....................................................... 20
Boas notícias ............................................................................ 21
«Pai, foste cavaleiro
A mensagem número 1000 ....................................................... 22
Hoje a vigília é nossa»
Fernando Pessoa
1 - TENHO em frente a casa, no topo norte do Jardim desde toda a Ásia, onde as potências locais - como a
do Campo Grande, duas estátuas: são de Leopoldo de China, a Índia, o Paquistão - se movem entre si em
Almeida, de 1950, em pedra branca. Quando equilíbrios que lembram a Europa do século XIX, às
aproximadas de trás, no sentido sul-norte, por quem Américas onde «o nacionalismo» - o antiamericano e
venha do jardim, parecem silhuetas de heróis de agora o americano dos EUA - está na ordem do dia; ou à
«fantasia heróica», de dois guerreiros de um passado ou Rússia. As excepções são a zona da África subsariana -
futuro míticos contado ou imaginado por Tolkien e dos Estados fracassados, saídos da descolonização e da
Peter Jackson, plantados ali à espera de entrar em Guerra Fria; e a União Europeia, em processo de uma
combate, ou guardando o caminho, como sentinelas «unificação», cujos contornos, alcance e caracterização
num limes. são difíceis de classificar; e onde, para quem tivesse
Olhadas de perto e de frente são D. Afonso Henriques, o dúvidas, os «grandes» continentais não as inibiram de
Conquistador e fundador de Portugal; e D. João I, o violar as regras do jogo «económico-financeiro»,
Mestre de Aviz e rei «de boa memória». O Fundador quando estas prejudicaram os seus interesses nacionais,
fundou Portugal, guerreando de Norte a Sul, fazendo e provando que são estes que prevalecem, mesmo entre os
desfazendo alianças com galegos e leoneses, guias do «núcleo duro» do europeísmo.
espadeirando mouros, questionando Papas; o «de boa 4 - Tendo um «Estado nacional», isto é um Estado em
memória» salvou e consolidou a independência e, no que as fronteiras político-jurídicas territoriais do Estado,
seu tempo, os portugueses começaram a descobrir e coincidem com as fronteiras histórico-culturais da
abrir o mundo; e por alguns séculos a fazer aquilo que Nação, deveríamos pensar bem antes de alienarmos por
seria o seu «nicho» na ordem das «nações»: pôr em «lentilhas», ou em tributo a «correcções políticas» de
contacto os «centros» de decisão e inovação, com as «bons» (e deslumbrados) neófitos, este trunfo, essencial
periferias perigosas. E graças a isso, sem vergonha, num mundo em que a instabilidade espreita e atinge os
vivemos e sobrevivemos por quase seis séculos, depois Estados sem nação (ou com várias nações) e as nações
de Aljubarrota. sem Estado.
2 - Os Poetas - Camões e Pessoa - entenderam melhor E agora há que pensar muito a sério o concerto
do que ninguém estas coisas: o «forte príncipe»», peninsular ibérico, depois do dia 16 de Novembro, na
«incansável», o «Afonso que não sabe sossegar», o Catalunha: ou será que não se percebem, em Portugal,
«pai» que foi «cavaleiro»; e «João, a quem do peito o as consequências da evolução eleitoral no País Basco,
esforço cresce», o «Mestre (...) do Templo que Portugal na Catalunha e na Galiza; nem se reflecte sobre a
foi feito ser»; entenderam a substância e a simbologia política espanhola e suas implicações, desde a aposta
exemplar destas vidas, ambas longas, muito longas «americana» de Aznar, às consequências da sua saída da
mesmo, para a época - cerca de oitenta anos. Duas vidas liderança do Governo e do PP; ou do casamento
de reis combatentes, conquistadores e demarcadores de anunciado do príncipe das Astúrias? Estaremos tão
fronteiras, bravos, inteligentes, astutos, com sentido e obnubilados pela rotina da política partidária doméstica,
razão de Estado, do Estado português, brutais e que nem para os vizinhos mais vizinhos olhamos?
implacáveis na sua defesa, e por ele pondo tudo em 5 - Quem não percebeu que sem a independência, ou
risco, desde a própria vida, à família próxima e, às seja, a liberdade da Nação, não há nenhuma espécie de
vezes, à própria alma. liberdades das pessoas, pois deixamos de ser
Eles, com o Restaurador D. João IV de Bragança, que autogovernados para passarmos a uns «provinciais»
também correu riscos, conspirando contra Filipe IV e periféricos de um qualquer «império» franco-germânico
depois tão bem coordenou, pela diplomacia e pelas ou vassalos de um «reino» de Espanha, não percebeu a
armas, a equipa da Restauração, que de Londres e centralidade do problema nacional hoje.
Roma, a Angola e ao Brasil, refundou e garantiu Nestes dias difíceis, de começo de um ano difícil, entre
Portugal. Ajudado por uma equipa, onde estava presente ameaças apocalípticas de terrorismos fanáticos e de
e dominava o Padre António Vieira, o «imperador da continuada degradação da sociedade portuguesa, entre a
língua portuguesa». pedofilia e o «Big Brother» e «o pão e circo»
Se há coisa de que tenho orgulho e a que sou grato, é à contemporâneo da Televisão e do Futebol, é capaz de
memória destes reis que fizeram, refizeram, restauraram ser um bom exercício rever estes nossos «maiores» - os
Portugal; e a todos que, em quase 500 anos, com alma e reis que fizeram e que restauraram Portugal - e pensar
corpo o serviram, numa linha sustentada pela bem no seu exemplo. Porque «hoje a vigília é nossa»!
diplomacia e pelas armas, e que sempre teve um
objectivo: defender a independência nacional de um Os japoneses, os portugueses e a 'tempura'
vizinho muito mais poderoso, nos termos «objectivos» MARIA DE LOURDES MODESTO
da avaliação do poder nacional: território, população, In: DN, 040202
economia, poder militar. Espanta-me o inesperado sucesso de que esta cozinha
3 - O «cliché» de que a independência conta pouco, goza entre nós, em contraste com o escárnio com que os
nestes tempos de fragmentação de Estados frustrados e portugueses falam da cozinha de autor largamente
de união de Estados «europeus», é falso; a estatalidade, influenciada por aquela. É um dado aceite que, do ponto
o Estado soberano e o Estado agindo em termos dos de vista estético, só poderemos comparar a cozinha
seus interesses (que não têm que ser apenas japonesa à grande cozinha chinesa, apenas acessível aos
«económico-materiais», mas podem ser culturais, grandes chefes do país da Grande Muralha. Não admira,
militares, securitários) são a regra, na maioria das áreas: uma vez que é dela que descende. O que admira, sim, é
ver o entusiasmo com que os portugueses, empunhando

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os dois pauzinhos, se atiram ao sashimi e ao sushi, dois voluntária a várias instituições, as mais conhecidas. Mas
pratos que não se deram sequer ao esforço de passar estavam todas cheias e nunca consegui», contou ao DN,
pelas brasas. Confesso-me grande admiradora da Teresa Ganchinho, de 23 anos. «Ao pedir ajuda ao
cozinha japonesa, mas, apreciando eu mais o cozido do Banco sabemos que ajudamos quem mais necessita, pois
que o cru, já adivinham do que lhes vou falar. o nosso trabalho é canalizado para as instituições mais
Exactamente: da tempura (a maneira japonesa de dizer carenciadas de voluntários», acrescenta esta jovem
«têmpora»). Sou toda admiração por aqueles peixes, recém-licenciada em Engenharia Civil.
mariscos e legumes envoltos naquela «neve» frita! E O Banco do Voluntariado é um projecto da Câmara
pensar que fomos nós, portugueses que fazemos aqueles Municipal de Lisboa desenvolvido em colaboração com
peixinhos da horta a lembrar pastilha elástica, que os a Associação Amigos da Solidariedade - Coração
iniciámos na arte de fritar! Amarelo. Surgiu do repto lançado pela Comissão
A tempura é uma das marcas mais persistentes da nossa Nacional de Promoção do Voluntariado, ainda em 2001,
presença no Japão. Até ao século XVI, o século que foi no Ano Internacional dos Voluntários, de forma a cruzar
chamado de Cristão, pela chegada dos missionários oferta e procura. O objectivo é reunir informação sobre
jesuítas ao Japão, desconhecia-se ali o método de cozer as instituições que acolhem trabalho de voluntariado e
os alimentos numa gordura. Os portugueses utilizavam a colmatar as suas necessidades com a boa vontade das
fritura com polme por altura das têmporas - época de pessoas que querem fazer algo de útil mas não sabem
penitência, oração e acção de graças pelos frutos da onde se dirigir.
terra, no início de cada estação do ano. Hoje, os «Não queremos impor voluntários às instituições, nem
japoneses comem tempura durante todo o ano, mas instituições aos voluntários», alertou Mafalda
associam-na ainda à Páscoa. Por isso, a carne continua a Mendonça, coordenadora do Banco. «Tentamos
não fazer parte da tempura, apenas aplicada a peixes, promover as práticas de voluntariado, coordenar a oferta
mariscos e vegetais. Destes podem fazer parte as folhas que existe e qualificar as pessoas que a prestam»,
de um crisântemo... Os japoneses são na verdade acrescentou a responsável pelo centro. Mafalda
mestres na arte de fritar os alimentos passados por Mendonça acredita que não faltam pessoas solidárias
polme. É, justamente, o polme que diferencia a tempura dispostas a oferecer os seus préstimos. «Faltam é
japonesa. estruturas de encaminhamento que cruzem interesses
Preparação: Pega-se em 2 copos, num deita-se 1 ovo e preenche-se recíprocos. Até as instituições que operam nas mesmas
com água bem fria. Mistura-se e leva-se ao frigorífico. Enche-se o
áreas vivem, muitas vezes, de costas voltadas», afirmou.
outro com farinha, que pode ser só de trigo ou parte de maisena. Os
alimentos a fritar deverão ser rigorosamente frescos, de pequenas Para alterar esta forma de acção, o Banco tenta
dimensões e artisticamente cortados. Alguns vegetais requerem uma convergir interesses comuns. «Vamos de porta em porta
prévia, mas ligeira, cozedura. Tem-se o banho de fritura, óleo, tentando desmistificar a ideia de que o voluntário não é
aquecido a 180º C. Numa tigela juntamos a água quase gelada com a
responsável e só faz o que quer». Depois, o processo é
farinha e misturamo-las ligeiramente, devendo verem-se grumos e
alguma farinha seca. Passam-se os alimentos pelo polme, sem a simples, as pessoas são postas em contacto com a
preocupação de os cobrir completamente e introduzem-se no banho de instituição e com ela traçam um programa de
fritura. Deixa-se o polme coagular sem alourar e põem-se a escorrer intervenção: tipo de trabalho e disponibilidade.
sobre papel absorvente.
Mas esta inversão de mentalidades não chega para o
E está pronto o melhor e mais bonito frito que o mundo sucesso da integração do voluntário na instituição.
já viu. E fomos nós, sim, fomos nós portugueses, que os «Alertamos também os candidatos para os seus deveres.
ensinámos a fazer. Fazemos uma entrevista para aferir as suas aptidões e
Se é um purista, não se esqueça de acompanhar a interesses e perceber se têm capacidade para
tempura com o molho que lhe vai bem e que é composto desenvolver o trabalho com responsabilidade. A
por 1 parte de mirin, 1 de molho de soja e 3 de dashi, vontade não chega, há que realçar as dificuldades e
isto é, caldo. Este caldo é aromatizado com aparas de fazer um acompanhamento posterior», explicou ao DN,
bonito seco - que não é preciso ninguém dizer para se Alexandra Ramires, psicóloga do Banco e responsável
ver logo que fomos nós que o levámos para lá, ou não pela selecção e triagem dos voluntários.
façam as tais aparas de bonito lembrar a muxama O Banco tem ainda pouco tempo de vida mas, num mês
algarvia, que alimentou os nossos homens quando se já recrutou dezenas de voluntários, uns já em acção,
fizerem ao mar a espalhar a fé, o Império e outras coisas outros ainda em processo de adaptação à instituição.
mais. «As pessoas procuram cada vez mais ter um papel
Banco gestor de boas vontades activo na sociedade pois estão mais sensíveis aos outros
e já perceberam que o Estado não dá a resposta eficaz às
RITA CARVALHO
In: DN, 040119
necessidades existente», afirmou a psicóloga do Banco.
Depois de ter batido, sem êxito, a várias portas à «Além disso, é também uma forma de lutar contra a
procura de alguém que acolhesse a sua vontade de solidão, que afecta toda a gente, quem ajuda e quem é
ajudar, Teresa foi tocar ao número 10 da Rua A, no ajudado. Mas não acho que isso desvirtue esta nobre
Bairro do Rego, em Lisboa. Aqui abriu-se um vasto missão», concluiu.
leque de possibilidades que lhe permitiram escoar este Centro actua com várias instituições
desejo antigo de ser voluntária. O Banco do O Banco tem recebido pessoas de todas as idades e
Voluntariado nasceu exactamente para isto: fazer a aptidões com o mesmo propósito: ser voluntário.
ponte entre quem quer ajudar e quem precisa de ajuda. «Temos muitas mulheres, jovens licenciados e cada vez
«Como não conhecia o meio, fui oferecer-me como mais reformados, que são válidos e querem fazer algo

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pelos outros», explicou ao DN, a psicóloga do Banco. convento dos Capuchinhos, onde passou a chamar-se
Agora colaboram com instituições de sem-abrigo, saúde "Padre Filipe", tendo sido ordenado em 1938.
mental, apoio a crianças, idosos, doentes, Trabalhou na catedral de Grenoble e na Alsácia, antes
toxicodependentes e grávidas. Oeiras, Cascais e de se empenhar na Resistência durante a II Guerra
Figueira da Foz também já têm um serviço deste tipo. Mundial – período em que ajudou muitas pessoas a
fugir para a Suíça, sendo conhecido, na resistência,
Feira de solidariedade Emmaús anima Gare do Oriente como "Abbé Pierre".
In: Ecclesia, 040211 Em Novembro de 1949 fundou a associação Emaús,
Quem passar na Gare de Oriente, por estes dias, dá de uma comunidade que se consagra à construção de casas
caras com aquilo que, à primeira vista, pode parecer provisórias para sem-abrigo, financiada pela revenda de
uma feira de antiguidades: móveis, livros, discos e objectos de recuperação. O Movimento de Emaús
outras preciosidades que o tempo marcou. A feira de abarca hoje 84 comunidades em que vivem e trabalham
solidariedade Emmaús vai continuar por lá até 15 de mais de quatro mil pessoas, em trinta países dos cinco
Fevereiro, com o objectivo de transformar o que os continentes.
outros consideram lixo em ouro verdadeiro, Comendador da Legião de Honra, o Abbé Pierre é uma
indispensável para os projectos que o Movimento personalidade que muitos franceses apreciam pelo seu
Emmús, do Abbé Pierre, desenvolve em Portugal e no compromisso com os mais pobres.
mundo. A COMUNIDADE DE CANEÇAS
“Tudo o que aqui está foi recolhido por nós, de casa em O movimento Emmaús, após procurar uma casa
casa, junto de pessoas que nos contactaram para abandonada, uma fábrica em ruínas ou um armazém
recolher coisas velhas, que já não querem”, explica o fora de serviço, acabou por encontrar um local na
Humberto (assim mesmo, que neste movimento só o Quinta das Lages. A primeira comunidade Emmaús em
primeiro nome conta) à Agência ECCLESIA. Confessa Portugal foi crescendo, de modo a oferecer a cada
que a maior parte das coisas são “lixo”, mas o que Companheiro um espaço para se reencontrar e partilhar.
sobra, depois de limpo e restaurado, vale muito para Hoje em dia tem capacidade para acolher 30 pessoas,
aqueles que a sociedade deixou à margem. embora o Humberto assinale que a casa não está cheia.
A grande maioria das pessoas que abordámos parava “Embora a situação esteja melhor, em termos materiais,
fascinada pela hipótese de encontrar uma relíquia a solidão é um problema cada vez maior e isso que nós
qualquer, a preço de ocasião. O próprio Humberto procuramos resolver”, assinala.
confessa que as perguntas não são muitas – a maioria Lamenta que muitas pessoas não saibam que é fácil
das pessoas nem sonha de onde veio tanta coisa, e que ajudar, oferecendo as coisas que não querem. O
muito mais ainda está em Caneças. endereço é Estrada do Lugar de Além, 16 – Caneças;
O dinheiro que vai ser recolhido nestes dias vai tel. 219800038.
alimentar essa comunidade, mas também uma série de E como os próprios dizem, “recolhemos tudo o que não
projectos de solidariedade, numa lição que os que precisa”.
menos têm dão ao resto do mundo: 2500 Euros para as A outra comunidade Emmaús em Portugal fica no
vítimas dos incêndios do passado verão, 25000 Euros Porto, na Rua Lindo Vale, 193; tel. 225509501. Esta
para Moçambique e Timor Leste (em colaboração com instituição foi fundada há pouco, organizando-se de
as irmãs Concepcionistas) e 15000 Euros para a Guiné- forma semelhante ao movimento iniciado em França,
Bissau. Outra parte segue para a associação “Emmaüs para acompanhamento da gente que faz da rua a sua
International”, fundada em 1971. casa.
Um resultado positivo é absolutamente necessário, tanto
mais que as comunidades deste movimento não recebem Usufruir, em vez de rabujar
nenhum tipo de subsídio, por opção. O ensinamento do João Carlos Espada
Abbé Pierre diz que o dinheiro não faz o homem In: Expresso, 040124
grande, mas que os grandes homens conseguem tudo, «Os congressistas da APCP revelaram uma disposição
mesmo o dinheiro necessário. para usufruir, e não para rabujar. As televisões não
O Humberto não esconde a sua admiração pela figura acharam relevante.»
fundadora. O momento é particularmente significativo, REALIZOU-SE nas passadas segunda e terça-feira, na
dado que passam 50 anos sobre o grito do "Abbé Fundação Gulbenkian, o II Congresso da Associação
Pierre", a denunciar que nem todos têm está garantido o Portuguesa de Ciência Política (APCP). Com cerca de
direito a uma habitação digna. 90 comunicações e mais de 150 participantes, o evento
No passado dia 28 de Janeiro o apelo foi repetido, passou totalmente despercebido pelas nossas televisões.
falando-se de uma “crise sem precedente na habitação” Mesmo o encerramento dos trabalhos pelo ministro da
e apelando-se à responsabilidade de cada cidadão para Presidência, dr. Morais Sarmento, em representação do
com os desalojados e marginalizados. primeiro-ministro, não mereceu as atenções das câmaras
QUEM É O ABBÉ PIERRE? televisivas.
Heni Grouès é o quinto filho de uma família de cinco Este mistério, a que poderíamos chamar «do silêncio
rapazes. Nasceu no dia 5 de Agost de 1912 em Lyon. televisivo sobre a Ciência Política», merecerá
Quando tinha 15 anos, no decurso de um congresso de certamente no futuro detalhada análise científica. De
jovens cristãos em Assis, sentiu “a emação momento, uma coisa é certa: ninguém, na APCP, se
indescritível” da revelação. Em 1938 entrou no lembrou de fazer «uma fuga» para a televisão; não
houve relatos de conflitos tremendos, irreparáveis

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ofensas, ou imperiosas reclamações ao Governo, ao Há todavia um prémio recente que vem acrescer àquela
Parlamento ou ao Presidente da República. lista e que bem pode reunir as condições para a
A verdade, em contrapartida, é que estiveram presentes internacionalização prestigiante de uma presença
pontos de vista muito diferentes, por vezes rivais, sobre portuguesa na área dessas distinções. É certo que não se
os mais variados temas e áreas da Ciência Política. trata de um prémio destinado a exaltar propriamente a
Tranquilamente, esses pontos de vista foram expostos criação artística. Mas tem uma vocação humanista e
ao escrutínio público; e tranquilamente cruzaram radica numa matriz espiritual profundamente europeia.
argumentos com os seus rivais. Uma atmosfera Refiro-me ao prémio Pro Iustitia, instituído pela
descontraída e empreendedora animou os trabalhos - Faculdade de Direito de Lisboa. Foi atribuído pela
onde também conviveram diferentes gerações. primeira vez em 2003, tendo sido distinguido o Papa
Pode ser alvitrado que os congressistas simplesmente João Paulo II. À cerimónia de entrega associaram-se,
fizeram aquilo que apreciam: Ciência Política. E que foi enviando mensagens, o Presidente da República, o
sobretudo porque se sentem bem a fazer o que gostam Presidente da Assembleia da República e o primeiro-
que não tiveram tempo para se preocupar com «fugas» ministro.
sobre quezílias inexistentes. Da informação a que tive acesso resulta que o prémio
Esta prosaica observação faz lembrar uma outra Pro Iustitia é «atribuído a personalidades que tenham
prosaica explicação para uma das grandes perguntas da constituído exemplos reconhecidos internacionalmente
Ciência Política: «como explicar que a Inglaterra tenha de respeito pelos valores da Justiça, da Paz, do Direito,
feito todas as revoluções do mundo moderno, sem da dignidade e a solidariedade humanas.
nunca ter feito uma Revolução?» A escolha destas personalidades é feita por deliberação
A melhor hipótese explicativa que até hoje encontrei foi da totalidade dos Doutores, em exercício ou jubilados,
sugerida pelo excêntrico historiador de Oxford, A.L. da Faculdade de Direito de Lisboa e só pode ser
Rowse. Em The English Spirit (1940), ele argumentou atribuído por votação unânime.
que «no centro do espírito inglês está a felicidade, uma Ao instituir o prémio, a Faculdade procurou consagrar
profunda fonte interior de contentamento com a vida, o exemplos dos valores que lhe incumbe defender. A
que explica o mais profundo desejo do inglês - ser atribuição do prémio é reconhecida por toda a
deixado em paz - e a sua predisposição para deixar os Universidade, mediante a participação do Reitor».
outros entregues aos seus próprios costumes desde que Para além das rigorosas condições estabelecidas para a
estes não perturbem o seu repouso». sua atribuição, que são ipso facto uma garantia de
Michael Oakeshott, a figura emblemática da Ciência seriedade, e da expressiva simbologia decorrente de se
Política da London School of Economics and Political tratar de um prémio instituído por uma Faculdade de
Science, chamou a esta atitude uma «disposição». E Direito, o prémio Pro Iustitia é de grande valor material,
observou que ela é característica de pessoas que uma vez que consiste fisicamente numa medalha com
apreciam o seu modo de vida por uma razão prosaica: 10 cm de diâmetro e pesando 600 gr. de ouro cuja
porque é o seu. Porque lhes é familiar. Porque é nele concepção é encomendada a um artista português. Neste
que se sentem confortáveis. Isto gera uma disposição caso, a concepção da obra foi Hélder Baptista.
para usufruir e não para rabujar; para preservar e não Talvez por se tratar da primeira vez que foi atribuído, o
para destruir; para melhorar gradualmente e não para eco que a sua existência e atribuição tiveram na
mudar drasticamente, ou caprichosamente. comunicação social não foi uma coisa por aí além. Se se
Não presumo que todos os meus colegas da APCP tratasse da atribuição da bola de ouro a algum
concordem com estas observações - e espero bem que futebolista ou do disco de platina a algum grupo de rock
muitos não concordem. Mas receio que todos tenhamos esse eco certamente teria sido muito maior.
manifestado um pouco desta disposição, mesmo A Faculdade de Direito de Lisboa talvez não tenha a
discordando dela. experiência requerida para a conveniente orquestração
mediática do acontecimento. Mas cabe-lhe o mérito de
O prémio lhe ter dado origem e caber-lhe-á o de lhe dar
Vasco Graça Moura continuidade. As coisas são o que são e o importante,
In: DN, 040107 para já, é que o prémio exista e reuna condições de
No Público de 28 de Dezembro, e sob o título «Os repercussão para além das fronteiras.
melhores prémios, disseram os júris», Carlos Câmara A afirmação internacional de Portugal também passa
Leme fez uma útil e extensa resenha dos prémios mais por estas iniciativas de projecção civilizacional, e por
importantes de 2003, tanto nacionais como isso é preciso que elas se vão impondo gradualmente,
internacionais, percorrendo as mais variadas áreas da articuladas a valores que são universalistas e cuja
criação (literatura, cinema, música, arquitectura, artes afirmação contribui para reforçar o papel e o prestígio
plásticas, espectáculo). Esse florilégio recorda-nos de Portugal na Europa e no mundo.
muita gente que foi galardoada e faz-nos pensar na
reduzida importância internacional dos principais O papa João Paulo II será agraciado com o prémio da
prémios portugueses. Destes, salvo o Prémio Camões, unidade Europeia
será difícil dizer-se que tenham projecção para lá da In: ASSOCIATED PRESS World News, 040123
raia. E o Prémio Camões, fica apenas circunscrito ao BERLIM, Jan. 23 — O Papa João Paulo II foi agraciado
universo da língua portuguesa onde, mesmo assim, é com uma edição especial do prestigiado Prémio
duvidoso que tenha a importância que poderia e deveria Internacional Carlos Magno pela sua contribuição para a
ter.

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unidade Europeia. certamente entre nós.
O pontífice de 83 anos junta-se ao líder britânico da 2.ª
Grande Guerra, Winston Churchill, ao antigo presidente Wojtyla
americano Bill Clinton e ao primeiro-ministro britânico Henrique Monteiro
Tony Blair, como vencedor do prémio, que é concedido In: Expresso, 031017
anualmente desde 1950 pela cidade alemã de Aachen. Nos 25 anos do papa João Paulo II é preciso que se diga
O papa receberá o prémio durante uma cerimónia no que ele conheceu bem o seu tempo. Foi um defensor da
Vaticano a 25 de Março. (...) liberdade e um severo crítico do comunismo, na altura
O júri , que fez este anúncio na quinta-feira passada, em que muita intelectualidade europeia se mostrava
citou “a contribuição extraordinária do papa para o ainda receosa de denunciar o verdadeiro carácter dos
processo de integração europeia, mas também o seu regimes pró-soviéticos. A sua acção neste domínio
particular esforço em exercer uma influência, a partir da revelou-se como indispensável para o derrube de uma
Europa, na construção da ordem mundial.” das mais perversas tiranias que a história conheceu.
O presidente da câmara de Aachen Juergen Linden Depois da queda do muro de Berlim, Karol Wojtyla
sublinhou o papel do papa polaco na queda da Cortina demonstrou ser um homem tolerante. Foi o primeiro
de Ferro que, no passado, dividiu o continente. papa a entrar numa sinagoga e numa mesquita, foi o que
“O comunismo teria sido vencido sem o papa, mas ele mais trabalhou pelo ecumenismo. Em Fátima, foi aliás
ajudou a assegurar que isso acontecesse mias cedo e ferido por um padre conservador que se opunha ao seu
sem derramamento de sangue”, disse Linden. estilo ecuménico.
Ao prémio Carlos Magno é atribuído um valor Deve-se ainda a João Paulo II o lançamento de pontes
simbólico de 6350 US$. O imperador do Sacro Império com todo o mundo. Nas suas viagens infatigáveis a mais
governou a maior parte da Europa Ocidental a partir de de 130 países, o papa mobilizou vontades e opiniões
Aachen, próximo da actual fronteira belga. para as causas da tolerância e da paz.
Restam aqueles pontos em que a sua actividade foi
Karol Wojtyla sujeita à crítica: o combate à sida, a condenação do
António Ribeiro Ferreira preservativo, a insistência no celibato dos padres, a
In: DN, 031017 recusa de aceitar mulheres no sacerdócio, etc., etc.
A Igreja Católica comemora os 25 anos do pontificado Todos estes pontos têm em comum o facto de estarem
de João Paulo II, o cardeal polaco que para surpresa do assentes em causas religiosas ou em profundas tradições
mundo foi eleito Papa no dia 16 de Outubro de 1978. da Igreja. Como é o caso da fundamentação do sexo
Crentes ou não crentes, católicos ou não católicos, tendo como único objectivo a reprodução, sendo, à
ninguém pode ficar indiferente a esta figura que excepção desse caso, intrinsecamente condenável (o
marcou, marca e irá com certeza marcar no futuro a vida pecado da carne). Ou como a menoridade das mulheres,
da Igreja e da própria humanidade. A sua doença tem as quais, aliás, só viriam a ser dotadas de alma vários
canalizado as discussões para matérias que não são séculos depois da morte de Jesus Cristo, uma vez que
verdadeiramente relevantes. Karol Wojtyla irá acabar os este apenas teria homens como apóstolos (versão que
seus dias como chefe da Igreja. Esta certeza deu-a o modernamente é contestada por alguns autores).
próprio quando, ao falar do seu estado de saúde e da sua Seja como for, tendo estes pontos em comum as
debilidade física, respondeu de uma forma notável aos referidas causas, é necessário que se compreenda que
que desejavam vê-lo abdicar: «Jesus Cristo também não João Paulo II e os seus colaboradores na hierarquia da
desceu da Cruz.» É por isso que nestes dias de festa para Igreja não são livres de os mudarem a seu bel-prazer.
a Igreja e para os católicos interessa registar o Embora espíritos modernos e muitos deles a comentar
contributo importante deste cardeal polaco para a queda «de fora» da própria Igreja aplaudissem de imediato
do império soviético, um marco na história do século caso Roma recomendasse o uso do preservativo, a
XX que todos os amantes da liberdade não podem nem verdade é que isso colocaria em causa um dos
devem esquecer. As posições polémicas sobre a vida e fundamentos mais importantes da doutrina católica. Por
as relações humanas são irrelevantes quando isso mesmo, concordando ou discordando de João Paulo
comparadas com o fim de dezenas de regimes II, há que ter a honestidade de dizer que ele defendeu a
opressores e a libertação de muitos milhões de seres sua Igreja contra ventos e marés, contra a opinião de
humanos. quase todas as elites. E a verdade - por estranho que
Mas se a guerra contra o comunismo, a luta pela paz e pareça - é que a tornou maior.
pela dignidade dos cidadãos marcaram estes 25 anos de Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, é seguramente um
João Paulo II, importa dizer que, em muitas ocasiões, os homem para muitos séculos de História.
interesses da Igreja falaram mais alto em momentos
marcantes da vida internacional. Aconteceu em Timor- O Homem da Fé
Leste e no Iraque. As hesitações entre a defesa de um JOÃO BÉNARD DA COSTA
povo católico e a manutenção de posições relevantes no In: Público, 31 de Outubro de 2003
maior país muçulmano do mundo e o pacifismo "A esperança espanta o próprio Deus", disse Péguy.
militante perante um regime sanguinário e perigoso para Claudel, pela voz de Joana d'Arc na fogueira, proclamou
a humanidade mostraram que João Paulo II também que ela era a mais forte das três virtudes teologais.
soube ser o Chefe de Estado do Vaticano. Missionário Da caridade, não foi preciso esperar pelos hinos dos
corajoso, político extraordinário, figura marcante do poetas. O amor de dilecção (agapê) foi posto no cume
século XX, o cardeal polaco Karol Wojtyla está e estará da hierarquia dos carismas por São Paulo, na

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celebérrima passagem da primeira Epístola aos Isaac era a única esperança de Abraão, e Deus mandava-
Coríntios (13, 1-13) que é sempre tão bom recitar: o cravar o cutelo nessa única esperança. "Mas Abraão
"Ainda que eu falasse todas as línguas dos homens e dos creu e não duvidou: creu no absurdo." (...) Não virou os
anjos, se não tiver a caridade sou como o bronze que soa olhos para a direita e para a esquerda, esperando
ou o címbalo que ecoa. Ainda que tivesse o dom da angustiadamente uma salvação. Não fatigou o Céu com
profecia e conhecesse todos os mistérios e toda as orações. O Omnipotente punha-o à prova, e ele sabia
ciências, ainda que tivesse a plenitude da fé, dessa fé que esse sacrifício era o maior que se lhe podia pedir.
que move montanhas, se não tiver a caridade nada sou" Mas também sabia que nenhum sacrifício é o maior
(...). "A caridade é a que nunca passa. Desaparecerão as quando é Deus que o pede. E levantou a faca."
profecias. Calar-se-ão as línguas. Desaparecerá a ciência Kierkegaard, que ainda estou a citar, descreve, depois,
(...)". "Quando era menino falava como menino, todas as hipóteses possíveis para Abraão evitar o gesto
pensava como menino, raciocinava como menino. infanticida. Podia ter-se morto, imolando-se em vez do
Quando me fiz homem, desapareceu em mim o que de filho. Podia ter imolado o cordeiro. Podia ter pedido a
menino em mim havia. Por agora, vemos como através Deus que o poupasse, como muito antes pedira a Deus
de um espelho, confusamente, mas um dia veremos face por Sodoma e Gomorra. Mas - volto a Kierkegaard -
a face. Hoje, só conheço imperfeitamente. Mas um dia "não teria dado testemunho da sua fé, nem da Graça de
virá em que conhecerei como sou conhecido. Deus, mas teria mostrado quão terrível é subir a
"A fé, a esperança e a caridade ficarão para sempre e só montanha de Morija. Nem Abraão, nem a montanha de
elas para sempre ficarão. Mas a maior de todas é a Morija teriam sido esquecidos. Seriam tão lembrados
caridade". quanto o são. Mas a montanha seria lembrada, não
2 - Misteriosíssima é esta hierarquia que secundariza, como a Ararat, onde a Arca se deteve, mas como um
não secundarizando, a fé e a esperança, como lugar de horror. "Foi lá" dir-se-ia, "que Abraão
secundariza, não secundarizando, os dons do Espírito duvidou".
Santo, exaltados logo de seguida, no capítulo 14 da De cada vez que penso sobre o mistério da Fé, penso
mesma Epístola. nas palavras com que Kierkegaard termina, no livro que
No mesmo Paulo (Rom. 1 5, 16) pode ler-se o paralelo refiro, o que chamou o "elogio de Abraão". "Eu sou
entre a fé e a esperança, quando o Apóstolo das Gentes aquele que não esquecerá nunca que tiveste que esperar
se refere a Abraão como aquele que "esperou contra cem anos para que te fosse dado, contra toda a
toda a esperança". E esperou porque teve a fé, a "fé que esperança, o filho da tua velhice, esse filho que só
lhe foi contada". conservaste porque levantaste o teu punhal contra ele.
Antes de Abraão, houve certamente lugar para a Eu sou aquele que não esquecerá nunca que, aos cento e
esperança e para a caridade. Adão e Eva esperaram ser trinta anos, não foste mais longe do que a fé".
perdoados, Noé esperou sete dias pelo segundo voo da 3 - Se ninguém pode compreender Abraão, como
pomba, que lhe voltou com um ramo de oliveira no bico Kierkegaard também disse, é porque ninguém nunca
e, depois, esperou outros sete dias até a pomba nunca teve a fé de Abraão. Quem é aquele que pode dizer às
mais lhe voltar. montanhas que se movam e as montanhas mover-se-ão?
A caridade (agapê e eros) acompanha a evolução da Quem são aqueles cuja fé espanta o próprio Deus, como
humanidade de Adão a Térah. Se ela não houvesse, o (Mt 8-10) o espantou a fé do centurião e o levou a dizer
homem não teria conhecido a mulher e a mulher não "Em verdade, em verdade vos digo que nunca encontrei
teria conhecido o homem, e Eva não teria podido dizer semelhante fé em Israel"?
que, por Iavé, outro homem nascera. Mas terão tido a fé, Homem de fé, mulher de fé, disse-se diz-se de tantos
essas gerações nascidas à porta do jardim, que que a tiveram ou disseram ter. Tê-la-ão tido? Recordo
querubins de espada na mão guardavam para as impedir "Pickpocket", um filme de Robert Bresson. Lembrando
de voltar junto à árvore do bem e do mal? Sempre me o dia da morte da mãe e determinado acontecimento, o
interroguei sobre a razão da fé nessas gerações iniciais, protagonista, um ladrão, dizia ter acreditado em Deus
interrogação que tem sentido radical quando se sabe que durante três minutos. O católico Bresson comentava:
Abraão é chamado o pai da fé. "Não conheço mais ninguém que possa dizer que
Porque Abraão é o primeiro - ou foi o primeiro - a ser acreditou em Deus durante tanto tempo". Julgamos -
tentado a duvidar da palavra de Deus, que o mesmo é julgam alguns - que sabem o que é a fé, a esperança ou a
dizer a duvidar de Deus. Como era possível que o caridade. Mas se o soubessem, não saberiam o que nós
mesmo Deus que o fizera gerar um filho na velhice, que sabemos. A quase todos os que o rodeavam, o Senhor
fizera a velhíssima Sara conceber um filho, esse Isaac a sempre chamou "homens de pouca fé".
quem tinha prometido tantos prodígios para com ele 4 - Conheci algumas pessoas que julgo tiveram fé, nem
estabelecer uma aliança perpétua, como era possível que que fosse por instantes tão breves como o protagonista
o mesmo Deus o mandasse matá-lo e oferecê-lo em de Bresson.
holocausto como um cordeiro? Mas o exemplo de fé mais pasmoso que de tão longe eu
Mas Abraão não duvidou. tenho presenciado é o do homem chamado Karol
Penso nas páginas escritas por Kierkegaard (Temor e Wojtyla, Papa sob o nome de João Paulo II.
Tremor) quando assumiu o pseudónimo de Johannes de Não é o "papa da minha vida", no sentido em que o
Silentio, para quatro vezes narrar o que se passou na foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I.
madrugada em que Abraão saiu de casa, beijou Sara e Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame
levou com ele Isaac, para subir a montanha de Morija. mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele

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de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos que cada vida humana propõe. Esta é a convicção que
anos - dar um tamanho testemunho que só consigo anima seu ministério como bispo de Roma.
explicar pelo inexplicável mistério da Fé. E esta é a convicção que se encontra detrás dos
"Houve homens grandes pela sua energia, sua sabedoria, momentos mais dramáticos de seu pontificado: o
sua esperança ou seu amor". Mas há os homens grandes chamamento «Não tenhais medo», após ter sido eleito
pela energia, cuja força provem da fraqueza, grandes Papa; sua épica peregrinação à Polónia em junho de
pela sabedoria cuja forma está para além do 1979, que mudou o curso da história do mundo; seus
conhecimento, grandes pelo amor que vão para além do dois discursos às Nações Unidas; a maneira como
amor que a nós próprios temos. João Paulo II é um enfrentou os sandinistas na Nicarágua, em 1983, e aos
desses homens. Ninguém mais fraco - a cada momento revoltosos no Chile, em 1987; sua peregrinação à Terra
julgamo-lo chegado ao limite das suas forças - e dessa Santa durante o grande Jubileu do ano 2000. Esta
fraqueza irradia uma força como jamais me lembro de mesma convicção atravessa como um fio condutor seu
ter pressentido. Ninguém mais longe do que a ideia de ensinamento.
sábio pode convocar e ninguém tão perto dessa "loucura - Do seu ponto de vista, quais foram as suas três
da Cruz" de que falam os místicos. Ninguém mais longe grandes conquistas?
da imagem que, por exemplo, guardamos do "bom Papa - Weigel: A grande questão para a Igreja Católica ao
João", mas ninguém que a cada momento nos faça sentir final do segundo milénio de sua história foi: a Igreja
que tudo o que faz o faz por amor até à imolação de pode dar uma razão coerente, convincente,
todos os seus poderes, faculdades ou dons, até a compreensiva de sua fé e de sua esperança?
imolação da sua própria função papal. João Paulo II respondeu a esta questão afirmando: com
A Igreja, e muitos dos que estão nas margens dela, o Catecismo da Igreja Católica, com seu próprio
celebraram agora o Jubileu deste Papa. Em cada uma magistério, e com sua extraordinária capacidade de dar
das suas aparições públicas, eu vi o Homem das Dores vida às convicções católicas na história, como sucedeu
ou o Homem da Fé. Muitos serão recordados por muitas durante a queda do comunismo europeu.
outras obras ou palavras ou feitos. João Paulo II será A renovação da Igreja e seu impacto no mundo
recordado pela Fé. caminham juntos. Não é fácil definir as três «grandes»
E, se tanto citei Kierkegaard, termino com palavras conquistas neste contexto, mas três êxitos emblemáticos
dele, roubadas à dedicatória do meu exemplar de neste contexto são o Catecismo, a viagem à Polónia de
"Crainte et Tremblement", na tradução francesa de P.H. junho de 1979 e o grande Jubileu do ano 2000.
Tisseau. O livro foi-nos dado, à Ana Maria e a mim, a - Alguns concílios ecuménicos e projectos de
25 de Maio de 1957, por um Amigo, que, hoje, pode reforma, como a do século XV, não saíram muito
saber melhor do que nesses verdes anos, do que copiou bem. Após a crise dos anos sessenta e setenta, pode-
e do que nos doou: se dizer que João Paulo II ajudou a salvar o
"Aquele que ama a Deus não cura de lágrimas nem de Vaticano II?
admiração. Esquece o sofrimento no amor e esquece-o - Weigel: O Vaticano II foi um concílio que não
tão completamente que nenhum traço da sua dor lhe ofereceu «chaves» de interpretação para compreender
sobreviveria se o próprio Deus não no-la lembrasse. seus ensinamentos, diferentemente de outros concílios.
Porque Deus vê no segredo, conhece a aflição, conta as Outros concílios escreveram credos, legislaram novas
lágrimas e não esquece nada". leis, condenaram heresias, elementos que constituem
Mais não digo e mais não posso dizer. «chaves» de interpretação do concílio em questão.
O Vaticano II não fez nada disto. Portanto, este
George Weigel faz um balanço dos vinte e cinco anos pontificado teve a tarefa de oferecer essas «chaves»:
deste pontificado através do próprio magistério do Papa e através do
In: Zenit 031111 trabalho realizado por vários sínodos dos bispos.
Entrevista com o autor da biografia mais completa - O Santo Padre atribui à Virgem Maria ter saído do
sobre João Paulo II atentado de 18 de maio de 1981. Como sua devoção
WASHINGTON, 11 de novembro de 2003 pela Virgem influencia este pontificado?
(ZENIT.org).- Os vinte e cinco anos de pontificado - Weigel: O Papa propôs constantemente Nossa
deram a oportunidade a George Weigel, autor da Senhora como modelo para todo discípulo de Cristo, e
biografia mais completa sobre João Paulo II -- creio que este foi seu tema mariano mais importante.
«Testemunho de esperança» - de fazer seu próprio João Paulo II parece aceitar a ideia de Hans Urs von
balanço nesta entrevista concedida a Zenit. Balthasar, segundo a qual, toda vida cristã está, em certo
Para o intelectual norte-americano, este Papa foi capaz, sentido, configurada à imagem de Maria, cujo «fiat» faz
com o seu testemunho e magistério, de dar razões para possível a Encarnação e é, por assim dizer, o início da
crer e para explicar sua fé aos católicos do século XXI. Igreja.
- Como passará à história o pontificado de João João Paulo II insiste também em que toda autêntica
Paulo II? Quais serão os pilares a serem recordados? piedade mariana está centrada em Cristo e na Trindade.
- Weigel: Creio que a história relembrará João Paulo II Como nas Bodas de Caná, Maria indica sempre para seu
como o grande testemunho cristão de nosso tempo. filho: «Fazei o que ele vos dizer»; e visto que seu filho é
Tudo o que fez para mudar o mundo e revitalizar a tanto filho de Maria como filho de Deus, ao indicar-nos
Igreja nasce deste fato. Está verdadeiramente Ele, assinala o próprio coração da Trindade.
convencido de que Jesus Cristo é a resposta à pergunta -Quais serão as tarefas decisivas dos próximos

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pontificados? crianças formaram a cruz.
- Weigel: Seguir proclamando o Evangelho, a imagem Os voluntários chegaram das paroquias do Patriarcado,
de João Paulo II; permitir que a Igreja «digira» o rico movimentos, institutos religiosos, numa contribuição
magistério deste grande pontificado; reflectir com “sempre generosa e entusiasta” que esteve na origem de
cuidado no desafio que propõe o islamismo e um resultado final surpreendente. A adesão foi tão
desenvolver a capacidade de distinguir entre o genuíno imediata que no dia 15 de Junho todos estes conjuntos já
Islã e as forças islâmicas radicais e politizadas; idealizar estavam formados.
novos laços entre o testemunho moral do papado e a “Houve um responsável por cada movimento que
diplomacia da Santa Sé. arranjou 40 pessoas, para cada conta, e esse foi o nosso
- Se João Paulo II pudesse reviver seu pontificado, canal de comunicação com os grupos. O Filipe La Féria
haveria algo que faria de outro modo? ajudou apenas na estruturação dos passos a dar – como
- Weigel: Não creio que o Santo Padre funcione desse se faz um guião, por exemplo”, revela o presidente da
modo. Suas decisões são fruto de uma oração intensa; e comissão organizadora.
põe essas decisões nas mãos do Senhor; sabe que A divulgação do acontecimento, fruto da conjugação de
renderá contas ao Senhor de sua gestão. muitas energias, foi uma das chaves do sucesso. “Com o
Assim é como vê o passado, ainda que deveria apoio das Câmaras circundantes – Lisboa, Sintra,
acrescentar que uma das características deste Papa é a Amadora, Cascais - e a de Oeiras foi possível reunir
de ser um homem decididamente orientado para o meios para dar a conhecer a iniciativa: os cartazes, os
futuro. Sempre se perguntou: o que o Espírito Santo está outdoor por estas cidades. Além disso, tanto a RR como
nos pedindo agora? a RTP disponibilizaram-se desde logo para a
transmissão em directo do Terço Vivo e isso foi
Os segredos do "Terço Vivo" importante”, revela Francisco de Andrade.
In: Ecclesia, 031030 Passadas quase duas semanas sobre a celebração, cresce
O Papa que para os portugueses é de Fátima juntou no a consciência de que se viveu um acontecimento
dia 18 de Outubro mais de 40 mil pessoas que encheram histórico. “As grandes manifestações religiosas estão
o Estádio Nacional, no Jamor, para rezar o terço e associadas a Fátima, ao 13 de Maio, pelo que foi
festejar os 25 anos de pontificado de João Paulo II, surpreendente haver uma festa dentro de Lisboa, linda e
respondendo a um convite do Patriarcado de Lisboa. O original, que encheu o coração das pessoas”, conclui.
Núncio Apostólico considerou mesmo o “Terço Vivo” a
manifestação mais bonita da Europa. Uma breve história do Rosário da Virgem Maria
Francisco de Andrade, presidente da comissão João César das Neves
organizadora, revela à In: Ecclesia, 030423
ECCLESIA que “o grande O Papa João Paulo II decidiu celebrar as suas bodas de
segredo foram mesmo os prata papais com uma oração, o Rosário da Virgem
motivos que levaram as Maria. Dado que é apenas a quarta vez na História que a
pessoas ao Estádio: celebrar Igreja celebra os 25 anos de um pontificado, (depois de
os 25 anos de Pontificado”. S. Pedro, que foi Papa do ano 32 a 67, do beato Pio IX,
A isto acrescentou-se um Papa de 16 de Junho de 1846 a 7 de Fevereiro de 1878 e
“trabalho responsável” que do seu sucessor Leão XIII, Papa de 20 de Fevereiro de
atendeu aos mais ínfimos 1878 a 20 de Julho de 1903), esta decisão tem grande
pormenores, uma “boa organização” e os meios de relevo histórico e profético.
divulgação. 1- O Nascimento do Rosário
Uma comissão permanente de treze pessoas trabalhou O Rosário é uma oração cuja origem se perde nos
desde Março, com reuniões semanais e outros encontros tempos. A tradição diz que foi revelado a S. Domingos
para organizar a celebração. Pessoas competentes nas de Gusmão (1170-1221), numa aparição de Nossa
suas áreas que trabalharam de forma profissional, Senhora, quando ele se preparava para enfrentar a
organizando secretariados, meios informáticos, heresia albigense.
comunicações e uma hierarquia de competências. Parece não haver muitas dúvidas de que o Rosário
“Foi preciso ter o cuidado de fazer tudo à medida dos nasceu para resolver um problema importante dos novos
nossos orçamentos – às tantas percebemos que já frades mendicantes. De facto, os franciscanos e
tínhamos os meios suficientes para fazer algo digno – e dominicanos estavam a introduzir um novo tipo de
começou-se a trabalhar de modo a não exagerar”, ordem religiosa no século XII, em alternativa aos
confessou o nosso entrevistado. antigos monges, sobretudo Beneditinos e Agostinhos.
A montagem do projecto contou com a colaboração de Estes, nos seus mosteiros, rezavam todos os dias os 150
muitas empresas, entidades públicas e privadas que salmos do Saltério. Mas os mendicantes não o podiam
“dando dinheiro, como no caso dos bancos, ou serviços” fazer, não só por causa da sua pobreza e estilo de vida,
ajudaram a colocar de pé a produção que todos puderam mas também porque em grande parte eram analfabetos.
testemunhar no Estádio Nacional. Assim nasceu, nos dominicanos, o Rosário, o “saltério
As imagens mais forte desse dia foram as encenações de Nossa Senhora”, a “Bíblia dos pobres”, com 150
cénicas, criadas pela comissão a partir de uma fotografia Avé-Marias. Um pouco mais tarde, em 1422, pelas
de 1950, envolvendo cinco mil voluntários. No relvado, mesmas razões, os franciscanos criaram a Coroa
2500 pessoas deram forma às contas do rosário e 400 Seráfica, uma oração muito parecida, mas com estrutura
ligeiramente diferente (tem sete mistérios, em honra das

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sete alegrias da Virgem, os mistérios Gozosos, trocando momentos da vida da Igreja. Já no fresco do Juízo Final,
a Apresentação no Templo pela Adoração dos Magos e pintado por Miguel Ângelo (1475-1564) na Capela
os dois últimos Gloriosos, acrescentando mais duas Sistina do Vaticano de 1536 a 1541, estão representadas
Avé-Marias em honra dos 72 anos da vida de Nossa duas almas a serem puxada para o céu por um Terço.
Senhora na Terra). São as almas de um africano e de um asiático,
Mas é preciso dizer que, nessa altura, não havia ainda a mostrando a universalidade missionária da oração.
Ave Maria. Já desde o século IV se usava a saudação do A 12 de Outubro de 1717, foi retirada do rio Paraíba
arcanjo S. Gabriel (Lc 1, 28) como forma de oração, uma imagem de Nossa Senhora com um Terço ao
mas só no século VII ela aparece na liturgia da festa da pescoço por três humildes pescadores, Domingos
Anunciação como antífona do Ofertório. No século XII, Martins Garcia, João Alves e Felipe Pedroso, em
precisamente com o Rosário, juntam-se as duas Guaratinguetá, São Paulo. Essa estátua, de Nossa
saudações a Maria, a de S. Gabriel e a de S. Isabel (Lc Senhora da Conceição Aparecida, foi declarada em
1, 42), tornando-se uma forma habitual de rezar. Em 1929 Rainha e Padroeira do Brasil.
1262 o Papa Urbano IV (papa de 1261-1264) A Imaculada Conceição rezou o Terço com Bernadette
acrescenta-lhes a palavra “Jesus” no fim, criando assim Soubirous (1844-1879) nas aparições de Lourdes em
a primeira parte da nossa Ave Maria. 1858. O Papa Leão XIII, “Papa do Rosário”, como lhe
Só no século XV se acrescenta a segunda parte de chama a recente Carta Apostólica do Papa (n.º 8)
súplica, tirada de uma antífona medieval. Esta fórmula, dedicou mais de 20 documentos só ao estudo desta
que é a actual, torna-se oficial com o Papa Pio V (1566- oração, incluindo 11 encíclicas.
1572). Grande reformador no espírito do concílio de Também o Beato Bártolo Longo (1841-1926) é um os
Trento (1545-1563), S. Pio V é o responsável pela grandes divulgadores do Rosário, como o refere a
publicação do Catecismo, Missal e Breviário Romanos recente Carta Apostólica (n.º 8, 15, 16, 36, 43). Antigo
surgidos do Concílio, que renovam toda a vida a Igreja. ateu, espírita e sacerdote satânico, depois da sua
Foi precisamente no Breviário Romano, em 1568, que conversão viu na intercessão de Nossa Senhora a sua
aparece pela primeira vez na oração oficial da Igreja a única hipótese de salvação. Sendo advogado, em 1872
Avé-Maria. deslocou-se à região de Pompeia por motivos
2- A Batalha de Lepanto e a festa de Nossa Senhora profissionais e ficou chocado com a pobreza,
do Rosário ignorância, superstição e imoralidade dos habitantes dos
O contributo de S. Pio V, um antigo dominicano, para a pântanos. Entregou-se a eles para o resto da vida.
história do Rosário não se fica por aqui. O grande Arranjou um quadro da Senhora do Rosário, que fez
reformador criou também o último grande momento da vários milagres e criou em 1873 a festa anual do
antiga Cristandade, a unidade dos reinos cristãos à volta Rosário, com música, corridas, fogo de artifício.
do Papa. Os turcos otomanos, depois do cerco e queda Construiu uma igreja para essa imagem, que se veio a
de Constantinopla em 1453, o fim oficial da Idade tornar no Santuário de Nossa Senhora do Rosário de
Média, e das conquistas de Suleiman, o Magnífico Pompeia. Fundou uma congregação de freiras
(1494-1566, sultão desde 1520), estavam às portas da dominicanas para educar os órfãos da cidade, escreveu
Europa. Dividida nas terríveis guerras entre católicos e livros sobre o Rosário e divulgou a devoção dos
protestantes, a velha Europa não estava em condições de «Quinze Sábados» de meditação dos mistérios.
resistir. O perigo era enorme. Outro grande momento da divulgação do Terço é, sem
Além de apelar às nações católicas para defender a dúvida, Fátima. “Rezar o Terço todos os dias” é a única
Cristandade, o Papa estabeleceu que o Santo Rosário coisa que a Senhora referiu em todas as suas seis
fosse rezado por todos os cristãos, pedindo a ajuda da aparições. A frase repete-se sucessivamente, quase
Mãe de Deus, nessa hora decisiva. Em resposta, houve como uma ladainha, manifestando bem a sua urgência e
um intenso movimento de oração por toda a Europa. importância. Na carta do Dr. Carlos de Azevedo
Finalmente, a 7 de Outubro de 1571 a frota ocidental, Mendes, num dos primeiros documentos escritos sobre
comandada por D. João de Áustria (1545-1578), teve Fátima, afirma-se “Como te disse examinei ou antes
uma retumbante vitória na batalha naval de Lepanto, ao interroguei os três em separado. Todos dizem o mesmo
largo da Grécia. Conta-se que nesse mesmo dia, a meio sem a mais pequena alteração. A base principal que de
de uma reunião com os cardeais, o Papa levantou-se, tudo, o que me dizem, deduzi é «que a aparição quer
abriu a janela e disse “Interrompamos o nosso trabalho; que se espalhe a devoção do Terço»”
a nossa grande tarefa neste momento é a de agradecer a A história do Rosário não pode terminar sem referir um
Deus pela vitória que ele acabou de dar ao exército momento decisivo desta evolução. A escolha do Papa
cristão”. João Paulo II de celebrar as suas bodas de prata
A ameaça fora vencida. Este foi o último grande feito da pontifícias com o Rosário, acrescentando-lhe os cinco
Cristandade. Mas o Papa sabia bem quem tinha ganho a mistérios luminosos, é um marco importante na
batalha. Para louvar a Vitoriosa, ele instituiu a festa devoção. Mas a ligação do Papa a esta oração não é de
litúrgica de acção de graças a Nossa Senhora das hoje, como ele mesmo diz na Carta: “Vinte e quatro
Vitórias no primeiro domingo de Outubro. Hoje ainda anos atrás, no dia 29 de Outubro de 1978, apenas duas
se celebra essa festa, com o nome de Nossa Senhora do semanas depois da minha eleição para a Sé de Pedro,
Rosário, no memorável dia de 7 de Outubro. quase numa confidência, assim me exprimia: «O
3 - O rosário até João Paulo II Rosário é a minha oração predilecta. Oração
A partir de então, o Rosário aparece em múltiplos maravilhosa! Maravilhosa na simplicidade e na

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profundidade.»”(n.º 2) o homem, mas fá-lo distanciar-se de si mesmo.
A existência perdida da essência, também levou um
O cartão amarelo cartão amarelo.
António Pinto Leite A passagem mais bonita da Bíblia é aquela em que S.
In: Expresso 040131 Pedro diz a Jesus - imaginamos nós o que lhe ia na alma
«Ao cair, aos nossos olhos, daquela maneira, Fehér - «só tu tens palavras de vida eterna».
mostrou o cartão amarelo às nossas vidas.» É este o sentido último para um crente. Mas não basta
A MORTE tão automática de Fehér, tão novo, tão vivo, esta esperança, porque ela não se basta a si própria.
coloca-nos perante o sentido da vida. É preciso que a vida que levamos seja o reflexo dessa
Face a tamanho absurdo, encenado pela natureza em esperança. É preciso lutar para que o homem usufrua da
cumplicidade com as televisões, não são apenas os sociedade que constrói e não que a sociedade, como
desportistas ou os profissionais de alto rendimento que ente abstracto, usufrua do homem.
se interrogam, todos questionam a forma como usam as O segundo amarelo será nas nossas vidas - é este o
suas vidas. sentido da morte de Fehér.
A reacção de um agnóstico será, muito possivelmente, a
de alimentar o lado da descrença de que algum ser A humanização da morte, um desafio para a formação
maior e misericordioso possa existir. cristã
A reacção de um crente será a de procurar, na ausência In: Zenit, 040115
aparente de qualquer sentido, o sentido divino desta Código: ZP04011508
tragédia humana. Entrevista com o teólogo Massimo Petrini
A morte de Fehér não foi a morte de um desportista, ROMA, quinta-feira, 15 de janeiro de 2004
nem sequer uma morte, foi a morte. Do jeito que foi e (ZENIT.org).- Para o teólogo Massimo Petrini,
da forma como fomos conduzidos a conviver com o especialista em pastoral da saúde, o tema da morte
drama, foi a morte, ela própria, que se nos impôs. deveria introduzir-se mais no caminho catequético e no
Por isso, o sentido desta tragédia está além do desporto. anúncio de esperança nas comunidades cristãs,
No mundo do desporto, a morte de Fehér irá poupar ensinando a acompanhar não só os que nos deixam, mas
outras vidas, levará a mais cautelas, mais rigor, também os que ficam.
melhores métodos, melhores medidas. No seu mundo, a Professor no Instituto Internacional de Teologia Pastoral
sua morte não foi em vão e o tempo revelará isso e Sanitária «Camillianum» e responsável do Centro para
mesmo, mostrará como por causa deste facto outras a promoção e desenvolvimento dos cuidados geriátricos
tragédias se evitarão. da Universidade do Sagrado Coração -- em Roma --,
A misteriosa lógica divina é a de construir a salvação de Petrini apresentou na quarta-feira na capital italiana seu
uns com o sofrimento de outros, numa subtil harmonia livro «La cura a la fine della vita» («Os cuidados ao
em que dificilmente nos apercebemos de quanto vale o final da vida»).
nosso sofrimento e de como o sofrimento dos outros nos Nesta entrevista concedida a «Avvenire», o teólogo
salva a nós. aborda a necessidade de fazer da morte um caminho de
O árbitro mostrou o cartão amarelo a Fehér, no instante humanização e um anúncio de esperança.
anterior à sua síncope. Esta imagem parece-me ser o - Começamos pelos anciãos. Como se enfrenta com
mais sugestivo sinal. eles o tema da morte nas comunidades cristãs?
Ao cair, aos nossos olhos, daquela maneira, Fehér - Massimo Petrini: Muitas vezes, também no âmbito
mostrou o cartão amarelo às nossas vidas. pastoral, falamos mais dos aspectos lúdicos, de como
Desde logo aos profissionais de alto rendimento, às lhes entreter. Falta uma pastoral dedicada a estes temas
vidas consumidas em trabalho, aos mecanismos da que não se limitam ao tema da morte, mas que tocam o
injusta distribuição das cargas nas mais diversas sofrimento, a aceitação das limitações.
organizações, na própria sociedade em geral. - Como fazê-lo?
A economia é a guerra dos nossos dias, o progresso é a - Massimo Petrini: Os anciãos --são actualmente os
terra prometida de hoje. Essa guerra e esse horizonte que superam os 75 anos de idade-- se dão conta de que o
não causam sangue, mas provocam vítimas. Cabe, por horizonte se reduziu, a morte faz de fundo. Devemos ter
isso, uma pergunta celebrizada: na guerra da economia, o valor de enfrentar o tema também desde o ponto de
na lógica competitiva do progresso material, quanto vale vista religioso.
a vida de um homem? - Existe uma antiga tradição de piedade popular e
O trambolhão de Fehér foi um cartão amarelo para as acompanhamento à «boa morte»…
vidas loucas, para o «stress» em especial, como foi para - Massimo Petrini: Sem julgar o passado, a pastoral de
uma sociedade de vencedores que negligencia os seus séculos anteriores era de tipo «obsessivo», baseada no
vencidos. juízo, nos aspectos mais negros da morte. Deveríamos
Também a família, os laços de afecto, as velhas ao contrário começar a lê-la na chave da misericórdia e
amizades por viver, o tempo para os mais velhos, o dar da esperança cristã. A pessoa que morre deve conseguir
e o dar-se, tudo se questiona: que fazemos nós de nós aceitar sua vida e relê-la nessa chave.
próprios, separados como podemos estar da nossa - Como interagir entre comunidades cristãs e lugares
oportunidade por uns segundos de vida? onde se morre: hospitais, residências?
Finalmente, o consumismo, o materialismo, o sucesso - Massimo Petrini: Ainda hoje na realidade muitos
virtual, o parecer e o ter no lugar do ser, a sensação de enfermos oncológicos e pessoas muito anciãs estão em
impotência perante um modelo de sociedade que seduz

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casa. Portanto é importante que também a paróquia mesmas características e o mesmo anonimato. Aquele
tome consciência destes problemas, enquanto estamos ser, que fazia parte de uma legião enorme que pairava
ligados à figura dos capelães dos hospitais e das no Céu à espera das ordens do Criador, passeava-se por
instituições. entre as pessoas, convivia, dava-se a conhecer. A sua
- Como formar leigos e sacerdotes? missão, como a de todos os outros, era clara – mas
- Massimo Petrini: Se queremos levar adiante uma discreta. Se pudesse falar abertamente sobre aquilo que
pastoral realista, devemos introduzir estes temas o tinha trazido a Litores, Éz diria alto e em bom som:
«desagradáveis» em todo tipo de catequese, conforme a “Olhem bem para mim e sintam a presença de Deus”.
cada idade e categoria. Certamente não existem só Só que as instruções eram em sentido contrário: não
morte e dor. Mas entre muitas motivações pastorais, há revelar, nunca, a razão de ser do seu aparecimento.
que dar a estes temas maior atenção. Também os Cabia aos habitantes de Litores perceberem o que
sacerdotes e religiosos necessitam começar já desde no aquele anjo, que era em tudo idêntico a todos os outros
seminário a enfrentá-os. Por exemplo, prevendo que os habitantes, fazia naquela comunidade. E tinham de ser
seminaristas frequentem por alguns períodos hospitais eles, na liberdade que Deus lhes tinha dado, a
ou instituições assistenciais. Seria um caminho de descobrirem a sua verdadeira missão.
humanização. E foi assim que Éz viveu em Litores durante algum
- Em que sentido? tempo, o bastante para criar laços por quem vivia à sua
- Massimo Petrini: Vejo a morte como um processo de volta e o bastante, também, para que a comunidade se
humanização. Faz que cresçamos e cria um fator habituasse à sua presença e lhe tivesse ganho afeição.
unificador: se descobre a humanidade comum. São Na sua ingenuidade e na sua pureza o anjo não se
temas que certamente não se podem exaltar, mas se apercebia que a vida daquela localidade não se tinha
conseguimos falar deles, conseguimos humanizar o alterado grandemente. Quem aparecia de novo era
ambiente, mais além da exclusão e de nossa celebrado, porque as pessoas sentiam de alguma forma
«representação» diária. uma renovação da vida e uma continuidade garantida.
- Questão distinta é quando morre uma criança ou No entanto, Éz não tinha provocado grandes mudanças
um jovem… a ninguém, para além de uma felicidade normal e
- Massimo Petrini: Não se deve olhar tanto a idade, corriqueira. Nada onde se sentisse indelevelmente a
mas ver a morte de uma pessoa como o final de sua presença de Deus. Éz não pensava nisso e Litores
resposta a uma vocação. Também uma criança, em também não. Os dias corriam fagueiros, as estações
poucos meses de vida, de forma misteriosa respondeu à repetiam-se suavemente e a seguir a uma tempestade
vocação que Deus lhe havia confiado. continuava a vir uma bonança. Não era, claramente, em
- Como fazer de um funeral um momento de momentos de calmaria que se veriam as mentes
proximidade com quem sofre? inquietas.
- Massimo Petrini: No funeral, as pessoas ainda não se Chegou o tempo, então, em que Éz teve de voltar para
dão conta da perda. Todos estão ao redor. O problema casa. Era a altura do regresso, que provocava em todas
surge com a volta à casa. A proximidade no luto, do que as comunidades onde os anjos pairavam um sentimento
hoje suprimimos os sinais, forma parte do de pena. Litores não fugiu à regra e os habitantes mais
acompanhamento. Devemos ajudar a comunidade a ilustres deram a mão a Éz enquanto ele partia e subia
pensar que os primeiros seis meses constituem um em direcção à Distância. Cá em baixo, aqueles que
período no qual se deve prestar maior atenção e escuta tinham convivido com o anjo não percebiam a sua
ao que fica. partida e questionavam aquela decisão. Havia mesmo
quem tivesse alguma irritação ou se questionasse sobre
Éz, o anjo a felicidade de Éz no regresso. Muitos, talvez mesmo a
Um conto de João Bragança maioria, tinham-se habituado à presença diária do anjo e
O mundo não era, claramente, perfeito, mas havia, aqui iriam sentir a sua falta. Era uma pena mansa e
e ali, pequenos oásis de satisfação, de boa disposição, de sossegada, feita muitas vezes da resignação perante as
optimismo. Aquela terra, Litores, não era diferente de agruras da vida. Sentimentos mistos e díspares, fruto da
muitas outras. Os seus habitantes viviam uma felicidade diferença saudável entre as pessoas, resultado de estados
comedida, feita de uma mistura saudável de problemas e de alma diferentes. Na sua mente impoluta, o anjo
alegrias, sucessos e fracassos, avanços e recuos. A vida também se questionava porque tinha de partir, de deixar
corria de tal maneira suave que os seus habitantes se aquela Litores amável e pacata, para retornar a uma
esqueciam, muitas vezes, de agradecer a Deus tudo o Origem de que já só se lembrava por aquilo que via nos
que tinham. Como se a Fé intensa fosse algo reservado livros.
para os que eram marcados por algum chamamento Éz subia, e na eternidade daquela viagem a vida passou-
divino ou por um gosto invulgar pela oração. Como se o lhe pelos olhos, pelo coração, pelo sentimento. No fim
simples acto de agradecer não tivesse de estar em da subida, com o corpo e a alma em descanso, o anjo
permanência no coração dos Homens. Era uma terra caiu na terra mais bonita que alguma vez tinha visto,
sem história, como o são as terras felizes. com uma luz tão suave que lhe pareceu irreal. Numa
Um dia, um anjo, que Nosso Senhor decidiu baptizar fracção de segundo viu uma infinidade de anjos iguais a
com o nome de Éz, desceu a Litores. Não era, por certo, si, numa brincadeira feliz e saudável. Ao pé de cada um
uma situação rara – nem mesmo fora do comum. Muitos pareceu-lhe ver uma pessoa e achou estranho, porque
outros seres iguais desciam a terras semelhantes com as sentia que era a mesma pessoa repetida infinitas vezes.

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Quando os seus olhos se habituaram àquela luz celeste individual e em grupo - nunca mais seria igual. Tudo
percebeu que era Nossa Senhora que se desdobrava estava bem.
numa igual para cada anjo que chegava àquele local.
Sorriu de contentamento e pensou: “Caramba! Nossa Somos todos limitados. E então?
Senhora só para mim”. Ainda não tinha acabado o Giancarlo Cessana
pensamento e já estava rodeado de anjos, cada um com In: Passos nº 41
o seu nome, numa algazarra de boas vindas e numa Somos limitados. E quem não o é? Alguns de maneira
solicitação para jogos e saltos. Antes de ser envolvido mais evidente; outros, menos. A única superação
naquela voragem só teve tempo para um pensamento de verdadeira dessa condição humana é o amor de um
enorme felicidade. “Estou no Céu!” outro para connosco. Mas o outro também...
Cá em baixo, em Litores, passado o momento do Sou um expert em limite, não no sentido de uma
sentimento pela partida de Éz, as pessoas começaram a competência particular sobre as deficiências físicas, mas
olhar umas para as outras. Em pequenos grupos, feitos no sentido em que sou limitado. O limite é
segundo a proximidade das amizades e a semelhança de intransponível: além de um ponto não conseguimos
pensamentos, conversavam e questionavam-se sobre a prosseguir. È claro que podemos fazer a experiência de
partida do anjo. O tema principal era, seguramente, a superar alguma coisa, mas o limite trata-se de nos
partida do anjo. Porquê nesta altura, porquê desta forma, aproximarmos de um limiar que, no final, é
porquê Éz. Os habitantes mais ilustres, aqueles que intransponível. Pensar que esse limiar seja infinitamente
tinham segurado a mão daquele ser celeste enquanto ele possível superar, quer dizer, pensar que o homem seja
partia, resignavam-se na sua Fé, aceitando que os infinito: é o pensamento dominante e superficial da
desígnios de Deus nem sempre eram entendidos. A sua nossa sociedade, mas a experiência quotidiana mostra
confiança era, no entanto, suficiente, para sentirem o que isso não é verdadeiro; somos todos limitados, mas
sossego necessário – Éz deveria estar num lugar bom e não pode ser o limite a definir-nos. Se assim fosse,
aprazível. Foi neste clima, feito de ideias diversas, que a todos deveríamos parar num certo ponto, além do qual
vida em Litores continuou. não teríamos esperança e ao qual, cedo ou tarde, todos
Um dia, que ninguém sabe precisar qual, nem mesmo chegamos: a morte.
afiançar que foi o mesmo para todos, os habitantes de Se eu sou o homem mais feio do mundo, mas sou
Litores tiveram um sonho. Nessa fantasia nocturna o amado pela mulher mais bonita do mundo, não é
anjo aparecia, sorridente, sossegado, com aquele estado problema para mim ser o homem mais feio. Isso não
de alma próprio dos Escolhidos. Era numa imagem me incomoda porque sou feito objecto da coisa que me
infantil, inocente e risonha que Éz perguntava: “Toda a é mais cara, que é o amor de um outro. Então, a única
gente questiona a minha partida. Uns zangam-se, outros superação verdadeira do limite é o amor de um outro.
estão tristes, outros conformados. Por que razão Litores Assim, se sou um bebé que tem o síndroma de Dowm e
pergunta tanto porque é que eu parti, e ninguém tenho pais que me querem bem, cresço feliz; mas se os
pergunta porque é que eu cheguei? Será que ninguém meus pais têm dúvidas em relação a mim, cresço infeliz.
consegue perceber o motivo da minha ida à Terra?” Aquilo que vence o limite é o amor, o acolhimento, a
Passados os momentos de espanto, os habitantes hospitalidade: alguém que nos aceite tal como somos.
daquela terra, que tinha vivido pacata e sossegada, Nós somos tão limitados que, para podermos viver,
começaram a inquietar-se, naquele sobressalto saudável precisamos de um outro. Todos os homens, de facto,
que aviva as mentes e aquece os corações, e começaram esforçam-se por serem reconhecidos - para que os
a perceber, lentamente, que algo nas suas vidas tinha outros digam: gosto de si, porque você é capaz - porque
mudado. Havia quem vivesse com mais Fé, havia percebem profundamente a questão do próprio limite,
amizades que tinham nascido, amizades que tinham isto é, que a realização da vida está num outro . Quando
crescido. Havia quem se lembrasse da partida de Éz e mais somos limitados, tanto mais temos necessidade de
quisesse conviver com outros anjos, ajudar os que um outro e tanto mais essa necessidade se manifesta em
precisavam. Havia quem sentisse que tinha de dar outro termos evidentes: não só físicos, mas também de
sentido à vida. Pairava naquela comunidade o natureza psicológica, existencial e afectiva.
sentimento de que tinham sido tocados por qualquer Quem realiza o desejo?
coisa e esse algo era mais importante porque não era Mas todo o problema da vida é que o outro que nos
material, não se podia tocar com os dedos, sentir o satisfaz também é limitado. Também em ti, a quem eu
cheiro. Agora sim, percebiam o que o anjo tinha vindo digo “Amo-te”, o limite emerge de forma potente.
fazer a Litores, qual tinha sido a sua verdadeira missão. Também, o outro não basta. Jeremias disse: “Maldito o
Muitos realizaram que o grande desafio das suas vidas homem que confia no homem“. O problema, então é:
era encontrar o amor de Deus nos gestos mais simples, quem cumpre, e como cumpre, o nosso desejo de
nos momentos mais pequenos ou nas manifestações realização? Há alguém que vence? Porque, se existe ,
mais modestas. Não só aquele amor que encontramos dedicarei a ele toda minha vida.
nos sucessos e nas alegrias, mas também o que sentimos Devo pedir ajuda a outra pessoa, apoiar-me em alguém.
quando o percurso é adverso e o futuro é tristonho. Pedir. Como diz o Papa, devo rezar, ajoelhar-me.
Nada acontece por acaso. Há um tempo para tudo na A coisa mais importante é ter amigos, alguém que nos
vida. queira bem. Um grande educador é alguém que provoca
Foi com um sentimento de reconforto que regressaram a pessoa na sua totalidade. Aquilo que provoca a
todos às suas casas. A vida dos habitantes de Litores – liberdade chama-se verdade. A liberdade é provocada
pela verdade, não pela psicologia. Deste ponto de vista,

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uma pessoa que tenha uma certeza afectiva, isto é, que «O ser humano, de fato, independentemente das
seja capaz de mantê-la, vale dez vezes mais como condições em que desenvolve sua vida e das
educadora do que alguém que seja afectivamente capacidades que têm, possui uma dignidade única e um
incerto. valor singular a partir do início de sua existência até o
Uma condição para compartilhar momento da morte natural», declara a ampla mensagem.
Pensar que o limite não existe, pensar-se infinito, «A pessoa do deficiente, com todas as suas limitações e
ilimitado: este é o maior limite de todos os sofrimentos, nos obriga a perguntar-nos, com respeito e
relacionamentos humanos, sobretudo daqueles mais sabedoria, sobre o mistério do homem», reconhece o
próximos. Quando alguém diz à pessoa amada “para bispo de Roma.
sempre”, as possibilidades são duas: ou se faz isso de «Quando mais nos adentramos nas zonas obscuras e
um modo errado por meio do qual se deseja algo que é desconhecidas da realidade humana, mais se pode
impossível, ou existe alguém que pode fazer conseguir compreender que precisamente nas situações mais
aquilo que é impossível. Cristo, para os que crêem, é a difíceis e inquietantes emerge a dignidade e a grandeza
resposta ao facto de que aquilo que parece impossível do ser humano», sublinha.
conseguir é alcançável. Quer dizer, a vida é mais forte «A humanidade ferida do deficiente nos desafia a
do que a morte, porque um homem venceu a morte reconhecer, acolher e promover em cada um destes
prometendo essa vitória para nós e essa é a razão pela irmãos o valor incomparável do ser humano criado por
qual eu sou cristão, uma vez que é a única hipótese Deus», explica o texto pontifício.
positiva em resposta àquilo que eu desejo .O grande «A qualidade da vida dentro de uma comunidade é
limite de hoje é a distracção em relação ao facto medida, em boa parte, pelo compromisso na assistência
fundamental, que é a experiência do próprio limite. Um aos mais fracos e aos mais necessitados e no respeito à
homem que não entende que é limitado, é perigoso para sua dignidade de homens e de mulheres», declara.
os outros. Como é possível alguém não ser dar conta de «O mundo dos direitos não pode ser somente
que é limitado? prerrogativa dos sãos --insiste--. É preciso facilitar a
Basta reduzir os desejos. Se eu reduzo os desejos àquilo participação da pessoa com deficiência, na medida do
que cada um pode efectivamente ter - por exemplo, se possível, na vida da sociedade. Ela deve ser ajudada a
vos convenço que devem trabalhar, ir a discotecas, desenvolver todas as suas potencialidades de ordem
“permitir-se alguns prazeres” de vez em quando, física, psíquica e espiritual».
procurar mulheres, etc - , se eu vos convenço que «Uma sociedade que desse unicamente espaço aos
podem preencher a vossa vida assim, não tereis mais a membros plenamente funcionais, totalmente autónomos
ideia do limite, enquanto tudo correr bem convosco. e independentes, não seria uma sociedade digna do ser
Vivemos numa sociedade que reduz o desejo a algo que humano», afirma taxativamente.
se pode calcular. Ao contrário, o desejo profundo do «A discriminação em virtude da eficiência não é menos
homem é o desejo de infinito, o desejo de não sucumbir condenável que a que se realiza em virtude da raça ou
a este limite. O limite é a nossa condição humana a ser do sexo ou da religião», explica.
compartilhada: este é o único modo pelo qual é possível Ao mesmo tempo, reconhece que «há uma forma subtil
respeitar também as pessoas que tenham limites de discriminação nas políticas e nos projectos
aparentemente mais evidentes do que os outros. educativos que tratam de ocultar ou negar as
deficiências de determinadas pessoas, propondo estilos
Qualidade de vida de uma sociedade é medida pela de vida e objectivos que não correspondem à sua
atenção dada aos deficientes realidade e que ao final são frustrantes e injustos».
In: Zenit 040108 «O reconhecimento dos direitos deve ser seguido,
Afirma o Papa numa mensagem dedicada ao tema da portanto, de um compromisso sincero de todos para
deficiência mental criar condições concretas de vida, estruturas de apoio,
CIDADE DO VATICANO, quinta-feira, 8 de janeiro de garantias jurídicas capazes de responder às necessidades
2004 (ZENIT.org).- A qualidade de vida de uma e às dinâmicas de crescimento da pessoa deficiente e
comunidade é medida pela assistência que oferece aos daqueles que compartilham sua situação, a partir de seus
mais fracos, em particular aos deficientes, afirma João familiares», pede o documento papal.
Paulo II. «As pessoas com deficiência mental têm talvez mais
O pontífice dedicou a esse tema uma mensagem enviada necessidade de atenção, de carinho, de compreensão e
aos participantes do Simpósio Internacional sobre de amor --constata--: não se lhes pode deixar sós, inertes
«Dignidade da pessoa com deficiências mentais», que é ou desprotegidos, na difícil tarefa de enfrentar a vida».
celebrado no Vaticano de 7 a 9 de janeiro por iniciativa
Mão da esperança
da Congregação para a Doutrina da Fé.
A iniciativa acontece no encerramento do «Ano europeu In: APMV, 031218
das pessoas deficientes». Lembram-se da foto que circulou pela Internet há alguns
No texto, o Papa começa ilustrando a visão cristã sobre anos, de um bebé que numa cirurgia agarrou a mão do
o assunto: «a pessoa deficiente, inclusive quando está médico?
ferida na mente ou em suas capacidades sensoriais e Agora podem ver o caso por inteiro (o bebé chama-se
intelectuais, é um sujeito plenamente humano, com os Samuel Alexander Armas). Durante a gravidez da mãe,
direitos sagrados e inalienáveis próprios de toda foi diagnosticado que o bebé tinha a coluna vertebral
criatura». fissurada e não sobreviveria se não fosse operado ainda

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no útero da mãe. Ele tinha apenas 21 semanas. desloca-se, então, para saber a partir de que momento o
Julie Armas, a mãe do pequeno Samuel, ficou a saber feto merece ser protegido como vida humana. Com todo
que poderia realizar esse tipo de procedimento cirúrgico o respeito pelos que pensam de maneira diferente, é
de elevado risco no seu bebé. artificial e mesmo arbitrário marcar x ou y semanas para
Durante o procedi- esse ponto a partir do qual passaria a haver pessoa. Só
mento, o médico há uma resposta lógica: desde o princípio, desde a
retirou o útero do concepção.
abdomem da mãe e Dantes, quando apenas no momento do parto se sabia se
fez uma pequena nascia menino ou menina, a vida intra-uterina era
incisão para poder ignorada. Hoje, com as ecografias feitas logo no início
operar o bebé. da gravidez e com todos os meios disponíveis para
Quando o Dr. Bruner seguir o desenvolvimento do feto, existe uma nova
estava a terminar a consciência quanto ao ser que ali cresce. Muitos jovens
cirurgia, o bebé surpreendentemente estendeu a sua pais e mães valorizam essas imagens: para eles, são
pequenina mão pela incisão do útero ainda aberta e «fotografias» de filhos seus. E já se fazem operações a
agarrou a mão do cirurgião com firmeza. fetos na barriga das mães. Parece cada vez mais
Um fotógrafo registou inverosímil considerar «aquilo» apenas um monte de
esse acontecimento células - como lhe chamaram num debate na RTP.
impressionante com
perfeita nitidez. Os A guerra dos nascidos contra os não-nascidos
editores nomearam a Nelson Pereira, em Belgrado
foto como "Mão da correio@oindependente.pt
In: o Independente, 040206
Esperança".
O texto a seguir, Em 26 anos, Stojan Adasevic fez entre 48 a 62 mil
conforme publicado, explica as fotos: "A pequena mão abortos. Tudo mudou na sua vida quando descobriu que
do bebé de 21 semanas, Samuel Alexanders Armas, ele mesmo era resultado de um aborto falhado. Nos seus
emerge do útero de sua mãe para agarrar o dedo do Dr. sonhos passaram a surgir crianças. Que não
Joseph Bruner como se estivesse agradecendo ao sobreviveram para sonhar
médico pela sua vida." Stojan Adasevic foi durante anos o médico que mais
A mãe do pequeno Samuel diz que eles "choraram por abortos fez em Belgrado: "0 segredo do meu sucesso
dias" quando viram a foto. Ela disse: "A foto lembra- estava no treino dos dedos com frequentes abortos.
nos que a minha gravidez não tinha nada a ver com Fazia uma média de 20 por dia. 0 meu recorde foram
deficiência ou doença, mas sim com o dom de dar a vida 35." Ao todo, calcula ter realizado, em 26 anos de
a um pequeno ser prática, entre 48 mil a 62 mil abortos. Tudo mudou
humano." quando sonhos começaram a persegui-lo.
Samuel nasceu com Durante muitos anos esteve convencido de que o aborto
perfeita saúde no dia era uma operação cirúrgica como tantas outras,
2/12/1999. A comparável à extração do apêndice (como ensinavam os
operação foi 100% manuais). Era considerado um especialista na prática do
bem sucedida. Agora aborto, o melhor em Belgrado. Nunca fugia a uma
veja as fotos do acto operação difícil e orgulhava-se de conseguir sucessos
cirúrgico e da criança onde outros médicos falhavam.
alguns meses depois! Um dos grandes paradoxos, da vida de Adasevic é que
ele próprio está entre os vivos graças a um aborto
Aborto falhado. Nos tempos de estudante escutou uma conversa
entre ginecologistas. Um deles, Rado Ignatovic, contava
Francisco Sarsfield Cabral
In: DN040210 como tinha falhado um aborto por não ter conseguido
Repita-se uma vez mais: o problema do aborto não é dobrar o colo do útero. Quando ouviu que a mulher em
religioso, é moral. A crença religiosa pesa, por exemplo, questão era dentista na clnica mais próxima, Adasevic
em questões como o suicídio. Quem acredita que a sua ficou a saber que a criança era ele próprio. Mais tarde
vida é um dom de Deus não se sente autorizado a pôr este facto fê-lo chegar à conclusão de que participava
termo a algo que lhe não pertence, nem a ajudar outros a numa guerra global dos nascidos contra os não-
fazê-lo. Fora desta perspectiva religiosa, o suicídio é nascidos, mas durante anos orgulhou-se de superar, na
aprovado por éticas de grande dignidade, como a prática do aborto, outros médicos que na altura
estóica. classificava de incompetentes.
No aborto, o caso é outro. Se está aí em jogo uma outra As primeiras dúvidas surgiram, nos anos 80, quando
vida, a da criança que ainda não nasceu, então é entraram nos hospitais jugoslavos os primeiros
obrigação moral respeitá-la e dever jurídico protegê-la, aparelhos de ecografia. Adasevic viu então pela
como a qualquer vida humana. Ou não se tratará de uma primeira vez aquilo que se passava dentro do ventre da
vida humana? Essa é, claro, a controvérsia. Decerto que, mulher (a criança que mexia os pés e as mãos,
vivendo na barriga da mãe, a criança que vai nascer não momentos depois estava em pedaços na mesa de
possui autonomia. Mas um bebé já nascido, com operação. " Mas mesmo assim, via sem ver. Só quando
semanas ou meses, também não a possui. A questão começaram a persegui-rme sonhos é que tudo mudou",

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recorda hoje em conversa com o Independente. filha foi despedida e o filho não foi admitido na
O sonho do doutor Adasevic. Uma noite, Stojan universidade. Os ataques sucediam-se nos meios de
Adasevic sonhou que caminhava num campo cheio de comunicação social. Graças a uma iniciativa sua, no
flores e iluminado, por um sol brilhante. À sua volta via princípio dos anos 90, o parlamento jugoslavo aprovou
inúmeras flores de grande beleza e borboletas coloridas. uma nova lei que protegia a vida dos não-nascidos. Mas
Era um dia quente e agradável. A certo momento, o o presidente Slobodan Milosevic não a assinou e depois
campo, encheu-se de crianças, sorridentes, que corriam deflagrou a guerra. Hoje, na Sérvia a maioria dos
e brincavam. Alguns dos rostos pareciam-1he abortos é praticada em dinicas privadas. A lei em vigor
conhecidos, mas não conseguia recordar de onde. permite fazer o aborto até ao nono mês de gravidez.
Tentou falar com as crianças, mas quando estas o viram, Adasevic cita a Madre Teresa de Calcutá: "Se uma mãe
fugiram, apavoradas. A alguma distâcia, um homem pode matar um filho seu, que nos impede, a mim e a ti,
vestido com um hábito negro olhava-o em silêncio. 0 de nos matarmos um ao outro?"
sonho repetia-se e cada noite o ginecologista acordava Vindo de uma tradição ortodoxa, o ginecologista sérvio
coberto em suores, incapaz de voltar a adormecer. nunca tinha ouvido falar de Tomás de Aquino. Há
Num destes sonhos, gritou às crianças: "Não pisem as pouco tempo começou a ler as obras do santo católico,
flores! "Fugiram, como das outras vezes, mas uma delas tentando descobrir por que razão apareceu nos sonhos
voltou-se para ele e respondeu: "Vês as flores pisadas e que mudaram a sua vida. Encontrou a explicação nos
não vês o teu pecado?" Na noite seguinte conseguiu textos em que aquele escreve que a vida humana tem o
agarrar uma das criancas, mas esta começou a gritar: seu princípio 40 dias após a concepção, no caso, de um
"Ajudem-me! Assassino! Libertem-me do assassino! " 0 embrião masculino, e oitenta dias depois, no caso de um
homem de negro apareceu do ar como uma águia e embrião feminino. "Estou convencido de que aquilo que
arrancou-lhe a criança das mãos. Adasevic acordou com Tomás de Aquino escreveu não o deixa estar em paz
o coração aos saltos. Quando amanheceu foi marcar onde se encontra. E ainda bem, pois graças a isso veio
consulta num psiquiatra. intrometer-se no meu caminho."
Decidiu que nessa noite tentaria falar ao monge de
negro. E assim fez. Perguntou-1he quem era, ao que O Cartão-de-visita de Madre Teresa de Calcutá
aquele respondeu: "0 meu nome não te diz nada." MÁRIO PINTO
Adasevic insistiu, e ouviu então: "Chamam-me Tomás In: Público, Segunda-feira, 10 de Novembro de 2003
de Aquino", un nome que na altura realmente 1. Conhecer melhor a vida das personagens fascinantes
desconhecia. "E porque não perguntas, quem são estas foi sempre sedutor, e daí resultaram milhares de
crianças?", continuou, "Não os conheces? Eles biografias e retratos históricos. Madre Teresa de Calcutá
conhecem-te muito bem: são as crianças que mataste foi uma das personagens mais fascinantes do nosso
pelo aborto." 0 médico lembrou-se então com quem tempo. Tenho andado a ler um excelente livro sobre
eram parecidas as crianças que pensara ter reconhecido Madre Teresa, intitulado (traduzindo) «Um caminho
nos sonhos: um dos rapazes e duas raparigas eram muito muito simples». O título quer significar qual seja,
parecidos com amigos seus aos quais fez abortos. obviamente em síntese, o seu caminho espiritual.
Quando acordou, decidiu que nunca mais participaria Fazer uma tal síntese não é por definição coisa simples.
em, interrupçõs voluntárias da gravidez. Mas da vida de grandes figuras de cristãos foi possível
Mas ao chegar ao hospital nessa manhã, tinha à sua apurar, segundo os seus melhores biógrafos, uma
espera um primo com a sua mulher, no quarto mês de especial iluminação de espiritualidade, que muitas vezes
gravidez. Tinham operação marcada e não aceitaram se tornou radiante logo no seu tempo e se veio a
que não os ajudasse" (afinal, eram da família). Como discernir ainda mais claramente depois. Por exemplo.
um autómato, o ginecologista começou o aborto. Para S. Bento, o lema «ora et labora» foi não apenas
Quando, a certa altura, tirou a pinça, tinha à sua frente uma regra monástica para os monjes, mas além disso
uma pequena mão. Depois da mão, uma perna. Com os uma espécie de profecia civilizacional. Para S. Fancisco
nervos, em franja, o médico decidiu moer dentro, do de Assis, toda a gente sabe como o seu ideal de
útero o que restava. E, convencido de estar apenas a testemunho evangélico por uma vida de extrema
extrair uma massa informe, distinguiu na ponta da pinça pobreza, humildade e amor sem limites nem exclusões
um pequeno coração com as ú1timas pulsações ainda foi chocante para os costumes do seu tempo. Com o seu
visíveis. Nesse momento, Adasevic perdeu os sentidos. «pequeno atalho, o ascensor divino da confiança», Santa
Quando recuperou a consciência, percebeu que a sua Teresinha do Menino Jesus de certo modo contrariou a
familiar estava em perigo, a esvair-se em sangue. espiritualidade então dominante, cheia de
Conseguiu evitar-1he a morte, mas percebeu nesse dia complexidades e durezas ascéticas, e influenciou uma
de 1988 que tinha matado com as suas mãos milhares de grande mudança. Pois bem, para Madre Teresa, talvez
seres huananos, como matara há momentos a criança se possa já adiantar uma síntese semelhante.
dos seus primos. 2. O livro a que me referi foi proposto a Madre Teresa,
A missão do monge. 0 homem que tinha conseguido ser que recusou, e só depois de longas insistências
conhecido em toda a Belgrado como o melhor concedeu uma certa solução, que vem descrita logo a
especialista em abortos, viu as portas todas fecharem-se abrir. Sobre o seu caminho, terá respondido: «eu posso
quando disse no hospital que nunca mais faria nenhum. falar do meu caminho, mas a verdade é que eu sou
Para Stojan Adasevic começaram tempos difíceis: foi apenas um pequeno fio; a corrente é Deus. Se quereis
acusado de sabotador, cortaram-1he metade do salário, a saber acerca disso, falai aos outros, às irmãs, aos
irmãos, às pessoas que trabalham com eles. Alguns não

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são cristãos, mas falem com todos. Quando virem, servidor dá apenas algo ou alguma coisa, mas não se dá
poderão compreender de que se trata. É muito belo». a si próprio e por isso exclui do seu acto a plena
De acordo com a sugestão da Madre, os autores comunhão também divina, que é amor entre pessoas.
materiais do livro entrevistaram e acompanharam, 7. Fruto do serviço, quando pleno, é a paz. A paz é o
paciente e longamente, não apenas a ela própria, mas às fruto que resume todos os bens espirituais. Jesus Cristo,
Irmãs da Caridade e a muitos colaboradores e pessoas depois de ressuscitar, saudava sempre os discípulos
próximas. Por si mesmos viram, ouviram e sentiram. dizendo: a paz esteja convosco. Essa paz de Jesus não é
Nesse sentido, o resultado do livro é a sua captação do apenas a nossa paz humana; é a paz dos que gozam da
que Madre Teresa fazia, dizia e ensinava, numa plena felicidade. Logo, a paz é o sumo bem, e só pode
poderosa irradiação à sua volta. Contudo, a síntese final entender-se assim no cartão de visita de Madre Teresa.
acabou por se fazer numa fórmula que, ao fim e ao 8. É a evidência impressionante das obras de Madre
cabo, é da autoria de Madre Teresa. Teresa e das Irmãs da Caridade, da sua radicalidade e
Tinha ela um costume muito conhecido: o de dar às completude, que nos obriga a interrogar acerca da
pessoas com quem se encontrava um cartão, a que misteriosa força interior no seu espírito. Com o seu
chamava o seu cartão-de-visita. Nesse cartão, em vez do cartão-de-visita, Madre Teresa quis dar-nos uma chave
nome e morada, continham-se as seguintes cinco do seu segredo.
afirmações: o fruto do silêncio é a oração; o fruto da
oração é a fé; o fruto da fé é o amor; o fruto do amor é o O Suave Milagre
serviço; o fruto do serviço é a paz. Ora, foi sobre esta JOAQUIM FIDALGO
síntese que o livro veio a ser escrito, em capítulos In: Público, 22 de Outubro de 2003
correspondentes às cinco afirmações. Sobre cada uma Eu peço desculpa por me meter onde sou pouco
delas, deixarei aqui uma brevíssima reflexão. chamado, mas, cá por mim, não deviam ser obrigatórios
3. O cartão de Madre Teresa, ao dizer-nos que o fruto os 'milagres certificados' para se fazer de uma pessoa
do silêncio é a oração, coloca implicitamente em santa. Primeiro, porque ele há milagres e milagres.
primeiro lugar o silêncio: antes de tudo, põe-te à escuta Depois, porque se calhar nem todos os santos fazem
de Deus, propõe ela. É uma interpelação de muita milagres, ou vice-versa. Enfim, porque essa exigência
autoridade, porque provém de alguém que nunca poderá regulamentar desvia-nos a atenção do essencial e cria
ser acusada de intimismo ou de espiritualismo polémicas absolutamente desnecessárias - para não dizer
desencarnado. No nosso tempo, o silêncio é quase injustas.
insuportável. Para Madre Teresa, o silêncio é Será que a madre Teresa de Calcutá precisava de um
indispensável, e criou mesmo uma ramo contemplativo "milagre certificado" para ser considerada, e
na sua ordem. De si própria dizia que começava sempre proclamada, como exemplo maior de amor ao próximo
a sua oração pelo silêncio. A nós é-nos indispensável (sobretudo ao próximo pobre, sujo, doente e
falar a Deus por orações vocais, e falar d'Ele por abandonado, que é um próximo sempre mais difícil de
orações pastorais. O que Madre Teresa nos diz é que é amar...), de generosidade, de dedicação aos mais
necessário manter a precedência da voz de Deus. esquecidos, de trabalho contra a exclusão, de altruísmo,
4. O fruto da oração é a fé, um dom que nos liga de quase tudo o que é bonito e bom pelo meio desta
directamente a Deus. Por isso lhe chamamos teologal. nossa vida de humanos? Ou seja, santa? Era preciso
Supõe, porém, o nosso desejo e a colaboração da nossa que, neste tempo justo da sua consagração - já iniciado,
liberdade. Depois de recebida, a fé é por nós exercitada convém não esquecer, quando ela ainda estava viva,
«ao modo humano», como ensinou S. Tomás de actuante, real, sem sombra de mito -, andem agora
Aquino. Por isso lhe chamamos virtude, ou seja, médicos e afins, crentes e não crentes, e mais o tribunal
«hábito». No cartãozinho de Madre Teresa, a oração é do Vaticano, a discutir se a tal senhora indiana se curou
portanto o degrau para recebermos o dom da fé e depois do cancro com favores sobrenaturais da madre Teresa
exercitarmos a respectiva virtude. Eis aqui uma grande ou graças aos tratamentos hospitalares? Era mesmo
notícia para aqueles que desejam ter fé. preciso ter um documento formal, legal, científico, para
5. A fé dá o fruto do amor. A fé é a primeira; a caridade supostamente elevar aos olhos da igreja uma mulher
é a terceira e a maior das virtudes teologais, como nos que, durante anos e anos, foi o que sabemos que foi? É
diz S. Paulo. A fé sem obras é morta, é incompleta. O esse "milagre certificado" (um milagre à vista dos olhos,
fruto de uma fé que o crente exercita só pode ser a não apenas à vista do coração...) que faz a madre Teresa
plenitude das virtudes teologais, a qual se consuma no de Calcutá mais santa, mais nobre, mais alta, mais
amor. A fé, a esperança e a caridade são, mal merecedora do nosso apreço, da nossa veneração e
comparado, como os andares dos foguetões da Nasa, afecto?
que se incendeiam sucessivamente, sendo que o último Não creio. Milagre, milagre, fez aquela mulher durante
é o que chega mais alto. No fim dos tempos só ficará a uma vida inteira em que se dedicou "a apanhar o lixo da
caridade. Mas até lá, os foguetões da fé e da esperança humanidade", a cuidar dos mais pobres entre os pobres,
elevaram o próprio foguetão da caridade. dos mais doentes entre os doentes, dos mais
6. O serviço resulta do amor, que é doação. O serviço indesejados, dos mais sós, dos mais tristes. Fê-lo mais
sem amor não chega a aproveitar, como também nos diz como pessoa do que como santa, com as suas fraquezas,
S. Paulo: podes dar tudo aos pobres, mas isso de pouco as suas ideias nem sempre muito progressistas, as suas
aproveita se não tiveres amor. Porque neste caso não há contradições, decerto as suas dúvidas... E daí? Uma
comunhão. Na prestação de serviço sem amor, o "santa do nosso tempo", como ouvi a alguém.
Exactamente. E não menos santa por isso, bem pelo

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contrário. Era "muito humana", era "uma pessoa mediocridade - é puxar para cima.
normal", comentou quem a conheceu cá em Portugal, É fomentar não o mau mas o bom gosto - porque o
numa visita em que quis gastar pouco tempo no gosto também se educa.
santuário de Fátima para ter mais tempo de estar com os Na escola deve haver uma componente de utopia - e não
pobres com quem ninguém estava. de resignação.
Uma mulher assim, que foi o que foi e tratou as feridas Ora incluir nos manuais escolares o regulamento do
que tratou, não precisa de ter curado milagrosamente «Big Brother» é sucumbir ao «Big Brother».
um cancro para nos ser dada como exemplo e inspiração É aceitar que é impossível interessar os jovens por
maior. Ela própria dizia que não fez coisa de grande temas mais elevados, capazes de lhes abrir os olhos e os
monta, que o seu trabalho não foi mais que "uma gota horizontes.
num oceano de sofrimento". Mas acrescentava que, se
essa gota não existisse, "faltaria ao mar". Eis a A Pior Televisão É o Melhor Negócio
diferença, ao alcance da mão de cada pessoa, de cada MÁRIO PINTO
"gota", no seu "mar". In: Público, 15 de Setembro de 2003
Ela não mudou o mundo. Apenas o tocou, nos sítios 1. "A grande maioria das crianças britânicas com cinco
onde viveu, com gestos pequeninos, modestos, terrenos. a seis anos vêem em média até seis horas diárias de
Gestos quotidianos, acessíveis a todos. E esse foi, creio, televisão, apesar de os próprios pais considerarem que
o seu mais simples milagre. Mas o maior. elas deviam passar mais tempo a brincar fora de
casa"(notícia do PÚBLICO do passado dia 4). Trata-se
Resistir ao «Big Brother» de uma grande surpresa? De modo nenhum. É apenas
In: Editorial, Expresso, 031213 mais uma confirmação do que já se sabe constituir
Na escola deve haver uma componente de utopia - e não fenómeno universalmente crescente. Também em
de resignação Portugal. E então?
A POLÉMICA à volta da inclusão do regulamento do Se atentarmos em que, mesmo para crianças com cinco
«Big Brother» num manual escolar levou a editora a a seis anos, os pais não conseguem contrariar a
recuar. tendência, e já só lhes resta lamentar-se, logo se
A Porto Editora, responsável pela publicação, optou por evidencia a força irresistível do fenómeno televisão. Na
retirar do manual o controverso texto, para «poupar os citada notícia, o Inspector-chefe das escolas britânicas
professores que adoptaram o livro a futuras críticas». queixa-se de que "as competências comunicacionais e
Este foi um modo hábil de a editora dizer que receava comportamentais entre as crianças de cinco anos se
que a polémica gerada em redor do manual levasse encontram ao nível mais baixo de sempre".
muitos professores, à cautela, a não o adoptarem. Estas avaliações ("baixo nível") são de ordem
Falaram mais alto, portanto, as razões comerciais. quantitativa. Mas há uma outra questão, que creio não
O que se compreende: uma editora existe para dar ser menos preocupante, que é da ordem da qualidade.
dinheiro, pelo que todos os obstáculos passíveis de pôr Ou seja: que espécies e conteúdos de informação e
em causa a venda de um livro devem ser evitados. socialização recebem estas crianças pela televisão, em
O regulamento do «Big Brother» podia constituir um substituição prejudicial do nível das competências
factor de resistência à escolha do manual? comunicacionais e comportamentais? A isto a notícia
Então, retire-se do manual o «Big Brother». não faz referência.
O problema principal que esta questão levanta é que as Ora bem, a televisão começou por ser uma grande
decisões sobre os livros escolares passaram do campo esperança, sobretudo comunicacional e cultural, e ainda
pedagógico para o terreno comercial. assim é frequentemente imaginada, em teoria e em
Não está em causa o que possa ser melhor ou pior para doutrina. Mas sabemos todos que tem vindo a evoluir
os alunos - mas apenas o que tenha condições para concretamente, sobretudo no seu mais importante
vender mais e fazer mais dinheiro. segmento de televisão comercial, para um negócio que
Claro que os argumentos nunca são estes. privilegia o tráfico de emoções, e cujo maior mercado
Ainda em relação ao presente caso, o editor sustenta que são as pulsões e os instintos com raízes no nosso
«nada melhor que um programa polémico para gerar o dificilmente controlável mundo interior, subconsciente e
debate e envolver toda a turma». inconsciente. Os interesses e os prazeres de ordem
Só que este argumento é típico daquilo que temos intelectual e estético são escassamente satisfeitos. O
chamado as «políticas de capitulação». menos mau são os passatempos e o desporto.
É o «Big Brother» que os miúdos vêem? Na história do mundo, nunca a violência bruta e a tosca
Então inclua-se o «Big Brother» nos manuais. sensualidade terão sido tão excitadas e exploradas como
A pouco e pouco, a lógica da televisão invade os livros hoje, nas televisões comerciais mas até nas televisões
de estudo - que começam, também eles, a tabloidizar-se. públicas. Comparativamente com esta capacidade de
A «cultura tablóide» toma conta de tudo; já não é um invasão, evasão e sugestão/manipulação, as máquinas de
subproduto, é toda a «cultura» disponível. propaganda política de Hitler e de Estaline foram menos
Sucede que a função da escola não é andar a reboque da poderosas. Nunca chegaram tão fundo, porque se até
sociedade, macaqueando o que tem de pior: é formar os violentavam os corpos e matavam em nome de mitos ou
jovens para uma sociedade melhor, mais preparada, ideias, não eram capazes de entrar gozosamente pelas
mais aberta à qualidade. portas das traseiras e, pior quando em troca de dinheiro,
A função da escola não é contemporizar com a ser tão indolores na ocupação e na moldagem do lado
obscuro das almas. Na teoria dos média, este efeito de

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ludíbrio psicológico está bem assinalado com a analogia para defesa dos consumidores - e, no nosso caso, trata-
do assaltante que lança um pedaço suculento de carne se da defesa dos consumidores de televisão.
para distrair "o cão de guarda da consciência". O Temos assim um grave problema de equilíbrio de
cúmulo passa-se com as crianças e jovens, quando se poderes no seio do subsistema cultural da sociedade
inclui o efeito sedutor e subliminar em programas vídeo civil. Já houve quem tudo quisesse reconduzir à política:
infantis ou juvenis com finalidades ideológicas ou de "tudo é político"; "politique d'abord". Deu mau
publicidade e lucro económico. resultado. Já houve quem tudo quisesse explicar pela
A nossa civilização tem por isso um grave problema, economia: "determinação do económico, em última
com este poder imenso e sem controlo da televisão. De instância"; "it's economics, stupid". Também foi forçoso
facto, sendo considerada o mais potente dos superar uma tal simplificação. Em ambos os casos se
instrumentos de influência social na educação e na gerou a dialéctica da revolução. Inclino-me para pensar
cultura de massas, ela escapa-se ao respectivo estatuto e que, nas sociedades pós-modernas pluralistas, o que é
responsabilidades. São em comparação muito mais baricêntrico e essencialmente reformista (logo,
controladas pelo Estado as escolas, privadas e públicas, progressista) será a cultura social. Apenas pela via
do que as televisões, privadas e públicas. Ora, se estas política ou pela via económica não construiremos, e
são mais poderosas e ambíguas do que as escolas, difícil nem sequer sobreviverá, uma sociedade
é justificar tão contraditório regime jurídico e político, verdadeiramente justa e desenvolvida, material e
entre o rigor do estatismo educativo escolar (em matéria espiritualmente. Tem que nela existir e se auto-sustentar
de liberdade escolar de ensino e educação) e o laxismo determinantemente (embora em rede interactiva no seio
do indiferentismo televisivo (em matéria de liberdade do sistema geral) uma cultura de valores e virtudes. Que
televisiva de informação e de cultura des/educativa). mantenha uma coesão sócio-cultural no respeito pela
2. Li recentemente, no PÚBLICO do dia 1, da autoria de dignidade humana de cada pessoa, nunca redutível a
Eduardo Cintra Torres, um artigo intitulado "Lágrima simples consumidor num negócio televisivo milionário
de espectador". Nessa excelente peça de crítica de ou súbdito de um desígnio ideológico iluminista
televisão, revelava-se sem margem para dúvidas (uma autoritário.
vez rigorosamente analisado e criticado) a mediocridade
e até a manipulação de um noticiário televisivo. Um tal Os Media Ou a Vida
trabalho de Cintra Torres merecia uma condecoração FERNANDO ILHARCO
por serviços distintos prestados à causa pública; In: Público, 01 de Dezembro de 2003
esperemos que continue. Muito se tem falado da influência dos media, em
Mas o problema maior é que, se calhar, aquele género especial da televisão, na educação e no desenvolvimento
de noticiários e programas do género Big Brother têm e modelação da criança e dos jovens. Sendo um aspecto
êxito comercial. Ou seja: a má televisão é o melhor central para o tipo de sociedade que podemos ser, e,
negócio. O meu prezado leitor já pensou bem onde é seguramente, do mundo português onde vamos viver,
que isto nos conduz? Conduz-nos, como tem sido dito, não é menos relevante o papel dos media, da televisão
para uma competição puramente comercial que tende sobretudo e, muito em especial dos telejornais, na
para o lixo televisivo. Que explora e exalta o que há em educação, não apenas das crianças e dos jovens mas
nós de menos elevado e educado, sem sequer poupar as também dos adultos. Por um lado, porque são esses
crianças. adultos, investindo horas e horas, todos os dias, em
Não tem porém de ser necessariamente assim. Por um histórias de crime, de voyeurismo, de escândalo e de
lado, há que fazer um combate de "educação para os vinganças, que inapelavelmente no passar dos dias
média". Por outro lado, há também que regular passam àquelas mesmas crianças e jovens o quadro
devidamente o sector televisivo. As elites e poderes de conceptual mais fundo do que é o mundo, os homens, a
racionalidade e de governo, as instâncias culturais relevância, os valores e, no limite, quem, cada um deles,
meritórias, de responsabilidade e de capacidade de para ele mesmo, é. Quando pais e filhos não estão de
influência, não se podem demitir. acordo sobre quem deve ser expulso da casa do "big
Mas ainda haverá capacidade destas instâncias? A brother", sobre que telenovela ver ou a que concurso
dúvida foi defendida por José Manuel Fernandes, no seu concorrer, tudo o que há de mais essencial foi há muito
editorial de quarta-feira. Perante o fenómeno poderoso deixado para trás. Este aspecto é tanto mais importante
dos média, escreveu ele: "as elites políticas, mas quanto mais pertinente se tornam os ajustamentos da
também as sociais e culturais, em vez de se elevarem sociedade portuguesa a um contexto cultural do mundo
acima da mediania, preferem seguir o inconstante pós-Guerra Fria em alteração profunda, mas ainda de
sentido do vento e serem "populares"". Isto é: preferem caminhos em aberto. É também neste quadro que muito
seguir o cânone mediático dominante no mercado e tem vindo a ser estudado no domínio da educação, ou
demitir-se numa questão que é de cultura e direitos talvez apenas do ensino, já que a educação parece mais
humanos. estar a ser esquecida na sua entrega aos media, em
Aos que preferissem ver aqui uma questão apenas de particular à televisão.
mercado, dir-se-ia que faltam então as instituições que O sistema de ensino é vital, porventura decisivo, mas
noutros domínios nasceram para corrigir e equilibrar não é tudo. Sabe-se que existe uma correlação positiva
mercados. E se há sindicatos e fóruns para defesa dos entre a estrutura educacional, avaliada pelos graus de
interesses e direitos de vários grupos de produtores (por ensino, e o nível de desenvolvimento, de prosperidade e
exemplo empresariais ou profissionais), já assim não é de riqueza de um país, avaliados, por exemplo, por
indicadores como o poder de compra ou o PIB "per

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capita". No entanto, o que muitas vezes fica por dizer é importante contributo para a modelação dos valores.
que existe também uma forte correlação entre aquela Questionou-se na conferência da Gulbenkian: se o
última variável, o desenvolvimento e a prosperidade de ministério é da educação e não apenas do ensino, porque
um país, e o tipo de cultura desse mesmo país. Assim, não tem então sob sua tutela os media, em particular a
tomando em consideração, por exemplo, o estudo de televisão? Se os media são o contexto em que somos,
Hofstede levado a cabo nos anos 70 e 80, e voltado a ser em que novos e velhos, estudantes, profissionais e
trabalhado nos anos 90, é fácil constatar-se que quanto reformados, estão imersos, então porque não abordá-los
mais uma cultura nacional favorecer a iniciativa e pensá-los como questões genuinamente educacionais,
individual, a responsabilidade de cada um por si próprio culturais?
e pelos seus, a coragem pela inovação, pelo risco, a Neste quadro tem-se falado nestes últimos tempos da
recompensa pelo mérito, pelo trabalho e pelos obra impar de Hannah Arendt. No cerne da visão de
resultados obtidos, e quanto mais fácil, natural e Arendt, lançada sobre e para o mundo, distingue-se o
igualitária for a relação entre subordinados e superiores labor, a actividade dos homens pelo seu ganha-pão, o
hierárquicos, quanto mais normal e corrente for o acesso ganhar a vida no dia a dia, para poder dormir, viver em
ao poder e à autoridade, quanto mais uma população segurança, criar a sua família, do trabalho, ou seja, a
assumir a natureza obviamente semelhante entre criação de obras, de diferenças absolutas, as quais uma
governantes e governados, mais elevados são a riqueza, vez concebidas e lançadas no mundo o transformam em
a prosperidade e o desenvolvimento desse mesmo país. todos os dias que o futuro nos reserva. O trabalho, a
Quer isso dizer, ou antes sugerir, que o tipo de cultura criação, na essência, a arte é o traço humano da própria
de um país, por isso, os valores, os comportamentos, as humanidade no mundo. E esta é uma imensa arma, uma
atitudes e as práticas em curso, determinam ou pelo enorme força que qualquer sociedade tem sobre os seus
menos condicionam activamente o seu nível de jovens, que dançam horas sem fim, como se viajassem
prosperidade. Se assim é, o que de alguma forma nos por todo o universo dentro. Pela arte e pela cultura faz-
surge como evidente, é que a escola, o sistema de se uma sociedade.
ensino, é mais uma consequência da sociedade que Laborar é uma coisa, trabalhar é outra. Uma cultura
somos do que uma causa do país que podemos ser. Se depende do tipo de trabalhos que for capaz de fazer. O
assim é, então a questão é a de como se pode intervir na labor permite que por cá continuemos a andar. O
cultura de um país? trabalho, cada trabalho, muda o mundo; muda a
Como se muda uma cultura? Lentamente e rapidamente. presença de uma comunidade no mundo, por isso, as
Aquela, corre sempre, na chegada ao mundo de novas suas esperanças e possibilidades, ou seja, a sua cultura e
pessoas, de novas práticas, de inovações que assim genuinamente o que ela vai ser, o que
surpreendem, que chegam e não mais nos abandonam. humanamente significa precisamente o que ela já é. O
A última, nas revoluções, como se sabe. Entre uma e ensino que temos pode ser um espelho do país que
outra está a escola, o sistema de ensino. A escola, a vamos ser, mas a educação que somos, hoje, o tipo de
forma e a substância do que a escola for, ou seja, a obras que formos capazes de pensar e de erguer é algo
maneira como nós mesmos, como cultura que hoje que pode alterar o ensino de hoje. E nesta quadratura do
somos, formos capazes de pensar, de entender e de círculo, entre os media na vida, a capacidade de
mudar quer a escola "tout court", quer, em termos mais pensarmos os media como vida, como cultura, educação
alargados e bem mais ambiciosos, o próprio quadro e contexto, faz toda a diferença. Faz a diferença entre o
educativo da sociedade portuguesa, é em muito e esquecimento e o seu contrário, o que é precisamente o
possivelmente essencialmente uma das mais decisivas e que a educação é.
essenciais manifestações estratégicas da cultura
nacional. Neste quadro, deve destacar-se a conferência A Constituição e a Europa
internacional "Direitos e Responsabilidade na Sociedade João César das Neves
Educativa", levada a cabo a semana passada na In:Ecclesia, 030624
Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Pensar a educação, o 1- O problema
ensino, a família, os media, a sociedade civil e o Estado; A União Europeia está, sem qualquer dúvida, num
pensar, analisar e estudar problemas e caminhos num momento decisivo da sua vida. O alargamento a Leste e
mundo novo, de novas possibilidades, desafios e as suas dificuldades institucionais, políticas e
ameaças, e talvez, sobretudo, de novas pessoas, novos operativas, são o aspecto mais visível, mas em muitos
homens e mulheres, todos eles, em si mesmo, genuínos outros âmbitos se manifesta que os tempos estão
começos e possibilidade deste mesmo mundo, deste diferentes e a ocasião é crucial. De facto, multiplicam-se
mesmo país e sociedade. as dificuldades, incertezas e indecisões a todos os níveis
O sistema de ensino, do pré-escolar às pós-graduações da Europa.
universitárias, é um meio, um instrumento, de nas Todos estes elementos se reconduzem a uma causa
sociedades contemporâneas modelarmos o tipo de ser principal: o fim da “guerra fria”. O quadro geral em que
que somos. Mas é o que é. Ou antes não pode ser o que nasceram as instituições do pós-guerra terminou em
nunca esteve destinado a ser: o espaço da família, da 1989. Hoje, quase década e meia depois, ainda não é
sociedade civil, da cultura de uma comunidade em dado claro qual vai ser a nova estrutura a surgir. Mas são cada
espaço e momento no tempo. Numa era em que a vez mais evidentes os problemas de funcionamento da
realidade são os media, em que a televisão é o final, é anterior que herdámos. Organizações como a ONU, a
precisamente pelos e nos media que reside um NATO, e tantas outras, incluindo a União Europeia,
revelam tensões inesperadas e enfrentam obstáculos

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estranhos. Fenómenos como a globalização, o na posição inicial e assim concedendo uma vitória aos
superterrorismo, o activismo americano, e tantos outros, cristãos, por pequena que seja. A outra alternativa é
manifestam já um diferente quadro emergente. A ordem insistir e consagrar a actual versão anódina e neutra.
internacional está a evoluir a taxa acelerada para um Nesse caso, quem quer que leia no futuro, o Tratado
horizonte ainda desconhecido. nuclear da União Europeia, vai notar essa ausência. A
2- A primeira tolice omissão do preâmbulo da Constituição vai gritar tão alto
Perante estas exigência candentes, a UE reagiu da pior como o túmulo vazio de Domingo de Páscoa.
maneira possível: convocou uma Convenção Mas existe uma terceira possibilidade, a mais triste e
constitucional. Quando se vive no meio de um nevoeiro sinistra de todas. É bem possível que o texto agora em
estrutural e estão em cima da mesa problemas discussão acabe inexoravelmente no cesto de papéis da
elementares e concretos, os líderes europeus escolhem História. O novo horizonte do pós-“guerra fria”, os
entrar numa vasta discussão de conceitos, princípios e novos problemas da Europa alargada, a nova dinâmica
filosofias. de futuro, podem fazer com que este texto fique
É preciso resolver rápido o novo xadrez institucional, perdido, como um triste exemplo da loucura da nossa
repartir já o poder numa comunidade alargada e geração.
redefinir imediatamente funções e competências. Tudo João César das Neves, Professor UCP
Comentários | João César das Neves| 6/24/2003 | 12:33 | 4653
isto tem de ser realizado de forma pragmática e flexível,
Caracteres
pois as novas directrizes mundiais ainda são emergentes
e incertas. Mas em vez de abordar directamente as Boas notícias
questões, abriu-se uma magna discussão conceptual. No João César das Neves
melhor estilo bizantino, vai perder-se tempo a redigir In: DN 010102
preâmbulos, a reescrever e compatibilizar velhos A primeira grande novidade do milénio foi o
tratados, a repescar antigas discussões nunca sanadas. O aparecimento do GoodNews. O diário apresentou-se
mundo que espere. com o propósito de "dar apenas e sempre boas notícias",
Deste modo, o próprio processo do Tratado declarando olhar a actualidade do ponto de vista
Constitucional é, em si mesmo, a demonstração dos positivo e construtivo, sublinhando o virtuoso, o
piores traços da burocracia de Bruxelas. Os americanos amável, o heróico, o bom. "No panorama mediático
conquistam países, os terroristas assustam o mundo, a actual", dizia o seu primeiro editorial (publicado noutro
economia mundial baloiça à beira da recessão, a jornal, por tratar de más notícias), "domina o chocante,
globalização avança no meio de incertezas. Mas, o trágico, o dramático, o mau. Quando algo corre bem
enquanto isso, os líderes europeus divertem-se a debater deixa, por isso mesmo, de ser notícia. Só os desastres e
modelos constitucionais. guerras são referidos. A bondade e a paz apenas
As questões da inserção do nome de Deus e da aparecem quando falham. Todos os jornais, mesmo os
referência à herança cristã no preâmbulo dessa mais clássicos, são dominados por esta visão perversa.
Constituição são manifestações insólitas disto. O Em vez do provérbio no news is good news (se não há
problema é completamente espúrio. Nem Deus Nosso notícias é boa notícia), a prática passou a ser good news
Senhor nem a herança cristã estão em causa neste is no news."
momento ou dependem de qualquer decisão recente. A nova linha editorial foi muito contestada pelos
Mas se vamos a decidir uma Constituição é impossível intelectuais como "romântica, idealista, delicodoce".
deixar de os abordar. E abordá-los a este nível é Mas o jornal recusava ficções ou distorções
ressuscitar velhas querelas inúteis, que nos afastam cada imaginativas. Publicava a verdade e apenas a verdade.
vez mais dos verdadeiros e graves problemas que a Só que a publicava com atenção ao positivo e não ao
realidade actual nos impõe. negativo. O facto ficou provado quando se deu a
3- A segunda tolice derrocada do arranha-céus na cidade. As agências,
Para piorar ainda mais tudo isto, a primeira versão do jornais e televisões enchiam-se com sangue, lágrimas e
referido Preâmbulo decidiu omitir ambas as referências acusações. O GoodNews referia o surpreendente
a Deus e à herança cristã. Isso foi desafortunado para os número de sobreviventes num desastre daquela
convencionais, mas muito vantajoso para a Igreja dimensão e louvava o trabalho dos bombeiros e
Católica. De facto, sendo a sua influência uma evidência hospitais da zona. Notava a sorte de o prédio ter caído a
impossível de iludir, fica também evidente o meio da manhã, quando estava bastante vazio, e para as
chauvinismo dos redactores. Múltiplas vozes, de traseiras desertas, em vez de derrocar na avenida, em
múltiplos quadrantes se levantaram contra a hora de ponta. E relatava o feito de um rapazinho, que
arbitrariedade e injustiça dessa omissão. Assim surgiu saltara do segundo andar com a irmã bebé ao colo, acto
um debate que só pode prejudicar o texto e favorecer a que ficara esquecido nos outros jornais. A sua
causa do Cristianismo. De facto, este vai ganhar sem circulação aumentou em flecha.
dúvida. Vai ganhar mesmo que perca. O sucesso fez crescer as críticas. Alguns afirmaram que
A indignação, o incómodo e a irritação por este o GoodNews era uma nova versão dos tradicionais
ostensivo desprezo criou já uma mancha desprestigiante "jornais da situação". De facto, o Governo louvou-o por
e desnecessária na nascente Constituição. A discussão "finalmente alguém dar atenção ao muito de bom que há
sobre o tema é incontornável e só pode levar a um de no país", enquanto a oposição o acusava de "simplismo,
dois resultados. A primeira hipótese é a Constituição seguidismo e ingenuidade". Mas a pouco e pouco
acabar por incluir alguma referência ao tema, recuando começou a notar-se que a actividade política estava

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quase ausente do periódico. Considerava a maior parte com o que tem de suportar. E tenta sempre adaptar-se,
desse debate irrelevante e inconsequente, e muitas das fazendo o melhor possível. Estamos conscientes dos
alegadas "boas notícias" do Governo mostravam-se erros e dos problemas, mas, em vez de resmungarmos e
promessas irrealistas e desinteressantes. As que de os denunciarmos, apresentamos bons exemplos de
chegavam a ser publicadas, nunca o eram da forma que solução. Não nos indignamos hipocritamente, mas
o Executivo pretendia. O GoodNews mostrava, pelo procuramos compreender e ajudar.
contrário, uma evidente preferência por relatar a vida da O mundo é um sítio extraordinário; e o mais
sociedade, a forma humilde e imaginativa como as extraordinário é o ser humano. E o mais extraordinário
pessoas vão resolvendo as suas dificuldades, mesmo as no ser humano é a capacidade de virar o mundo para o
mais dramáticas. Em vez da busca desenfreada dos bem. Vivemos tão pouco tempo aqui. Porque não passá-
"podres" e do culto do "anti-herói", descreviam-se lo a ver e a fazer o bem? Por todo o lado há pessoas a
serenamente os bons exemplos. Recusava a pose trabalhar para aumentar a felicidade. Nós, com
pomposa de justiceiro mediático em busca de humildade, queremos relatar isso. Só o bem existe. O
escândalos, que só aumenta a injustiça. Preferia relatar a mal é ausência. O bem é verdade. O mal é mentira."
conduta virtuosa perante os obstáculos. Na economia,
acompanhava o desenvolvimento estrutural e iniciativas A mensagem número 1000
de mérito, desprezando o saltitar financeiro e o apelo Pedro Aguiar Pinto
permanente à crise. Este Jornal segue “agarrado” à milésima mensagem do
De repente, o país tomou consciência da enorme Povo.
quantidade de iniciativas e instituições de solidariedade O Povo começou como resposta a uma recomendação
e dos seus grandes benefícios. Tornaram-se famosos do nosso pároco na missa de um Domingo de Fevereiro
nomes e caras de muitos "heróis do quotidiano", que de 2000.
insistiam em fazer o bem em condições difíceis. Como O papa ia iniciar a sua vista aos lugares santos e o Padre
se dizia num dos artigos, "é impressionante quanto bem João recomendou-nos que procurássemos acompanhar a
existe entre nós, e como resiste ao mal, mesmo quando visita do papa com atenção.
o mal é tão forte". Como a cobertura que a nossa televisão e, mesmo os
Na classe dos profissionais da informação, o GoodNews jornais, dão sobre estas notícias é reduzida e muitas
acendeu uma longa e acesa polémica. Alguns jornalistas vezes parcial, surgiu a ideia de fazer um pequeno jornal
influentes declararam-se a favor do periódico, mas a que diariamente acompanhasse os passos do Papa na
maioria foi muito crítica. "Trata-se de uma publicação Terra Santa. Este jornal começou com a carta do papa
ideológica, que pretende inculcar uma visão doutrinal sobre a peregrinação aos lugares santos e, em cada dia,
aos seus leitores", diziam muitos. Mas que visão era juntava notícias de várias fontes de informação
essa, não era consensual. Apelidado por muitos como nacionais e estrangeiras.
"conservador", o GoodNews era atacado pelas forças Quando a peregrinação terminou, o envio de artigos que
conservadoras por não denunciar o mal deste mundo pudessem ser de ajuda continuou: às segundas-feiras, os
progressista. Uns chamavam-lhe "epicurista" e outros artigos do João César das Neves e, por vezes, e artigos
"cristão". Não faltavam, até, os que o apelidavam de de jornais diários ou semanários onde escrevem alguns
"tentativa maçónica de restaurar o comunismo" ou de jornalistas e comentadores com opiniões que resistem
"neonazismo encapotado e populista". ao niilismo dominante (Mário Pinto, João Carlos
O director do jornal, entrevistado na televisão, Espada, António Pinto Leite, António Barreto, Henrique
respondeu a estas críticas de forma bonacheirona. "É Monteiro, António José Saraiva), a que se juntam
evidente que temos uma visão ideológica do mundo. ocasionalmente outros que ajudam a formar um juízo
Tão parcial como a de todos. Perante um facto, um sério e empenhado sobre o que se passa à nossa volta.
acontecimento, uma realidade, o ser humano observa-o Manter uma lista de e-mail actualizada é uma tarefa
selectivamente, raciocina criteriosamente e decide o que complexa e sempre inacabada.
pensar sobre ele. Tudo isto é feito a partir dos princípios Por isso, a 17 de Abril de 2001, o Povo passou a residir
de análise, dos preconceitos de avaliação que cada um num grupo de e-mail que pode ser acedido de qualquer
de nós tem. A única publicação realmente neutra que computador com ligação à Internet, o que significa que
conheço é a lista telefónica. Só aí não existe uma a lista de endereços reside num único servidor, continua
opinião para observar o mundo e decidir o que dizer e a ser confidencial e a sua actualização é da
como. responsabilidade individual de cada membro. Os
A nossa diferença não está aí. A comunicação social elementos do grupo podem a qualquer momento deixar
moderna acredita, por vezes de forma inconsciente, que de o ser e quem quiser pode submeter a sua inscrição à
só consegue agradar e atrair a atenção dos leitores de aprovação do moderador do grupo.
forma bombástica ou sedutora. Os instrumentos que O grupo mantém uma lista das mensagens enviadas em:
todos usam, dos jornais aos políticos e anunciantes, é a http://groups.yahoo.com/group/Povo_, bem como um
adrenalina e a líbido. A sua atitude é encarar o público arquivo dos textos mais importantes e que podem ser
como um animal, que tem de ser agredido ou assustado, acedidos por todos os elementos que se inscrevam como
surpreendido ou acariciado. Nós tratamo-lo como uma membros, seguindo um procedimento de inscrição
pessoa civilizada, que olha o mundo de forma serena, relativamente simples.
positiva e inteligente, que luta com coragem e esperança O que começou como uma iniciativa descomprometida
contra aquilo que pode mudar e se conforma sabiamente e esporádica tem sido até hoje uma actividade

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relativamente regular e já chega a muita gente. modo a que o Povo possa continuar a ser um elo de
O pedido de inscrição pode ser feito no endereço web ligação entre pessoas singulares que têm em comum
do grupo que é: aquela característica que as faz um Povo: unidade na
http://groups.yahoo.com/group/Povo_/join vontade de caminharem em conjunto para um destino
4000 comum.

3500

3000
Inscrições
Anulações
2500
Membros

2000

1500

1000

500

0
Abr-01 Ago-01 Dez-01 Abr-02 Ago-02 Dez-02 Abr-03 Ago-03 Dez-03 Abr-04
-500

-1000

-1500

-2000

Evolução das inscrições no Povo de Abril de 2001 a Fevereiro de


2004

Ao longo destes quase três anos, o Povo cresceu (hoje


somos quase 1800), o n.º de mensagens tem crescido e o
o tipo de mensagem mais frequente também mudou.
Hoje, uma percentagem muito significativa das
mensagens diz respeito a avisos de actividades diversas
que podem ser do interesse geral e que têm dificuldade
em ser divulgadas de outra forma.
Por isso, é minha intenção, desde há algum tempo, mas
sempre adiada por dificuldade prática de concretização,
reservar para O Jornal das Boas Notícias, as notícias e
comentários intemporais – ao contrário da “notícia” dos
jornais e noticiários, a boa notícia permanece – e usar as
mensagens do Povo sobretudo para esta nova utilidade
que não tinha sido prevista e que foi sendo revelada no
tempo: veículo de aviso de actividades que irão
decorrer.
O Povo está largamente concentrado na região de
Lisboa, pelo que, frequentemente, alguns leitores de
outras áreas se queixam da ausência de divulgação de
actividades nas suas regiões. Isso só acontecerá na
medida em que o Povo seja divulgado localmente e que
me enviem anúncio oportuno de actividades locais.
Por isso, peço a todos os amigos do Povo que o
divulguem, propondo novos membros para o Povo quer
sugerindo que se inscrevam em:
http://groups.yahoo.com/group/Povo_/join quer,
enviando (p_a_pinto@hotmail.com) o nome e endereço
dos amigos que gostariam de inscrever no Povo.
Finalmente, agradeço a todos a paciência e fidelidade
com que têm permanecido no Povo e peço a vossa
colaboração sempre que a achem útil ou necessária, de

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