Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Sumário
1. Introdução. 2. A ideologia democrática.
3. A ideologia do Estado social. 4. A ideologia
dos direitos individuais. 5. A ideologia da li-
berdade. 6. A ideologia da segurança. 7. A ideo-
logia do bem-estar. 8. A ideologia do desen-
volvimento. 9. A ideologia da igualdade. 10. A
ideologia da justiça. 11. A ideologia da socie-
dade fraterna. 12. A ideologia da sociedade plu-
ralista. 13. A ideologia da sociedade sem pre-
conceitos. 14. A ideologia da paz na ordem in-
terna e ordem internacional. 15. Sob a proteção
de Deus.
1. Introdução
A Constituição brasileira de 1988 con-
tém magnífico Preâmbulo:
“Nós, representantes do povo bra-
sileiro, reunidos em Assembléia Na-
cional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a as-
segurar o exercício dos direitos sociais
e individuais, a liberdade, a seguran-
ça, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, funda-
da na harmonia social e comprome-
tida, na ordem interna e internacio-
nal, com a solução pacífica das con-
trovérsias, promulgamos, sob a prote-
Sérgio Luiz Souza Araújo é Doutor em
Direito. Professor nas Faculdades de Direito
ção de Deus, a seguinte Constituição
da Universidade Federal de Minas Gerais e da da República Federativa do Brasil.”
Pontifícia Universidade Católica de Minas Analisando o Preâmbulo enquanto ex-
Gerais. pressão ideológica, percebe-se que extrai sua
Brasília a. 36 n. 143 jul./set. 1999 5
legitimidade da representação dos consti- igualdade econômica e social de indi-
tuintes do povo brasileiro. Está aqui uma víduos ou grupos. Não é por outra
claríssima demonstração de fé na democra- razão que a questão da eficácia das
cia, de fé no povo como fonte de todo o po- normas constitucionais programá-
der. É este, aliás, o objetivo imediato afirma- ticas, ou das normas-objetivo, apre-
do pelo Preâmbulo e imposto pela História: senta-se como um dos grandes pro-
a instituição do Estado Democrático. blemas atuais do direito público”4.
Nesse sentido que a tarefa mais importante
2. A ideologia democrática da ação política será a promoção e a conser-
vação do sentimento democrático, que tem
Segundo Fábio Konder Comparato, “é só
como um dos seus eixos de sustentação a
a democracia que garante ao máximo a ple-
tolerância. Como explica Marcelo Perine:
na satisfação dos legítimos interesses de in-
“Com efeito, o que se pode pedir
divíduos, grupos e da própria nação como
de todos os cidadãos numa socieda-
um todo”1. A ideologia democrática, na li-
de democrática não é a adesão a uma
ção de Antônio Carlos Wolkmer, “correspon-
filosofia ou a um dogma religioso, mas
de a um ideal de convicção positiva acerca
a convergência deliberada dos esfor-
da natureza humana, na medida em que de-
ços de todos para certos resultados
lega ao próprio homem a responsabilidade
práticos que podem suportar, subje-
de reger seu destino”2.
tivamente, explicações teóricas
Esse autor traz a lume os princípios fun-
diferentes”5.
damentais da democracia lecionados por
Reo Christenson:
“a) soberania popular; 3. A ideologia do Estado social
b) liberdade humana em sociedade; Entre os objetivos impostos pelo Preâm-
c) igualdade humana; bulo para serem assegurados pelo Estado
d) o consentimento e o princípio do Democrático estão: o exercício dos direitos
contratualismo; sociais e individuais; a liberdade; a segu-
e) o Estado é o depositário de poderes rança; o bem-estar; o desenvolvimento; a
delegados: princípio da repre- igualdade e a justiça. São esses os valores
sentação; supremos a serem garantidos pela Consti-
f) participação do cidadão no gover- tuição.
no; De todos esses valores, em primeiro pla-
g) ambiente da diversidade e conflito; no, é colocado o exercício dos direitos sociais
e e individuais. É importante notar que, em
h) fé democrática nos homens e no relação a esses direitos, em primazia, são
progresso”3. situados os direitos sociais. Com efeito, o
A fé na democracia estipulada no Pre- homem do nosso tempo não é um ser abs-
âmbulo é uma resposta ao regime ditatorial trato, como o imaginou a burguesia na Revo-
vigente no país durante vinte anos (1964- lução Francesa. O homem de hoje requer
1984). É uma demonstração de confiança no educação, saúde, trabalho. Está aqui o obje-
homem, pois só há possibilidade de vida tivo supremo, a inspiração normativa do de-
social, de ordem durável, com a inteira li- cidido intervencionismo estatal, a fim de que
berdade democrática. Convém notar que a o poder cumpra seus deveres para com a
democracia não deve ser entendida apenas sociedade e, assim, seja possível a plena re-
como um sistema de regulação formal da alização dos direitos e liberdades. A pleni-
vida política, mas, sobretudo, tude humana somente se concretizará se a
“como imposição de fins ou objetivos sociedade proporcionar as bases e reais con-
comuns, notadamente no campo da dições de sua efetivação.
6 Revista de Informação Legislativa
A ideologia constitucional impõe que a alcançar o poder e utilizar o Estado em pro-
prosperidade coletiva tenha clara primazia veito do proletariado, operando tranqüila-
em relação aos direitos de índole individua- mente a almejada transformação social, que
lista. Vemos, assim, que o Estado social alme- a burguesia tanto teme. Paulo Bonavides
jado pela Constituição brasileira é fruto da explica com muita lucidez:
intervenção ideológica do socialismo. Entre- “Quando o Estado, coagido pela
tanto, o “Estado social” não se confunde pressão das massas, pelas reivindica-
com o “Estado socialista”. A distinção é fei- ções que a impaciência do quarto es-
ta por Paulo Bonavides: tado faz ao poder político, confere, no
“Esse contraste que assim estabe- Estado constitucional ou fora deste,
lecemos nos permite escapar do erro os direitos do trabalho, da previdên-
usual de muitos que confundem o ‘Es- cia, da educação, intervém na econo-
tado social’ com o ‘Estado socialista’ , mia como distribuidor, dita o salário,
ou com uma socialização necessaria- manipula a moeda, regula os preços,
mente esquerdista, da qual venha a combate o desemprego, protege os en-
ser o prenúncio, o momento prepara- fermos, dá ao trabalhador e ao buro-
tório, a transição iminente. Nada crata casa própria, controla as profis-
disso. sões, compra a produção, financia as
O Estado social representa efetiva- exportações, concede o crédito, insti-
mente uma transformação superestru- tui comissões de abastecimento, pro-
tural por que passou o antigo Estado vê necessidades individuais, enfren-
liberal. Seus matizes são riquíssimos ta crises econômicas, coloca na socie-
e diversos. Mas algo, no ocidente, o dade todas as classes na mais estreita
distingue, desde as bases, do Estado dependência do seu poderio econômi-
proletário, que o socialismo marxista co, político e social, em suma, estende
pretende implantar: é que ele conser- a sua influência a quase todos os do-
va sua adesão à ordem capitalista, mínios que dantes pertenciam, em
princípio cardial a que não renuncia. grande parte, à área da iniciativa in-
Daí compadecer-se o Estado social dividual, nesse instante o Estado pode
no capitalismo com os mais variados com justiça receber a denominação de
sistemas de organização política, cujo Estado Social”7.
programa não importe em modifica- Para esse autor, o Estado ingressa na
ções fundamentais de certos postula- senda da socialização parcial quando a sua
dos econômicos e sociais”6. presença no domínio econômico se faz ain-
Para esse autor, o equívoco pertinente à da mais imediata e ele se põe a concorrer
distinção entre Estado social e Estado socia- com a iniciativa privada, nacionalizando e
lista se deve, ainda, ao fato de haver, no seio dirigindo indústrias. E exemplifica:
da burguesia e do proletariado, uma orien- “Quando o Brasil cria o monopó-
tação política que pretende chegar ao socia- lio estatal do petróleo e funda a Petro-
lismo por via democrática, criando previa- brás, não toma essa iniciativa doutri-
mente as condições propícias a essa transi- nariamente em nome de um Estado
ção política. O Estado social seria, portanto, social, mas de um Estado socialista,
um componente nessa transição, “seria meio embora não o confesse”8.
caminho andado”, de vez que esse Estado O Estado social que o Preâmbulo procla-
exige o reconhecimento por parte da bur- ma deve ser entendido conforme o conceito
guesia dos direitos do proletariado. E, entre elaborado por Paulo Bonavides:
esses direitos, os mais cobiçados seriam os “O Estado Social, por sua própria
direitos políticos, de vez que permitiriam natureza, é um Estado intervencionis-
Brasília a. 36 n. 143 jul./set. 1999 7
ta, que requer sempre a presença mili- beralismo enquanto ‘ismo’, ou seja, re-
tante do poder político nas esferas so- gime, ou mesmo doutrina, tal como nos
ciais, onde cresceu a dependência do séculos XVIII e XIX. Trata-se da per-
indivíduo, pela impossibilidade em sistência de valores: do valor liberda-
que este se acha, perante fatores de, do valor controle-dos-atos-esta-
alheios à sua vontade, de prover certas tais, do valor garantia-de-direitos, do
necessidades existenciais mínimas”9. valor ‘certeza jurídica’”12.
O que se busca no Estado social é a pri- Os direitos individuais são valores obje-
mazia da coletividade em relação ao indiví- tivos em normas jurídicas que atendem às
duo. É essa também a tônica do discurso de aspirações e às necessidades do homem. São
Rui Barbosa: valores fundamentais para a realização do
“Já não se vê na sociedade um homem e a convivência das pessoas. A pro-
mero agregado, uma justaposição de posta de uma sociedade comunitária, tole-
unidades individuais, acasteladas rante, tem como idéia diretora e vinculante
cada qual no seu direito intratável, o credo nos direitos do homem.
mas uma entidade naturalmente or-
gânica, em que a esfera do indivíduo 5. A ideologia da liberdade
tem por limites inevitáveis, de todos
Outro componente ideológico estipulado
os lados, a coletividade. O direito vai
no Preâmbulo é a liberdade. Sobre ela, diz
cedendo à moral, o indivíduo à asso-
Paulo Bonavides: “Discuti-la, conceituá-la,
ciação, o egoísmo à solidariedade
aplicá-la, eis o desespero dos constitucio-
humana”10.
nalistas, dos filósofos políticos, dos soció-
O Preâmbulo da Constituição brasileira
logos, de todos os teóricos do direito
de 1988 impõe, assim, como primeira meta
público”13.
a realização da justiça social11. É esse o fe-
A liberdade que o Preâmbulo proclama
nômeno ideológico maior que condiciona to-
como valor supremo não é a liberdade clás-
das as demais metas traçadas no Preâmbulo.
sica do liberalismo14.
É, portanto, a partir dessa ideologia que se
Para se conceituar a liberdade, tem de se
pode configurar com clareza a ordem jurí-
levar em consideração os fatores econômi-
dica introduzida e a sua efetiva possibili-
cos, pois esses são indispensáveis à verda-
dade de eficácia.
deira liberdade humana. A liberdade de que
fala o Preâmbulo é a liberdade de luta con-
4. A ideologia dos direitos individuais tra as injustiças sociais e econômicas do
No Preâmbulo, está também assegurado mundo capitalista; é a liberdade – diz
o exercício dos direitos individuais. Essa Joaquim Carlos Salgado – “de busca do ho-
meta deve ser entendida em conformidade mem de sua justa participação na riqueza
com a doutrina de Nelson Saldanha: social”.
“A permanência de moldes cons- Não é outra coisa o que diz Cecília Mei-
titucionais provindos do esquema li- reles: “Ser livre é ir mais além: é buscar ou-
beral, dentro do Estado dito social, tro espaço, outras dimensões, é ampliar a
deve ser considerada em conexão com órbita da vida”15.
a sobrevivência de valores liberais Nesse enfoque ideológico em que trata-
dentro das sociedades contemporâ- mos a liberdade, convém transcrever a ma-
neas, dominadas sem embargo por vá- gistral lição de Joaquim Carlos Salgado:
rios traços antiliberais, ou por tendên- “Num terceiro momento, liberda-
cias socializantes e estatizantes. de surge não só como idéia que diri-
Não se trata, convém salientar de me o conflito escolha-norma, mas tam-
imediato, de uma permanência do li- bém o que possa existir entre o agir
8 Revista de Informação Legislativa
humano e o determinismo do mundo de toda ordem jurídica. Essa idéia é desen-
natural. Nesse caso, a liberdade é o volvida por Charles de Visscher:
domínio da natureza, pelo seu conhe- “Le droit ne trouve son expression objective
cimento e pelo trabalho. Aqui se arti- et sa sanction que dans l’appui du pouvoir; le
culam os valores polares que norteiam pouvoir reste preáecaire s’il heurte trop ouverte-
a construção de uma sociedade racio- ment le droit. Aussi longtemps que la tension
nal no mundo contemporâneo: a liber- virtuelle qui existe entre eux ne sépasse pas cer-
dade e o trabalho enquanto valores que taines limites, le souci d’un ordre a maintenir
se incorporam como conteúdos dos di- peut retenir l’action politique du povoir dans
reitos axiais da pessoa humana, que l’orbite du droit. La nécessité de l’ordre est ainsi
atendem à realização do homem nas le point de coincidence où la politique et la justi-
duas dimensões, em que, desde Aris- ce peuvent se recontrer et se compléter mutuelle-
tóteles, convencionou-se considerá-lo: ment”18.
zóon logikón – De tal modo essas di- É nesse sentido o raciocínio de Recaséns
mensões axiológicas se articulam que Siches:
não é possível falar em trabalho (hu- “uma das antinomias do Direito con-
mano) sem que seja obra criadora, siste precisamente em que este deve
portanto livre, de um ser racional, do servir a um propósito de certeza e se-
mesmo modo que não se pode pensar gurança e, ao mesmo tempo, às neces-
um ser livre sem o trabalho que de- sidades suscitadas pela mudança so-
senvolve no seu mundo e em si mes- cial e pelos desejos de progresso”19.
mo, pois que o homem se faz livre na É assim extremamente atual a afirmação
história (Hegel): a realidade que o ho- de Fábio Konder Comparato:
mem trabalha e muda, enquanto ser “Parece óbvio que a segurança,
livre, não é, nesse caso, apenas a rea- como resultado a democratização,
lidade natural (stricto sensu), mas a sua só pode ser obtida, nas atuais con-
própria realidade humana. É nesse dições históricas brasileiras, com a
sentido que a liberdade é o piso sensível diminuição das desi-
(Hegel) e o teto do direito, e dirige o gualdades sociais, que o regime
destino do Ocidente para a constru- empresarial-militar de 64 acentuou,
ção de uma sociedade igualitária e li- desmedidamente”20.
vre, ou seja, em que toda forma de do-
minação se substitua no consenso da 7. A ideologia do bem-estar
‘Razão que é a todos’”16. O bem-estar como valor fixado pelo Pre-
Para esse autor, a liberdade deve ser pen- âmbulo só assume vigência com a efetiva-
sada como forma de vida numa sociedade ção do real exercício da liberdade, da ordem,
racionalmente organizada, “em que se su- da justiça, da segurança e da prosperidade
pere a contradição direito-poder, sem o que de todos.
toda ação que se dirige a construir uma so- O bem-estar está intimamente ligado ao
ciedade justa ou livre será cega, sem nenhu- valor desenvolvimento do qual trataremos a
ma perspectiva de progresso para melhor”17. seguir.