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Benito Barreto

Saga do Caminho Novo

os idos de
Maio
Romance histórico
...pelo Caminho Novo como a chispa
no pavio rastreando a pólvora...

O Vigário Geral da Ilha do Governador, padre Bernardo, aten-


to o escutou, porém, sem dar a ver nenhum sinal de comoção ou
compromisso com a pessoa nem o assunto, tintado a drama, do
inesperado visitante. Que, envolvente, lhe parece – o que, calado,
considera, precavendo-se – empenhado em fazer e aliciar parceiros,
com os quais possa contar nas querelas mundanas e de ordem pú-
blica, nas quais se enreda, e, a mais, muito provavelmente, interes-
sado em favores, também, na área, por isso e desde logo, em tudo,
aparentando ser alguém, potencialmente, perigoso e incômodo. De
resto, conhece-o de nome e só de vista, a esse jovem padre, como
vigário da Igreja da Senhora Mãe dos Homens, e já lhe ouvira um
sermão, certo domingo em que deixara a Ilha para ver parentes, no
continente, mas, fora isso ocasional e afora isso, nada via nem havia
que autorizasse o moço a procurá-lo, muito menos para lhe trazer e
pretender tratar com ele tal matéria.
– Entendo a tua aflição, padre Inácio, e dói-me, por certo,
ver Vosmicê assim sofrido e angustiado, mas não vejo em que te
possa servir ou ajudar, em semelhante circunstância. Aliás, consi-
deradas, de um lado, a natureza do assunto e, do outro, a vida de
retiro que aqui na Ilha eu levo, só para Deus voltado e para o meu
rebanho e a paróquia, escapa-me à compreensão por que o irmão
achou por bem de recorrer a mim. Com isso, não compreendo...
– Sei que o senhor e o Monge do Caraça, o Irmão Lourenço,
lá nas Minas, são conterrâneos, do mesmo torrão nascidos, em
Portugal, e que, além disso, são amigos. De minha parte, sou vigário

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da Igreja da Senhora Mãe dos Homens, que sei ser, também, a
devoção maior de Irmão Lourenço.
– Sim...?
– Estou empenhado em ir para junto dele, se me aceitar, para
aquelas serras e sertões que habita, onde constrói...
– Não vejo é a relação, supostamente existente, entre o crime
que dizes ter cometido, a causa a que serviste ou desserviste, e essa
repentina decisão de ti expatriares junto a esse santo homem, ami-
go meu. O Irmão Lourenço tem a vida devotada, por inteiro, à obra
de construção de um templo que pretende, a um só tempo, semi-
nário e casa de cultura, um retiro para as pessoas de fé, sem nada a
ver, portanto, com essas paixões terrenas e as disputas de poder.
– Eu sei disso, bem sei, padre Bernardo.
– Pois nem tanto parece, visto que o queres envolver nestas
questões.
– O que eu quero, e para isso imploro a sua ajuda, Vigário
Geral, é a remissão, pelo trabalho e o sacrifício, do crime que prati-
quei, minha fraqueza, pela qual eu temo possa alguém vir a pagar
com a vida, muitos até, quem sabe? E, talvez, toda uma causa
generosa se perder.
– Não deves insistir em acreditar que o Irmão Lourenço tenha
interesse nessa questão ou que se mostre, particularmente, sensí-
vel a tais assuntos. Não o creio, padre Inácio. Em verdade, ele não
tem tempo para tais coisas, contudo...
– Sim, dize-o, por favor, padre Bernardo – reanimado, o jo-
vem pároco lhe pede.
– ...serviço, o serviço de Deus e os sacrifícios que são a sua
vida, isso ele tem de sobra, não lhe faltam, e essa espécie de pão,
acredito, possa dar-te ou repartir contigo, se o quiseres...
– Encaminha-me, então, a ele? Deus o guarde e pague a vos-
micê, padre Bernardo!
– O Irmão Lourenço está na Comarca do Rio das Mortes, lá
em Minas, por estes dias. A 70 léguas desta cidade do Rio de Janei-
ro, toda a dificuldade consistindo, por conseguinte, em chegares lá
a tempo de o alcançar, para o que há que ter meios.

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– Estou certo de que não terei dificuldade em encontrar pes-
soas interessadas neste meu desterro...
O Vigário Geral olha-o, interrogativamente, sempre, porém,
com ar severo e pondo-se à distância.
– ... pessoas com interesse em que se saiba em Minas, quanto
antes, o que se passa aqui – o visitante comenta, completando
– Julgo, sim. que as posso achar, que as tenho.
– Pois essas pessoas deverão, então, prover-te de boa mon-
taria e das necessárias mudas, de um escravo guia, ou criado, e
de recursos para hospedagem. Precisarás fazer 8 a 10 léguas, em
média, a cada dia, para encontrares lá o Monge, mais ou menos
pelo dia 20, de passagem pela estalagem de nome Varginha, Esta-
lagem da Varginha, onde sei que se demora, a um dia de Vila Rica.
E de um salvo-conduto deverás, também, estar provido, para que
te não detenham nem te demores nos Postos de Registro.
– Serei um secular que se retira para Minas, para viver vida de
monge com o Irmão Lourenço...
– A Capitania das Minas, pelo que sei, está sempre a carecer
de luzes, demandando mestres. Podes lá fazer-te professor... – o
Vigário Geral sugere.
– Sim, sim, é bem pensado.
– Muito que bem, vou, então, fazer-te a apresentação, mas
lembra-te que te conheço o vigário que és, da Igreja da Senhora
Mãe dos Homens, e como tal somente, na rua do mesmo nome,
nesta Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, mais nada entre
nós havendo nem dos teus passos eu sabendo – sempre resguar-
dando-se, o adverte.
E tendo-o dito, tira o Vigário da gaveta um bloco de papel almaço,
pega da pena, molha-a no tinteiro e escreve a carta que estará devida-
mente catalogada e guardada nos arquivos do Caraça, até ser queima-
da, no incêndio que duzentos anos depois destrói sua Biblioteca:
“Lourenço, meu irmão em Cristo e santo conterrâneo, o portador
é o vigário da Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, aqui do Rio,
que me pede encaminhá-lo a ti, para se pôr a teu serviço e da tua
santa obra.

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Tudo o mais que dele eu sei, posto que salta à vista, é ser pessoa ainda
moça, o que significa ter de sobra o que já me escasseia: tempo, mais tem-
po e vida, para trabalhar pelos homens e exaltar a Deus, nas Alturas.
Louvado seja Jesus Cristo.
Adeus, irmão,
Bernardo, Vigário Geral da Ilha do Governador.
Capitania do Rio de Janeiro,
(ao apagar do dia...) 10 de maio de 1789.”

Manhã seguinte, madrugada ainda, dois mensageiros deixam


o Rio em disparada pelo Caminho Novo, com a pressa do fogo no
pavio, rastreando a pólvora. Vão a galope e trazem os dois para a
Capitania das Minas um mesmo fato ou notícia, conquanto, porém,
visto de ângulos opostos por um e o outro, e, por conseguinte, com
mensagens bem distintas. Trata-se, para um, de abominável crime
cujo réu fora apanhado – é o que tem no malote real fechado a lacre;
para o outro, algo como a queda do condor de um sonho que, em seu
vôo abatido, perdera as asas, isso o que, doído, leva na alma.
Travestido em fidalgo, e homem de posses e negócios, é o
primeiro deles... em verdade, Correio Real, um oficial de confian-
ça do Vice-Rei Dom Luis de Vasconcelos, saído do Paço com carta
de urgência ao Visconde de Barbacena, em Cachoeira do Campo,
a este dando conta de que fizera prender e pôr a ferros, no Rio,
por suspeito de conspirar contra a Rainha e o Reino, ao famigera-
do suboficial Joaquim José da Silva Xavier, o popular “República“,
assim, também, chamado por suas conhecidas diatribes republi-
canas, de pedreiro-livre, e a sua obstinação em canalizar e socia-
lizar as águas dos ribeirões da Cidade, enfim... o mineiro ousado,
e não menos conhecido e controverso Tiradentes, que se campa
do poder de cura, e da prenda de pôr e tirar dentes às pessoas,
como se um licenciado fosse, o que não é, com isso juntando,
assim, mais uma transgressão às outras muitas tantas, que o in-
quinam... que, isso posto e feito, tem, por inconteste, a Corte, que,
sob a aparência inofensiva do que seria mera incontinência ver-
bal, como o acreditaram tantos e por tanto tempo, e de arroubos

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cívicos, supostamente, sem conseqüência, um sedicioso atrevido
e operante habita o indigitado mau elemento, como, aliás, e em
tempo, mui acertadamente, o atesta e comprova a denúncia dos
seus passos recebida, militante que, sem dúvida, o é e mui pro-
vável chefe de todo um movimento de traição a Portugal, que se
articula em Minas.
E é padre Ignácio Nogueira Lima o outro ou, dos dois, segun-
do, de 27 anos, quem servido de peruca, que lhe muda a cara e a
tonsura encobre, passa por professor, mestre de retórica e latim,
em demanda da Estalagem da Varginha, nos Campos das Verten-
tes, aonde corre a avistar-se com o Monge do Caraça, o Irmão Lou-
renço, para a esse dar notícia do sucedido e, por via dele, a toda
Minas explicar de como, desgraçadamente, acontecera que, ame-
açado de tortura, cedera ele próprio, mensageiro, e entregara ao
Vice-Rei o endereço onde a Tiradentes o acoitavam uma sua tia e
amigos seus, vizinhos, à Rua dos Latoeiros, numa água furtada, aí
e então, por suas mãos e sua culpa, tendo sido preso e posto a fer-
ros esse de quem, só ao depois soubera, depois de tudo consuma-
do, que ao Rio tinha vindo a trabalhar por Minas e os seus povos,
pelo Brasil. De tudo resultando que vem e viaja ele, o padre, agora
professor, trazido pela culpa, por confessar a quem o queira ouvir
e justiçar, esse seu crime de lesa-pátria, imperdoável, e o assumir,
determinado a morar e a servir no Mosteiro e Educandário que na
encosta do Caraça se alevanta, para aí cumprir auto-sentença de
degredo, que a si mesmo impõe-se, por redimir-se e alimpar-se, se
é que de tão feia nódoa, e indelével, pode alguém lavar-se e fazer
jus, ainda em vida, a algum respeito...!
Serve ao mensageiro real um escudeiro travestido de inten-
dente, que leva, camufladas, suas armas – as de cintura e alça,
curtas, rifle de repetição com baioneta, clava e dardos aos quais,
todos domina com perícia – e, de cabresteiro e tropeiro, puxando,
tangendo as bestas e os cavalos de muda, um lanceiro; ao padre,
serve de arrieiro um escravo, às custas de paroquianos seus devo-
tados ao Alferes de Minas e ao Irmão Lourenço, àquele pelos sabi-
dos lenitivos e as curas que, em mais duma ocasião, lhes trouxera

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aos males do corpo e aos da boca, mais notadamente, e a este
último, o ermitão, pela fama das suas virtudes e a santidade de
sua obra, estas e aqueles já então famosos na Corte e por todo o
Caminho Novo, trazidos e levados pelas tropas e os viajantes.
O angolano vai, pelo serviço, ser alforriado em Minas, rece-
bendo, a mais, um par de botas, manta de baeta para o frio e umas
pepitas, se levar a salvo e chegar em tempo com o seu senhor
àquela Estalagem, tarefa quase impossível ao comum das gentes,
não pra ele, todavia, eis que acostumado a trabalhar 18 horas por
dia e fadado, por isso, a morrer de morte certa, por estafa, ainda
na flor dos anos. Do que resulta que, determinado a nada desme-
recer nem perder nada do que se lhe promete, ele se desdobra e
parece voar rasteiro, às vezes, mais duma vez ultrapassando com
sua biga de reserva, que leva a galope, adiante do padre, a quadri-
ga, também, de muda e, por igual, em disparada, do Correio Real,
com quem disputa a dianteira.
Nas estalagens e estações de muda, vez que outra, encon-
tram-se os dois correios e comentam as peripécias da viagem pelo
Caminho Novo, que antes velho e largado lhes parece, estreito e
descuidado em tal medida que, não raro, há que andá-lo em coluna
ou fila indiana e passo a passo: uma formação de duas parelhas,
como o é a do oficial do Reino, vê-se obrigada a ceder passagem
e a perder a dianteira para uma só parelha, tal a do professor, que
o teria que, à sua vez, fazer e, por igual, perder para um só cavalo,
naquelas trilhas, e, embora assim conversem e considerem, e en-
tre si até porfiem, na carreira, levando os dois a mesma coisa para
Minas, certo o ignoram e, do que levam, por razões bem óbvias,
não se falam.
Sabe o mensageiro do Vice-Rei quão vital e urgente é para o
Reino o que leva; sabe o padre quanto o é, para os mazombos, o
que traz, mas um não sabe do outro, do que se vai fazer ou vai
acontecer, por via e conseqüência do que carregam na alma e nos
alforjes, menos ainda o papel que desempenham e a posição que
ocupam, em tudo isso, ou vai tocar, al fin e al cabo, a cada um
dos dois. E não conhecem, nem o escravo as razões do professor,

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seu amo, a quem serve e conduz, assim tão açodado, nem aquele
escudeiro e o lanceiro a que vai seu capitão, e porque a eles nem
ao outro o não diz... do que vem a resultar que ao longo dos dias
e do caminho e todo o tempo, um ao outro ambos mentem e dis-
farçam, se espiam e sondam, suspeitosos....
– Tenho estado a temer por vosmicê, pelo que corre e voa,
senhor... ponho meu voto em que não esteja a correr assim para
salvar alguém seu, in extremis, lá nas Minas?
– Salvar, oh não, que não vou a acudir ninguém, graças a
Deus! Mas tenho pressa, por razão de ofício, em lá chegar; lá isso
é bem verdade – responde, assustado, o padre porque... quando
da passagem pelo Registro do Paraibuna, já o oficial da Guarda
mostrara-se intrigado com a sua pressa. Retivera-o com perguntas
insistentes sobre o que o levava a Minas: quais os seus projetos?
se alguém o esperava e quem? onde? aonde era mesmo que ia? E
tendo ele declinado a sua condição de professor e a intenção de
ganhar a vida lecionando latim e retórica, ouvira, então, do mili-
tar, que achava muito legítimo e razoável o seu intento, o mesmo,
porém, não pensando nem podendo dizer da pressa com que via-
java, uma correria, aparentemente, em despropósito com a razão
dada...
– Pois é matéria, sim, de muita urgência... – justificara-se,
então, sem muito nexo, argumentando que aos que sucumbem,
cegos, na escuridão da ignorância e na ignorância da fé, era acudi-
los e os servir com a palavra de Deus e a luz do ensino caso, sim,
para afligir a consciência e fazer jus à pressa... – disparara em
resposta ao outro, um capitão de pouca escola que, mal assinando
o nome e sem leitura, nem por isso acreditava-se no escuro e com
tamanha agonia precisado de tal luz... – parecera, então, pensar e
daí, desconfiado, o olhar e medir, pronto para o questionar, talvez,
detê-lo, o que só não fez e o deixou passar porque acudira ao pro-
fessor, em tempo, lhe explicar, baixando a voz, que, em verdade,
assim corria por achar-se desprovido e precisado, o quanto antes,
para sustentar-se, dos adiantamentos a receber em Vila Rica pelas
aulas que lá ia ministrar...

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– E vosmicê, se mal não pergunto, posto que, afinal, não cor-
re menos do que eu: que coisa leva ou a que vai que, pelo visto,
nem com as mudas gasta do seu tempo?
– O caso meu, da minha pressa, não é o que eu levo nem o
que persigo, é mais ou mesmo só o que lá me espera, mestre...
– Jerônimo
– ... esse o meu caso, mestre Jerônimo, essa a questão – o
Correio Real se explica.
– Bem lhe seja, então, senhor, isso a que vai; e seja-nos Deus
propício que, assim é a vida. Correndo eu atrás dum emprego para
o meu latim, a dar umas aulas para sustentar-me a minha, vosmi-
cê, por sua vida e à sua vez, também correndo...
– Vou, em verdade, de muda, recomendado a receber nas
Minas uma sesmaria e nela umas catas, por donativo da senhora
minha, a Soberana, pelas mãos do general governador, coisa que
era o caso até de se dizer que eu, com isso, estava feito e mais
não precisava desta vida, não fosse a obrigação de povoar a dita
cuja terra e ainda ter que achar o ouro e as pedrarias que apostam
existir pelos grotões e as quebradas dela.
– Belo trabalho, e melhor lhe seja, e não pequena, a colheita,
senhor.
– Deus o ouça, assim o espero, contudo, pode sempre, nesses
casos, reverter-se em castigo o prêmio, virar a grande obra um
buraco e a gente afundar-se nele. Porque tem-se aí que pôr e repor
ao Reino, em dobro, enfim, que pagar com trabalho e produção
na medida do recebido, compromisso e desafio que são de molde
a fazer tanto a fortuna quanto a perdição de um homem! Enfim:
um jogo...
– Deus ajude vosmicê a ganhá-lo!
– Amém! Que assim seja! E é para fazer face a isso – prosse-
gue – que vou aí levando, enfardados, uns aparelhos e marcos de
medição, o arame para as cercas, para o gado o sal e sacas e mais
sacas de semente para o plantio – explica a apontar para seu burro
culatreiro, esse vergado, em verdade, não ao peso de arames, fer-
ramentas e sementes, mas das armas e farta munição que carrega

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– enfim, vou preparado como o pode ver vosmicê, mas sempre
com medo, muito medo, do que me espera e lá vou encontrar.
– Oh sim, são terras virgens, tudo por fazer-se e há, a mais,
por enfrentar os índios...
– Os já famosos botocudos, por indômitos e ferozes, e os ban-
didos, as febres e os penhascos, as serpentes, enfim, é todo um
meio hostil a dominar e adequar, olha, sabes? Nem sei se vale a
pena o risco, não sei! – conclui o mensageiro real, sacando do
bolso a binga contra a qual atrita com o fuzil a pedra, lhe deitando
fogo à mecha em que acende o pito.
Tornam, no entanto, à estrada. Há que correr com o que le-
vam e por alguns dias perdem-se de vista, só voltando a encon-
trar-se no Registro Velho, já os dois tendo adentrado as Minas. O
fidalgo, que como tal o tem o professor, mostra-se, então, nostál-
gico do seu velho Portugal: conta ao outro estórias, de como lá
vivia, das viagens que empreendera pelos domínios do Reino, em
terras d’África e Ásia, venturosas... as quais, em verdade, tinham
sido guerras, as muitas guerras de conquista que fizera, impondo
aos naturais a sujeição e a lei, nas colônias, e às suas mulheres,
muita vez, se impondo, às nativas que, por então, nessas lonjuras,
conhecera...
– E lá casou-se vosmicê?
– Oh não, não isso... porque era tal, então, a vida, e tão vária
e acidentada que não cabia nela o casamento, o que, porém, tudo
passado... depois, também, o não fizera – ele confessa, algo debo-
chado, revelando-se um cínico no entender do padre que habita o
professor, e sempre atento o espia, o observa e analisa.
Serra da Estrela, Sítio das Cebolas, o Paraibuna, a Fazenda do
Juiz de Fora e a Rocinha da Negra, Chapéu d’Uvas... o Registro Ve-
lho e os Campos Altos, Gerais... e assim, sempre a galope, mais se
adentram os dois pelo país das Minas, ora na dianteira o fidalgo e
homem de negócios, ora em seu lugar o professor de letras. Se um
dos dois em certa venda, fonte ou estalagem para, a um qualquer
pretexto, passa-lhe à frente e segue adiante o outro, assim mudan-
do-se ou se invertendo, entre eles, ao acaso das circunstâncias,

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suas respectivas posições no curso das horas e no correr dos dias,
que dez dias são precisos pra chegar-se aonde vão.
Continuarão, ocasionalmente, os seus encontros. Agora, toda-
via, rarefeitos, porque o fidalgo entediou-se,e se cansou de ouvir
falar o professor de santos e de poetas. Acabou por concluir que
esse mazombo mestiço o que ama e admira, nesta vida, é o mais
das vezes, senão mesmo em todas elas, exatamente, o que ele,
homem do mundo e da guerra mais detesta: são seu tema e o
ocupam a mulher e o vinho, a aventura e a guerra, os jogos da
vida... enquanto que ao professor empolgam e o tomam as coisas
e demandas da cultura e do espírito – a inteligência e a arte, os
clássicos, seus poetas que de cor os sabe, e a alma, a salvação e
os Céus, um horror! Do que, a tudo isso cansado de ver e ouvir,
quer afastar-se dele e dar-se um tempo o luso, ao passo em que,
de sua parte, o professor, também, dos casos e aventuras do par-
ceiro enfadou-se, pior: acha agora que esse, fidalgo ou lá o que
seja, mente no que diz que é, no que, presumivelmente, busca ou
o espera – a sesmaria e as minas, enfim, em tudo isso a que diz
que vem e vai.

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E vão os dois, por isso, evitar-se, desde então, e tão pouco ver-
se que a meio da jornada já nem sabem quem dos dois passou e
vai à frente, quem ficou e vem atrás, do que viria a resultar o que
em definitivo os separou, que foi o padre-professor ao outro o sur-
preender de escudo, capacete, botas e borzeguins de guerra, com
seus serviçais, exercitando a espada e os dardos numa clareira.
Passo a passo, cauteloso, sai da estrada e se aproxima o pro-
fessor, fica a espiar, detrás duma moita, e é espantoso o que ele vê:
na espada, arrebata o homem com facilidade a sua ao escudeiro
e ao lanceiro, os desarmando e dominando, sucessivas vezes, e,
à distância de 15 e 20 metros, atira contra esguias bananeiras os
afiados dardos que toma às mãos do escudeiro, sempre atingindo
e atravessando, lado a lado, os alvos os quais, se homens fossem e
um combate aquilo, pensa padre Ignácio, todos mortos já estariam,
vazados no ventre ou no peito pela férrea ponta, e tão certeira!
Volta-se o professor, retoma a estrada e foge, que nunca mais
quer vê-lo, assustado, concluindo, à vista do que viu, que tem tido
por parceiro de viagem e prosa, nos ranchos e estalagens onde
tanta vez se viram, a um cabo de guerra do inimigo, do Vice-Rei,
talvez, muito provavelmente, disfarçado em homem de negócios.
Pode, aliás, de tudo estar sabendo o estranho, quanto a ele, padre
Ignácio, e o estar seguindo, quem sabe? E por tudo isso, e como ali
o Caminho Novo é uma veia a serpear no verde, à sombra quase
sempre de mui densas e copadas árvores, aligeira o angolano seu
escravo de aluguel e esse aos cavalos, os quais, sem sol, disparam
e o põem a salvo, graças a Deus, aliviado, a pensar consigo em
como, de repente, mudam os fados a feição das coisas, o tempo e
a vida das pessoas...

... A sua tinha sido o Vice-Rei quem, por primeiro, a desviara


de seu curso e lhe mudara a feição. Ou fora em tudo isso Dom Luiz
apenas o agente, a mão do destino, que ele, essa costura ou des-
costura em sua vida, a ser sincero, inda não sabe se a Deus ou ao
Demônio debitá-la, quem dos dois a urdira. E também não sabe se
leva tudo isso a débito, se a crédito. não sabe.

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Com efeito, em que medida – se pergunta – quando ou por
que podia a Deus servir, e nisso consentir a Providência, em o ar-
rancarem assim à sua igreja e à paróquia, a seu rebanho que, tão
zelosamente, antes cuidava!? Seria que servisse? ou isso, esse pas-
so bruto em sua vida, a quem só serve é o Demo? E quem a tudo
isso move e põe a andar é, nesse caso, então, o Cujo? Quem me
desperta e faz trilhar esses caminhos novos? Oh não, não pode!
Seria admitir, – o que em absoluto não se pode – que o Criador
me quereria lá confinado, como antes, na minha paróquia, a só
rezar, surdo e mudo ao clamor dos meus irmãos, enquanto que,
contrariamente, o Outro... Não! Isso não! Nunca! – diz consigo,
benze-se e galopa.
Resistira a Silvério dos Reis, mas ao Vice-Rei não resistira.
Usara o coronel, para arrancar-lhe o endereço do Alferes, da ami-
zade que dizia ter com este e que os unia, em Minas; duma carta
que, supostamente, lhe trazia; de certo projeto importante, que
implementariam, juntos, no Rio, para o que precisavam ver-se, e
até, por último, da ameaça velada de torná-lo a ele, padre Igná-
cio, responsável por algum desastre na vida daquele a quem es-
condia, se inviabilizasse a chegada às suas mãos, do Tiradentes,
de certo dinheiro a lhe entregar, que trazia, de acertos e negócios
seus e sem o qual, com risco de ser preso, não teria ele como
voltar a Minas. Argumentos todos esses muito bem fundamen-
tados e engenhosos, que ele, todavia, adivinhara enganosos e
aos quais, por isso, resistira, não cedera, mas aos do Vice-Rei o
não pudera, eu não dei conta, visto o que brutais e assombrosos
tinham sido!
– Vês aqui a esse homem? Vês! – guarda ainda viva e grita-
da a lembrança pavorosa do Vice-Rei rugindo, rouco e de olhos
injetados, golpeando e levantando pelos cabelos sua cabeça para
o homenzarrão de pé junto ao cepo a que o haviam acorrentado.
– O estás a ver, padreco? Pois bem, o nome dele é Capitania, o
aperta-guelas, e a uma ordem minha vai varrer vosmicê do mun-
do dos vivos se dentro de meia hora – só meia hora o que te dou,
não mais, viste?! – se nessa próxima meia hora, não indicares a

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meus homens a rua e a casa, com sua vizinhança de referência, e
de quem é ela e de como lá se chega, exatamente, ao local onde
se esconde o alferes Joaquim José da Silva Xavier, esse a que cha-
mais de Tiradentes. Repito: meia hora, ouviste bem!? E lembra-te
que eu tanto te posso fazer varrer e apagar, de um sopro, como te
mandar despedaçar, ainda em vida e aos poucos, fazendo te ar-
rancar primeiro um braço, outro, vazar-te ou te arrancar um olho,
outro, a língua, as unhas, o que vai ser, muito provavelmente, a
minha escolha... por começo.
Tal tendo dito, o Vice-Rei o sacudira, ferozmente, pelos ca-
belos, o emparedando, feito o que, largara-o como a um saco de
porcarias arreado e atado àquele cepo. E haviam-no deixado ali,
sozinho, com o relógio de pêndulo na parede em frente a assina-
lar, um a um, os segundos dos 30 minutos que passavam a ser
contados.
Com os minutos, assim, passando, segundo por segundo, as-
sinalados pelo ir e vir do pêndulo, passou a engrenagem da tortu-
ra, à sua vista, a ser montada, para o suplício. Já a massa de que-
brar ossos fora trazida e recostada pelo cabo à mesa tosca, uma
banca ou prancha, dessas que se usam para o desossamento e
corte do boi, quando abatido, nos matadouros, e a esse uns outros
instrumentos foram-se juntando, tais a machadinha, uma torquês,
navalha, um estilete, o garrote espanhol, de quebrar pescoços, e
até, por fim, o que seria um saca-olho, ante o que não resisti e já
tremia, a desfazer-me, quando pedi pra ser ouvido, ia falar:
– Ainda que bem – reaparecera como que saído da parede
aquele mesmo e assim chamado aperta-guelas. Atrás desse, que
nem a ele atado, sendo puxado, o escrivão e só por último, pas-
sado um tempo, o Vice-Rei, ao qual eu em o vendo disse, ainda a
tremer, que o meu ser físico cedia, sem forças, e entregava aque-
le homem, o Tiradentes, mas a minha alma e a consciência em
mim, do sacerdote, impunham-me dizer que não sabia de culpa
que ele tivesse, nem de crime ou contravenção que praticasse, de
alguém a quem no mundo ele lesasse... aquele homem...
– A Sua Majestade – o Vice-Rei falou.

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– Como, senhor? Não entendi. Dizei do que se trata, pelo
amor de Deus, se acaso vos merece algum alívio uma alma ferida
de culpa involuntária e atormentada!
Dom Luiz, então, voltando-se para ele, o fulminara com o seu
mais severo olhar, contudo, e muito surpreendentemente, ao in-
vés de o espancar e fazer calar, como é do seu feitio e estilo, lhe
concedera a explicação pedida, graças à qual, e só então, viera ele,
padre Ignácio, a saber em que serviços graves operava o alferes
Tiradentes, sua vítima.
– Pois alivia-te, padre, porque esse, por quem te condóis e
sofre a tua consciência, intentava levantar as Minas e o Brasil con-
tra a Rainha e senhora nossa, que por vontade de Deus reina, e
a todos rege, soberana. O que é crime de lesa-majestade e uma
ofensa a Deus, como o sabes, mas agora dize o que mais sabes e
nos estejas a dever, a fim de tornares, livre, a teu rebanho...
Tinha sido assim. E por isso é que agora ele galopa para o
desterro, aguilhoado pela culpa. Em busca dessa Capitania das Mi-
nas, a que desservira. Dos rebelados filhos seus, que não conhece,
não sabe quem são nem como achá-los, mas ainda assim lhes vai
no encalço para os salvar, se a eles conseguir chegar em tempo, e
Deus Nosso Senhor o consentir..
O remorso e a culpa cravam-lhe o esporão na ilharga e ele as
suas nas virilhas do cavalo, que reage e salta, arrancando a quatro
para a Mantiqueira, que não longe umas primeiras cristas já levan-
ta e enfia pelas nuvens, que parece o vento desfraldar nos céus,
que nem bandeiras, sobre os altiplanos das Gerais.

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