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V A L T E R A .

R O D R I G U E S

CORPO, TÉCNICA E MÍDIA:


SIMULAÇÕES DE POTÊNCIA

S U B J E T I V I D A D E
PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA E MERCADO

V O L U M E I I

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CÁSPER LÍBERO


PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU COMUNICAÇÃO E MERCADO
S Ã O P A U L O 2 0 0 1
Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,


onde as formas e as nações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,


e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra


e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas


sobre coisas do tempo futuro e negócio do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota


e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade

274
P A R T E I I

ESCHER, Reptile, 1943

DE UM MUNDO
A O U T R O
[M ESMO ] M U N D O
A objetivação do mundo compreende formas de organização da
realidade significadas coletivamente, em um primeiro momento,
como espaço vivível. Entretanto, a cada modo de organização
objetiva correspondem formas diversas de subjetivação do que foi
objetivado, o que determina reinvestimentos desejantes singulares
dessa realidade que a transformam, ou que, pelo menos,
demandam dela transformações. Os tempos da realidade
objetivada e os das demandas subjetivas e singulares, no entanto,
raramente têm o mesmo compasso, são mais freqüentemente
dissociados, assim como são diversos e dissociados os espaços, tal
como se apresentam a cada um de seu lugar de observação. A ação
instituinte do acordo originário entre os homens produz lugares
instituídos que irão determinar a direção e os limites das novas
ações instituintes, experimentadas, conforme sua intensidade e sua
extensão, como construtivas ou destrutivas dos planos de
consistência nos quais se validam e se legitimam os lugares
instituídos. Às sedimentações dos territórios, aos seus estratos,
segmentaridades flexíveis e segmentaridades duras irão compor
com eles suas conectividades ou suas linhas de fuga, de forma que
aos diferenciais que estabelecem os níveis das segmentaridades
correspondem fluxos variáveis de forças. Nesta PARTE II, tomo
como ponto de partida a objetivação do mundo, tal como
formulada pela parte homogênica da sociedade, procurando
compreender os lugares designados às heterogêneses, assim como
suas manifestações, suas reapropriações, suas exclusões. Em
seguida, ensaio algumas leituras da produção televisiva,
procurando articular o plano desenhado na PARTE I com esses
modos de objetivação do mundo, de forma a reconhecer os extratos
efetuados pela mídia em sua atual configuração.

276
CAPÍTULO 3

ESCHER, Convex and concave, 1955

F O R A
O que esperamos, reunidos assim na praça?
Os Bárbaros vão chegar hoje.
Por que esse marasmo no Senado? Por que os senadores não estão
legislando?
É porque os Bárbaros vão chegar hoje. Que leis votariam os senadores?
Os Bárbaros, ao chegar, farão a lei.
Por que nosso imperador, acordado desde a aurora, está sentado sob
um dossel nas portas da cidade, solene com a coroa na cabeça?
É porque os Bárbaros vão chegar hoje. O imperador prepara-se para
receber seu chefe. Ele mandou até preparar um pergaminho, no qual lhe
outorga denominações honoríficas e títulos.
Por que nossos dois cônsules e nossos pretores envergam suas togas
vermelhas bordadas? Por que estão enfeitados com pulseiras de
ametistas e faiscantes anéis de esmeraldas? Por que trazem seus
preciosos bastões, delicadamente cinzelados?
É porque os Bárbaros vão chegar hoje, e esses objetos caros deslumbram
os Bárbaros.
Por que nossos hábeis retóricos não peroram com sua costumeira
eloqüência?
É porque os Bárbaros vão chegar hoje. Eles não apreciam nem as belas
frases, nem os longos discursos.
E por que subitamente esta inquietude e esta confusão? Como as
feições se tornaram graves! Por que as ruas e as praças se esvaziam
tão depressa e por que voltam todos para casa com um ar tão
sombrio?
É que a noite caiu e os Bárbaros não chegaram. E veio gente das
fronteiras dizendo que não existem mais Bárbaros...

E agora, o que será de nós sem os Bárbaros? Essa gente, pelo menos,
era uma solução.

Konstantinos Kavafis, En attendent les Bárbares


(À espera dos Bárbaros) (in Enriquez, 1990: 366-367)
CENSURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Quem somos nós, que para sermos nós mesmos,


sujeitos dotados de razão, temos necessidade de
confinar os loucos (História da loucura); quem
somos nós que, para sermos nós mesmos, construímos
fortalezas para delinqüentes (Vigiar e punir)?
(Frederic Gros, Foucault e a questão de quem
somos nós, Tempo Social, 7[1-2], 1995: 178)

Conforme indicado na APRESENTAÇÃO, foi a partir de uma consulta a


segmentos expressivos da população, com a pesquisa “Valores sociais e
meios de comunicação de massa”, que o Ministério Público Federal definiu
os termos da Portaria 796. Foi comentada também a reação, em muitos
aspectos excessiva, dos empresários de comunicação em relação às medidas
classificatórias da programação televisiva por faixa etária e de horário, que as
apontaram como indício de um fantasmático retorno da censura. Essa reação
merece uma avaliação mais aprofundada, particularmente no que diz
respeito a uma concepção de liberdade de expressão que é, em sua quase
totalidade, bastante unilateral e restrita.
É em nome de um suposto ideal democrático de bem-estar
caracteristicamente liberal, centrado na mercadização de produtos e idéias e,
por conseguinte, naquilo que lhe dá materialidade – o dinheiro (subsumido
como mercado), representado pelos altos índices de audiência que justificam
tanto os elevados custos publicitários de seus horários quanto a legitimidade
do que apresentam como consonante com o gosto do público –, que os
empresários da mídia vêm se insurgindo sistematicamente contra todo e
qualquer esforço de regulação e regulamentação de sua programação,1
buscando mobilizar a opinião pública pela evocação da memória recente do
país, quando este esteve mergulhado na privação de acesso à informação

1 Os princípios da moral utilitária, apresentados na INTRODUÇÃO, participam


expressivamente de seus argumentos, principalmente na ocultação de sua unilateralidade.

279
pela ação da censura durante o governo militar. A censura, mesmo que
fantasmática, é algo, portanto – concordam não só empresários como
profissionais da comunicação e cidadãos,2 incluindo entre eles o próprio
Governo –, que não pode retornar, sob o risco de as conquistas democráticas
pós-anos 80 desmoronarem.
Palavra a evocar e contra-argumento a ser levantado de modo a
justificar a mobilização de armas retóricas e jurídicas em relação ao que é
apontado como arbitrário em toda e qualquer delimitação de uma ação, a
censura merece, entretanto, atenção mais cuidadosa, para além de sua
simples recusa como “antidemocrática”, na medida em que ela não se exerce
simplesmente como vontade de alguns contra outros nos processos de
autolegitimação conforme as posições ocupadas pelos agentes nas relações
de força que constituem o campo social, relações essas nas quais, até
recentemente, no Brasil, o Estado aparentemente3 reinou soberano. O

2 De acordo com a pesquisa da Unesco, de 75% dos pesquisados que acham que deve existir
algum tipo de controle da programação externo ao exercido pela família, 17% sugerem a
classificação por faixa etária e horário e 17% censura/corte/proibição de temas impróprios.
Apesar do empate, citações espontâneas sugerem uma predominância da classificação sobre
a censura. Porém, ao serem estimulados (ainda os 75% da amostra que acham que deve
haver controle), mediante as opções censura x classificação por faixa etária e horário,
posicionam-se da seguinte maneira: Classificação por idade e horário – 64%; Censura – 32%;
Não souberam se posicionar – 4%.
3 Só aparentemente, claro, na medida em que a suas deliberações sempre esteve associado

um sem número de grupos de interesse, nacionais e internacionais. Como vimos


anteriormente, o poder, por mais que aparente ser centralizado, sustenta-se de uma rede
descentralizada de poderes (cf. Foucault, 1977b), ou, vale dizer, de uma segmentaridade que
lhe é intrínseca: “El estado no sólo se ejerce en los segmentos que mantiene o deja subsistir,
sino que posee en sí mismo su propia segmentaridad, y la impone. La oposición que los
sociólogos establecen entre central y segmentario quizá tenga un transfondo biológico: el
gusano anélido y el sistema nervioso centralizado”. A concepção cartesiana da Natureza
como relógio e a Razão/pensamento como seu artífice à similitude de Deus (INTRODUÇÃO, p.
85), ou a representação do sistema social como organismo homogêneo e equilibrado que
deve sustentar-se com suas representações coletivas como tal, organismo do qual os
indivíduos são parte constituinte, presente em Durkheim, podemos dizer que ressoam esse
fundo. “Pero el próprio sistema nervioso central es un gusano, aún más segmentarizado que
los otros, a pesar y incluidas todas las vicariancias. Entre central y segmentario no hay
oposición. El sistema político moderno es un todo global, unificado y unificante, pero
precisamente porque implica un conjunto de sistemas yustapuestos, imbricados, ordenados,
de suerte que el análisis de las decisiones pone de manifiesto todo tipo de
compartimentaciones y de processos parciales que no se continúan entre sí sin que se
produzcan desfases o desviaciones. (...) Diríase que las sociedades modernas han elevado la

280
problema é que sua operatividade não se reduz aos campos molares/totais
das representações.
A censura – recalque, rapto, seqüestro4 – manifesta-se fortemente
também, qualquer que seja o regime político instituído e os diagramas de
Poder que delimitam e gerem as ações dos corpos, como processo
intrasubjetivo e, por decorrência, inter e transubjetivo, ativada por formações
conscientes ou inconscientes (individuais e coletivas) que visam o evitamento
de um conflito emergente entre duas disposições contrárias que
ultrapassaria, em dado momento, o limiar de suportabilidade de sujeitos ou
de grupos capturados por essa emergência. São essas “disposições”, aliás,
que definem a qualidade dos encontros de corpos enquanto bons ou maus, e,
por extensão, como cristalizações da experiência, nossos conceitos de “bem”
e “mal”, que passam, então, a atuar como reguladores do reconhecimento do
“bom” e do “mau” (as causalidades e idéias inadequadas formadas pela
atividade imaginativa dos corpos em seu encontro com outros corpos,
conforme as intensidades das forças na relação com outras forças [o poder
em relação ao qual cada um se constitui] e a forma como se as faz dobrar
para si e se as desdobra para o exterior [as construções subjetivas e sua
efetuação em ações no exterior]).

segmentaridad dual al nivel de una organización eficiente” (Deleuze & Guattari,


Micropolítica y segmentaridad, 1988: 215).
4 Seqüestro foi o termo proposto por Mário de Andrade para o freudiano recalque, e aparece

em seu livro de viagens O turista aprendiz, no qual, como em outras obras, mapeia a cultura
popular brasileira regional, lendo-a em confronto com suas apropriações – seu seqüestro –
pelas formas de saber constituídas pelo e no meio urbano. Mário de Andrade era leitor de
Freud, como muitos modernistas (mobilizados pelas reuniões organizadas pelo psiquiatra
Durval Marcondes, primeiro leitor de Freud no Brasil, nos anos 20), tendo feito de seu
Macunaíma, um herói sem caráter, o “Totem e Tabu” nacional, propondo-o como mito de
nascimento de nossa cultura. O termo aparece também em Foucault (1996) para indicar as
instituições que surgem no início do século XIX – fábricas, hospitais, escolas, casas de
correção, prisões –, às quais chama de “instituições de seqüestro”, na medida em que a
reclusão operada por elas não visa excluir o indivíduo, mas sim incluí-lo num sistema
normalizador. É nesse sentido de reclusão do telespectador (no espaço doméstico em que
ocorre a recepção) e de inclusão em um determinado sistema (de representações, de ações, de
sentidos, de consumo), pela transformação das intensidades mobilizadas pelas imagens em
intencionalidade, que utilizo o termo para referir-me à função modelizadora da
subjetividade sustentada pela mídia televisiva.

281
A resolução do conflito, quando ocorre, se dá, na experiência, por
supressão ou recalque, ou, quando efetuada no exterior, confronto com o
conteúdo ou evento ou personagem perturbador, com mobilização tanto de
forças ativas/transformadoras como reativas/conservadoras5 (Nietzsche,
apud Naffah Neto, Genealogia das neuroses, in Cadernos de Subjetividade, v. 1,
n. 1, 1993, p. 63-88); na ordem dos relatos e das representações, por deslocamento
e/ou condensação (Freud), operações próprias da linguagem traduzidas
respectivamente, emprestados os termos da lingüística, como metonímia
e/ou metáfora por Lacan;6 na ordem dos discursos, considerada a função

5 Forças inconscientes ativas e forças inconscientes reativas, que correspondem


respectivamente, na genealogia nietzscheana dos circuitos de vida, ao circuito-nobre
(predomínio das forças ativas sobre as reativas) e ao circuito-escravo (predomínio das forças
reativas sobre as ativas). Nesses circuitos, temos sempre uma composição de forças ativas e
reativas, com predomínio de umas sobre outras, e não simplesmente oposição excludente
entre elas. As forças reativas, em composição com e dominadas pelas forças ativas, são
necessárias para as funções adaptativas; entretanto, quando são elas que predominam sobre
as forças ativas, instaura-se o circuito-escravo e a conversão de todas as forças (ativas e
reativas) em ressentimento, como ocorre na dependência e sujeição extremas à exterioridade
ou na agressividade violenta e gratuita contra o outro. O que possibilita que as forças ativas
controlem as reativas “é um mecanismo que Nietzsche denomina esquecimento e que separa a
consciência desse inconsciente reativo, formado de marcas mnêmicas; não fosse o
esquecimento, a consciência se veria invadida por lembranças e sentimentos do passado,
incapacitada de operar em sintonia com o presente-em-devir e as forças reativas tomariam o
controle das forças ativas (que é o que define justamente o circuito-escravo). O esquecimento,
por sua vez, tem o seu funcionamento garantido pela capacidade de o corpo e o espírito
‘digerirem’, metabolizarem os acontecimentos passados, o que significa que sempre que isso
não acontece esses acontecimentos passados permanecem, sob a forma de lembranças e
sentimentos, como fantasmas, invadindo o presente e subvertendo o controle das forças
ativas” (Naffah Neto, op. cit., p. 64).
6 É interessante lembrarmos que a metáfora e a metonímia, aqui tratadas como formações do

inconsciente, são tropos da retórica que foram farta e deliberadamente utilizados por artistas
e intelectuais no período da censura do governo militar brasileiro, de forma a poderem
tornar públicas suas produções. Quando, mais tarde, com a suspensão da censura, tais
recursos tornaram-se desnecessários para se dizer o que se desejava, alguns deles chegaram
a experimentar “crises de criatividade”, o que afetou temporariamente a qualidade poética
de suas produções. No cinema antes da liberalização, quando o nu e o sexo deviam ficar fora
da cena (já que considerados obscenos), recorria-se freqüentemente a esses tropos metafóricos
e metonímicos: o casal abraçava-se e a seqüência seguinte mostrava o mar revolto, a chama
de uma fogueira (recursos tornados comuns, entre outros mais criativos). Podemos dizer que
a liberdade, antes tão cantada e desejada em um porvir, ao ser conquistada, determina a
perda da efetividade de algumas formas de expressão (já que constituintes de territórios que
se desmancharam ou perderam sua efetividade, cf. Rolnik, 1989) e força a emergência de
outras. O próprio nu, utilizado transgressiva e poeticamente por alguns cineastas e
encenadores teatrais, já funcionou como elemento mobilizador e politicamente crítico. Com
sua banalização, atualmente a utilização transgressiva/crítica do nu demanda uma alta
inventividade. As produções teatrais de José Celso Martinez Correa, por exemplo,

282
consignativa da linguagem, por captura, ordens, serialização, rostificação.7 A
censura, entretanto, seja na experiência ou nessa articulação linguagem/
sistema explicativo que busca resolver ou evitar um conflito, não deixa de se
operar, qualquer que seja a situação em que o conflito se manifeste: seja na
relação do sujeito com suas prerrogativas, seja na relação de um corpo com
outro corpo, seja nas relações que constituem o campo social perante
acontecimentos que ponham em risco suas próprias homogêneses
constituídas anteriormente por escolhas determinadas nas ordens de relações
que organizam as práxis do viver. Caminhando mais extensamente, o
próprio recurso a qualquer sistema explicativo para acontecimentos que, na
experiência, nos surgem do nada (Maturana, 1999) pode ser subsumido como
forma de “censura”,8 se pensarmos na potência de nos alterar que
acontecimentos, matérias de expressão e encontros podem ter, aos quais
respondemos, cada um, com o que nossa própria potência nos permite em
dado momento. Nesses casos, a “censura” funcionaria, pelo recurso aos
sistemas explicativos, como mobilização de sistemas defensivos, protetores e
“racionais” (no sentido comumente empregado como “racionalização”) de
modos de vida que, se desfeitos, obrigariam o sujeito a rever suas escolhas e

esteticamente transgressivas e politizadas nos anos 60/70, como Roda viva, Na selva das
cidades (com a atriz Ítala Nandi nua em uma seqüência na qual um véu semitransparente
intermediava palco e platéia), O rei da vela, perderam esse caráter em algumas de suas
montagens mais recentes (como As bacantes, de Eurípedes, com uma duração média de 5
horas, ou Para acabar com o juízo de Deus, de Artaud, ambas em meados dos anos 90), com
provocações de pretensões “orgiásticas” (nus, palavrões, gestos “obscenos”, oferta de
bebidas e de cigarros de maconha à platéia, incitações de ações anárquicas) de efeito mais
saturante que mobilizador de respostas do público. Como Lei e transgressão são
indissociáveis, o transgressivo de um momento transforma-se em lei em outro momento,
quando não se banaliza e perde seu caráter disruptivo: cada tempo produz e efetua sua
própria est[ética]. Os excessos da mídia televisiva, hoje, com seu propósito de mais e mais
“ousadia” na luta concorrencial pela audiência, parecem sofrer dessas mesmas “derivas da
liberdade”, sendo rapidamente assimiladas sem grandes inquietações morais, atuando, por
essa razão, mais como modelizadoras do que como provocadoras de dissonâncias, como
veremos melhor em alguns exemplos apresentados no CAPÍTULO 4 – DENTRO-FORA.
7 Associo rostificação e censura no sentido de que, ao se tornarem hegemônicas

determinadas formas de expressão, quaisquer outras que surjam como delas divergentes
passam a ser consideradas inadequadas, incompreensíveis ou simplesmente não
reconhecíveis como expressivas.
8 Inclusive sistemas teóricos que possamos convocar como sistemas explicativos na

apreensão da realidade.

283
avaliar o quanto elas são afirmativas ou restritivas de sua “potência de viver,
agir e ser, isto é, existir em ato”.
Temos, portanto, dois modos de censura que se imbricam quando a
pensamos em relação à liberdade de expressão: aquela que se exerce
enquanto ação externa, infinita, vinda do mundo sobre nossa ação e aquela
que se exerce como limite interno e finito de nossa própria ação.9 O que é
identificado como a) “liberdade” de b) “expressão” é, portanto, dependente
tanto de a) nossa concepção objetiva (e, conforme nossos modos de
subjetivação, objetivável) da realidade (assim, liberdade enquanto o que
podemos realizar em determinado contexto e conforme nossa potência para
pensar e agir) quanto b) das matérias de expressão que estamos aptos a
produzir e a escolher, conforme nossa potência e nossas escolhas por
experiência, que são, por sua vez, possibilitadoras de nossa experiência e de
nossas formas de apreensão da experiência (Maturana, 1999). Expressão,
ainda, que, na filosofia espinosana,

“não significa uma relação regulada e constante de correspondência entre


elementos heterogêneos, e sim a forma da relação intrínseca entre
homogêneos” (Chaui, 1999: 75).10

9 Esse limite interno e finito pode assumir características perversas. Quando introduzimos o
desejo em um sistema que não o das pulsões, fazendo com que ele desempenhe nesse
sistema a função de um limite interior (por exemplo, a partir de uma restrição religiosa, ou
pelo fato de ocuparmos determinada posição hierárquica em relação ao outro), podemos
hesitar, não responder ou responder com censura restritiva a um apelo, a uma demanda, a
uma afetação, supondo que estamos agindo ética ou moralmente, ou, contrariamente,
podemos agir em favor próprio valendo-nos da posição privilegiada que ocupamos em
relação a um outro. Tanto em um caso como em outro, o que constituímos com o outro, seja
suspendendo a ação, seja efetuando-a, pode se configurar como um campo perverso, com
seus possíveis desdobramentos (ver INTRODUÇÃO, Nota 130).
10 Esta observação nos será útil nos desenvolvimentos subseqüentes, quando tratarmos do

corpo expressando-se enquanto “corpo inteiro” (por rostificação, conforme introduzido na


PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA), sem que, por isso, possamos falar de uma “mente
humana” como expressão psíquica do corpo. “O bloqueio à verdade não nasce da ligação corpo-
alma, e sim do fato de que a alma deixa a iniciativa do conhecimento ao corpo e este só é
capaz de imaginar, pois não é de sua natureza pensar” (Chaui, Paixão, ação e liberdade em
Espinosa, FSP, Mais!, 20.08.2000: 14-17).

284
O telespectador que se expõe àquilo que lhe é apresentado, isto é, o
que lhe vem dos fluxos da programação televisiva-mundo, compõe com
esses fluxos suas matérias de expressão conforme os valores que lhe
permitem estabelecer suas próprias equivalências (eixo axiológico), seus
recursos expressivos (eixo semiótico), as conectividades que pode estabelecer
(eixo topológico) e a intensidade com que investe determinadas imagens
(eixo energético), sendo na imanência dessas dimensões que se definem seus
limiares de suportabilidade às forças que lhe chegam do exterior televisão-
mundo e se dobram sobre suas próprias forças. Limiar, portanto, que
corresponde à finitude das forças que dele se desdobram para o exterior
nessa relação de forças. Ou, dito de outra forma, considerando a imanência
dessas dimensões, conforme seus próprios atratores psíquicos, suas próprias
“censuras”, mais ou menos flexibilizadas em suas experiências.
A comoção perante alguns temas ou quadros apresentados pela mídia
– não necessariamente trágicos ou dramáticos como a exposição de corpos e
escombros em acidentes de grandes proporções, mas também os
“anedóticos” e parciais, como o amplamente debatido “sushi erótico”11
servido sobre o corpo de uma modelo nua no Domingo Legal de Gugu
Liberato (SBT) e retomado no Domingão do Faustão (Globo) – expressa bem

11 Lígia Clark, Canibalismo (www.informarte.net): um grupo de pessoas, de olhos vendados,


come o alimento depositado sobre o ventre de uma pessoa nua, deitada. A experiência é
realizada em silêncio, e lentamente. O propósito é que cheguem a um estado indiferenciado:
até onde comem o alimento depositado sobre o corpo do outro, até onde comem seu próprio
corpo? A pessoa deitada, também com os olhos vendados, experimenta a sensação do
alimento sendo retirado de seu corpo e devorado pelas pessoas a sua volta como devoração
do próprio corpo. Um ritual canibal, uma experiência das intensidades, na mistura e
incorporação dos corpos sensíveis e de seu finito ilimitado; experiência da superfície.
Televisão, Sushi erótico (Domingo Legal, Gugu Liberato, SBT): salvo pelos gritos, música,
luzes, excitação nervosa e intenção erótica, a ação na televisão aparentemente é a mesma,
embora a experiência seja radicalmente diferente. O sushi erótico é, todo ele, um
entretenimento intencionalmente genitalizado, para ser visto, efeito de superfície que se reflete
em índices de audiência e infindáveis debates sobre a “ousadia” televisiva (ser “ousado” é a
expressão máxima de “liberdade” da eterna adolescência mediática). O canibalismo de Lígia
Clark, uma experiência singular, sensível, especular e reflexiva das intensidades, que avança
da superfície para a profundidade; uma (est)ética aberta aos devires, a um devir-outro para
além da forma-homem. Quando se discute as atrações da televisão, fala-se muito do que se
faz, muito pouco do como se faz. Penso ser este um bom exemplo da diferença entre o que é
feito para mostrar, exibir, excitar, espetacularizar – e eventualmente chocar – e o vivido, que
é, como propiciador de experiências, transformador, especular e aberto ao devir.

285
sua ambigüidade, marcada por atração e repulsa. Aquilo que revolta ou atrai
mais imediata e energicamente o faz em proporção direta com as
intensidades mobilizadas no encontro com o que se presenta;12 é a
impossibilidade de simular essas intensidades em matérias de expressão sem
que o território existencial habitado seja ameaçado de se desmanchar que
gera a repulsa; da mesma forma, essa mesma impossibilidade, que pulveriza as
intensidades mobilizadas em partículas desterritorializadas de afeto, pode
gerar formas de atração e aderência bastante reativas e intencionais,
expressões de uma síndrome-de-carência-e-captura de contornos ora
histéricos, ora perversos, ora paranóicos.13 A resposta de repulsa não
desintensifica o que foi mobilizado, opõe-lhe forças, transforma-se em força

12 Como já indicara Bataille, em relação à revolta perante os textos de Sade (1968) (ver
INTRODUÇÃO, item “A Experiência Extrema”) ou como a psicanálise nos demonstra, na
análise das formações sintomáticas derivadas de um desejo (conforme sua energética, sua
economia) que demanda realização sem, entretanto, encontrar recursos para isso; desejo que,
inscrito pela falta ou carência, pode retornar sobre si mesmo, na forma de ressentimento (re-
sentir, sentir de novo, como vivência passiva, de forma impotente e incapaz de reação no
presente-em-devir, o que foi experimentado no passado). No atual quadro da cultura
ocidental, apesar dos discursos que investem a mudança e o novo, as forças ativas são
fortemente despotencializadas pelas reativas, já que prevalecem, sobre a emergência de
novas forças, valorações morais (culpabilizantes), determinação de intencionalidades e
multiplicação de seus códigos de inscrição.
13 Na PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, foi introduzida a noção de rostificação para identificar

o processo de modelização da subjetividade no contato do corpo com as imagens-técnicas


(embora as rostificações não se restrinjam a essa relação corpo-imagens técnicas, estou me
limitando a ela aqui), tendo sido retomada, naquele momento, a dimensão constitutivamente
perversa do corpo, com sua articulação disjuntiva – suas hesitações, suspensões, dilemas –,
paralelamente à dimensão teológica da linguagem, como silogismo disjuntivo (ou isto, ou
aquilo), apresentada na INTRODUÇÃO (item “A Experiência Extrema”), determinante de
apreensões do acontecimento segundo alguns sistemas totais e fechados em sua própria
redundância. A síndrome de carência-e-captura é uma micropolítica do desejo e responde às
estratégias de produção de desejo dominante que são operadas na relação corpo-mídia (como,
também, nos [des]encontros de corpos atravessados por sistemas fechados conforme suas
modelizações), tão mais intensas e “eficazes” quanto mais a mídia funcione, para os esforços de
simulação de potência do corpo, como uma “central de distribuição de sentidos e valores”, isto é,
como principal sistema de referência para a composição, pelos que a ela se expõem, de seu
próprio território existencial. Como forma de investimento narcísico, ela cumpre um circuito que
não cessa de se refazer em seus sintomas: “fechamento narcísico à alteridade e seus efeitos no
corpo vibrátil ⇒ desterritorialização vivida como carência ⇒ impossibilidade de criar
cartografias ⇒ espelhamento narcísico em mapas ⇒ captura de mais-valia do desejo para o
fortalecimento dos mesmos mapas e reprodução da mesma micropolítica” (Rolnik, 1989: 122).
Ver também Nota 10, neste CAPÍTULO: essa síndrome-de-carência-e-captura corresponde aos
corpos procurando se expressar como “corpos inteiros”, “ajustando-se” ao ideal-do-eu, que não
cessa de reatualizar-se perante as modelizações mediáticas (cf. INTRODUÇÃO, Nota 85).

286
reativa, em resposta emocional, moral ou ideológica que demanda uma
supressão. A resposta de atração por carência-e-captura, por sua vez, conforme
podem cada corpo e cada alma, gera aderência a-crítica às modelizações, de
efeitos anestesiantes e desterritorializantes da afetividade, que assumem,
como resultado mais visível, por exemplo, o que tem sido identificado como
banalização do território amoroso e sexual, banalização que passa a ser
normatizada como a “verdade” da vida dos corpos,14 e se estende para o
definição dos limites no contato com o outro – e dos próprios limites – cuja
ultrapassagem ou violação se expressa nas muitas formas de violência
presentes nas relações interpessoais e no espaço urbano. Um
desmanchamento dos limites que não se dá na intensidade das afetações,
mas por sua desintensificação, por anestesiamento do corpo vibrátil,
determinando uma responsividade do corpo que é ativada por incitações,
por comandos, por imperativos, por seqüências codificadas de signos,
cumplicidades e intencionalidades,15 condições estas que acentuam a força
das modelizações e lhes conferem um caráter unidimensional.
Partindo dessa processualidade do desejo humano na articulação
corpo-linguagem-mídia, é outra a compreensão que podemos ter da
“aprovação” do público, sinalizada pelos índices de audiência, que assegura
à mídia a legitimidade de sua liberdade de expressão e de sua disposição

14 É essa a perspectiva das leituras de Anatrella (1992) apresentadas na PARTE I, CAPÍTULO 2 –


DENTRO-FORA, como efeitos da liberação do corpo e do sexo a partir dos anos 60, que se
refletem nos sistemas explicativos da medicina e da sexologia e sua biologização de um e
outro. Não se trata, aqui, de verificar o caráter de verdade das afirmações da sexologia, mas,
sim, por sua aparência de racionalidade e cientificidade, indicar sua rápida assimilação pelos
discursos veiculados pela mídia, que as celebram imperativamente como sinais da superação
de velhos preconceitos morais que construíram as noções de conflito ou de pecado ligadas à
atividade e às escolhas sexuais. Nesse sentido, ver a resposta de um psicólogo “sexual” à
consulta de um telespectador no Programa Livre (Babi, SBT) (CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO).
15 Por exemplo, frases e gestos com predominância de referências sexuais que não encobrem seu

duplo sentido, mas que, ao contrário, acentuam sua intencionalidade, numa cumplicidade com o
público do auditório e com o telespectador, são comuns na programação televisiva, de
programas “sofisticados” como Programa do Jô (Rede Globo) a “populares” como Festa do
Mallandro (TV Gazeta), indicando que é só nisso que devemos pensar, é só isso que deve
interessar a todos, é só isso que devemos extrair dos encontros de corpos. É essa redução do
desejo ao genital que não cessa de nos restituir ao círculo vicioso do não-querer-saber sobre
nosso gozo e nossas demandas.

287
"liberal e democrática" de satisfazer a demanda e o desejo de seu público. A
“liberdade de escolha”, por parte do público, centrada na idéia de livre-
arbítrio, esbarra no caráter afetivo da recepção e na demanda ansiosa, pelo
telespectador capturado na síndrome-de-carência-e-captura, de produção de
matérias de expressão sempre atuais, de forma a manter atualizados seus
sistemas de referência quanto aos acontecimentos do mundo, seja pela
abundância de informação, seja pelas sinalizações das tendências
comportamentais e de moda, às quais se adere mesmo que sob o risco da
própria derrisão, como nos sugere o desejo de visibilidade mediática
(contrapartida individual da espetacularização mediática do mundo) ou a
aceitação dos sacrifícios exigidos pelos reality shows, como no polêmico No
Limite, da Globo, que propõe a seus participantes a experiência de “testar os
próprios limites físicos e emocionais”, o que significa, quase que
invariavelmente, “ultrapassar” – mas não elaborar, compreender, superar,
atravessar – as próprias repulsas (aos alimentos “exóticos” propostos nas
provas, por exemplo) por um “bem” maior, no caso, manter-se visível como
participante no jogo e na concorrência pelo grande prêmio final. “Os fins
justificam os meios”, reza a “ética” dos reality shows.
A aderência e demanda a essas modelizações é tão mais forte quanto
menores são os recursos internos possíveis de serem reconhecidos como
próprios, isto é, quanto mais passivos forem corpo e alma (cf. Espinosa). As
condições reais de existência em um mundo determinado pelo consumo e pela
sujeição à exterioridade acabam estabelecendo como alvos privilegiados
(embora não únicos) dessas modelizações as populações situadas, em escala
decrescente, nos estratos socioeconômicos com menores recursos materiais e
educacionais na sociedade, que acabam por conferir aos mais bem-sucedidos a
posição de modelos idealizados a serem imitados ou recusados: ao mesmo
tempo admirados e invejados, ao mesmo tempo amados e odiados.16 Entre

16Na pesquisa da Unesco, observa-se que, nos níveis intermédios do estrato social e cultural
do espectador, essa adesão não é uniforme. Como indicado pela pesquisa, muitos pais fazem
críticas bastante consistentes a essas modelizações, particularmente no que diz respeito à sua

288
humilhação e arrogância constróem-se os laços de interdependência de uns e
outros, num jogo narcísico de espelhos que faz de todos, virtualmente,
componentes de um mesmo plano marcado pela mesma síndrome-de-carência-
e-captura. Os que não poupam esforços para se manterem up-to-date e os que os
admiram ou aspiram, um dia, a ocupar esse lugar pertencem a uma mesma
dimensão subjetiva, sendo portanto igualmente capturáveis pelos mesmos
agenciamentos.
Penso que, dessa perspectiva, se torna mais compreensível a pequena
operatividade dos discursos que fazem apelos por um “retorno à ética” como
estratégia “curativa” para o mal-estar atual marcado pelas “derivas da
liberdade”, assim como o risco de esses apelos promoverem retornos
conservadores ou de reforçarem a razão cínica na apreensão da realidade (cf.
INTRODUÇÃO, Nota 26). O mal-estar atual, contrariamente à idéia de “desvio”
em relação à cultura do bem-estar amplamente promovida pelos dispositivos
institucionais e de consumo, dos quais a mídia é porta-voz privilegiada, é
dela sua mais plena expressão.
Não se trata, claro, de responsabilizar integralmente a mídia televisiva
por isso. Como foi observado na INTRODUÇÃO, não poderemos compreender
efeitos de mídia sem olharmos para a cultura na qual ela se inscreve e para as
pessoas que buscam nela suas referências, com maior ou menor aderência a
suas proposições, o que não implica concordar com as justificativas comumente
apresentadas de que a programação televisiva só faz atender à demanda ou ao

influência na formação moral dos filhos, muitos deles valendo-se de sua presença na
programação para introduzir seus temas nas conversações com os filhos, visando direcioná-
los para os valores sustentados pela unidade familiar e construir um olhar mais crítico
perante essas incitações e excessos da mídia. De qualquer forma, a maior parte da
programação é avaliada como adequada ou não para os jovens, não havendo indicações de
como os próprios adultos as percebem em relação a si. Aparentemente, os aceitam como
válidos para si, isto é, como não dissonantes em relação à sua própria apreensão da
realidade, e se buscam preservar os filhos parece ser no sentido de poupá-los de uma
entrada precoce/traumática no “mundo adulto”. Muitas mulheres, entretanto, elevam vozes
dissonantes a essa aceitação, ao declararem não se sentir representadas pelas construções da
figura da mulher apresentadas pela mídia (www.tver.zip.net/pesquisas.htm).

289
gosto do público. É necessário considerarmos que, seja a mídia, seja seu público,
ambos estão inscritos em quadros mais amplos que os excedem. 17
Ainda que parcialmente, o que identifiquei como síndrome-de-
carência-e-captura pode ser compreendido a partir da formulação de
Klossowski sobre o paralelismo corpo/linguagem (articulação disjuntiva/
silogismo disjuntivo) e, da linguagem, suas duas funções, a designativa e a
expressiva. Para a hesitação do corpo (e sua suspensão), temos o “se isto,
então aquilo” (forma do silogismo), logo, “ou ... ou” (forma da disjunção)18
da linguagem. O que quer que surja da linguagem (matéria de expressão,
seja ela designativa ou expressiva, seja se constituindo como rosto19), irá
incidir sobre o corpo desarticulando-o e ordenando-o, serializando-o,
designando-o. Ora, às flexões da linguagem correspondem flexões do corpo,
que não se dão da mesma forma, embora haja reflexão de um e outro. A
designação não expressa um corpo, mas pode fazer dele um corpo mais ou
menos expressivo; isto é, o corpo designado, ordenado, serializado é
expressivo conforme sua formação constitutiva e a forma de incidência da
linguagem sobre ele (uma incidência que, na imanência dos eixos axiológicos
e topológicos, é mais ou menos enérgica) e conforme ela se produz ora como
simples efeito de superfície ora como o corpo a dobra para si, o que ocorre

17 É significativo e inquietante que, na pesquisa da Unesco, as respostas indiquem não ser muito
relevante, para a formação dos jovens, que sejam apresentados temas com conteúdos racistas ou
que manifestem outras formas de discriminação, o que nos leva a supor que essas questões – que
implicam a da alteridade – também não são relevantes para boa parte dos adultos pesquisados.
18 Conforme o exemplo clássico de silogismo: “Todos os homens são mortais; Sócrates é

homem, logo, Sócrates é mortal”. A forma da disjunção é da ordem do juízo (ou x, ou y) ou do


terceiro excluído: se uma proposição é verdadeira, sua negação é necessariamente falsa; se é
falsa, sua negação é necessariamente verdadeira, não havendo uma terceira possibilidade de
proposição. Essa forma disjuntiva corresponde à função designativa da linguagem, que é “en-
signante”: masculino-feminino, forte-fraco, individual-social, ativo-passivo, bom-mau, formas
excludentes uma em relação à outra (Ver PARTE I, CAPÍTULO 1 – DENTRO, item “Corpo-
Dispositivo Técnico”, p. 191). Assim, a partir da primeira proposição “se isto, então aquilo”,
que forma o “verdadeiro”, o que quer que não caiba nesse critério de verdade não pode ser
aceito (ou... ou: ou masculino ou feminino; ou ativo ou passivo; ou bom ou mau). Assim se
produz identidades das coisas e identidade do eu. A outra possibilidade seria uma síntese
conectiva: masculino e feminino; bom e mau; ativo e passivo, em sua transitividade e seus
devires. Encontramos essas conectividade e transitividade na vontade de potência de
Nietzsche, como poder de ser afetado, isto é, como sensibilidade, como abertura ao devir.
19
Ver PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, Nota 18.

290
conforme a relação que se estabelece com as forças do Fora e as forças de si
para si, isto é, conforme se constróem entrelaçamentos e reflexões na
articulação corpo-linguagem. Uma mesma matéria de expressão pode, assim,
atuar como estritamente modelizante ou como via de passagem para a
invenção de novas formas expressivas, conforme a potência de afetação dos
corpos. Paradoxalmente, quanto menos afetável um corpo, mais modelizável
ele se torna, na medida em que se faz mais dependente de referentes externos
a si para configurar-se expressivamente. Assim, nada é modelizante em si,
mas sim conforme as relações de força que se estabelecem entre dois campos
mutuamente excludentes. (No CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO, as leituras de
alguns produtos da programação televisiva permitirão esclarecer melhor
essas modelizações. Ver, particularmente, a leitura da apropriação de uma
personagem da novela da Globo Porto dos Milagres – Maria do Socorro – pelo
programa Superpop, da Rede TV!)
Essas modelizações, entretanto, não funcionariam se não
encontrassem seu suporte nas formas de discurso que dão expressão e
sustentação ao poder nas sociedades. No Brasil contemporâneo, por exemplo,
não podemos ignorar as condições culturais de formação do corpo e de sua
erogenização, que se enraíza fortemente na tradição colonial e fornece os
fundamentos para a representação que o brasileiro se faz como povo cordial e
sensual (cf. Parker, 1992).20 Haddad (Prefácio, Sade, 1961: I-XVI), por exemplo,

20 Parker, brasilianista que desenvolveu suas pesquisas sobre nossa cultura sexual
trabalhando em cooperação com Gilberto Velho e Jurandir Freire Costa, no Museu Nacional
(RJ), acompanha as construções da auto-representação do brasileiro como povo sensual
desde os primeiros momentos do descobrimento, mostrando ser ela bastante determinada
pelas construções do imaginário europeu ativadas em seu encontro com o “bom selvagem”;
continua sua análise passando pelas relações do senhor e seus escravos no período colonial
(de fortes características sádicas e masoquistas, justificadas por seus fins corretivos e
educativos, como podemos ler na obra de 1795, Economia cristã dos senhores no governo dos
escravos, de Benci [1977]) e identifica a permanência desses laços de desejo historicamente
constituídos nas práticas sexuais do Brasil contemporâneo. Sua pesquisa centrou-se,
particularmente, no universo carioca, um dos principais pontos de convergência de turismo
sexual para o estrangeiro que aqui chega. Em uma vertente próxima à abordagem de Parker,
Trevisan (1986) investiga a presença predominante de práticas libertinas sodomitas no Brasil
colonial (principalmente até o século XIX, no Brasil-Império, período em que a Higiene
Pública, principal agente na disciplinarização dos costumes para a moralização da família

291
indica o quanto fomos atravessados, em nossa formação disciplinar, pela
tradição jesuítica – barroca e combativa pela Contra-Reforma –, que conciliava o
masoquismo das penitências e o sadismo das punições com um rigor que se
justificou e foi reforçado por seu surpreendente encontro com a população
nativa, constituída por homens e mulheres que “formosos de corpo, andavam
nus, com tôda a inocência. Pescavam, caçavam, dormiam suspensos em redes,
cercavam-se de aves lindas e multicores. No meio do clima doce viviam em
pleno estado natural” (1507, carta do Piloto Anônimo, apud Haddad, Prefácio,
Sade, 1961: I). Haddad demonstra o quanto o encontro do europeu com os
índios do Brasil foi determinante, nos movimentos da Revolução Francesa, para
a construção da idéia do homem natural, tal como formulada pelo Sistema da
Natureza, fornecendo os argumentos tanto para Rousseau, que pensava o
homem como naturalmente bom e pacífico, mas corrompido pela civilização,
como para a naturalidade das perversões sexuais defendida por Sade e
Diderot.21 O “exotismo” oriental (que incluía o Brasil, colocado entre as “Índias
Ocidentais” pelos holandeses), bastante cultivado pelo imaginário europeu nos
séculos subseqüentes às grandes navegações e sua expansão colonialista,22
encontra-se na base do ideário de liberdade paradisíaca dos corpos e, ao mesmo
tempo, justifica seu controle disciplinar para a construção do diferencial entre
bárbaros e civilizados (cf. INTRODUÇÃO, Nota 61).

brasileira, moveu intensa perseguição a esses libertinos), chegando mesmo a destacá-las


como a principal forma de expressão sexual de nossa cultura.
21 O breve ensaio de Haddad procura demonstrar a influência que os relatos de viagens pelo

Novo Mundo, com as descrições de seus povos e costumes, exerceram sobre a obra de Sade e
demais escritores do Iluminismo (cf., entre outras fontes, a obra de Afonso Arinos de Melo
Franco, O índio brasileiro e a Revolução Francesa, de 1947). É interessante observar que Sade
também foi educado pelos jesuítas e boa parte das matérias de expressão que ativavam sua
imaginação eram derivadas de suas próprias experiências com o universo religioso barroco por
eles construído, que provavelmente se somaram aos relatos sobre as ações da catequização
promovida por esses religiosos no Brasil e outras colônias. Se os relatos sobre o Brasil colonial
influenciaram Sade, seus textos, por sua vez, fizeram-se bastante presentes nas obras de nossos
românticos, como Álvares de Azevedo (particularmente em Noites na taverna) e Bernardo
Guimarães. Haddad indica também a forte presença da pedagogia sádica em Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre. A designação do brasileiro como povo pacífico, que fornece as
condições de sua governabilidade, encontra nessa formação de nossas almas sua razão.
22 Desse cultivo do exotismo oriental, o imaginário cultivado pelo século XVIII francês sobre

o despotismo asiático (Grosrichard, 1980) mantém relações de proximidade com a figura do


senhor da Casa Grande, soberano-em-sua-própria-casa, presente no Brasil colonial.

292
No campo social e político, muitos dos embates mobilizados por
sistemas de verdade – de irredutível diferença – postos em contato
encontram nesses mecanismos diferenciais sua sustentação, derivando das
forças de atração e repulsa que se mobilizam sempre que é experimentada
uma ameaça de desmanchamento de territórios (políticos, existenciais,
estéticos, cognitivos etc.) novas forças que reafirmam os diagramas do Poder,
o que, por sua vez, acaba por levar à proposição de “falsos” problemas que
demandarão “falsas” resoluções dos conflitos que se configuram a partir da
primeira proposição.
Vejamos um exemplo recente no campo político: as respostas ao
ataque terrorista aos EUA de 11 de setembro de 2001. Para além dos efeitos
políticos e econômicos que põem em xeque as estratégias dos EUA de
sustentação do princípio único da globalização, que já vinha expondo suas
fissuras há algum tempo e mobilizando enfáticas contestações a esse modelo
em vários pontos do planeta, o ataque expôs de forma extrema a
vulnerabilidade do sistema de defesa norte-americano, de efeitos
desestabilizadores à sua supremacia. Uma vulnerabilidade que corresponde,
ponto por ponto, à da própria representação que se faz o norte-americano de
sua identidade como povo eleito, centrada na ideologia de um eu autônomo
(e forte) não afetável por forças incontroláveis e selvagens que lhes sejam
internas ou mobilizadas no encontro com outros corpos (ver INTRODUÇÃO,
Nota 118). Podemos pensar que a prontidão em identificar o inimigo no
Oriente (num Fora posto além do exterior/mundo civilizado) respondeu não
só a uma necessidade de direcionar objetiva e estrategicamente os sistemas
de defesa e ataque para um alvo específico, mas também à contenção de
possíveis efeitos multiplicadores e agenciadores das forças não ligadas em
seu próprio território que pudessem encontrar, a partir desse ataque, sua
possibilidade de mobilização. Dar rosto ao inimigo externo, direcionar para
ele os discursos de retaliação, oferecer contorno e alvo a uma ameaça que,
efetivamente, pode vir de qualquer lugar, é uma forma de identificar e ao

293
mesmo tempo personificar e excluir a diferença que se apresenta (que, como
intensidade, é qualitativa, a partir da diferença quantitativa entre uma força e
outra, cf. Nietzsche) e mobilizar em relação a ela (isto é, ao outro no qual ela
se personifica) as forças, já por si reativas pelo caráter abrupto e excessivo da
desestabilização. A identificação estrita do inimigo como externo (o
fundamentalismo islâmico, apontado como expressão do Mal, pólo bárbaro
em oposição ao Bem civilizado) não ignorou, enfim, a existência de grupos
extremistas norte-americanos atuantes no próprio território, mas
provavelmente serviu para desmobilizá-los temporariamente.
Embora o ataque não tenha sido efetivamente assumido pelos grupos
terroristas muçulmanos – o que é incomum em atos de terror que visam uma
desestabilização política ou destacar a existência e a força de grupos de
oposição a um regime, neste caso o capitalismo ocidental e sua globalização
econômica e cultural –, eles foram imediatamente constituídos como autores
do atentado e como o inimigo externo a ser combatido. Os órgãos de segurança
norte-americanos, num exemplo surpreendente de rapidez e eficácia, nos
dias seguintes ao atentado multiplicaram provas para confirmar o que
surgira como primeira hipótese. A partir daí, a mídia passou a privilegiar a
identificação do fanatismo fundamentalista muçulmano como o lugar
absoluto do Mal, em contrapartida ao Ocidente como lugar absoluto do Bem.
A tensão a que passaram a ser submetidos muçulmanos presentes no país,
mesmo os naturalizados ou de nacionalidade norte-americana, tornados
imediatamente alvos de suspeição, expressa bem a insuportabilidade da
diferença (embora a diferença não remeta ao identitário – étnico, religioso,
moral –, é a partir dele que se busca justificar as resistências às
transformações e perturbações da existência, quando elas irrompem ou se
aceleram), qualquer que ela seja, relativamente tolerável em tempos de
estabilidade.23 Uma suspeição que pode se estender, neste momento, a todo e

23Em tempos de estabilidade, a diferença é trabalhada, pela cultura psi, como “desejo de
mudança” ou “necessidade de mudar de vida, de trabalho ou de ares”, “de se encontrar”.
Este é um sintoma contemporâneo: contrariamente à época ainda recente em que se almejava

294
qualquer outro grupo étnico presente no espaço territorial norte-americano,
como os latinos, já por si mal-tolerados pelo anglo-saxão médio.
A ampla cobertura mediática do acontecimento, a apresentação
sistemática da mesma vinheta com as torres sendo atingidas, a todo tempo,
durante semanas, numa reiterada atualização do acontecimento em um
cristal de tempo, as reportagens que se multiplicaram sobre Bin Laden e o
Taleban, as entrevistas sobre o modo de vida islâmico etc. evidenciavam que
não só os EUA e a mídia estavam na frente de batalha, mas colocavam
também todo e qualquer cidadão do Ocidente em prontidão para uma única
e mesma Guerra: a do mundo democrático-cristão contra o fundamentalismo
islâmico, retomando e sustentando a clássica divisão Bem e Mal.
Bush, presidente até então inexpressivo e alvo de severas críticas por
medidas ofensivas ao equilíbrio mundial, firma-se em seu posto de chefe da
nação; a indústria bélica entra em alta produtividade; os EUA recolocam-se
no centro do cenário mundial... indícios que levantam suspeitas, em alguns
setores menos capturáveis pela “santa cruzada contra os ímpios”, que
indicam quão oportuno estava sendo o atentado para setores-chave do poder
norte-americano. Denúncias contra a CNN, de manipulação de imagens e
informações – de que as imagens de palestinos em festa divulgadas pela
CNN poucas horas após o ataque seriam de outra época, 1991 –, são

definir uma carreira e conquistar uma estabilidade de vida, justificando-se, para isso, todos
os esforços, hoje se está sempre em busca de um sentido, de uma atividade ou de um lugar
no qual se sinta prazer. A pergunta mais freqüente em relação a uma atividade é: você sente
prazer, está feliz com o trabalho que realiza? O trabalho “erogenizou-se”, de certa forma,
como propunha Marcuse (1968), mas em uma direção muito diversa da por ele formulada
nos anos 50, de uma livre sublimação ou sublimação não-repressiva, que permanece ainda
por realizar coletivamente. Viva intensamente, faça o que você gosta de fazer, isto é, livre-se
da maldição bíblica que o condenou ao trabalho e à mortalidade, transformou-se em mote
publicitário, ao qual alguns aderem em suas formas de auto-presentação, mas não
necessariamente na experiência. Como bem o indicou Groys, o trabalho é o verdadeiro
segredo sujo da cultura (ver PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, Nota 51). Prestígio dos que
não cessam, na mídia, de se afirmarem felizes e sempre dispostos com o que fazem –
modelos, artistas, apresentadores de tevê, esportistas, publicitários, profissionais mais
diretamente ligados às representações do consumo –, que o mercado procura confirmar
pagando-lhes altos salários e cuidadosamente ocultando a parte trabalhosa, exigente e
desgastante dessas atividades. O efeito dessa promoção se traduz na horda de jovens que
demandam um lugar entre esses eleitos e na maior intolerância em relação aos
diferentes/desiguais que não investem esse modus vivendi do capitalismo pós-industrial.

295
prontamente contestadas e desinvestidas pela rede em comunicados
“oficiais”. A certeza inicial, entretanto, prevalece e Bin Laden assume
definitivamente, para o imaginário ocidental, o lugar do inimigo no novo
espaço de confronto, passando a ocupar esse lugar do Outro que, posto em
pura exterioridade, justifica uma guerra. Contrariando Kavafis e seu poema
de 1875 (À espera dos bárbaros), constrói-se rapidamente a imagem dos novos
bárbaros, opera-se novamente a milenar separação civilização e barbárie que
os discursos da globalização haviam ajudado a desfazer. Uma reordenação
mais do que simbólica e de efeitos bastante concretos dos espaços de
liberdade: intensificam-se os sistemas de vigilância e controle, tão
sofisticados quanto o permitem os dispositivos tecnológicos disponíveis,
multiplicando-se as exposições mediáticas sobre seu funcionamento e sua
eficácia. Uma exposição de sistemas de defesa e controle que, se de um lado
aparenta abrir seus francos ao inimigo, de outro assegura à população que
não se está absolutamente desamparado, que a situação não é incontrolável,
que a desestabilização pode ser administrada: um poder dissuasivo, que se
exerce na mesma medida em que se mostra, e que funciona mais
internamente que em relação ao inimigo designado.24 O que se procura
evitar, pelo menos para a grande massa, é a compreensão de um estado de
mundo que, embora difusamente apreendido, se plenamente explicitado
poderia levar a uma situação ingovernável: as forças do terror assemelham-
se às forças não-ligadas do Fora, elas são como esses fluxos cujas ondas
constituem as zonas de turbulência em qualquer segmento da linha do Fora,
podendo emergir até mesmo dos escudos de proteção, ou do próprio interior
que eles protegem. Seu caráter é virótico, não localizável, inespecífico, sem
forma. Numa posição mais e mais paranóica, multiplicar referências,

24Em sua irredutível diferença, e supondo que o inimigo esteja realmente alojado nas forças do
Taleban (que expurgou de seu território os dispositivos comunicacionais utilizados no Ocidente),
as forças do terror são pouco capturáveis pelas encenações da mídia, o que não significa que não
saibam utilizá-las: a construção do atentado obedeceu matematicamente aos tempos da mídia,
sendo mesmo possível dizer que ele foi, do choque do primeiro avião contra uma das torres à
queda de outro sobre o Pentágono, planejado integralmente como um espetáculo mediático.

296
identificar indícios, estar atento a todo e qualquer sinal diferencial e
referencial, essa é a tarefa em que todos deverão se engajar, numa disposição
não muito diversa à de prevenção às doenças invasivas do corpo, sejam as
que se formam silenciosamente em seu interior, sejam as que podem
contaminá-lo nas suas relações com o exterior, no encontro com outros
corpos.25 Como campo social e indivíduo são uma e só coisa, no limiar dos
controles, na virtualidade do possível, todo e qualquer um pode conter em si
o risco da desagregação. Ressuscita-se e reitera-se uma velha expressão: “o
preço da liberdade é a eterna vigilância”, logo, nenhuma partícula pode
permanecer por muito tempo solta, não-ligada, a-significante. Nos dias
posteriores ao ataque, nos EUA e em outras partes do planeta, assistiu-se a
uma rara manifestação de atos solidários e patrióticos, resgates de símbolos,
organização de manifestações coletivas, sustentações da memória do
acontecimento, prolongamento de um luto reparador. Restituições de um
território – físico e existencial – ameaçado de se desfazer, que os discursos
das belas almas apressam-se a realizar.
Como coadjuvante dessa tarefa, quando não protagonista, a mídia
mostra-se incansável. Cabe a ela a atualização de todos os referentes:
identificação dos sinais, vigilância sobre os indícios, multiplicação das
demonstrações, produção de seus próprios discursos, simulações de
espelhamento do que emerge como necessário sustentar hegemonicamente.
Essa é, aliás, a atuação da mídia perante toda e qualquer comoção coletiva
relevante: mobilização intensa de seu staff, saturação por proliferação de
imagens e enunciados, reiteração de uma verdade a ser afirmada e
confirmada à exaustão, direção dos sentidos e do sentido. Nesses momentos
em que grandes acontecimentos permitem-lhe organizar sua pauta sobre um

25Daí a similitude dos discursos sobre as formas de ameaça à vida, sejam os que nos ocupam
desde a emergência da aids nos anos 80, sejam os atuais sobre o terror. A destruição é
altamente mobilizadora de discursos e ações, mais que as possibilidades construtivas e
renovadoras da existência. Talvez por essa razão, os avisos sinalizadores de perigo,
verdadeiros convites à transgressão, indiquem sempre “Risco de Vida” e não “Risco de
Morte”.

297
só foco é que se torna possível reconhecer plenamente a mídia como um
poderoso Equipamento Coletivo de Subjetivação (Guattari, 1993: 178).
Entretanto, acompanhando as indicações de Guattari, apesar do
caráter saturante da presentação mediática, os caminhos que ela abre não são
uniformes nem a modelização que ela promove é unívoca. É possível
identificar pelo menos três vozes/vias26 que os equipamentos coletivos de
enunciação (dos quais a mídia é, em nosso mundo, um dos mais presentes e
dominantes) produzem, “e cujo entrelaçamento permanece na base dos
processos de subjetivação das sociedades ocidentais contemporâneas”:

“1. As vozes de poder: que circunscrevem e cercam, de fora, os


conjuntos humanos, seja por coerção direta e dominação panóptica dos
corpos, seja pela captura imaginária das almas.
“2. As vozes do saber: que se articulam de dentro da subjetividade às
pragmáticas técnico-científicas e econômicas.
“3. As vozes de auto-referência: que desenvolvem uma subjetividade
processual autofundadora de suas próprias coordenadas, autoconsistencial,
o que não a impede de instalar-se transversalmente às estratificações sociais e
mentais.
“Poderes sobre as territorialidades exteriores, saberes desterritorializados
sobre as atividades humanas e as máquinas e, enfim, criatividade própria às
mutações subjetivas: essas três vozes, embora inscritas no coração da diacronia
histórica e duramente encarnadas nas clivagens e segregações sociológicas, não
param de se entrelaçar em estranhos balés, alternando lutas de morte e a
promoção de novas figuras” (Guattari, Da produção de subjetividade, in
Parente [org.], 1993: 179).

Reencontramos aqui, postos de outa maneira, os componentes do


Diagrama de Foucault exposto na INTRODUÇÃO e a processualidade imanente
das quatro dimensões da afetividade propostas por Lévy (PARTE I, CAPÍTULO 2

Voix e voie ⇒ voi(x)(e). Valendo-se da homofonia entre os dois termos, Guattari estabelece
26

uma ligação, num mesmo movimento, entre a enunciação e o caminho que ela indica.

298
– DENTRO-FORA). O que chamamos dobra do Fora encontra nas vozes de auto-
referência não só uma outra compreensão como uma via, ainda que muitas
vezes bastante estreita, para a potência humana de invenção e auto-
engendramento. É importante observar que essas vozes de auto-referência não
são diversas daquelas identificadas pela psiquiatria como indicativas de uma
problemática psicótica na qual estaria imerso o sujeito doente, e que, em
conformidade com o modelo disciplinar, deveriam ser suturadas de forma a
devolvê-lo à difusa e dócil normalidade.
É assim que podemos entender o que foi indicado como as
possibilidades e o risco de toda remodelação da subjetividade e de todo
pensamento, na relação com as forças do Fora: o de desfazer-se a dobra, a
invaginação subjetiva, o Fora tornar-se um Dentro e essas vozes cederem,
enfim, às estratificações e segregações que podem fazer delas um nada
inoperante e despotencializado, na medida em que as vozes do poder não
cessam de clivar as vozes de auto-referência, e o fazem buscando estabelecer
relações unívocas entre o campo da visibilidade e o campo dos enunciados.
Ou, inversamente, que as forças do Dentro, sem seus filtros, possam explodir
selvagemente no exterior. Mantidas despotencializadas e contidas pelas
clivagens, não trabalhadas como formas expressivas, ao se desarticularem, elas
só podem expressar-se pronta, desordenada e explosivamente no exterior,
como forças reativas contra um outro ou contra objetos representantes dos
dispositivos institucionais que operam essas clivagens (como ocorre nas
depredações de prédios públicos, de bancos etc.). Se existe a possibilidade de
uma passagem ao ato violento derivada da mídia, ela não viria de uma
imitação do que é apresentado (conteúdo das imagens), mas sim desse colapso
da invaginação subjetiva perante seu fluxo de imagens e enunciados que
procuram codificar sob uma mesma figura todos os acontecimentos.

299
Compreende-se assim a importância do trabalho continuado do
pensamento,27 e por que ele é um esforço (Espinosa) e uma violência
(Nietzsche), que “só se pensa porque se é forçado”, como escreve Deleuze em
Diferença e repetição (1988a) e em Proust e os signos (1988c). Um “ser forçado”
que não está ligado, por exemplo, às exigências de um outro (o professor que
acumula seu aluno de tarefas e o ameaça com a reprovação, por exemplo).
Como expõe Rolnik (Despedir-se do absoluto, Cadernos de Subjetividade,
num. esp. Gilles Deleuze, jun. 1996: 245):

“O que é que nos força a pensar? Certamente não é a competição


acadêmica para ver quem chega primeiro ao trono da verdade que hoje tem
sua sede no palácio da mídia cultural; isto nada tem a ver com pensar. O que
nos força é o mal-estar que nos invade quando forças do ambiente em que
vivemos, e que são a própria consistência de nossa subjetividade, formam
novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação
aos estados que conhecíamos e nos quais nos situávamos. Neste momento é
como se estivéssemos fora de foco, e reconquistar um foco exige de nós o
esforço de constituir uma nova figura. É aqui que entra o trabalho do
pensamento: com ele fazemos a travessia destes estados sensíveis que,
embora reais, são invisíveis e indizíveis, para o visível e o dizível. O
pensamento, neste sentido, está a serviço da vida em sua potência criadora.
Quando é este o trabalho do pensamento, o que vem primeiro é a capacidade
de nos deixar afetar pelas forças de nosso tempo e de suportar o
estranhamento que sentimos quando somos arrancados do contorno através
do qual até então nos reconhecíamos e éramos reconhecidos”.

Podemos dizer que um acontecimento dramático e desestabilizador da


ordem mundial como o de 11 de setembro, que mobilizou respostas subjetivas

27 Que os sistemas sociais, quanto mais rigidamente estruturados, preferem substituir pela
disciplina e pelo controle, indicando no pensamento (e nas subjetivações que o
acompanham) todo tipo de ameaça e de perigo. Ou, na ideologia do bem-estar, sua
substituição pelas fórmulas prontamente aplicáveis, buscando-se o caminho mais curto e
imediatamente prazeroso para se alcançar os próprios objetivos. Ou, no desejo do tempo
livre, para a plena fruição dos confortos disponíveis nas sociedades afluentes.

300
diversas e não coincidentes com a idéia que fazem de si os norte-americanos
(representantes de um modo de vida hegemônico e aceito como referencial
pelos outros países ocidentais) – respostas extremamente ambíguas, que
deixavam um tom triunfante atravessar as vozes de pesar (lamentamos, mas
vocês mereceram...) – poderia ser um desses momentos propiciadores de um
pensamento que emergeria, como movimento vital e criador, do profundo
mal-estar. A pronta mobilização, com o concurso da mídia e sua
espetacularização do acontecimento, de todo o povo norte-americano (e a
intimação dirigida aos demais povos, dos países aliados) para os sentimentos
de vingança contra o inimigo comum (ainda que sem rosto) é um bom
exemplo dos bloqueios que podem ser criados a emergências coletivas
disruptoras de modos dominantes de constituição subjetiva. No atual embate
EUA-mundo islâmico, por exemplo, a reiterada indicação de onde está o Bem
e onde está o Mal busca criar uma sutura ali onde outras coordenadas
poderiam se formar – para além do Bem e do Mal – acionando mutações
subjetivas que deslocariam os sistemas de referência que se “deve” seguir na
constituição de nossas subjetivações, o que, na ordem mundial, poderia
implicar em recomposição e redistribuição das forças cujo conjunto constitui
os diagramas do Poder vigentes. Encontramos uma correspondência desse
processo em grupos que se desestabilizam e perdem força e que, para se
reintegrarem rapidamente antes que percam sua unidade, elegem um “bode
expiatório” para depositarem nele a responsabilidade pela desestabilização,
fazendo dele corpo de todas as contradições que atravessam o grupo. Sua
exclusão devolve, ainda que temporariamente, a imaginária unidade perdida,
do grupo e de cada um de seus membros.
Penso que os argumentos acima e essa nova situação da ordem
mundial inaugurada pelo atentado de 11 de setembro permitem-nos
compreender um pouco melhor como a liberdade de expressão, tão
enfaticamente defendida pelos meios de comunicação, segue por caminhos
mais tortuosos do que a pura e simples necessidade de sustentação das

301
conquistas democráticas pelo “direito de informar” (e, para o público, o de
saber) e corresponde menos a critérios de objetividade e racionalidade, mas
sim, muito mais, a uma intensiva semiotização de demandas subjetivas
muito pouco controláveis e nem sempre claramente objetiváveis, disso
resultando sua potência mais modelizadora que de esclarecimento e de
informação. Estamos distantes, nessa proposição de liberdade de expressão
dos meios de comunicação de massa – que, por sua posição monopolista,
apresenta um caráter unidirecional e agenciador de formas hegemônicas de
subjetividade –, da constituição de espaços efetivamente abertos à
manifestação da multiplicidade de vozes no campo social, que, se não
deixam de se produzir, raramente encontram ressonância na discursividade
dos meios. Aguarda-se, ainda, pelas possibilidades de plena expressão dessa
multiplicidade de vozes – a emergência de uma inteligência coletiva (Lévy) –,
anunciada como uma era pós-mídia que alguns debates sobre as redes
informáticas buscam antever.
Vejamos, para melhor compreendermos os impasses a essa abertura
efetiva, como as afirmações e restrições da “liberdade de expressão” foram –
e continuam sendo, pela persistência de alguns diagramas de Poder das
sociedades organizadas que antecedem os espaços de liberdade abertos nas
últimas décadas – articuladas e feitas confluir para a forma predominante de
organização dos estados liberais sustentados na homogênese, cuja medida
comum – isto é, cuja “equivalência contabilizável dos diferentes produtos de
toda atividade produtiva” (Bataille, 1974: 80) – é o dinheiro, ou, na
linguagem atual, o mercado.

HOMOGÊNESE E HETEROGÊNESE SOCIAL

Se observarmos o que ocorre em outros países veremos, grosso modo,


que regulação/regulamentação da atividade dos meios de comunicação são

302
neles práticas comuns,28 e isso, quanto mais solidamente constituídos forem
esses países em conformidade com o modelo das democracias liberais
iniciado no século XVIII, momento do nascimento do Estado moderno, cuja
forma e propósito nos são indicados, claramente, por Enriquez (1990: 264):

“Quase todos os Estados do mundo tentam fundar suas legitimidades


sobre a vontade do Povo e o desejo por ele proclamado. (...) essa vontade é
dificilmente expressa, devido à luta feroz que se desenrola em todas as
sociedades, que não encontram mais no interior delas mesmas um princípio
de legitimação. Então, o Estado se apresenta como o corpo indispensável onde
as múltiplas diferenças tenderão a se conjugarem, ao invés de entrarem em
rivalidade.
“Em todos os casos, o Estado moderno deve dar ao grupo-povo uma
imagem dele mesmo na qual este último possa se reconhecer e à qual ele
possa aderir. Ele vai ser obrigado, então, a assumir o controle da atividade
do conjunto de seus membros (contrariamente aos Estados anteriores à
Revolução Francesa), e penetrar em toda a densidade do social”.

Regulação/regulamentação, nos países democráticos liberais


modernos, ocorrem tanto por força da ação do Governo, através de seus
órgãos de representação política, como através de associações constituídas
pela sociedade civil, conforme os interesses de grupos organizados os mais
diversos, como associações religiosas, organizações sindicais, educacionais,
de bairros etc.29 O que temos é menos uma ação que se realiza enquanto
emanação central do lugar do Poder, e mais como resultante de uma rede

28 Em uma avaliação dos procedimentos que se adotaria em outros países em relação aos
programas televisivos que consumimos no Brasil, a TVer destacou os horários em que cada
programa de nossa televisão seria exibido em outros países (cuja programação, é necessário
frisar, tende a ser de tão má qualidade quanto a nossa, e não só a dos Estados Unidos, da
qual boa parte de nossos programas são decalcados, mas também a de países europeus). Os
programas de auditório vespertinos, dominicais e “familiares” (Domingão do Faustão,
Domingo Legal, Festa do Mallandro), por exemplo, iriam, em sua maior parte, nesses países,
para horários pós-22 horas (www.tver.zip.net/pesquisas.htm).
29 Modo de organização que está ocorrendo crescentemente no Brasil, a partir de

manifestações de grupos organizados – religiosos, associações civis ou profissionais – e de


ONGs, como a TVer.

303
constituída por inúmeros órgãos representativos de grupos de interesse que
fazem, parafraseando Bordieu, sua “construção social da realidade”. São
essas redes de poderes que constróem, como resultante final, o social
enquanto fundado na homogênese, assim como os graus de suportabilidade
(flexibilização) em relação aos elementos heterogênicos nele presentes.
Assim, se é somente nos Estados totalitários (aos quais o Brasil ensaiou, em
muitos momentos, suas aproximações, com o Estado Novo e o governo
militar de 64) que a regulação assume um caráter visivel e aparentemente
mais autoritário, centralizador e supressor, que reconhecemos mais
apropriadamente como conjunto de leis, normas, supressões e seqüestros (a
que chamamos genericamente de censura) imposto desde um poder exterior
e central, nada nos autoriza a pensar que Estados democráticos a teriam
extinguido de seu horizonte.
Num breve percurso histórico, e limitando nossa análise aos estados
democráticos organizados a partir da II Guerra Mundial, podemos ver que o
estabelecimento de um novo quadro do mundo, com a divisão oeste-leste,
capitalismo-socialismo, construiu-se sobre dois fantasmas que os embates
ideológicos da Guerra Fria não cessaram de reativar: no Ocidente capitalista, o
de um comunismo a combater e um nazismo a evitar, em nome de declarados
ideais democráticos, dos quais a nação norte-americana constituiu o modelo a
ser seguido e aplicado; no Leste Europeu, a defesa de uma unidade ideológica
sustentada sob um rígido autoritarismo de Estado contra a tentadora ameaça
capitalista, e esforços de unificação de nações heterogêneas sob um princípio
socialista comum que marcasse sua diferença com um nacional-socialismo a
ser continuamente negado. A oposição civilização-barbárie (subjacente aos
princípios da Guerra Fria), em que o bárbaro, necessariamente, estaria do
outro lado da fronteira (ou do lado de fora da própria casa, conforme a lógica
de exclusão das sociedades disciplinares e das sociedades guerreiras e de
soberania que as antecederam), não só significou-se no hierático Muro de
Berlim – pólo simbólico de tensão – como justificou todos os embates, guerras,

304
ações de vigilância e controle sobre cidadãos e países que fizeram do século
XX a era dos totalitarismos e dos extremos, tanto de esquerda quanto de
direita, tanto de “progressistas” quanto de “conservadores”.
Esse modelo não se limitou ao campo político e ideológico. Penetrou
as instituições, os corpos, os corações e mentes em variados níveis. Assim,
em nome de um mal a ser mantido em exclusão, consolidou-se e se
preservou o que já se preparara minuciosamente no século XIX: o
aprimoramento de modelos totais e especialistas de controle que mantiveram
como projeto a regulação e a ordenação das populações, com seus corolários:
partição estrita dos indivíduos conforme sexo, raça, religião, pertencimento
socioeconômico, formação, comportamentos, estados subjetivos. A norma e
seus desvios estabeleceram critérios de reconhecimento, inserção e/ou
exclusão, conforme os múltiplos modos de pertinência e suas mínimas
variações, classificando-os em conformidade com padrões homogeneizantes.
Massa e indivíduo são conceitos gestados sob essa ordem, sendo, mais que
afirmadores dos laços sociais, sua negação, conforme já nos indicou, mais de
uma vez, Baudrillard (1985; 1990).
Um modelo que se estendeu como uma rede, a exemplo das
sociedades disciplinares do século XIX, a diversos campos: políticos,
econômicos, tecnológicos, científicos, estéticos, morais, judiciários,
educacionais, familiares. Entretanto, com uma bem marcada diferença: se, no
século XIX, as esperanças no triunfo da razão permitiram um otimismo e
uma crença/fé no progresso humano,30 a partir do final da primeira metade
do século XX a razão e seu corolário, a racionalidade, passaram a ser

30Tal afirmação tem um caráter bastante genérico. Seja nas artes e movimentos culturais,
seja nos movimentos de trabalhadores - oprimidos pelos rígidos controles vigentes nas
fábricas e pelos baixos salários, que lhes impunham condições subumanas de existência -,
seja na filosofia, o questionamento do modelo iluminista e liberal de progresso foi intenso
no século XIX. As grandes revoluções de pensamento que realizaram a crítica sistemática
desse modelo - de Marx, de Freud, de Nietzsche, para citar os três mais determinantes e
que fornecem, conforme Foucault, a direção do “teatro filosófico” no século XX – são
também gestados nesse momento. Entretanto, o encantamento com o progresso técnico,
a crença na capacidade do homem de domínio da natureza através da razão e a
promessa de felicidade futura, malgrado seus questionamentos, são definidores do ethos
do século XIX (cf. Enriquez, 1990: 11-12).

305
princípios tanto a consagrar quanto, principalmente, a pôr em questão,
quanto à sua capacidade de gerir a diversidade de aspirações e desejos
humanos. Balizando esses questionamentos, o fenômeno do nazismo e seus
espaços de exclusão e extermínio jamais deixaram de constituir-se como marco
e referência dos efeitos de uma racionalidade com aparência de cientificidade
levada ao seu extremo por um “Estado total”.
Como foi observado na INTRODUÇÃO, nos debates que tomam o Mal e
a crueldade como tema central, o nazismo continua constituindo ainda a
principal baliza. Ora, exatamente por ocupar tal lugar e importância nas
reflexões e ações contemporâneas, é interessante observar, antes de
avançarmos, que o Estado moderno constituído por homogênese, seja ele
democrático ou totalitário, tem, segundo Enriquez (1990: 319-356) sua
máxima realização no Estado nazista, que surge não como exceção, não como
um evento não renovável, mas sim como

“um dos elementos essenciais do paradigma da sociedade que se constrói


sob nossos olhos e que nos fornece, por antecipação, a imagem dos
genocídios atuais como dos genocídios futuros.” [Pensamos] (...) “enfim, que
o Estado nazista é o protótipo dos Estados modernos, e, portanto, que a
questão judaica (enquanto questão que impõe o problema da alteridade [grifo
nosso]) foi e continua sendo uma questão lancinante cravada no coração do
mundo moderno” (Enriquez, 1990: 319).

O que autoriza a Enriquez tal afirmação é a negação do vínculo social


implicada na destruição de vidas humanas marcada por “comportamentos
paroxísticos e ‘demenciais’ visando, em um momento preciso, uma comunidade
particular”31 (op. cit.: 318), que, se estão manifestas mais sutilmente como

31“Negação do vínculo social, isto é, da alteridade” que se expressa claramente hoje na formação
de grupos fechados no meio urbano que elegem como alvo outros segmentos sociais (negros,
homossexuais, nordestinos...), como nas manifestações também paroxísticas, com características
paranóico-moralizantes, de alguns apresentadores de programas televisivos (o precursor Gil
Gomes, Ratinho, Datena em alguns momentos de maior exaltação...), que só fazem manter e
intensificar a revolta da população perante o caos “gerado” pelo crescimento da violência urbana

306
mecanismos de exclusão disseminados na rede social, realizaram-se plenamente
no Estado nazista. Uma exclusão que não é tão somente molar, no sentido de
identificação de formas unitárias e totais a serem postas em exclusão (o judeu, o
negro, o marginal), mas que se dá, mais intensiva e invisivelmente, por
reterritorialização de fluxos parciais, expressivos, indeterminados, heterogêneos
que atravessam as estratificações do campo homogêneo. Assim, a aspiração à
homogênese, à regularidade de campo, à univocidade das vozes, ao
“embelezamento do mundo”, que muitas vezes surgem como sonho de grupos
ou de sociedades, ou que são manifestados enfaticamente no calor da revolta
contra o caos, embutem sonhos outros, bem menos belos.32

e as constantes rebeliões nas prisões, que se intensificaram após a organização do PCC (Primeiro
Comando da Capital), do tipo “essa gente não tem jeito, deviam exterminá-los de uma vez por
todas”. O que fica suposto nessas expressões e atos é que, se a sociedade operasse
definitivamente a exclusão dos “perturbadores da ordem”, o caos se “extinguiria” e a felicidade e
progresso seriam permanentes. O risco de se tomar tais suposições como verdade, como ocorreu
no Estado nazista, é evidente. Este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, claro. O
jornalista Hockenos, correspondente da In These Times para a Europa Central e Oriental, fez, em
Livres para odiar (1995) uma minuciosa análise da ascensão de movimentos neonazistas e fascistas
na Europa Oriental após a queda do Muro de Berlim. Longe, entretanto, de aderir à idéia de que
o racismo da juventude européia seria um subproduto da desilusão e da falta de perspectivas
com o fim do regime socialista, Hockenos constrói suas análises recorrendo aos antecedentes
históricos, religiosos e culturais dessas manifestações contra minorias, demonstrando que elas
nunca deixaram de existir, seja como organizações clandestinas, seja como disposições subjetivas
mantidas latentes. O desmanchamento da polarização Leste/Oeste só fez permitir-lhes
manifestarem-se a plena luz.
32 Retomemos os procedimentos do governo norte-americano logo após o atentado de 11 de

setembro, de intensificação dos sistemas de controle e convocação a toda a população para se


unir em defesa da pátria ameaçada. O risco que se anuncia com essa intensificação, pelos
quais a sociedade passaria a ser estritamente administrada de forma a assegurar a
tranqüilidade das populações, é a de reconstituição dos modos de organização burocráticos
dos Estados totalitários: pleno monopólio da informação, que não apenas a deforma como a
filtra segundo conveniências próprias; restabelecimento de sistemas de censura sobre as
manifestações culturais, barrando qualquer criação singular; estrita definição de normas de
comportamento de forma tal que qualquer posição de não-conformidade não encontre
condições mínimas de expressão; risco de prisão arbitrária, por qualquer indício que gere
suspeita. Como diz Enriquez (1990: 282), a igualdade dos irmãos implica uniformidade de
ação e pensamento. “Qualquer não-conformismo é sintoma de desvio, qualquer desvio é
sintoma de dissidência, qualquer dissidência é sintoma de traição”. Ora, não é outra a
emergência de uma sociedade de massas no lugar de uma sociedade de classes, o que os
novos controles só fazem retomar e reafirmar. Estas são suas estratégias: “No campo da
produção, de produzir o maior número de bens e utensílios, qualquer que seja a utilidade ou
qualidade; no campo militar, garantir a supremacia sobre todas as armas, de modo a estar
preparado a afrontar tanto as guerras convencionais quanto a guerra nuclear; no campo
educacional, formar o máximo de sábios e técnicos; no campo carcerário, dispor de um
número extremamente elevado de prisioneiros e deportados (técnica profundamente

307
A essas observações de Enriquez, e visando torná-las mais
compreensíveis, podemos agregar alguns componentes da análise feita por
Bataille do campo social homogêneo,33 para a qual ele recorre, fazendo-os
confluir para o que chama de “estados vividos” (isto é, sua própria
experiência e o contexto em que a viveu, a Europa sob o nazismo),
referências da sociologia francesa (Durkheim, principalmente), da
fenomenologia alemã, da psicanálise freudiana e do marxismo.
Bataille indica, como característica mais fundamental das sociedades,
sua homogeneidade tendencial, definindo homogeneidade como
“conmensurabilidad de unos elementos y consciencia de esta
conmensurabilidad” (1974: 79), significando, com isso, que as relações
humanas na sociedade podem se manter enquanto reduzidas a algumas
regras fixas baseadas na consciência da identidade possível das pessoas e de
situações definidas. A base dessa homogeneidade é a produção, de forma
que uma sociedade homogênea é uma sociedade útil, o que estabelece a
exclusão de qualquer elemento inútil, não-mensurável, se não da sociedade
como um todo, pelo menos de sua parte homogênea. Nesse contexto, toda
atividade útil tem sempre uma medida comum com outra atividade útil, não
sendo possível, portanto, apreender nenhuma atividade enquanto válida por
si e para si mesma. Essa medida comum é o dinheiro – uma equivalência
contabilizável dos diferentes produtos da atividade produtiva que serve para
medir qualquer trabalho e converte o homem em uma função de produtos
mensuráveis –, sendo somente a partir dele que podemos indicar o caráter

dissuasiva); no domínio arquitetônico, construir monumentos que esmaguem os visitantes


por seu peso. Uma sociedade de iguais deve encontrar a massa em todas as condutas e
atividades. A massa se vê em eu próprio espelho e nele mergulha, para beber, a cada dia,
uma força nova” (Enriquez, 1990: 282).
33
Apresentada em seu texto “La estructura psicologica del fascismo” (Bataille, 1974: 78-115).
Embora Bataille trabalhe com alguns conceitos diversos dos que vêm sendo apresentados até
o momento – como o de heterogênese proposto por Guattari –, recorro a suas análises para a
retomada da idéia de utilidade presente na deontologia de Bentham e à de heterogênese no
texto sadeano, às quais fiz referências na APRESENTAÇÃO e na INTRODUÇÃO. Quando
necessário, indicarei essas diferenças conceituais.

308
útil de qualquer ação em relação ao que a organiza, o mercado. Assim como
não há atividade válida em si,

“cada hombre, ségun el juicio de la sociedad homogénea, vale por lo que


produce, es decir, deja de ser una existencia para si: no es más que una
función, ordenada en el interior de limites mensurables, de la producción
colectiva (que constituye una existencia para otra cosa que para sí).
“Pero el indivíduo homogéneo sólo es verdaderamente función de sus
productos personales en la producción artesanal, cuando los medios de
producción son relativamente poco costosos y pueden ser poseídos por el
artesano.34 En la civilización industrial, el productor se distingue del posesor
de los medios de producción y este último es quien se apropria de los
productos: en consecuencia, él es quien, en la sociedad moderna, es función
[grifo nosso] de los productos; es él, y no el productor, quien funda la
homogeneidad social.
“De esta manera, en el actual orden de las cosas, la parte homogénea de
la sociedad está formada por aquellos hombres que poseen los medios de
producción o el dinero destinado a su mantenimiento y a su compra. Es
exactamente en el sector medio de la clase llamada capitalista o burguesa
donde se opera, en la base, la reducción tendencial del carácter humano a
una entidad abstracta y intercambiable, reflejo de unas cosas homogéneas
poseídas.
“Esta reducción se extiende a continuación, en la medida de lo
posible, a las clases llamadas generalmente medias que se benefician de
partes apreciables del beneficio. Pero el proletariado obrero siegue siendo en
gran parte irreductible. En relación a la actividad homogénea ocupa una

34 Uma das estratégias a que a contracultura dos anos 60 recorreu para a garantia da
subsistência de seus adeptos e fomentadores foi a recuperação das atividades artesanais,
bastante cultivadas pelos hippies. Foram essas atividades que garantiram a homogeneidade do
movimento, com as invenções, por exemplo, de sua estética, indicativa de pertencimento a ele:
roupas produzidas com retalhos, objetos decorativos derivados da natureza (sementes e grãos
em colares, por exemplo), retomada dos tempos e ritmos da natureza e do corpo contra o
controle do tempo da sociedade organizada, afirmação da naturalidade do corpo etc.

309
posición doble: ésta le excluye no de lo trabajo, sino del beneficio.35 Como
agentes de producción, los obreros entran en las coordenadas de la
organización social, pero la reducción homogénea sólo afecta, en principio,
su actividad asalariada; están integrados en la homogeneidad psicológica por su
comportamiento professional y no generalmente por su condición de hombres [grifo
nosso]. Fuera de la fábrica, y fuera incluso de sus operaciones técnicas, un
obrero en relación a una persona homogénea (patrono, burocrata etc.) es un
extraño, un hombre de naturaleza distinta, de una naturaleza no reducida,
no dominada.” (1974: 80-81)36

35 No Brasil, a mobilização, no Grande ABC, dos operários das montadoras de carro no final
dos anos 70, que deu posteriormente origem ao PT, em 1980, questionava exatamente essa
exclusão dos benefícios que, enquanto trabalhadores, seu trabalho produzia, mas dos quais
estavam privados, sem contar com esses produtos para si mesmos.
36 Na edição consultada não consta a data em que Bataille escreveu este texto, mas a escolha

do tema, a direção da leitura e os referentes que ele expõe como atuais indicam que o texto
foi escrito no período de ascensão do nazismo na Alemanha. Entretanto, as condições de
separação do homem de sua experiência como trabalhador das outras dimensões da
experiência de si está distante de ter se resolvido, embora se dê de forma diversa atualmente,
na realidade, de uma forma muito mais sutil e opressiva, já que essa distinção, essa não-
redução, essa não-dominação da natureza do homem tende a deixar de existir. Por exemplo,
os esforços de resgate, aparentemente muito “humanísticos”, nas novas relações de trabalho,
das experiências afetivas e emocionais do homem, é feita como apropriação dessas dimensões
de uma maneira bastante administrada, objetivando aumento da produtividade conforme as
necessidades e demandas do próprio trabalho e do mercado. Um bom exemplo é o valor
dado hoje à “inteligência emocional” (competência para lidar com as próprias emoções
perante as demandas externas “descoberta” por Goleman e imediatamente aplicada em
escolas, empresas etc.), que é utilizada como critério nos processos de seleção, verificada nos
treinamentos através de jogos e brincadeiras (embora mais sutis, não muito diversas das
apresentadas nos programas televisivos de todos os canais, mas, principalmente, assumidas
como máquinas altamente operativas nos reality shows, como No Limite, da Globo) e utilizada
como critério de avaliação de desempenho no cotidiano do trabalho. Inserir a emoção no
processo produtivo é, longe de uma maior flexibilização e uma maior humanização do
espaço do trabalho, uma das estratégias promovidas pelas psicotecnologias atuais de
assimilação de elementos heterogêneos ao campo homogêneo de efeitos mais deletérios que
possibilitadores de ações criativas e de maior atenção à intersubjetividade. Essas práticas se
fazem acompanhar também pela mídia impressa, que lança produtos os mais diversos que
reafirmam a positividade das estratégias (como a revista Você e as constantes matérias sobre
“a nova ordem do trabalho” em outras revistas semanais, como Exame, Veja, Isto É, Época
etc.). A essas novas estratégias de aggiornamento do eu no trabalho, Dejours (1991; ver tb.
Ciccacio & Ferreira, A violência invisível, Caros Amigos, Maio 1999: 16-17) chamou,
utilizando a mesma expressão de Hanna Arendt, de banalização do Mal. Compreende-se:
em nome do desempenho e do desenvolvimento pessoal, as empresas se desfazem, sem
possibilidade de contestação, de direitos mínimos conquistados pelo trabalhador no decorrer
de décadas. Sufoca-se, extenua-se, remete-se sempre para um depois o reconhecimento,
mantém-se cada um em estado de permanente tensão quanto à própria sobrevivência em
nome de um suposto crescimento e desenvolvimento. Formação continuada ⇒
competitividade cientificamente administrada, de luta consigo mesmo por adaptar-se para

310
Compreende-se assim por que, na sociedade homogênea, é a
burguesia que está ligada à homogeneidade social, sendo ela que representa
o Estado quando a homogeneidade está ameaçada. Por essas observações,
vemos que só as relações de produção são insuficientes para manter a
estabilidade da sociedade homogênea. Ao contrário, a homogeneidade social é
sempre precária, exposta à violência e a dissenções internas. Se ela se forma
espontaneamente dentro das relações produtivas, deve ser protegida dos
diferentes elementos não-estáveis que não se beneficiam da produção, ou que
consideram não se beneficiarem o suficiente, ou, ainda, que não suportam os
freios impostos pela homogeneidade a quaisquer tipos de agitação.
Entretanto, às forças, não se lhes pode pedir que não se exerçam. Elas
não cedem a argumentos racionais, como vimos com Espinosa (INTRODUÇÃO,
p. 107). A proteção da homogeneidade deve recorrer a elementos
imperativos que possam aniquilar ou reduzir as forças que, desordenadas,
resistem a suas regras. Entretanto, em si e por si mesmos, nem o Estado nem os
detentores dos meios de produção são essa força imperativa, daí seu recurso
aos elementos intermediários, extraídos da heterogênese, que componham
com eles essas forças: aqueles segmentos que, por se beneficiarem da
produção, embora não envolvidos diretamente nela como produtores ou
possuidores, integram o campo homogêneo. Por exemplo, no Brasil, quando
da implantação do governo militar, foram os membros das classes médias, os
mais diretamente beneficiados e ligados aos interesses do empresariado e do
governo, que, por aspirarem à estabilidade e segurança prometidas pela
manutenção da ordem e contenção dos distúrbios, saíram em marcha pelas
ruas em 64 (a Marcha da Família com Deus e pela Propriedade). Uma
ocupação do espaço público que se impunha como expressão de uma

poder lutar melhor com o outro pelos espaços de ação (similar, portanto, à dobra para si das
forças na subjetivação, embora, neste caso, em um sentido adaptativo e estritamente
determinado por exigências externas). “Cooperação emocional” (equipe) e competitividade
(individual) conjugam-se num mesmo movimento, mecanismo enfaticamente trabalhado
pela televisão nos reality shows. Sociedade de controle, conforme identificou Deleuze (1992).

311
vontade “coletiva” da qual o governo precisava, naquele momento, para
legitimar-se e sustentar-se enquanto legítimo.
Compreende-se as razões disso, na medida em que as classes médias,
embora não detendo os meios de produção e não diretamente envolvidas
com a própria produção (a intermediam, na posição de funcionários públicos
ou em bancos e escritórios, como prestadores de serviços, como profissionais
liberais, membros da igreja, do exército etc.), só exercem sua soberania
através das classes homogêneas e das instâncias soberanas, compondo com
elas elementos que lhes são próprios e que não derivam da homogeneidade, do
útil, mas sim da heterogênese, como a religião (esfera do sagrado), os sonhos
de segurança material e riqueza subjacentes aos próprios medos (ontológicos
[morrer], existenciais [fracassar], psicológicos [enlouquecer]), as experiências
da afetividade e da sexualidade (esferas do tabu), revertidas em moralidade,
ideologia, estilo de vida etc. Embora não pertencentes à equivalência abstrata
que mensura o produtivo/útil, essas dimensões derivadas da heterogênese
assimilam-se a essas equivalências como seus pólos de sustentação.37
Aproximamo-nos, portanto, do que é a heterogênese em sua relação com a
homogênese social: são os fluxos de crenças e de desejos, válidos em si, indicados
por Tarde e que podem ser aproximados, na teoria psicanalítica de Freud, ao
conceito de inconsciente. Na psicanálise, a atenção ao vago, ao “inútil”, ao
insignificante, ao resíduo que excede a atividade consciente, como sonhos,
chistes, atos falhos e esquecimentos como vias de acesso à produtividade
inconsciente – que custaram a Freud acusações de não-cientificidade – agrega-se
à importância dada à sexualidade como constitutiva do que somos, proposições
que irão se confrontar diretamente com a assimilação dos elementos
heterogêneos pela parte homogênea da vida social, incluindo-se nessa

37As orações, os “trabalhos”, as remissões dos pecados e das culpas, os rituais (obsessivos)
que se compõem, na heterogênese, como sistemas de crenças, de religião e de moral,
assimilam-se ao homogêneo como expressões da esperança de se obter benefícios materiais
ou de mantê-los. A virtude sustentada por fins constitui-se, assim, por essa assimilação e
controle da heterogeneidade pela homogeneidade social. O poder e o controle externos,
longe de serem recusados, passam a ser desejados como meios para se alcançar os fins.

312
assimilação o controle da vida sexual dos indivíduos, seja por sua redução
familiarista e restrita das sociedades disciplinares, seja por sua visibilização
genitalizada atual, que a inscreve nos sistemas de equivalência homogêneos
(corpo e sexo-mercadoria).
Assim, os elementos heterogêneos, definidos como não-produtivos,
como não-úteis, como não-mensuráveis, e, como tal, mantidos fora dos
sistemas de equivalência que validam as atividades úteis uma em relação
às outras, mas que são, em contrapartida, válidos em si, irão se compor com
a parte homogênea da sociedade quando assimiláveis por esta, e,
enquanto assimiláveis, mantidos sob controle, vigilância e
disciplinarização; as heterogêneses irredutíveis à parte homogênea serão,
por sua vez, postas em exclusão ou extermínio, como nos grandes
confinamentos dos desviantes e dos loucos dos séculos XVIII e XIX
estudados por Foucault em História da loucura [manicômios] e em Vigiar e
punir [prisões]) e que se estendem para o século XX como “válidos e
necessários”, exclusão que, se não realizada, supõe-se, colocaria em risco a
própria estabilidade da homogeneidade social.
Entretanto, tal exclusão não seria suportável caso não pudesse ser
justificada. Sua extrema violência não seria significável para aqueles que
sustentam e se sustentam da homogeneidade social, pois os levaria a terem
de se confrontar com a própria contradição, que atuaria como desagregadora
de si mesmos e do mundo que os legitima. Ora, argumenta Bataille, uma das
características das ciências e das técnicas, com seus critérios de
reprodutibilidade, de verificabilidade etc. é exatamente sua homogeneidade.
Elas só se sustentam enquanto úteis, enquanto produzindo resultados no
campo homogêneo,38 e será delas, em confluência com as necessidades de

38 Além disso, todo trabalho científico, independentemente de seu propósito, encontra seu
limite nos interesses que o excedem, na medida em que, para se realizar, depende de
financiamentos, seja de órgãos de fomento à pesquisa, seja da iniciativa privada, como
ocorre atualmente com a pesquisa genética, financiada, em sua maior parte, pela indústria
farmacêutica. As aspirações de neutralidade e isenção ideológica do cientista encontram
nessa dependência seu impasse ético.

313
sustentação da homogênese social, que derivarão os sistemas explicativos e
de regulação e controle do que pode, a cada momento, ser assimilado dos
fluxos heterogêneos pela homogênese sem que ocorra uma ruptura de seu
campo. É dessa forma que podemos compreender o que foi indicado
anteriormente (APRESENTAÇÃO), a respeito das psicotecnologias como sendo,
elas próprias, agenciadoras de subjetividade, daí sua função mais adaptativa
do que compreensiva do que constitui a subjetividade humana.
Há situações extremas, como a do nazismo, no qual os argumentos
“científicos” que procuravam demonstrar a pureza do ariano em relação aos
demais grupos étnicos serviram para justificar as exclusões e os extermínios em
massa. 39 O que é notável no nazismo é que ele só se tornou possível por
capturar e direcionar a revolta dos elementos heterogêneos do social frente à
dissolução de sua parte homogênea com a Primeira Guerra Mundial, que levara
a uma crise dos setores produtivos e a uma desvalorização incontrolável do
marco alemão, desfazendo os sistemas de equivalências sustentadores da
integridade e coesão da parte homogênea do social. Canetti (1983) apresenta um
argumento original e provocador para o extermínio em massa de judeus
promovido pelo Estado nazista como forma de recuperação da homogênese
perdida, e que justificaria sua aceitação pelo povo alemão: como milhões de
marcos de nada valiam, teria sido necessário apontar como causa da
desagregação da Alemanha grupos que também fossem numerosos e transferir
para eles esse não-valor da moeda.40 O crescimento da violência – marginal e

39 Exemplos extremos desse uso da ciência surgem nos Estados totalitários, dos quais o
nazismo é exemplar. O médico Gerhard Wagner, no Estado nazista, realiza, em 1937, um
filme-documentário, Vítimas do passado (Opfer der Vergangenheit), no qual justifica o
extermínio de loucos e deficientes mentais e físicos como forma de impedir o contágio e a
degeneração da raça ariana, demonstrando que eles eram fruto da miscigenação racial
anteriormente vigente. A base de seu argumento está na demonstração de que problemas
estéticos são problemas médicos, de forma que estes deixam de estar a serviço do indivíduo
para se autorizarem investir a cura do “corpo da raça”. Algumas seqüências desse filme
podem ser vistas em Arquitetura da destruição, de Peter Cohen (1989).
40 Essa leitura de Canetti fornece uma compreensão para a complacência – livre de inquietações

morais – das classes médias brasileiras perante os porões de tortura do governo militar.

314
institucional – em situações de instabilidade social e econômica encontra nesse
argumento de Canetti também uma via possível de compreensão.41
No pós-guerra, enquanto se promovia a reconstrução da Europa e a
América acolhia intensos fluxos de migrantes em busca de trabalho, a tendência
de assimilação e agregação de mais e mais elementos heterogêneos à parte
homogênea do social tornou-se inevitável, principalmente nos estados
democráticos capitalistas. A expansão dos serviços e do consumo no pós-guerra,
característico das sociedades pós-industriais, por exemplo, que passaram a
demandar outros atributos que os da força ou da disciplina corporal para o
desempenho de atividades produtivas, se fez acompanhar não só por uma
maior flexibilização dos costumes e um reinvestimento do corpo em sua
expressividade como a demandar a incorporação de mais e mais elementos
heterogêneos, antes mantidos em exclusão, na dimensão do útil, agora definido
mais em termos de consumo que de produção. Basicamente, essa assimilação
implicou uma expansão da esfera do útil, evitando sua desarticulação por esses
elementos heterogêneos, fazendo-os passar para os sistemas de equivalências da
homogênese. Já nos anos 60, anuncia-se no horizonte uma tendência à
equivalência generalizada, que só fará ganhar maior força nas décadas
subseqüentes.
Ora, para isso, o concurso das instituições educativas, de controle e
integrativas das sociedades disciplinares (a escola, o exército, a igreja, a fábrica,
o hospital, o sistema jurídico etc.), de razoável eficácia no século XIX, tornou-se
mais e mais ineficiente. É assim que se caminha, gradativamente, para outra
forma de composição de novos diagramas do poder, os das sociedades de
controle, nas quais a comunicação é assimilada como parte do sistema

41 Já se observou que, no Brasil, a violência urbana tem assumido um caráter crescente de


negação do outro, próprio das disposições perversas: em um assalto ou seqüestro, não basta
ao agressor apropriar-se dos bens materiais de sua vítima; é necessário negá-lo enquanto
outrem, seja humilhando-o e ameaçando-o, seja pelo ato extremo do assassinato. Uma
afirmação de si que exige, para realizar-se, a negação absoluta do outro, o que constitui a
contrapartida da afirmação dos garantidos na homogênese social pela negação dos não-
garantidos. Nos dois casos, apartação social extrema, como expõe implacavelmente o filme
Cronicamente inviável (Bianchi, 1999).

315
produtivo, isto é, do útil, sendo ela, principalmente, que se encarregará da
inclusão do heterogêneo nas equivalências que organizam o homogêneo.
Não se trata de fazer aqui uma história da entrada da comunicação no
sistema produtivo, mas de indicar que, em relação ao controle dos seres
heterônomos que buscam organizar suas vidas no espaço da cidade, os meios
de comunicação de massa passaram a ocupar com vantagem o lugar dos
dispositivos institucionais que antes asseguravam eficientemente a
manutenção da homogeneidade social em um equilíbrio relativamente
estável. Para isso, sua potência inesgotável de produção de matérias de
expressão, em aliança com os desenvolvimentos mais e mais sofisticados de
dispositivos tecnológicos para sua difusão construiu o sonho dos anos
dourados para todos. Um sonho que, na realidade, não se realizou nem
poderia se realizar, por ser impossível em organizações sociais que se
sustentam por regimes de pertinência a estratos diferenciados conforme o
maior ou menor acesso ao consumo de serviços ou bens, enfim, na
desigualdade, embora persistentemente se mantenha o sonho, pela produção
intensiva de matérias de expressão (lingüísticas, icônicas, cognitivas,
perceptivas, sensoriais), como possibilidade futura, criando tanto espaços de
inclusão de novos segmentos da população na lógica do consumo quanto de
outras e variadas formas de exclusão.
Malgrado essas exclusões, malgrado as desigualdades, os meios de
comunicação de massa, para alcançarem seu pleno florescimento e se
constituírem como pólo expressivo das sociedades livres (contrariamente ao
seu estrito controle e uso para manipulação política nos Estados totalitários)
precisavam das imagens de uma liberdade individual que também fosse,
fortemente, uma “liberdade de expressão”, e encontraram (e ajudaram a
promover) nos movimentos de transformação dos costumes dos anos 60 seu
ponto de alavancagem. É assim que, principalmente com a televisão, a mídia
passou a ser produtora privilegiada de matérias de expressão para a forma
de exteriorização dessa liberdade. Matérias de expressão que, como vimos na

316
PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, constituem, predominantemente, os
signos mundanos da tele-realidade que fazem do mundo um “dado a ver”,
mas muito pouco a experienciar.
Foi indicado, também, nesse capítulo, que na relação com os signos
mundanos, os do amor e os sensíveis raramente são intercambiáveis. Essa
relação entre a experiência dos signos do amor e os sensíveis e a emissão dos
signos mundanos pela mídia pode permitir compreender o que vem sendo
indicado como redução banalizante e deletéria dos movimentos de liberação
dos anos 60, da qual a superexposição do corpo e do sexo na mídia seria uma
resultante. Acompanhar essa redução nos permitirá avançar, agora em
relação às expressões da intimidade, para a compreensão de mais alguns
componentes do processo de assimilação pela parte homogênea dos
elementos heterogêneos que emergem no campo social.

Livre Circulação dos Corpos e Sexualidade


O que de mais radicalmente novo a liberação dos anos 60 introduziu
nas relações intersubjetivas foi a possibilidade de expressão do desejo da
mulher. Até então, nas representações que se fazia do desejo feminino,
enquanto sujeitado ao estrito controle masculino e sob as regras do modelo
matrimonial que deu o fundamento para a família nuclear burguesa, seu
desejo não podia se manifestar claramente, devendo sempre aguardar pelo
desejo masculino. No erotismo disciplinar (Bruckner & Finkielkraut, 1977), as
estratégias de sedução femininas (gestos sutis e delicados, olhares, rubores),
em relação a essas restrições, constituíam-se como espécies de filtros
compatíveis com a noção de sua fragilidade; nos laços do desejo, essas
estratégias surgiam como assimilação pela mulher da norma que prescrevia
ao feminino que permanecesse passivo, sob o risco de sua desqualificação e
exclusão moral. Sua face ativa encontrava-se na figura da prostituta,

317
consentida nos espaços de exclusão claramente demarcados na cidade,42 na
figura da femme fatale, cultivada nas telas de cinema e nos
bares/boates/cabarés, e na figura da amante, personagens do erotismo
disciplinar que funcionavam como pólos de atração e abismo do masculino.
Formulação notável, que, se se enunciava dentro das regras burguesas do
recato e da virtude pública, e fortemente sustentada pelas polarizações sexo
forte–sexo frágil, sexo ativo–sexo passivo, mulher pública/prostituta–mulher
“privada”/esposa, aparentemente resolvia o problema das representações
que a haviam antecedido, que indicavam na mulher todos os riscos de uma
irremediável dissolução da homogeneidade do universo masculino e dos
laços sociais (Enriquez, 1990: 182-207).
Enriquez, psicossociólogo com importantes trabalhos de análise das
instituições, tomando como ponto de partida os estudos sobre a ordem dos
sexos nas sociedades, das primitivas às mais avançadas, verifica que a maioria
dos autores, de Engels a Freud, estão de acordo quanto à constância com que
se destaca o “estatuto inferior e dominado da mulher” e “as características de
desordem e de vinculação com a natureza (considerada aqui como antagônica
e antinômica da cultura) que revestem o feminino”, indicando que, na ordem
da cultura, a “relação homem/mulher é a mais profunda base de todas as
relações desiguais” (Balandier, apud Enriquez, 1990: 182).
Embora levando em conta os sistemas explicativos existentes para tal
posição do feminino na cultura – “a importância decisiva da caça para a
dominação dos homens; a diferença de especializações técnicas e produção de
tipos diversos de alimentação; a geração material simbólica da sociedade pelos
homens através das mulheres” (Enriquez, 1990: 182) –, Enriquez não os
considera satisfatórios ou suficientes, investindo uma análise do imaginário
cultural, através de obras literárias e dados clínicos advindos da psicanálise.

42 A demarcação de espaços para essas mulheres, assim como a caracterização e classificação de


suas práticas como mais ou menos consentidas foi realizada no Brasil pelo saber médico no final
do século XIX, numa minúcia classificatória que, por exclusão, promoveu a dessexualização da
figura feminina a ser aceita no núcleo familiar (Rago, De Eva a Santa..., in Ribeiro, 1985: 219-228).

318
Aporta a essa análise algumas referências novas e instigantes, como, por
exemplo, pesquisas recentes da anatomofisiologia, embriologia e
endocrinologia que apontam, contra a tese da bissexualidade biológica
(sustentada por Freud, ela própria já um escândalo para a posição viril), que
todos os seres humanos pertenceriam inicialmente ao sexo feminino, o que, se
confirmado, impor-se-ia como uma profunda ferida narcísica aos homens, que
se representam como primeiros na escala humana.43
Freud já havia indicado a relação, também constante e profunda, entre
o feminino e a vida pulsional, o que, de certa forma, observa Enriquez, todas
as sociedades teriam também pressentido, justificando as interdições
formuladas para limitar, canalizar ou impedir a sexualidade feminina, vista
como ameaçadora e perigosa.44 Percorrendo mitos e obras os mais diversos
centrados em personagens femininas,45 Enriquez demonstra ser a mulher a
representante privilegiada da diferença, daí o sentimento de perigo em que
coloca os homens: instaura a rivalidade e a constante intranqüilidade entre
eles; fazem-lhes um contínuo desafio, pelo qual os homens sabem ser a
palavra das mulheres e seu amor que os constitui como homens, o que coloca
sua virilidade à mercê delas; representam uma ameaça ao trabalho, na medida

43 Na Bíblia, Eva como originada da costela de Adão, criada por Deus para ser sua
companheira; a contrapartida da figura bíblica de Eva está em Lilith, que Adão teria
recusado por sua posição sexual dominante e, por essa razão, perigosa, demoníaca.
44 A esse respeito, a obra de Aline Rousselle, Pornéia; sexualidade e amor no mundo antigo (1984),

faz um minucioso levantamento histórico das práticas de controle por continência e/ou
abstinência sexual masculina nos primeiros séculos da era cristã, acompanhadas por uma estrita
dominação sobre o corpo feminino e opressão do corpo infantil, com vistas a evitar a perturbação
da ordem cultural masculina. Não se trata, claro, de que as mulheres sejam perigosas, tal como
representadas pela ordem masculina. O “perigo” é o da diferença, da alteridade, que, recusada,
deposita na mulher todos os riscos imaginários que, de certa forma, fornecem as justificativas
para fazer delas objetos de dominação e depreciação. Fascínio e terror não diversos dos
mobilizados no encontro entre povos e culturas diferentes.
45
As Moiras gregas, que, no mito, indicam serem o Amor e a Morte da ordem do feminino;
Fedra, de Racine, e Jocasta, de Édipo-Rei, de Sófocles, como expressões extremas da paixão; a
Esfinge, presente no mito e na tragédia Édipo-Rei, e Turandot, de Puccini, como portadoras do
enigma, representação do pólo sagrado do mundo; Pantasiléa, fêmea do louva-deus,
representante das amantes canibais; She, de Haggard, a deusa da imortalidade que elimina
todos os homens incapazes de torná-la mortal pelo amor; Herodíades, de Mallarmé, expressão
do frio mortal em que o homem teme ser capturado; Salomé, de Oscar Wilde, a paixão
mortífera que pede a cabeça (São João) daquele que não cede ao seu apelo; La Traviata, de
Verdi, a transviada que traz a desordem sexual para o mundo dos homens.

319
em que as mulheres, por seu interesse pela sexualidade, nada teriam a fazer
com o tempo, que pertence ao trabalho. E finalmente, se é verdade, como o
formulara Freud,

“que o social é principalmente o mundo da alteridade negada e


imediatamente afirmada, de uma reciprocidade jamais vivida até o fim (pois
significaria o questionamento permanente das relações que seriam criadas)
as mulheres encontram-se fora das relações sociais, pois sua grande
diferença não pode ser simultaneamente negada e afirmada. O
reconhecimento da diferença do sexo é a primeira etapa da descoberta da
verdade. Nela se simboliza um elemento central com o qual todo o homem
deve se confrontar, ela desmistifica as falsas aparências, diz que o rei está nu
e arruina as hierarquias. Neste sentido, pela sua própria existência, a mulher
constitui um escândalo” (Enriquez, 1990: 200).

Enriquez indica, também, as estratégias que, em vários momentos da


cultura, a dominação masculina mobilizou contra o risco representado pelas
mulheres: o perigo à civilização, representado por seu caráter incestuoso e
sua violência sexual, foi convertido em fundamento do social e do vínculo
sexual entre os homens, pelo sistema de trocas exogâmicas (cf. as pesquisas de
Lévi-Strauss o demonstram); sua capacidade de amar, isto é, a força de sua
pulsão sexual e sua mortal violência foram transformados em força de trabalho
(tanto nas sociedades primitivas, nas quais delegava-se às mulheres o fardo
pesado do trabalho cotidiano enquanto os homens dedicavam-se à caça,
como na Revolução Industrial, em que a força das mulheres e das crianças foi
explorada ao extremo e sem recompensa); sua dominação sobre os homens,
visto ser ela que os dá à luz e representa sempre para eles o paraíso perdido,
é transformado em submissão econômica e política. Efetivamente, continua
Enriquez, se os homens trocam continuamente de mulheres, é para escapar à
própria captura no colo feminino e para poder estabelecer vínculos de
aliança, de solidariedade e de ternura para com os outros homens pela

320
interpretação que deles fazem as mulheres. Conservar suas mulheres é estar
permanentemente em rivalidade e os outros homens seriam continuamente
adversários ou estrangeiros a serem combatidos (como Freud procurou
demonstrar em Totem e tabu [OC, 1981i: 1.745-1.850]). Trocá-las implica
estabelecer os laços de amizade, afastando o perigo que elas representam e
reforçando os vínculos sexuais (que, inibidos em sua finalidade,
transformam-se em vínculos sociais) entre os homens. 46

46O que nos fornece uma outra compreensão para a afirmação consensual de que os homens são
movidos por uma necessidade incontrolável de sexo que lhes seria própria e instintiva,
demandando pronta satisfação, contrariamente à sexualidade feminina, mais ligada ao cultivo da
relação e à satisfação afetiva. Ora, seguindo Enriquez (e Freud, Devereaux, Balandier, suas
principais fontes, entre outras), vemos que, contrariamente, o sexual seria atributo das mulheres,
enquanto a cultura o dos homens. A tão celebrada primazia sexual masculina seria então
resultante do absoluto triunfo da linguagem e da cultura sobre a natureza, e não um dado
biológico natural. A infinidade de distúrbios sexuais masculinos perante o desejo feminino –
impotência, ejaculação precoce, perversões, fantasmas homossexuais – não só contradiz essa
naturalidade biológica como pode encontrar nessas idéias outros pontos de articulação e
compreensão, particularmente as que dizem respeito à necessidade de dominação e sujeição do
desejo da mulher. Na perspectiva posta por Enriquez, a mulher, para o homem, mais que um
pólo complementar (que se procura confirmar anatomicamente pela complementaridade dos
genitais), é “o outro”, sendo a partir dessa posição de alteridade que ela é definida como elemento
perigoso e antagonista. A ordem dos sexos estaria fundada, assim, não na complementaridade,
mas na assimetria, assimetria esta que, ao ser interpretada como desigualdade, e não como
diferença, justifica o privilégio genital masculino, a dominação viril e sua violência, derivada do
ódio/temor masculino às mulheres. Daí o erotismo, e mais fortemente a pornografia, por sua
estrita redução ao genital (gozo masculino), vir comumente associado, em suas representações, a
um poder sobre o outro: poder de sedução, poder de captura, poder de fazer ceder, e o
correspondente desinvestimento, como pouco mobilizadores da imaginação, dos encontros
ternos dos corpos evocados por Nietzsche (INTRODUÇÃO, p. 163). Por sua vez, a crescente
afirmação da posição “homossexual” masculina (ou homoerótica [cf. Freire Costa, 1992], pois se
trata de uma posição enquanto corpo-linguagem – corpo erógeno –, e não sexual-biológica),
paralelamente à da afirmação do desejo feminino (também crescente em sua vertente
homoerótica, embora de outra natureza, na medida em que, em nossa ordem cultural, o “outro”
sexo é sempre o feminino, daí, em sua forma mais estereotipada, os casais femininos
apresentarem-se como duplos do casal heteroerótico), seria não só o resultado da nova liberdade
que, desfazendo os preconceitos, teria permitido à pulsão homossexual (entendida como
“natureza” sexual) manifestar-se à plena luz, mas, muito mais profundamente, estaria
expressando o desmanchamento do vínculo social construído sob a ordem masculina, ou o
atravessamento de sua homogeneidade por elementos heterogêneos que, reterritorializados
pelas ordens binárias (por síntese disjuntiva) masculino-feminino, força-fragilidade, ativo-
passivo, encontram essa sua forma de exteriorização. Bettelheim (1974), associando suas
observações derivadas do trabalho com crianças e adolescentes psicóticos a pesquisas
etnográficas, identifica, contrariamente às teses de Freud sobre a inveja do pênis (que estaria
presente em todas as mulheres, como fantasma de castração), a presença, no masculino, de uma
persistente inveja e ódio do feminino (a concepção, o gozo do corpo todo, a interioridade etc.),
lançando novas luzes sobre a pulsão homossexual (que é associada por Freud à problemática
edípica e à dinâmica da identificação). O que Freud também já destacara é que nem a atração
homossexual nem a heterossexual são naturais, não se reduzindo a quaisquer formas de atração

321
“Cada qual pode sentir prazer e manter relacionamentos com outros
homens, disputar, formar ‘unidades sempre maiores’, entrando em relações
recíprocas com os semelhantes, visto que o diferente, o dessemelhante, foi
afastado. As mulheres não são como as palavras, elas são a oportunidade de
troca de palavras. Em certos aspectos, as mulheres podem ser consideradas
como estando na origem da linguagem dos homens”47 (Enriquez, 1990: 202).

de natureza “química” ou energética (cf. Anatrella, 1990: 165) que as justificaria. O que ocorre,
efetivamente, é que, no encontro dos corpos, múltiplos componentes interferem em sua atração,
sendo o sexual um desses componentes, mas não o único. Poderíamos pensar, numa hipótese
otimista, que essa emergência da afirmação da identidade homossexual (tanto a masculina como
a feminina) seria uma transição na ordem da cultura, ainda que problemática por suas
cristalizações, para a invenção de novas sensibilidades, de novas possibilidades de
existencialização e de expressão da afetividade humana, sem que a redução ao modelo genital
masculino seja privilegiada, abrindo-se espaço para a reelaboração dos laços afetivos que
foram desinvestidos pela primazia do sexual sobre o amoroso, assim como para novas formas
expressivas associadas à sexualidade como movimento e força vital. A prática adolescente do
“ficar”, que com freqüência assume um caráter mais de reconhecimento e experimentação na
troca de carícias entre jovens da mesma idade que propriamente genital, pode talvez indicar
ensaios nessa direção. Mas não só. A. Anzieu (1992), por exemplo, indica uma relação entre a
possibilidade de evitar a concepção (permitida pelos modernos métodos anticonceptivos) com
a pulsão da escrita (e outras formas de criação cultural) que começou a se manifestar mais
consistentemente para muitas mulheres nas últimas décadas. Quando Guattari insiste sobre a
necessidade de se desaderir da problemática de uma identidade sexual, como insistentemente
sustentada pelos movimentos homossexuais ou feministas, plenos de sentido em sua
emergência como estratégias de combate aos diagramas de poder vigentes, o que procura
indicar é não só que esse é um falso problema como também uma prudência necessária em
relação ao risco de se constituir, sob outra ótica, novas ordens tão opressivas quanto a
masculina, que em sua exacerbação e declínio tem feito mobilizar forças reativas aos processos
de transformação psicossocial. De todos os devires pensados por Guattari (e Deleuze), o único
a não ser investido é o devir-homem, posto ser ele a própria resistência do instituído – como
referência cultural e identitária – que seria necessário desfazer. Invenção de uma nova ternura,
insistia ele com freqüência.
47 Foi afirmado, na INTRODUÇÃO, que Sade levou a investigação das relações do corpo com a

linguagem à máxima radicalidade na literatura, procurando-se mostrar como ele construía


sua operatividade na orgia. Agora podemos articular mais um outro sentido para essa
afirmação. A fala dos personagens libertinos de Sade não cessa de afastar e distanciar as
mulheres, de negá-las e reduzi-las, e a seus corpos, a algumas poucas possibilidades de
gozo, se comparados aos corpos masculinos, que os libertinos não cessam de exaltar em seus
discursos (o que leva muitos homossexuais a identificarem em Sade, num primeiro
momento, seu porta-voz. Entretanto, muito rapidamente o abandonam, dando-se conta de
que não é de uma positivação da homossexualidade que se trata em Sade, mas de um
intenso combate, em plena sociedade disciplinar, à definição do vínculo social, assegurador
das instituições e seus diagramas de poder, expondo, à plena luz, sua ‘outra cena”. Sade,
analista institucional). Ao mesmo tempo, e exatamente pelo desejo de afastá-las, são elas que
os fazem falar abundantemente, fala que os constitui como iguais uns em relação aos outros,
e não porque elas os interessem como objetos de desejo, mas por ser sua existência que
mobiliza suas ações agressivas/destrutivas sobre os corpos, de forma a garantir a
manutenção de sua aliança. As mulheres mais admiradas nas descrições de Sade – exceção

322
O tema da dominação das mulheres pelo fechado universo masculino
também foi estudado minuciosamente – de outra perspectiva, a do contrato
sexual – pela cientista política australiana Carole Paterman (1993), que
estabeleceu precisos paralelismos entre a divisão do trabalho e a divisão
sexual como fundamentos do contrato social e da desigualdade sexual que
foram formulados no século XVIII.
Podemos ver, por essas breves observações, a importância, para as
transformações da ordem da cultura, que os movimentos de libertação
feminina tiveram em seu início: desordem do mundo masculino, deriva dos
laços amorosos até então vigentes, redimensionamento das relações de
trabalho, recomposição do campo econômico e político. Foi exatamente por
essa importância, insuportável para a ordem cultural masculina, que a
liberação feminina – com sua desterritorialização do território matrimonial,
através da qual a mulher estaria buscando construir sua realidade própria,
que é efetivamente seu campo problemático (Mena, 1987) –, foi alvo de
reiteradas reterritorializações pela cultura, das quais a mídia televisiva atual
compõe um campo privilegiado (e caricato) de visibilidade e de produção
imaginária. Vejamos de que forma essas reterritorializações ocorreram.
Em primeiro lugar, falar do desejo (feminino ou masculino) implica
reconhecer o que constitui seu laço intercorpóreo e intersubjetivo
fundamental: o desejo é sempre desejo do desejo do outro. O desejo
manifesta-se, portanto, na alteridade. É nessa possibilidade de colocarmo-nos
perante o desejo do outro que nos constituímos. É isso que nos propõe,

feita a Eugènie, Juliette, Justine (as duas últimas, indicadas por Klossowski como o “outro”
de Sade, pontos de articulação de sua literatura e de seus sonhos de liberdade, de seu devir-
outro) e às muitas vítimas que desfilam em seus romances, sempre exigidas e descritas como
belas e perfeitas na forma, condição necessária para degradá-las e corrompê-las (sendo que a
descrição dos corpos masculinos tomados como vítimas indiferencia-se da utilizada para os
femininos) – são aquelas libertinas que agem como homens, ou que a eles se assemelham
(mulheres corpulentas, com clitóris enormes, muitos pêlos no corpo, ânus levantado, quase
sem seios). As mulheres “libertas” de Sade são as que assumem o discurso e a atuação do
libertino masculino, as que desejam o que os homens desejam, e da mesma forma. Sade
extemporâneo.

323
plenamente, a formulação de Espinosa: a potência do corpo é a de afetar e ser
afetado por outro corpo, ou o plus de força nomeado por Nietzsche como
vontade de potência: potência de ser afetável, isto é, sensibilidade.
A posição afirmativa da mulher como desejante, se colocou à
prerrogativa sexual masculina seu impasse fundamental – não ter mais na
mulher aquela que aguarda e anseia passivamente ser eleita como objeto de seu
poder de dominação e sedução, mas a exigência de também se colocar como
pura possibilidade perante seu desejo, com todos os riscos de sua aceitação ou
recusa – , forneceu-lhe, por outro lado, as armas para uma reversão, bastante
duradoura, dessa posição: as mulheres, agora “liberadas” e simulando novos
territórios existenciais, estavam prontas e ansiosas por abrir-se às novas
possibilidades de experiência, que os homens se prontificaram a possibilitar,
sem que tivessem de abandonar suas próprias prerrogativas viris, pelo menos
no primeiro momento.48 No decorrer dos anos 70, várias pesquisas (Falconnet &
Lefaucheur, 1977; Anatrella, 1992; Hite, 1978) e obras de feministas mostraram
uma revolução bem diversa da que foi anunciada como grande liberação: como
declararam muitas mulheres no famoso Relatório Hite (Hite, 1978: 333-382),
rapidamente elas compreenderam que se liberavam de um jugo para cair em
outra armadilha, agora uma doce e desejada armadilha: a de continuarem
atendendo à prerrogativa masculina, inclusive facilitando-a, ao poupar-lhes o
trabalho de construir com e para elas os artifícios da sedução. Mais que isso:

48Há uma espécie de acordo tácito – uma cumplicidade –, que se desenvolve entre homens e
mulheres, no qual um e outro simulam pertencerem a essa nova liberdade, na qual ambos se
reconheceriam e se respeitariam em sua diferença, sendo nessa posição que construiriam seu
vínculo. Mantém-se, entretanto, as posições tradicionais de dominação homem-mulher, com a
diferença de que as mulheres não precisam mais “resistir” e serem seduzidas: elas passam a
desejar o poder e a dominação que antes eram apontados como opressores, incorporando sua
dinâmica ao próprio sistema das pulsões (cf. INTRODUÇÃO, Nota 130). O prestígio das formas
perversas de expressão da sexualidade agora normatizadas – como a SM – amplamente
cultivadas pela indústria cultural, decorre, em parte, dessa incorporação. Paralelamente,
multiplicam-se os debates entre grupos de mulheres e torna-se crescente uma literatura que
pergunta pelo feminino (A. Anzieu, 1992; Chaui, 1991; Mena, 1987; Mitchell, 1988; Paterman,
1993; Portinari, 1989; Schott, 1996; Verdiglione, 1978, entre outros), paralelamente às obras de
feministas radicais, como Shulamith Firestone (1976), que, a partir de Marx e Freud, faz uma
consistente e radical análise da revolução feminina ainda por vir e as transformações que ela
provocaria nas estruturas de poder.

324
inscritas pela ordem masculina, assimilaram dos homens suas estratégias,
fazendo-se, elas próprias, também caçadoras conforme o modelo masculino da
caça (não só sexual; a ocupação de postos de comando no trabalho é muitas
vezes investida conforme a lógica masculina de competição e poder, e de forma
não raro bem menos flexível), em muitos casos ignorando o sentido mais
profundo de sua emancipação: a construção de uma realidade própria, para
além do masculino (Mena, 1987). Pois, como diz Foucault,

“os movimentos ditos de ‘liberação sexual’ devem ser compreendidos como


movimentos de afirmação ‘a partir’ da sexualidade. Isto quer dizer duas
coisas: são movimentos que partem da sexualidade, do dispositivo da
sexualidade no interior do qual nós estamos presos, que fazem com que ele
funcione até seu limite; mas, ao mesmo tempo, eles se deslocam em relação a
ele, se livram dele e o ultrapassam. (...) Durante muito tempo se tentou fixar
as mulheres à sua sexualidade. ‘Vocês são apenas o seu sexo’, dizia-se a elas
há séculos. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre
doente e indutor de doença. ‘Vocês são a doença do homem.’ (...) Ora, os
movimentos feministas aceitaram o desafio. Muito bem, sejamos sexo, mas
em sua singularidade e especificidade irredutíveis. Tiremos disso as
conseqüências e reinventemos nosso próprio tipo de existência, política,
econômica, cultural... Sempre o mesmo movimento: partir desta sexualidade
na qual se procura colonizá-las e atravessá-la para ir em direção a outras
afirmações. (...) ” (Foucault, Não ao sexo rei, 1989: 233).

A liberação, entretanto, ao ser reduzida à possibilidade de a mulher


praticar sexo como os homens, isto é, ter múltiplos parceiros (em vez de só
significar-se no sistema de trocas dos homens, colocá-los, por sua vez, em seu
circuito de trocas), fez com que a afirmação da diferença cedesse
integralmente ao princípio da identidade e do idêntico. Longe das lutas
sangrentas que se anunciavam com a liberação do inimigo-mulher,
estabeleceu-se a cumplicidade, a conciliação, ainda que a um preço: liberação
do sexo, negação da sentimentalidade e crise do desejo, agora reduzido ao

325
apetite corporal (fome do outro, expressão das pulsões orais), à busca ansiosa
por corpos capazes de responder a ele (desejo de poder sobre si e sobre o
outro, expressão das pulsões anais) e afirmação narcísica (a certeza de si,
expressão das pulsões fálicas), e que raramente chegam à aceitação da
presença do outro e de sua problemática afetiva, numa maturação que se
organizaria em torno do sentimento amoroso e da transmissão de vida
(pulsões genitais).49
Se antes se culpabilizava o sexo, agora se deve culpabilizar o amor. Se há
ainda um romantismo, ele é agora libidinal, não sentimental. No lugar da
paixão, o desejo; no lugar do coração, o sexo. Pretendeu-se, assim, realizar a
grande subversão: vingar-se da tirania das almas e do amor sublime que
condenavam o corpo como espaço dos vícios e dos pecados para instaurar em
seu lugar o corpo glorioso do prazer. Frágil subversão, entretanto, que só fez

49 A separação do sexo de sua função procriadora, quando não a radical exclusão desta do
horizonte da sexualidade, seja pelo uso de métodos contraceptivos ou pelo aborto, que é
defendida por alguns como asseguradora da experiência de uma sexualidade tranqüila e
sem imprevistos que liberaria ainda mais o prazer dos parceiros, introduz, na experiência
afetiva, uma separação entre a vida e a morte, que deixam de ser coextensivas uma à outra
para serem postas em irredutível oposição. Embora o desejo de conceber um filho não esteja
presente em cada relação sexual, “sendo a morte inerente à sexualidade, cada relação sexual
faz supor que um outro pode vir dessa relação a dois e assegurar a continuidade da vida.
Tanto num caso como no outro, a sexualidade é alteridade e pensar a reprodução como uma
alternativa acessória reforça sua dessocialização mantendo-a nas motivações unicamente
narcísicas”.(Anatrella, 1992: 102-103). A essa separação agrega-se a negação ou ocultação da
realidade da morte, como é corrente nas sociedades tecnológicas atuais, e esquece-se que a
sexualidade, como fonte de vida e de perpetuação da espécie, é uma resposta afirmativa em
relação à própria morte. A disseminação politicamente correta de valoração higiênica da
contracepção – que se coloca em primeiro lugar e até como mais importante que a experiência
afetiva na relação sexual (à qual agrega-se o discurso do sexo seguro em relação às DSTs) –,
ao incidir na educação sexual dos jovens, agrega para estes mais uma inquietação às muitas
outras que são próprias da passagem da infância para a adolescência: Ao se lhes colocar a
concepção como tecnicamente indesejável, o que se abre para eles é a pergunta pela
legitimidade da própria existência: teriam sido eles realmente desejados pelos pais, ou
teriam sido fruto desse mesmo acidente que eles são convidados agora a evitar? Uma
questão que os dessitua em relação à própria filiação e que gera o sentimento de que, em sua
origem, um perigo, o de não ter nascido, pesou sobre sua própria existência. Se a
contracepção separa vida e morte, o aborto, mais profundamente, introduz, para a mulher, a
morte em seu próprio interior. Sua valoração e banalização sociocultural como alternativa
possível quando a concepção ocorre acaba por se sobrepôr ao trabalho de luto que as
mulheres vivem perante a experiência de perda e de culpa quando se sujeitam a ele. Recusar
sua banalização não implica, por outro lado, aceitar que o aborto continue sendo
criminalizado, como defendem, em nome da moral, setores conservadores da sociedade, mas
sim reconhecer as marcas profundas que sua prática imprime na subjetividade feminina.

326
inverter os pólos, mantendo a separação corpo e alma que garantira, até então,
os argumentos para a dominação racional da alma sobre o corpo (alma
ativa/corpo passivo). Mantendo-se a oposição, manteve-se o puritanismo, agora
em seu inverso (corpo ativo/alma passiva). Se antes o espírito canalizava a
carne, os neovitorianos do orgasmo operam agora a redução do espírito:

“Tudo é desejo, a única coisa que existe é o corpo: esta generalização


triunfante do libidinal sobre o conjunto da vida afetiva é de imediato
desmentida pela definição restritiva conferida ao desejo. A imagem da
sexualidade que uns entendem, hoje, defender contra todos os avatares da
sublimação é a mesma imagem que outros proibiam outrora em nome do
amor sublime” (Bruckner & Filkielkraut, 1989: 104-105).

Corpo liberado limitado ao seu sexo, entra-se na era do desempenho e da


tirania do orgasmo. Florescem as técnicas sexuais: triunfo da sexologia e da
biologização do sexual. Florescem o cultivo do corpo, as construções da
espontaneidade e da ativação da sensibilidade:50 triunfo das terapias libertárias,

50Não a do amor fati nietzscheano, de valorização e expansão da vida, mas a dos sentidos, da
experiência sensorial limitada ao tempo de seu estímulo (que é o máximo que alguns
niilistas contemporâneos conseguem apreender de Nietzsche). A ascensão das drogas com
os movimentos de liberação atende plenamente a essa sensibilidade, como fator de
a(fe)tivação que tem, entretanto, seus próprios limites, como vimos na PARTE I, CAPÍTULO 1 –
DENTRO; CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA: se a droga abre para as forças do Fora, em um primeiro
momento, não permite, entretanto, a dobra dessas forças para si. Ao contrário, é a droga que
se dobra para o corpo, e o sujeita ao seu funcionamento: dependência da droga para ativar-
se, anestesia crescente do corpo às afetações, o que exige um maior consumo da droga ou a
substituição das “leves” por outras mais “pesadas”. Nos anos 60/70, quando foram
realizadas algumas experiências de associação de drogas alucinógenas a técnicas
psicoterapêuticas para potencialização destas, alguns psicoterapeutas mais atentos
rapidamente se deram conta de que sua eficácia assemelhava-se à que Freud constatara em
relação à hipnose: os conteúdos recordados sob o efeito da sugestão hipnótica e os afetos ab-
reagidos sob tal estado não são assimiláveis aos processos de elaboração da própria
economia afetiva, por lhes faltar a carga emocional/afetiva associada à rememoração. Assim
como não se trata de simplesmente recordar eventos passados, no processo de cura, mas de
reativar as experiências afetivas ligadas a esses eventos e mantidas sob recalque, revivendo-
as, elaborando-as e rearticulando-as, através da linguagem, no presente, no caso das drogas
também não se trata, simplesmente, de ativar a percepção e a sensação e, com essa ativação,
expandir a consciência (apesar dos inúmeros relatos que afirmam essa expansão, como os de
Michaux, Huxley, Burroughs, Castañeda), mas de seu limite enquanto fator de a(fe)tivação
da vibratilidade dos corpos, vibratilidade que se extingue, passado seu efeito; ao não se
sustentar o que se descobriu e se experimentou em sua ausência, é necessário retornar a ela

327
“reichianas”51, neoreichianas e instantâneas, do “aqui e agora”, do “só posso
tocar você agora”. Florescem os artifícios para tornar-se permanentemente
desejável: triunfo da cosmética, das cirurgias plásticas, da escultura corporal,
das dietas. Suspenso o “sujo segredo” do sexo, florescem as imagens em sua
abundância e seu excesso: triunfo da indústria cinematográfica,52 da mídia
televisiva e da publicidade, que encontra nos corpos a via que faltava para sua
expansão.53 Absoluta captura do desejo feminino, agora liberado, pela

para novas ativações (disso resultando a dependência psíquica). Destaco com insistência a
questão da droga por ser ela emblemática, no conjunto das drogas contemporâneas, entre
elas a própria televisão e suas figuras de prestígio, das aspirações a um plus de força que
invariavelmente fracassa ao levar o corpo a tão-somente um giro sobre si mesmo e sobre a
droga que o ativa. Daí ser relevante que o crescimento de seu consumo se dê na mesma
progressão em que se separa o sexo da sexualidade, entendida esta como principal dimensão
da economia afetiva, da qual o sexo é parte: “Aquilo de que o sujeito se sente desprovido
dentro de si, ele espera adquirir graças a uma substância mágica, exterior a si mesmo” É o
que ocorre com a busca de satisfação nos corpos passageiros, estranhos e exteriores aos laços
afetivos, como é prática comum nas “baladas”, que associam o sexo eventual ao consumo de
drogas e álcool: “O sexo não pode existir por si só, senão corre o risco de destruir o desejo.
(...) a experiência de relações sexuais freqüentes – ou com parceiros variados – não
transforma uma sexualidade infeliz. A busca do sexo pelo sexo, excluído da sexualidade,
longe de ser o símbolo de uma liberdade real, manifesta um mal-estar e dificuldades
relacionais que o indivíduo quer compensar com o sexo, como outros o fazem com o álcool”
(Anatrella, 1992: 87-88).
51 Cabem as aspas. Particularmente nos anos 70 brasileiros, parte expressiva das terapias

denominadas reichianas (ou neoreichianas) respondia mais diretamente à obsessão pelo bom
orgasmo de seus demandantes ansiosos por serem “livres sexualmente”, relevando o caráter
polêmico da miséria emocional trabalhada persistentemente por Reich na Europa, em plena
ascensão do nazismo. Prerrogativas individuais sobrepunham-se, assim, à dimensão política
introduzida por Reich na problemática do desejo, bem próxima à de Espinosa, como
“potência para pensar e existir em ato”. Uma multitudo reduzida aos grupelhos alternativos
que se afirmavam libertos em um país encouraçado por militares e “coronéis”.
52 Nos anos 70 brasileiros, em plena ditadura militar, proliferam as pornochanchadas financiadas

pela Embrafilme, desaparece o cinema político e a estética do Cinema Novo. Como diz Foucault,
sobre os Estados totalitários: o poder não se exerce contra, mas através da sexualidade. Mais que
reprimi-la, ela a produz, conforme seus próprios diagramas. No Brasil, restrição da liberdade
política e “autorização” da sexual (na forma ligeira e descompromissada da pornochanchada)
estabeleceram-se em uma configuração duradoura. Da mesma forma, só que com outras práticas
discursivas, a regulação do espaço político brasileiro sob o Império, no século XIX, foi alcançada
com o controle higiênico da sexualidade associado à negociação dos plenos direitos do homem
sobre a mulher, as crianças e escravos no espaço privado em troca de sua abstenção de
participação política no espaço público (Freire Costa, 1991).
53 Ainda nos anos 60, o discurso publicitário centrava-se mais no produto e suas qualidades,

permanecendo o corpo como um “modelo” que devia confirmar o produto. Atualmente,


corpo e produto, corpo e signagem/marca compõem, mais e mais, em continuum, um único
movimento, indiferenciando-se em um só e mesmo campo: um e outro equivalem como
mercadoria desejável. Não por acaso, no desgaste e saturação dessa equivalência, a
publicidade norte-americana e européia insistam hoje no grotesco como estratégia, expondo

328
prerrogativa masculina: triunfo da pornografia “própria para consumo” sem o
pudor e a censura que faziam de sua fruição, até então, uma atividade marginal
e oculta. Por ser liberação do corpo infantil perverso polimorfo e adolescente,
ainda não constituído em sua dimensão relacional, as imagens que podem ser
feitas derivar dessa liberação só podem expor corpos buscando simular a aflição
continuada do próprio gozo.
Crise do desejo, colapso semiótico das representações do erotismo,
ascensão do pornográfico: o sonho que a pornografia realiza, e que corresponde,
em sua exterioridade, à democracia sexual imaginada por Sade, é a de todos os
corpos disponíveis a todos os corpos, sem que o desejo tenha de se colocar
primeiro:

“fantasma da instantaneidade: que, de imediato, se chegue ao gozo. Que a


relação sexual não seja colocada no ponto final de uma maturação, de uma
espera, de um trabalho, de uma estratégia. Que seja um presente, não um
salário. Que entre a cobiça e a satisfação o intervalo não seja tão longo a
ponto de possibilitar uma história. Que dentre todos os momentos de uma
relação erótica apenas um seja destacado, o momento do êxtase; e que este
apogeu, desprezando-se as regras elementares da verossimilhança, do
pudor, da cortesia e da narração, seja vivido desde logo. Que se comece pelo
fim para que não haja mais nem começo nem fim, mas apenas a repetição
indefinida do deleite genital. Agradar é coisa fortuita e acariciar cansa: os
heróis pornográficos são assim milagrosamente dispensados da caça ao
objeto do desejo e dos prelúdios amorosos; basta piscar para as mulheres e
elas logo se mostram nuas e disponíveis; não há necessidade alguma de fazer
as apresentações, de dizer bom-dia, nenhuma preliminar antes de penetrá-
las, de lamber a xoxota, de se fazer chupar” (Bruckner & Finkielkraut,

1981: 57-58).

corpos mutilados para a veiculação de produtos: cabeças decepadas em publicidade de


xampus, pés separados do corpo na publicidade de calçados etc.

329
O problema, como nos indicam Bruckner & Finkielkraut, está na
pobreza do catálogo da genitalidade. Pretendendo postergar a luxúria e
colocá-la ao abrigo das tensões do desejo (seus bloqueios, suas suspensões, o
risco de que o destinatário do desejo diga “não”), a pornografia não cessa de
repisar sempre as mesmas figuras: algumas poucas posturas, algumas
perversões, eis toda a riqueza com a qual se pretende matar a fome
voyeurista e onírica daquele que a consome. Aproxima-nos do paraíso, onde
nada tem peso, puro espaço de realização das ficções que freqüentam e
alimentam o imaginário, para nos mostrar, entretanto, que a volúpia é
pequena, que nada é mais forte nela do que o tédio. Após duas horas de
saturação de imagens que se repetem espetacularmente, somos
constrangidos a englobar, em nossas práticas, essas repetições a que as
imagens nos remetem. “Isso significa que se o filme pornográfico não tem
uma história, o espectador bem que vive sua história, que é o trajeto da
depressão ao desgosto” (Bruckner & Finkielkraut, 1981: 58).
Busca ansiosa do outro, dependência estrita a uma demanda que não
pode não ser satisfeita sem que uma crise – narcísica – se anuncie. Como já
indicavam Falconnet & Lefaucheur (1977), a partir de uma pesquisa realizada e
publicada na França em 1975 – isto é, ainda no calor das transformações e seus
confrontos –, o que a liberação feminina provocou nos homens, após sua euforia
inicial com a disponibilidade das mulheres, foi a visibilização do mito terrorista
da virilidade, em torno do qual todo um universo ideológico se sustentara
fortemente por séculos, com pelo menos duas respostas bem delineadas: a
primeira, acirramento da posição dominadora e autoritária do macho; a
segunda, um reconhecimento da legitimidade das reivindicações femininas,
acompanhado de culpa por serem homens, com os conseqüentes
questionamentos de sua adesão ao que os constituía como machos, com
privilégios exorbitantes em relação aos das mulheres, mas nem por isso
muito receptivos às reivindicações femininas. Nessas questões, já se
anunciava a deriva dos anos 80, a entrada em crise do desejo (e da

330
subjetividade), a recusa da sentimentalidade, e a era dos imperativos: eu te
desejo, deseje a mim também; eu te amo, ame a mim também, pague sua
dívida pelo que provoca em mim. 54

“Para exigir que você me ame, eu me autorizo com meu próprio amor,
exatamente como o devasso, nas instituições sadeanas, se autoriza com o
desejo por ele sentido para poder submeter o ser cobiçado. Todos os ternos
enamorados são sadeanos da afetividade, e suas confissões de dependência
são simultaneamente a exigência de uma reparação” (Bruckner &
Finkielkraut, 1981: 111).

Não se trata de negar à liberação sua positividade, mas sim de


reconhecer que a liberdade nela embutida como promessa, transformada em

54Embora muito se tenha falado sobre a aids e as alterações que sua ameaça introduziu na
vida amorosa a partir dos anos 80, penso que ela só veio se sobrepor ao que já vinha se
desenhando como efeito residual de uma saturação dos movimentos de liberação (afinal,
uma liberação não produz, por si só, uma liberdade, constituindo só um primeiro momento,
uma primeira abertura para sua construção) e sua já consolidada reapropriação, na cultura,
pela ordem masculina. Por um longo tempo, aparentemente a morte, como finitude, havia
entrado em moratória na ordem do desejo, com os corpos postos na circulação infinita de um
puro prazer a se reproduzir indefinidamente, o que não deixa de exigir, parafraseando Sade,
um “esforço a mais” para se manter sexuado. Como observa Anatrella (1992: 183), nos anos
80 “assistimos, pouco a pouco, à drenagem do conteúdo afetivo das relações, e seu
deslocamento para uma regressão nas formas menos elaboradas da ternura e para uma
sexualidade primitiva, incapaz de inventar novos gestos amorosos, diferentes dos da
sexualidade infantil. Às vezes, alguns se contentam em querer reproduzir as imagens vistas
nas revistas especializadas, repletas de homens e mulheres de papel, com a
‘imagossexologia’ substituindo o imaginário atrofiado de mentes contemporâneas
excessivamente atingidas pela mídia. O resultado desse modelo é ter conduzido ao
desencanto em relação ao que era, porém, esperado através do sexo”. Nesse quadro, a aids
serviu muito mais de pretexto para o retorno de discursos conservadores e moralizantes e
bem menos para a consciência da própria finitude (salvo em raras e belas exceções, como a
do escritor Caio Fernando de Abreu, que imprime a sua obra uma ímpar maturidade após
descobrir-se soropositivo, a do cineasta Derek Jarman e seu filme Blue [1993], um comovente
testemunho de seu tornar-se cego, ou de relações amorosas que ganharam dimensões mais
densas e éticas). Houve uma reativação da indústria dos preservativos, até então
desprezados como antiquados face aos métodos contraceptivos mais sofisticados, e da
publicitária, com freqüência incompetente em suas campanhas, que tendem a privilegiar um
viés culpabilizante-paranóico (como a carregada de suspeições “Quem vê cara não vê aids”,
de meados dos anos 90), quando não elevam o preservativo ao status de objeto erótico
(sabores e formas e texturas e técnicas e discursos sedutores sobre seu uso), numa tentativa
de introduzi-lo no circuito das pulsões e elidir sua mera função preventiva. A contrapartida
desses esforços, de pequena eficácia, expressa-se não só na recusa a utilizar preservativos
como na incorporação, por alguns, do risco de contágio como um pólo de intensificação do
desejo sexual.

331
discurso vazio e normativo ao ser repetido à exaustão, só pode se realizar
como uma construção permanente a ser iniciada e sustentada por uns e outros
em seus encontros, mas jamais como norma a ser seguida – uma liberdade,
afinal, não pode ser uma norma, uma verdade ou uma moral, mas uma
prática que se constrói na própria experiência,55 conforme podem cada corpo
e cada alma. A maior conquista da liberação foi suspender a hipocrisia que
cercava o sexo, que fazia dele um segredo a ser compartilhado às escondidas,
ou a ser vivido na tradicional composição relação marital-extramarital, com
todas as suas impossibilidades e seus dramas, ou, ainda, que criava ou
levava a se formar em torno dele um sem-número de doenças imaginárias
minuciosamente catalogadas pelo saber médico e psicológico. Seu fracasso,
por outro lado, está em operar uma redução da sexualidade ao sexo,
retirando da primeira toda sua potência vital, inventiva e relacional, e
sustentando, para o segundo, as imagens de sua saturação. Para que
possamos viver efetivamente a liberdade nos encontros dos corpos e não
simplesmente sustentar repetitivamente os sempre mesmos discursos de
uma liberdade-a-qualquer-preço, trata-se de primeiro reconhecermos suas
cristalizações e resistências, principalmente as armadilhas de sua
reterritorialização no casal, como ocorre, por exemplo, na persistente prática
do swing, invenção engenhosa e conservadora do final dos anos 60, que
associou a variedade de parceiros sexuais à monogamia afetiva. É neste
ponto em que “tudo deve mudar para se conservar como antes” que
encontramos a mídia, suas imagens e seus enunciados.

55 Daí o equívoco em que caem os pais que, por serem “abertos”, impõem aos filhos a
liberdade sonhada e muitas vezes não realizada por eles mesmos (“vivi em um tempo muito
repressivo; não quero que meus filhos sofram o que sofri...”), precipitando-os para a
experiência sexual antes que ela surja para eles como viva expressão do próprio desejo. Com
a cumplicidade dos pais, a mídia se autoriza, em suas pautas, a construir para os jovens
ideais de liberdade que nem sequer chegaram a ser formulados por eles como desejáveis, daí
seus estereótipos, quando não sua associação ao uso/posse de alguns produtos, como no
velho slogan: liberdade é um jeans velho e desbotado...

332
Discursos da Ciência e da Mídia:
a Conservação Homogênica
Se a liberação colocou problemas antes não visíveis na dimensão do
vivido, se homens e mulheres puderam, a partir deles, resignificar-se um
perante o outro, se muitas flexibilizações puderam ser experimentadas no
vínculo amoroso, se os laços homoeróticos ganharam espaço de expressão, o
que foi extraído pela mídia de seus processos corresponde aos efeitos deletérios
acima expostos. Seja a divulgação de dados de institutos de pesquisa, sempre
problemáticos e imprecisos, embora com extrema força de visibilização de
“tendências” e de influência nas vidas subjetivas, na medida em que gera, a
partir de seus resultados, interpretados como normativos, modas que convidam
à adesão;56 seja a exclusão e separação do sexo da sexualidade operada tanto
pela valorização das relações sexuais múltiplas, desde que ligeiras, traduzidas
como expressão de independência e liberdade,57 quanto pela pornografia; seja a
multiplicação de produtos mediáticos os mais diversos sobre o comportamento
sexual (o sem-número de revistas, segmentadas conforme seus públicos, sempre
em busca das “novas regras” ou de novas técnicas para se chegar ao prazer58);
seja sua celebração pela publicidade, a mídia não cessa de trabalhar com

56 Como observa Anatrella (1992: 70), a instauração da norma pelas pesquisas “significa dizer que
a nova moral seria atualmente definida pelas sondagens. Contudo, um comportamento, até
mesmo uma idéia, mesmo majoritariamente divididos, não têm, só por isso, uma autenticidade
psíquica e, em plano bem diferente, um valor ético”. Além de se ignorar, nas sondagens, que as
respostas muitas vezes expressam atitudes e volições que não necessariamente se traduzem em
práticas, um confronto entre esses resultados e, por exemplo, as manifestações de analisandos na
clínica psicanalítica permite constatar que eles raramente são representativos da realidade
psíquica. Assim, podemos dizer, como já foi observado a respeito das pesquisas de mercado, que
as sondagens, mais que permitirem o acesso a uma mensuração de disposições
comportamentais, funcionam como seus agenciadores.
57 Apesar da aparente independência, a contínua troca de parceiros não raro encobre severas

dificuldades afetivas, daí suas regras: não telefonar para o parceiro no dia seguinte, não
manifestar quaisquer expectativas amorosas, fugir perante qualquer sinal de demanda
afetiva do outro e migrar rapidamente para outra relação, não enfrentar ou trabalhar as
frustrações, manter a ilusão de um sempre novo começo, o que, na realidade, produz uma
história sem fim por sequer ter um começo, só a sofreguidão de uma busca da qual já não se
reconhece qualquer sentido, salvo o de um mesmo gesto que se repete a cada novo encontro.
58 O que não deixa de ser uma contradição: o que se faz por puro prazer e “por instinto” não

deveria demandar tantas técnicas para ser alcançado; e não se trata de uma ars erotica...

333
generalizações em sua maior parte bastante restritivas em relação à diversidade
da experiência sexual humana. Ou, mais amplamente, com um direcionamento
de toda e qualquer experiência afetiva para uma mesma intencionalidade.
Para essas generalizações, os discursos de caráter cientificizante
derivados da sexologia fornecem os argumentos racionais. Como se trabalha
com material retirado de observações e a partir de freqüências estatísticas de
determinadas manifestações comportamentais, tende-se à normatização do
que, na maior parte das culturas humanas, manifesta-se muito mais
freqüentemente com uma boa carga de irracionalidade, já que os
comportamentos sexuais são geralmente expressão de pulsões mal-
elaboradas, derivadas da atividade imaginativa dos corpos ou por extrações
de representações inconscientes capturadas pelas tendências de moda e pelas
produções ficcionais da indústria cultural.
Compreende-se assim o motivo de a abordagem cientificizante das
expressões da sexualidade ter tomado um rumo normativo e prescritivo, com
sua tendência a ficar restrita ao sexo em sua expressão comportamental visível,
procurando justificar racionalmente, com argumentos de certa forma
“irrefutáveis” – posto que científicos, fundamentados na pesquisa genética, na
investigação do processo evolucionário ou no comportamento animal, muitas
vezes utilizado como referência para explicar o comportamento humano – a
forma como o sexo se apresenta. Por exemplo, a justificativa do estupro,
apresentada por um pesquisador norte-americano, pelo argumento da
necessidade que o homem teria de propagar a própria espécie, distribuindo
assim seu sêmen para o maior número possível de mulheres (retomando, assim,
as teses antropológicas e históricas do domínio masculino pela caça) parece
ignorar não só todas as implicações éticas da “legitimação científica” de tal ato
como o fato mais prosaico de que estupradores costumam usar preservativos
para evitar contágio por DSTs, o que, por si só, invalida o argumento. Quanto às
descobertas da pesquisa genética, principalmente sobre as seqüências das
cadeias do DNA que determinariam hereditariamente algumas disposições

334
comportamentais (o que, por si, já é questionável, como observa Maturana
[1999]), é importante levarmos em conta de que se trata, sempre, nas seqüências,
de decifrar um código, isto é, trata-se, em primeiro lugar, de uma linguagem e
sua interpretação, logo, de uma relação entre dois códigos. Estabelecida uma
chave interpretativa, podemos afirmar o que quer que ela nos permita afirmar, o
que, no limite, significa que podemos justificar qualquer hipótese, desde que
sigamos corretamente os procedimentos previamente definidos. A ciência,
apesar de seus métodos objetivos e controlados, não deixa de produzir suas
ficções teóricas, principalmente quando é levada a trabalhar em atenção a
demandas ansiosas por respostas e soluções.
Não pretendo, com estas observações, negar a importância das
pesquisas científicas, nem os benefícios que traz para a espécie humana, mas
sim indicar que a ciência – na pessoa do cientista – não pode deixar de,
também ela, dobrar as forças para si, estabelecer uma relação de si para si,
isto é, ela não pode abrir mão nem do pensamento nem da ética, em seu
sentido fundamental: segundo regras facultativas, ser capaz de “resistir ao
poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o
poder tenta apropriar-se deles”, como bem nos indicou Deleuze (Rachar as
coisas, rachar as palavras, 1992: 116). Como declarou o neurobiólogo
Francisco Varela em entrevista sobre seu trabalho,

“não posso conceber a separação entre um trabalho científico e uma reflexão


filosófica, não vejo que possam separar-se, esse é um problema de
pragmática. Não é que eu veja uma relação particular, mas sim que a relação
tem que se dar e há muitas possíveis. (...) enquanto o problema do
conhecimento for um problema puramente filosófico ou puramente
científico, ambos são menos interessantes do que um problema ao mesmo
tempo científico e epistemológico. É interessante que se ponha esse problema
no laboratório porque abre uma via de diálogo que antes não existia. Mas
não que o método experimental seja o ponto de referência último, senão que

335
abre o diálogo a uma conversação metodológica e de fundamento para o
pensamento muito maior” (Costa, 1992: 84-86).

Não se trata, portanto, para a ciência, de sustentar suas pesquisas e


declarações em uma deontologia, entendida como princípios gerais a serem
seguidos em uma prática profissional, mas da possibilidade de pensar e
pensar-se em implicação com o próprio fazer e com o campo no qual ela
exerce suas próprias forças. Ora, a ciência, pertencendo à parte homogênea
do social, como observou Bataille, encontra-se permanentemente em uma
posição problemática, na medida em que, para o que quer que ocorra no
social, ela deve encontrar uma justificativa e uma solução que proteja sua
parte homogênea da própria desagregação, isto é, de sua invasão pelas forças
soltas, não-ligadas do heterogêneo, que não cessam de desestabilizar os
diagramas do poder e abrirem novos devires. A ciência – em particular as
Ciências Humanas –, entretanto, trabalha com variáveis e com as leis dos
grandes números e das representações, pouco atenta à diferença, ao singular,
que, como intensidade, só podemos apreender como uma pura – às vezes
mínima – variação (ver INTRODUÇÃO, p. 58). Para que algo possa emergir
como variável significativa no visível é preciso um longo tempo, o da
recomposição das forças e do nascimento das formas que se produzem dessa
recomposição, o que não ocorre senão após muitas lutas e entrelaçamentos.
Muitas dessas formas desaparecem ou se fragilizam, em seu confronto com
as forças externas, antes que se visibilizem o suficiente em um dado campo
para que sejam tomadas como objeto de interesse e estudo. Dessa
perspectiva, dificilmente se apreende, pelos métodos correntes da ciência, o
processo de constituição de mundos: quando eles chegam a atrair a atenção,
estão já constituídos, já formados, ou já em processo de mutação. Esse é o
sentido da observação de Deleuze & Guattari de que a estatística é
importante, mas à condição de que se ocupe dos extremos e não só da zona
estacionária das representações (ver INTRODUÇÃO, p. 56), e a proposta da

336
pragmática esquizoanalítica, de atenção continuada às emergências de novas
forças e às estratégias que possam sustentá-las em sua vitalidade.
O que pode ser dito das formas de se fazer ciência, particularmente as
implicadas mais diretamente com o homem e suas ações, pode também ser
dito sobre as formas de atualização promovidas pela mídia, em seu afã de
multiplicar informações, detectar e direcionar as tendências comportamentais,
atualizações que operam por extrações dos acontecimentos e de suas
evidências captáveis na comparação entre um antes e um depois, dificilmente
apreendendo o eis-aí do acontecimento.
É por essa razão que, nas leituras que fazemos da mídia e seus
produtos, o simples argumento de manipulação ou de redução ao ideológico
é insuficiente, quando não equivocado. Estaríamos tão-somente contrapondo
formas de verdade a outras formas de verdade, sem podermos aceder aos
processos implicados na própria produção da verdade. Retomando o
diagrama de Foucault, trata-se, muito mais, de se buscar compreender como
se constróem as articulações entre o Ver e o Falar, entre o campo das
visibilidades e o campo dos enunciados, conforme os diagramas de poder
que os atravessam e os organizam a cada momento, e as formas discursivas
que, a partir daí, são construídas. Limitarmo-nos, entretanto, só à análise
dessas formas discursivas também é insuficiente, na medida em que, dessa
análise, não nos é possível aceder a seus efeitos, aos mundos que se
constróem agenciados por esses discursos, substituindo outros mundos que
perderam sua efetividade, ou o que é recuperado destes mundos, seja para
re-significá-los, seja para reinstaurá-los como pólos resistentes às mutações.
São esses mundos construídos pela mídia e as simulações de potência
que ela propõe aos que lhe demandam referências para tornar a vida vivível
que procurarei reconhecer agora em alguns programas da rede aberta de
televisão.

337
CAPÍTULO 4

ESCHER, Hand with Reflecting Sphere, 1935

FORA-DENTRO
Há muito perigo em invocar diferenças puras, liberadas do idêntico, tornadas
independentes do negativo. O maior perigo é cair nas representações da bela-
alma: apenas diferenças, conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas. A
bela alma diz: somos diferentes, mas não opostos... E a noção de problema, que
veremos estar ligada à noção da diferença, também parece nutrir os estados da
bela-alma: só contam os problemas e as questões... Todavia, acreditamos que,
quando os problemas atingem o grau de positividade que lhes é próprio e
quando a diferença torna-se objeto de uma afirmação correspondente, eles
liberam uma potência de agressão e de seleção que destrói a bela-alma,
destituindo-a de sua própria identidade e alquebrando sua boa vontade. O
problemático e o diferencial determinam lutas ou destruições em relação às quais
as do negativo não passam de aparência e os votos da bela-alma não passam
igualmente de mistificações na aparência. Não é próprio do simulacro ser uma
cópia, mas reverter todas as cópias, revertendo também os modelos: todo
pensamento torna-se uma agressão. (Deleuze, 1988: 16-17)
EXPRESSÕES E
MODELIZAÇÕES DO CORPO

Estou em um teatro, assisto a um espetáculo de dança. O cenário é


bastante simples, quase minimalista. Um telão e dois televisores pendurados
nas laterais do palco, no qual onze bailarinos, vestidos com roupas nas cores
vermelho ou laranja, dançam acompanhados ora por música gravada, ora
executada por músicos presentes na cena, ora pelos ruídos que produzem
com o próprio corpo. O espetáculo tem início com a proposta de uma
brincadeira com o karaokê. Eleição singular, para um espetáculo de dança,
iniciá-lo com “música para cantar”, que parece pretender marcar uma
associação frágil e não imediata entre música e dança.1 Um casal de
bailarinos entra no palco em silêncio, coloca-se perante o telão e o
homem aciona um controle remoto. Ouve-se uma música, com a letra
sendo mostrada no telão, que é interpretada pelos bailarinos com uma dor
sincera e pungente que logo domina o público, o faz estremecer,
mobilizando-o emocionalmente e preparando-o para o espetáculo.
A bailarina, à medida que vai cantando, ensaia uma coreografia
bastante estilizada, simulando os movimentos das “loiras sensuais” que estão
presentes cotidianamente em boa parte dos programas da televisão
brasileira, dos infantis aos adultos. Entra um terceiro bailarino, que se apropria

1
Efetivamente, se fizermos um breve percurso pela história da música, constataremos que,
por séculos, à parte nas festas populares (expressões da alma coletiva) ou nos cabarés, a
música mais reconhecida e valorizada foi a de concerto ou a operística, isto é, “música para
ouvir”, “música para o gozo do espírito”, mais que para expressão do corpo, salvo o ballet
clássico, que demanda uma rígida disciplina e geralmente suporta-se em uma narrativa.
Basta lembrarmos as reações iniciais de repúdio a Stravinsky, que, com sua música cênica,
introduziu a pulsação pouco domesticável das festas coletivas no universo musical erudito e
no ballet. Ou o fascínio escandaloso que exercia Isadora Duncan sobre seu público, com sua
dança fluida que não obedecia a quaisquer marcações pré-estabelecidas. Ou o jazz, que
encontra no improviso e na conversação altamente erogenizada e afetiva entre os
instrumentistas sua criatividade.

340
do controle remoto. Começa a dançar sozinho, buscando criar movimentos
próprios com o corpo. Entram outros bailarinos, que procuram acompanhá-lo
na dança que é por ele criada. Subitamente entra outra música, sendo
construída uma coreografia em conjunto a partir dessa criação inicial dos
bailarinos, acompanhando freneticamente a marcação rítmica. Quando a música
pára, os bailarinos param imediatamente, como se não soubessem mais o que
fazer com o próprio corpo. O que parecia ser um conjunto mostra-se agora
como um agrupamento de indivíduos que nem sequer se reconhecem, que
olham um para o outro como se estivessem se vendo uma primeira vez.
Ofegantes, extenuados, expressam, com seus corpos suados, abandonados no
chão, o esforço a que os haviam submetido instantes antes.
Deixam claro que dançaram contra o corpo, isto é, em uma tensão
contínua entre o ritmo imposto pela música e a pulsação, as dobras e os
ritmos do próprio corpo que buscavam no início. O espetáculo se desenvolve
a partir desse primeiro quadro. Seqüências em que um bailarino procura,
com um controle remoto, controlar os movimentos de outro, que se move
obedientemente, alternam-se com movimentos soltos, pulsativos, silenciosos,
de escuta do corpo e suas vibrações.
Os onze excelentes bailarinos, em formações que mudam
constantemente, são ora eletrizados, ora paralisados pelos sons; algumas
vezes eles parecem carregar generosos feixes rítmicos de luz para a
composição, com as cores vermelho e laranja de suas roupas confundindo-se
e mesclando-se como fogos de artifício; em outras eles tecem, em conjunto,
sutis e lentos, embora eloqüentes, padrões visuais, como se fossem areia
formando dunas em uma superfície posta em vibração pelo som.
Parte das músicas se origina de gravações, outras são tocadas ao vivo por
um guitarrista no palco, eventualmente acompanhado por percussão e cello. Em
outros momentos, ainda, os bailarinos dançam sem música, fazendo a marcação
rítmica com o próprio corpo, percutindo-o, batendo os pés fortemente no chão,
inspirando e expirando o ar dos pulmões ruidosamente. As formações também

341
variam – ora compõem duetos; ora, em uníssono, compactas tessituras que vão
se tecendo e retecendo no movimento; ora formam aleatoriamente massas em
bando que invadem o palco, ora grupos em interação. Quando um bailarino faz
um solo, a reação dos demais algumas vezes é arrebatada e intensa, em outras
desatenta ou desinteressada.
O que o espetáculo procura expor, em seu desenvolvimento, é a
necessidade de voltar continuamente a ouvir o corpo, seus ritmos, suas
pulsações e vibrações, suas interações com os outros corpos, fazendo-o saltar,
se expandir, recusando o que a ele se impõe como comando externo, que pré-
estabelece ritmos e o sujeita mesmo quando a promessa é de uma liberação.
La haine de la musique (Ódio pela música) foi apresentado no Brasil no
34O. Festival Internacional de Londrina – Filo 2001, no final de maio e, em
seguida, no Teatro Sesc-Anchieta, de São Paulo, em 29 e 30 de maio de 2001,
pela Compagnie Philippe Saire, da Suíça. O coreógrafo relata que teve a
inspiração desse espetáculo após uma viagem ao Brasil, em 1998, quando
ficou impressionado pelo excesso de ruídos e de música de má qualidade
aqui presentes, tanto em espaços públicos como privados, mais do que em
qualquer lugar da Europa. Essas impressões, reativadas pela leitura do livro
La haine de la musique, de Pascal Quignard, levaram-no ao desejo de trabalhar
com esse tema em um espetáculo. Diz ele:

La musique, d'où nous est-elle venue? Elle est issue de l'intérieur de


notre corps, de nos rythmes internes de vie, elle nous est essentielle. Elle
nous appartenait. Nous avons durant des années développé avec elle nos
rapports de création, de virtuosité, d'appartenance. Elle nous a été volée.
Nous nous sommes volés la musique et c'est une part de nous qui nous
manque. Comme nous manque celle, indissociable, du silence. C'est de ce
rapt que j'aimerais parler. Au travers de toutes les perversions que nous
entretenons dans nos rapports avec la musique. La douceur, l'extase, la
banalisation, l'asservissement, la dérive, la soumission, la fuite, de soi, de son
propre silence. De sa propre musique.

342
Je vois ce spectacle comme un voyage, qui nous entraîne sur les rivages
méconnus de nos perceptions. Un voyage qui parle de perte et de retrouvailles.
Un chemin vers nos sens, grâce à la danse, aux corps, origines de cette musique.
La danse qui peut ici faire ce pourquoi elle est faite: rendre et garder sensible.
Donc pas de constat passéiste ("heureux le temps béni où la musique était
rare..."). Pas de "morale", pas de leçon. De la même manière que nous avions
abordé notre Etude sur la Légèreté, sans plus de narration ni de poids.
Parlant de la musique, ce spectacle va parler du silence. Des vibrations
de ce silence. Celles d'une toile d'Agnès Martin. Comment parler du silence?
Sur papier, sur scène? Se taire, ne plus écrire, danser, rayer l'espace d'une
trace, et puis disparaître.2 (http://www.philippesaire.ch/Compagnie/
Repertoire/La_haine____/la_haine____.html)

Esse espetáculo – síntese das relações do corpo com seus próprios ritmos
e com os que lhe chegam do exterior, através dos quais os bailarinos trabalham
as dobras, redobras e desdobras do corpo – capturou-me no momento em que
procurava identificar um elemento comum nos atuais programas televisivos
populares, que, gravados em auditório e construídos com a maciça participação
do público como protagonistas ou coadjuvantes do espetáculo, difundem
generalizadamente ritmos tornados imediatamente dominantes pela indústria
fonográfica. Refiro-me às “ondas” do pagode, do Tchan, do Funk carioca, todos
com uma marcação rítmica repetitiva e coreografias semelhantes, que variam,

2 A música, de onde ela nos vem? Ela se origina do interior de nosso corpo, de nossos ritmos
internos de vida, ela nos é essencial. Ela nos pertence. Nós desenvolvemos com ela, durante anos,
nossas relações de criação, de virtuosidade, de pertencimento. E ela nos foi roubada. Nós fomos
roubados da música, e é uma parte de nós que nos falta. Como nos falta aquela outra,
indissociável, do silêncio. É desse rapto que eu gostaria de falar, através de todas as perversões
que nos entretêm em nossa relação com a música. A doçura, o êxtase, a banalização, o
assujeitamento, a deriva, a submissão, a fuga de si, de seu próprio silêncio. De sua própria
música. Vejo este espetáculo como uma viagem, que nos arrasta para margens desconhecidas de
nossas percepções. Uma viagem que fala de perdas e de reencontros. Um caminho pelos nossos
sentidos, graças à dança, aos corpos, origens dessa música. A dança que pode aqui mostrar como
e porque é feita: tornar e preservar sensível. Portanto, nada de achados passadistas (“felizes os
tempos abençoados em que a música era rara...”). Nada de “moral”, nada de lições. Da mesma
maneira como abordamos nosso Étude sur la Légèreté, sem excessos de narração nem de peso.
Falando de música, este espetáculo vai falar de silêncio. Das vibrações desse silêncio. Aquelas de
uma tela de Agnés Martin. Como falar do silêncio? Sobre o papel, sobre a cena? Calar-se, não
mais escrever, dançar, raiar o espaço com traços, e depois desaparecer. [trad. nossa].

343
em progresso, para uma crescente explicitação de gestos e movimentos que
simulam, de uma forma que podemos identificar como acrobática, estilizada e
fortemente referenciada, a relação sexual, só que sem parceiro, fechada em seus
próprios movimentos, autoerótica. Graças à sua rápida assimilação, esses
movimentos, gestos e falas (com letras que raramente ultrapassam sua função
reafirmadora dos movimentos e dos gestos) autorizam-se como representantes
de um padrão estético e de um comportamento sexual e sensual “naturais” e
dominantes, indicados como expressão de “brasilidade” e de “sensualidade
tropical” e, nesse sentido, como emanados do público, e não como impostos a
ele. Na medida em que essas músicas e danças, tão logo divulgadas pela mídia
televisiva e radiofônica, passam a ser reproduzidas com uma freqüência e uma
intensidade tais pela indústria fonográfica que ganham aceitação imediata por
grupos sociais os mais diversos que agem, na posição de consumidores desses
produtos, como se fossem “acionados por controle remoto” (como bem o
representa Philippe Saire com seu espetáculo), consagram como referência de
moda e de estilo os personagens que as difundem, independentemente de suas
qualidades estéticas. Prevalece como critério de “qualidade” a freqüência de sua
presentação na mídia, seja em shows, em peças publicitárias, em discos, em
conformidade com as regras do mercado. Esses personagens passam a ser
rapidamente imitados, particularmente por alguns segmentos da população
jovem, o que reforça uma imagem-exportação do Brasil como país “sensual”
(embora com critérios bastante redutivos dessa sensualidade, agora restrita à
celebração dos genitais e da bunda) que, no atual momento, as “loiras de todas
as cores” e os “tigrões de uma mesma ginga” reivindicam representar.3

3 Essa auto-representação do brasileiro como “povo sensual” antecede o atual momento.


Conforme observou Parker (1991: 22), “é impossível para qualquer pessoa que passe algum
tempo no Brasil, ou com brasileiros, ignorar até que ponto a noção de sexualidade, ou, talvez
melhor, de sensualidade, exerce influência na compreensão que eles têm de si próprios. A mais
surpreendente qualidade desse fato é o grau em que essa noção está ligada, não simplesmente,
como acontece com americanos e europeus, à percepção da existência individual, mas à auto-
interpretação de uma sociedade inteira”. Essa auto-representação do brasileiro tem suas raízes,
como vimos no CAPÍTULO 3 – FORA (p. 291-292), na formação do corpo e sua erogenização no
período colonial, que está ligada à forma como o europeu percebia a população nativa,
percepção que se prolonga para as relações do senhor e do escravo no engenho.

344
A presença dessas músicas não se limita a sua maciça difusão pelas
diversas mídias. Penetra a tessitura do social com tal intensidade que
esbarramos nelas em quaisquer outros espaços, o que nos autoriza a pensá-
las como representantes significativas das modelizações que fornecem as
matérias de expressão hoje presentes em nosso atual cenário cultural
marcado pela urgência da visibilidade mediática. Visibilidade que se deseja
como pura presença sob a luz, independentemente de se ter o que propor,
fazer ou tornar presente sob a luz.
Seja das relações que se estabelece entre os corpos, seja das formas
como a sexualidade é representada em sua forma genitalizada e identitária,
seja dos ritmos do trabalho e das formas de presentação e atuação dos corpos
mobilizados por esse ritmo, ou mesmo das expressões marginais que
ameaçam degradar o espaço urbano (“tá tudo dominado”, canta o Tigrão,
líder do funk carioca, fazendo eco às ações do PCC), essas músicas e os
ritmos que as suportam parecem constituir sua mais plena visibilização.
Nesse sentido, podemos pensar que tanto a ética e a estética dominantes
atualmente no Brasil encontram, malgrado a rejeição desses ritmos por
alguns setores da sociedade, sua mais clara expressão nessa produção
musical, fenômeno que não deixa de ser surpreendente em um país cuja
riqueza e variedade de formas, estilos e expressões musicais é um traço
reconhecido internacionalmente.4

4 Comentando os investimentos da indústria fonográfica nesses produtos musicais propostos

para consumo de massa, Tatit (A cumplicidade do público. FSP, Mais! – A cultura de massas
emergente, 12.04.1998, p. 5) procura destacar um efeito positivo dessa atenção à produção
musical nacional por uma indústria que sempre privilegiou o produto estrangeiro: a
abertura desse mercado – que, apesar dos ritmos dominantes, é bastante segmentado – tem
permitido que uma expressiva variedade de músicos de boa qualidade encontre também
ocasião para lançar suas produções em CD, apesar de todas as dificuldades colocadas à sua
divulgação pela mídia; a tecnologia digital, que barateou significativamente os processos de
gravação e reprodução, tem permitido o surgimento de pequenas gravadoras com
lançamentos não atrelados às rígidas regras do mercado, cuja rica variedade contraria a
opinião de que a MPB foi sufocada pelos produtos de sucesso instantâneo. Mesmo que essas
produções, em sua maior parte, não cheguem às lojas nem sejam privilegiadas pela
programação das rádios ou das tevês, elas podem ser adquiridas, não sem um certo esforço,
por telefone ou pela internet.

345
A música, se a pensarmos como expressão dos ritmos e pulsações do
corpo, é, das formas de linguagem criadas pelo homem, a mais abstrata e a
mais rapidamente assimilável, na medida em que, ao encontrar o corpo, o
atravessa, o afeta e o mobiliza nele-mesmo, sem o concurso da consciência.
Ora, se assumíssemos a tradição que separa corpo e idéia, afetos e
consciência, seríamos obrigados a supor – como já comentado na
APRESENTAÇÃO, quanto ao papel das classes populares na “degradação do
gosto” promovida pela mídia televisiva – que as danças mobilizadas por tais
pulsações rítmicas o fazem conforme o estrato social, econômico, cultural e
moral ao qual cada um pertence. Que certos ritmos, de origem mais popular,
expressariam, conforme já foi manifestado em outros momentos de nossa
história, estados de alma não bem formados, mais adequados a pessoas de
disposição mais bruta, não educadas conforme as boas normas de conduta, e
deveriam, por isso, ser corrigidos e disciplinados sob o risco de, ao ficarem
expostos a eles, olhares e almas mais sensíveis poderem se corromper.
Embora aparentemente caricato, foi esse tipo de discurso que dominou, por
exemplo, os habitantes das cidades em relação ao samba que, nos anos 30,
descia das favelas e invadia o espaço público no carnaval (cf. Parker, 1991)
ou, por exemplo, as reações à compositora brasileira Chiquinha Gonzaga
quando ela abandonou a música de inspiração européia dos salões a favor
das marchinhas, lundus e chorinhos cultivados nas ruas e bares por
populares na transição do século XIX para o XX. Nesse contexto, são
recusados os ritmos que não servem à sensibilidade por critérios outros que
não derivam da própria música, de suas pulsações e seus ritmos, recusa tão
mais intensa quanto mais são habitadas as linhas de segmentaridade dura
dos territórios relativamente estáveis que definem as identidades conforme
as pertinências a tais e tais grupos sociais. Não digo com isso que a
apreciação estética de formas mais elaboradas, sejam elas visuais ou sonoras,
é restrita às elites, mas sim que se supõe, dessa perspectiva que separa os

346
grupos sociais em segmentaridades duras, que as classes populares seriam
menos aptas a apreciações estéticas de produtos mais elaborados.5
Entretanto, tal não parece ser o que ocorre atualmente com esses
ritmos indicados como “populares”, gerados rudimentarmente a partir de
baterias eletrônicas e com letras de forte conteúdo sexual, que rapidamente
penetram e são assimilados ao gosto de outros segmentos sociais (por
exemplo, em danceterias dos Jardins [cf. FSP, Revista da Folha, 25.02.2001,
ano 9, no. 458: 6-9]). É nesse sentido de penetração que não se limita aos seus
lugares de origem, que estabelece intercâmbios com outras segmentaridades,
que tomo os ritmos atuais como ponto de partida para a análise da
programação televisiva brasileira, que está inserida no quadro cultural mais
amplo que constitui nosso ethos mediático.
Seguindo essa direção que escolho, é possível dizer que, ao permitir ao
corpo simular matérias de expressão para a passagem de suas intensidades,
de suas pulsações, que se materializam em gestos, formas e expressões
corporais, a música atua, ao mesmo tempo, como construtiva, a partir desses
gestos, formas e expressões, de uma determinada imagem e idéia do corpo.
Quando determinadas matérias de expressão passam a ser amplamente
divulgadas como padrão, atuam como modelizantes da percepção que se tem
de si mesmo e das próprias formas de expressão, isto é, determinam tanto a
forma de resposta àquele ritmo específico quanto fornecem as condições de
reconhecimento, por uns e outros, do corpo próprio e suas competências.
Dessa forma, funciona em uma dupla direção: determina um corpo em sua
expressão e o faz ser reconhecido por um outro nessa sua expressão. Das
formas de dançar para as formas de expressão manifestas nas relações
intersubjetivas desenha-se uma cartografia cujas matérias são as mesmas.

5 Argumento que não se sustenta: dos cantos de trabalho à música regional, “caipira”, do
samba ao choro, para ficarmos só no Brasil (nos EUA, há o blues e o jazz), encontramos
sempre uma mesma origem: os estratos populares, que fazem da música verdadeira peça de
resistência e linha de fuga contra a exclusão e a opressão.

347
Acompanhando Philippe Saire, é possível perguntar, então, pelo tipo
de rapto que a música imposta como de gosto popular pela indústria faz de
um corpo que, assolado por esses ritmos em todos os espaços, não encontra
mais o tempo de seu silêncio, da escuta de seus ritmos e pulsações, nem é
estimulado a simular as intensidades por ela mobilizadas buscando suas
próprias matérias de expressão, na medida em que essas matérias já estão
dadas (existem, já definidos e reproduzidos maciçamente, os passos e
movimentos do pagode, do funk, do tchan...).6 Sobre as possíveis simulações
a serem criadas para a passagem das intensidades, sobrepõem-se as
pequenas imitações, oposições e invenções de que fala Tarde, que estão
relacionadas com a propagação de fluxos quantificáveis de crenças e desejos7
que constituem a base de toda a sociedade. Por essa razão, quaisquer que
sejam os novos ritmos (eles também pequenas imitações, oposições e
invenções), as danças quase não apresentam variações significativas. Em
todas, o que se espera do corpo é que ele pule, vibre, se exalte e se simule
sexuado e voltado autoeroticamente para o próprio prazer. Sobrepondo ao
corpo vibrátil um corpo autômato fechado sobre si mesmo que, ao procurar
situar-se no campo luminoso disponível a todos os olhares, faz dessa
exposição sua mais plena, desejada (e única) visibilidade, dificilmente essas
danças poderiam funcionar, enquanto matérias de expressão, como ainda
condutoras de intensidades que as efetuassem no exterior em estratégias
construtivas de relações intersubjetivas minimamente produtoras de novas
figuras e novos vínculos. É enquanto territorialidades que se impõem de um
Fora já bastante desintensificado para um Dentro também já bastante
desintensificado que elas se efetuam produzindo similitudes de corpos cujo
traço identificador está numa forma única de expressão que reduz a

6 Nas casas de jogos eletrônicos, apresentam-se como atrativas, logo na entrada, as máquinas
de dançar, que pontuam a habilidade de seu usuário em seguir, sobre uma plataforma, os
quadros luminosos que definem os passos correspondentes a cada ritmo. Formidável
dispositivo que associa desempenho e premiação na junção de uma máquina de jogo e uma
máquina de ensinar/ treinar um corpo autômato.
7 Em uma cultura de visibilidade e de corpos ativos, não é de surpreender que esses fluxos

atravessem jovens corpos anônimos em seu desejo de potência.

348
corporeidade e a sexualidade unicamente às suas próprias proezas, à
exibição reiterada de uma promessa de bom desempenho.
Esse é o primeiro “rapto” que procurarei compreender aqui,
indicando-o como uma das estratégias privilegiadas de agenciamento de
subjetivação operada pelos programas televisivos populares que disputam
suas fatias de audiência no atual cenário brasileiro.
Não destacaria a presença intensiva desses ritmos de efeitos
desintensificantes/anestesiantes e reprodutivos no atual cenário cultural
brasileiro se eles constituíssem um fenômeno recente e isolado do quadro
social mais amplo. Há mais um elemento, para as análises que seguem, a
explicitar: as músicas e danças contemporâneas propostas para o consumo
popular veiculadas em CDs, rádio, televisão e nos “espaços ao vivo” das
festas e das danceterias apresentam características comuns, herdeiras, em sua
maioria, da dança solitária em grupo inaugurada pelo rock an’ roll que surge
nos anos 50 e 60. Se as danças coletivas privilegiadas anteriormente tinham,
até então, um caráter relacional, o que implicava compor os próprios
movimentos com os movimentos do outro (como ocorre ainda com algumas
danças de salão que demandam um parceiro, como o tango, a gafieira, a
valsa etc.), as que as substituíram passaram a ser centradas nas
possibilidades expressivas do corpo “liberado”, mais facilmente
experimentadas quanto mais solitário, independente do outro e voltado para
si seu movimento, daí suas características predominantemente convulsivas8 e
narcísicas. Como já observado anteriormente, as transformações dos

8 A imagem ideal do corpo solto, não reprimido, sem couraças e disponível encontra-se com os
gestos que simulam o desfazer-se de amarras e couraças característicos do rock. Ultrapassar os
limites do corpo e do instrumento, fazê-los soar além de suas possibilidades, eletrizá-los,
esgotá-los, são os componentes que constróem a visualidade e a sonoridade convulsivas do
rock. Iniciando-se com a dança acrobática dos anos 50 e passando pela fase progressiva de
60/70, cujas imagens/sonoridades remetiam à dissolução alucinógena (como as de Pink Floyd
e Yes) ou pelo virtuosismo do jazz-rock (McLaughlin, Coryell), principalmente a partir de
meados dos anos 70, com o heavy metal, as intensidades sonoras e visuais mais mobilizadoras
do rock aproximam-se do paroxismo de um terremoto, de uma avalanche, de um vulcão em
erupção, reafirmando que as signagens do rock são caracteristicamente adolescentes:
ambiguamente maniqueístas, ruidosas, rebeldes, narcísicas e voltadas para a construção do
corpo próprio e de sua imagem para si e para o outro.

349
costumes que passaram a se operar a partir dos anos 50 e 60 – que desfizeram
gradativamente o casal a favor da experimentação de relações
descontinuadas com múltiplos parceiros; que levaram ao cultivo da sensação,
amplificando o consumo de drogas de todo tipo, ativadoras de estados
perceptivos e sensoriais (em sua maioria, não-relacionais9); que estimularam
a crescente valorização do corpo juvenil, solto, expansivo, performático e
centrado na auto-imagem, sínteses do cultivo narcísico de si – conjugam-se
com o nascimento das novas ordens do trabalho10 que começam a se

9 Mesmo o Ecstasy, considerado a “droga do amor”, se inscreve como não-relacional, isto é,


não propício para o estabelecimento de relações intersubjetivas para além de seu próprio
campo. O que ele induz é um tipo de sentimento oceânico, no qual simula-se um interesse
pelo outro que, entretanto, se extingue junto com seu efeito. Daí as redes de comunicação
(por telefone, por e-mail) que seus consumidores formam, construídas para divulgar o lugar
e o momento da próxima rave, momento de novas ativações e novos encontros, que – esse o
aspecto não-relacional mais significativo para compreendermos essa cultura – não ocorrem e
não demandam ser cultivados no intervalo entre uma rave e outra.
10 É importante lembrar que a organização da família nuclear na sociedade industrial

relaciona-se, para a burguesia, com a necessidade de garantir a descendência e a manutenção


dos bens acumulados por transmissão da herança; para o trabalhador, com a produção de
mais corpos para o trabalho como estratégia de sobrevivência familiar e social. Na sociedade
pós-industrial, de consumo, essa função do núcleo familiar torna-se secundária, sendo essa
uma das razões de sua progressiva dissolução. Principalmente após a II Guerra Mundial,
cuja destrutividade acentuou a consciência da finitude do mundo (e da própria finitude), a
necessidade de garantir a segurança e o conforto das gerações futuras – um forte fator de
coesão do núcleo familiar, que justificava o sacrifício dos pais a favor do futuro dos filhos –
foi sendo gradativamente substituído pelo desejo de gozar a vida, o melhor possível, no
presente. Se antes a satisfação imediata do desejo encontrava nos mecanismos de sublimação
as condições de seu adiamento a favor de um bem maior (como indicara Freud), a sociedade
pós-industrial de consumo desfavorece a sublimação a favor da satisfação imediata do
desejo. Um desejo, claro, deslocado para a sutura da falta via consumo (de bens e de corpos),
num mecanismo que Marcuse (1968) identificou como dessublimação repressiva, que
permanece predominante. A utopia de uma sublimação não-repressiva para a qual
caminharia o capitalismo, desenhada por Marcuse em Eros e civilização, obra escrita em 1955,
está distante de generalizar-se na ordem da cultura. O que temos hoje é um aparente maior
prazer ligado ao trabalho, que encobre seu caráter opressivo, desgastante e explorador. Se
antes o trabalho ligava-se mais ao dever e à acumulação, em conformidade com a ética
protestante, hoje ele está mais diretamente ligado aos ideais de bem-estar associados ao
consumo. O desinvestimento da experiência a favor da juventude e vitalidade do
trabalhador, que restringe mais e mais a competitividade dos mais velhos na luta
concorrencial por postos de trabalho provavelmente deriva desse deslocamento da
acumulação para o consumo. Os yuppies dos anos 80, jovens e ricos herdeiros das riquezas
acumuladas por seus pais nas décadas anteriores, com seus princípios de trabalhar, ganhar e
consumir muito rapidamente dissiparam fortunas, levando à falência algumas empresas
familiares ou à sua absorção por grandes corporações. À onda yuppie sucederam, após as
reengenharias dos anos 90, os atuais discursos sobre a pró-atividade, a política de resultados
e a exploração consentida, que faz dos jovens profissionais máquinas celibatárias e
competitivas de produção.

350
organizar na passagem da sociedade industrial para a pós-industrial,
centrada não mais na produção, mas no produto, nos serviços e no consumo,
ordens essas que privilegiam o indivíduo e suas prerrogativas imediatistas e
despreocupadas com o porvir e que operam progressivamente um recuo e
um desinvestimento dos interesses coletivos a favor dos individuais.
Esses corpos convocados agora a se ativarem, se não se sujeitam mais às
rígidas marcações de ritmo na produção em série da fábrica (como nos controles
feitos por Taylor e Ford dos movimentos dos operários, visando retirar deles a
máxima produtividade), devem estar sempre disponíveis à atividade. Podemos
compreender, assim, uma das razões da insistência, hoje, quanto aos cuidados
com o corpo, que se multiplicam em ginásticas, dietas, uso de aparelhos
modeladores que exigem esforços mínimos, body building, esportes radicais etc.
Tais investimentos do corpo, se não o preparam mais para o desempenho do
trabalho físico, para a transformação das forças do corpo em força de trabalho,
lhe impõem, em contrapartida, um trabalho infinito cujo principal objetivo é sua
própria construção e sustentação enquanto disposto à atividade, ao movimento
e à visibilidade. Cuidá-lo e, ao mesmo tempo, testá-lo e expô-lo a ultrapassagens
de seus limites físicos e emocionais, torná-lo disponível e competente para
responder às demandas do mundo/mercado de maneira “flexível”, tais são as
estratégias de potencialização que reiteradamente se lhe oferecem. São essas
estratégias que procurarei reconhecer, agora, no plano criado pela televisão, a
partir dos programas propostos para consumo e participação de seus públicos.

351
OS CORPOS E SUA CONECTIVIDADE
NAS IMAGENS TELEVISIVAS

Em um breve olhar para a história da televisão brasileira, dispositivo


de comunicação que integra som e imagem, vemos que ela sempre teve, desde
seu nascimento, o corpo – e as relações de corpos – como objeto privilegiado de
visibilização, assim como o rádio tem, como seu objeto privilegiado, a voz e sua
expressividade.11 Como dispositivo de entretenimento e de constituição de um
campo de visibilidade cuja função é delinear um mundo vivível e desejável, ela
nunca cessou de realizar, em suas presentações, escolhas de corpos que
pudessem ser visibilizados como padrões desejáveis e assimiláveis, segundo os
valores vigentes em cada momento, por seu público. Surgindo em uma
sociedade bastante conservadora e estratificada, como era o Brasil dos anos 50, a
televisão constituiu-se rapidamente como um importante agente de
modernização do país, e o fez a partir do corpo e suas expressões de liberdade
individual, traduzindo-a sistematicamente em termos de liberdade de acesso ao
consumo.12
Das prestigiadas e conhecidas garotas-propaganda (Idalina de
Oliveira, Neide Alexandre, Branca Ribeiro, Meire Nogueira...) que, elegante e
discretamente vestidas, apresentavam eletrodomésticos ainda não
amplamente consumidos pelas classes médias dos anos 50/60 e falavam “ao
vivo” com a “querida telespectadora” de uma forma direta, familiar e
persuasiva, expondo, demonstrando e assegurando a qualidade e a
credibilidade dos produtos a partir de sua própria imagem como mulheres
integradas, “de bem”, “de família”, às modernas, independentes, dominantes

11 Isto é, na televisão prevalece o campo da visibilidade sobre o dos enunciados. Na transição


do rádio para a televisão, muitos atores que eram “galãs” das radionovelas, em razão de sua
bela voz, não puderam ocupar o mesmo lugar nas telenovelas, que demandavam uma
presença física esteticamente mobilizadora como pólo de atração.
12
Ver CAPÍTULO 3 – FORA, p. 315-316.

352
e quase sempre anônimas modelos atuais, que passam pelos objetos
contaminando-os de sua “aura”, há toda uma história das transformações do
lugar do corpo, em particular do feminino, na cultura capitalística brasileira
de consumo.13
Herdeira do rádio e, pelo privilégio da imagem, também do cinema, a
televisão rapidamente passou a constituir seus mitos, seus objetos de desejo e
suas concepções de mundo a serem aceitas por seu público conforme o fizeram
seus antecessores, embora com outros personagens e outros referenciais.
Diferentemente do cinema, que depende de espaços públicos socializados para
sua difusão, a televisão reconheceu-se, desde o início, em sua singular posição de
dispositivo de recepção doméstica, tornando-se, de um lado, refém desse seu espaço
de recepção – na medida em que, o que quer que seja apresentado, deve ser
necessariamente adaptado ao caráter quantitativamente homogêneo da
disposição receptiva de seu público14 –, de outro, seqüestrando, por sua vez, o

13 Uma história que faz seu percurso da individualização/dessexualização da figura


feminina reduzida a sua função doméstica e associada à utilidade dos objetos
viabilizadores de seu conforto, nos anos 50, à erogenização/desindividualização do corpo
feminino em equivalência com a dos objetos propostos como de desejo na promoção do
consumo dos tempos atuais. Há, claro, atrizes ou modelos conhecidas que atuam hoje como
modelos publicitários, contratadas principalmente quando é necessário redefinir e
personalizar melhor os contornos de produtos já conhecidos do público, de forma a
reconquistar sua competitividade em relação aos similares concorrentes. Como há, ainda,
modelos que, iniciando anonimamente suas carreiras na publicidade, à medida que
conquistam os públicos pela associação da própria imagem à dos produtos que veiculam,
acabam por assumir uma autonomia que lhes confere uma identidade própria, o que lhes
abre caminho para outras participações na televisão (como Adriana Galisteu, Maria
Fernanda Cândido ou Ana Paula Arósio). O que procuro destacar, entretanto, é que, mais
que por uma familiaridade centrada numa identidade “confiável”, como era
cuidadosamente construída nos anos 50/60, há, de maneira cada vez mais freqüente nas
décadas seguintes, um anonimato tão mais necessário quanto mais necessária se torna a
associação imediata corpo-produto numa via erogenizante. A erogenização dispensa/desfaz
a individualização (que é deslocada para o objeto), além de sua linguagem ser mais
atravessada de ambigüidade em seu duplo jogo, próprio de toda sedução, de ofertar-se e
furtar-se ao desejo. Na convergência das linguagens para o corpo, ocorre também,
principalmente a partir dos anos 90, uma crescente erogenização do corpo masculino, com
linguagens gestuais e enunciados que muitas vezes indiferenciam-se dos utilizados para
designar a mulher como objeto sexual. Uma erogenização que tende, contrariamente ao que
ocorre com a do corpo feminino, a uma maior individualização/genitalização do corpo
masculino, transformando alguns atores, modelos e esportistas em referências sexuais
claramente definidas e prontamente difundidas pela mídia/mercado.
14 O cinema é, claro, também refém de seu público, já que depende de seu interesse para garantir-

se como empreendimento rentável. Entretanto, por sua difusão mais segmentada e por sua

353
público, por continuamente testar, flexibilizar e procurar expandir os limites de
sua disposição receptiva, de forma a manter-se como suficientemente atraente e
portadora de novidades.15 Para isso, a atenção à homogeneidade e às
possibilidades de incorporação progressiva dos elementos heterogêneos que
pulsam à margem dessa homogeneidade (geralmente de uma forma bastante
estereotipada e unívoca) transforma-se em seu principal investimento, de forma
a se manter no campo concorrencial por audiência.
Penso que é nesses ensaios de flexibilização progressiva das
disposições receptivas de seu público, associados à condição doméstica e
individualizada de recepção, que a televisão inventa-se e se reinventa como
um formidável dispositivo de construção de realidade, realidade essa tão
mais administrável quanto mais é apresentada e percebida como
hegemônica. Reforçando essa construção hegemônica, a cópia, de um canal
por outro, dos programas de maior índice de audiência acaba conferindo ao
campo de visibilidade construído pela televisão uma uniformidade crescente,
facilmente perceptível quando se faz um rápido passeio pelos canais.16
Associar essa forma de construção hegemônica da realidade ao
caráter individualizado e doméstico da recepção implica reconhecer a
televisão, com suas mediações, como um dispositivo dos mais expressivos da

recepção socializada nas salas de exibição, que faz dele, de certa forma, um acontecimento social
compartilhável de forma mais heterogênea e por uma escolha entre outras, o cinema tem um
caráter mais aberto aos embates que se dão no campo da cultura, o que lhe permite sua maior
diversidade e suas maiores possibilidades de experimentação.
15 A predominância dos programas voltados para o público feminino e infantil,

principalmente no período matutino e vespertino, não cessa de nos relembrar o caráter


doméstico da televisão, do qual provavelmente resulta sua ambigüidade nas representações
da mulher, em geral bastante conservadoras. A mulher é apresentada, de manhã e à tarde,
como dona de casa e consumidora de temas que a privilegiam nessa posição doméstica (as
artes da cozinha e dos pequenos objetos de decoração), associados ao cultivo de si
(programas que investem os cuidados com o corpo, as ginásticas, a beleza) ou à bisbilhotice
sobre a vida e os dramas alheios, e altamente erotizada à noite, para o cultivo masculino.
Não à toa, as mulheres, principalmente as ligadas ao mercado de trabalho, cada vez menos
se vêem representadas na TV, conforme indicam as pesquisas da Tver
(www.tver.zip.net/pesquisas.htm).
16 Migração de um canal para outro que os controles dos índíces de audiência procuram detectar,

de forma a permitir ajustes da programação ao gosto do público. Com o advento do controle


remoto, esses índices são atualmente calculados pelo tempo em que o telespectador mantém
sintonizado determinado canal e pela freqüência com que retorna a um canal específico.

354
cultura de massa, se entendermos massa como conjunto não articulado de
indivíduos, atomizados e sem vínculos entre si, referidos às mesmas
representações (Baudrillard, 1985), que, neste trabalho, identifico como signos
mundanos em intransitividade com os signos amorosos e os sensíveis.17 É
dessa associação que deriva sua potência de modelização das subjetividades,
uma potência que chega a se sobrepor à das subjetivações que se constróem
nos encontros de corpos. Já vimos, parcialmente, como essa sobreposição
ocorre em relação às experiências singulares, não significáveis em relação aos
signos mundanos; vejamos agora como ela se dá na performação dos
vínculos sociais, ou, mais precisamente, no trabalho de desinvestimento dos
vínculos sociais, de seus conflitos e de sua inventividade a favor da produção
dos modos de semiotização que constróem as imagens desejáveis desses
vínculos e estabelecem seus limites.
Vimos, com Espinosa, que os laços sociais se constróem no encontro
dos corpos na cidade, em seus embates, negociações e entrelaçamentos,
sendo por suas ações instituintes que novos territórios existenciais se
organizam nesses encontros, configurando o campo social em sua
mutabilidade.
Como vimos no CAPÍTULO 3 – FORA, com a expansão das cidades e sua
ocupação por populações heterogêneas, os dispositivos de controle disciplinar
vigentes no século XIX foram substituídos pelas mediações operadas pelos
meios de comunicação de massa, dos quais a televisão, por sua velocidade e
imediatez, é dispositivo privilegiado. Somada à administração do tempo e ao
controle da comunicação informal nos espaços de trabalho e aos longos
percursos entre o local de moradia e o das atividades profissionais que limitam
expressivamente as oportunidades de interação humana fora dos espaços
instituídos ou o acesso aos acontecimentos que fazem da cidade um todo vivo e
pulsante, sua importância como principal referente do mundo que fornece os
vetores para os investimentos desejantes da maioria da população cresce

17 Conforme apresentado na PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA.

355
desmesuradamente. A televisão funciona, portanto, no contrafluxo do caráter
instituinte das relações entre os homens, na medida em que os atende em seu
isolamento e os expõe a conjuntos de representações que são imediatamente
traduzidas como tendenciais no coletivo, e como tal assimiladas. Assim,
qualquer acontecimento, ao ser destacado no campo de visibilidade criado pela
televisão, por mais particular, isolado ou pouco expressivo que seja, pode se
generalizar como tendencial e funcionar como componente dos agenciamentos
coletivos de enunciação. Da mesma forma, um acontecimento, por mais
expressivo e importante que seja para os interesses coletivos, se não for
selecionado nesse campo de visibilidade passará despercebido ou entendido
como pouco significativo pela maior parte da população, ficando restrito seu
conhecimento aos que dele participam.18 Em seu agendamento da informação, a
televisão é, assim, um poderoso instrumento de designação do que deve ser
conhecido, pensado, experimentado ou sentido a cada momento, designação em
relação à qual o telespectador geralmente conta com poucos recursos derivados
da própria experiência para contestar ou relativizar.
Dessa perspectiva, podemos ensaiar algumas compreensões a respeito
do papel da televisão na desagregação dos laços familiares e sociais, como é às

18 Um exemplo já clássico no Brasil foi o movimento das Diretas Já, de 1984, desprezado, em
sua emergência, pela maioria das redes de televisão. Uma das grandes concentrações, na
Praça da Sé, em São Paulo, por exemplo, foi noticiada brevemente pelo Jornal Nacional, da
Rede Globo, como um show promovido por artistas da MPB e da televisão em comemoração
ao aniversário da cidade, sendo calado que se tratava de uma manifestação política pelo
retorno da sociedade civil e pela reconquista do direito ao voto. Só quando as grandes
concentrações de manifestantes não podiam mais ser ignoradas pela mídia televisiva, como a
de Candelária, no Rio de Janeiro, seus telejornais passaram a divulgá-las em rede nacional.
Em modelos de gestão com aspirações totalitárias, sejam as do Estado, de empresas ou de
outras instituições (incluindo-se a instituição familiar centrada no casal), o controle dos
encontros de pessoas, da comunicação que se estabelece entre elas e seus efeitos (dita
comunicação informal, entendida como ameaçadora do que se espera que todos devam
pensar e fazer) é uma constante. O controle dos meios de comunicação de massa pertence às
formas de gestão de grandes conjuntos populacionais, como vimos no CAPÍTULO 3 – FORA, e
é tão mais severo quanto mais autoritário o Estado. Quando os profissionais da mídia lutam
contra seu controle pelo Estado em nome do ideal democrático da liberdade de expressão,
tendem a calar sobre o controle da liberdade de expressão das populações que eles próprios
exercem com o agendamento da informação associado ao caráter saturante de sua
linguagem.

356
vezes indicado por seus críticos, e que constitui uma das preocupações
manifestadas pelos entrevistados na pesquisa da Unesco (cf. ANEXO).
Uma das condições típicas de recepção doméstica, principalmente
entre as camadas populares que conquistaram recentemente seu primeiro
aparelho, está na reunião de todos os membros do grupo familiar frente a um
mesmo programa. Nesse período de exposição, ficam suspensos os eventuais
conflitos presentes no grupo e colocadas em segundo plano as relações e
conversações intersubjetivas, geralmente atravessadas, quando ocorrem, por
contínuas variações de intensidade, conforme a qualidade dos afetos que unem
ou opõem seus membros. Perante produtos como telenovelas, esses conflitos
encontram-se com os vividos pelos personagens ficcionais, daí derivando várias
possibilidades de resposta: os membros do grupo tanto podem deslocar o foco
de suas próprias experiências para as expostas pela telenovela, passando a viver
vicariamente o drama dos personagens e dispensando-se de se ocuparem com
os próprios, o que parece ser uma tendência bastante freqüente, como podem
utilizar as tramas desenvolvidas na ficção como semiotizantes de sua própria
experiência, buscando significá-la a partir dessa exterioridade. A outra
possibilidade, menos comum, seria a de filtrar o que lhes chega desse exterior
com os recursos derivados da própria experiência, que poderíamos
compreender como uma recepção ativa e até mesmo amplificadora das matérias
de expressão com que se conta para a simulação das intensidades mobilizadas
nas relações com os demais e sua efetuação no exterior, redimensionando os
próprios territórios existenciais. Isso tende a ocorrer principalmente perante
temas polêmicos agendados pela mídia, conforme a atração ou repulsa por eles
mobilizados (na imanência dos quatro eixos da afetividade; ver CAPÍTULO 3 –
FORA).
Considerando essas possibilidades de recepção, entre outras, podemos
dizer que o efeito desagregador dos vínculos afetivos deriva, paradoxalmente,
da suposta função agregadora identificada como uma das características da
comunicação de massa. Agregadora na medida em que esta fornece matérias de

357
expressão utilizáveis na comunicação entre os homens, tornando comuns temas
a serem posteriormente utilizados nas conversações ou referências
comportamentais que serão assumidas como também comuns aos demais.
Excluindo a possibilidade de recepção ativa, sua função desagregadora da
coesão familiar e social, em contrapartida, deriva dessa função agregadora, e
será tanto maior quanto mais os membros do grupo privilegiarem os signos
emitidos pelo dispositivo televisivo em suas relações e conversações
cotidianas, utilizando-os como matérias de expressão substitutivas e
modelizantes para a efetuação das intensidades que se mobilizam em seus
contatos, e que exigiriam recursos derivados da própria experiência não
fossem esses tomados como modelo. A multiplicação dos aparelhos em uma
mesma casa, individualizando ainda mais a recepção, pode até mesmo
acentuar a atomização e a desagregação dos vínculos, mas não é, dessa
perspectiva, sua causa. Assim, se a televisão (e a mídia em geral) agenda as
conversações que se produzem nos encontros sociais – o que faz da
comunicação um “tornar comum a todos” determinados temas –, ela se
sobrepõe à inventividade das simulações de intensidades em matérias de
expressão para sua efetuação nos encontros dos corpos, sendo nessa
sobreposição que ela encontra sua potência de construção das imagens e dos
limites definidores dos vínculos sociais (e de sua despotencialização).19
Essa função de direção das consciências e da sensibilidade, que faz
dela um dispositivo político, passou a ser assumido maciçamente pela
televisão brasileira principalmente a partir dos anos 70. Já consolidada
pelos 20 anos anteriores de maior experimentação, com um público cativo

19 Reconhecer essa atuação modelizante da mídia não nos impede de reconhecer, por outro lado,
sua potência de agenciamento de vínculos sociais, como é proposto quando ocorrem campanhas
de solidariedade e de esclarecimento público sobre as muitas injustiças sociais. Resta perguntar,
entretanto, se esse apelo às boas almas é capaz de concorrer energicamente, como atrator
psíquico, com a promoção do individualismo na cultura incitada pela maior parte da
programação televisiva. Numa perspectiva pessimista, poderíamos perguntar se a função dessas
campanhas não seria mais a de um aplacamento das consciências: “já fiz a minha parte, agora
posso entregar-me ao consumo sem culpa”. Quando se pergunta pelo caráter educativo da
televisão, essa sua dupla posição de promotora de consumo e de agente de conscientização, que
seria um dos papéis da informação, constitui-se como um de seus impasses.

358
que a reconhecia em sua legitimidade como conveniente “janela para o
mundo” e já tendo alcançado uma maturidade e uma penetração que
justificavam os altos investimentos financeiros necessários para sua
expansão, a televisão fez-se porta-voz de uma realidade a ser vivida como
expressão da modernidade do país. Uma modernidade que deveria ser
apresentada como pujante, em progresso e capaz de superar o
subdesenvolvimento econômico e cultural “temporário”, já que o “milagre
brasileiro” era a promessa de sua rápida resolução. Por longo tempo, a
miséria, o subdesenvolvimento, os conflitos sociais, as condições atrozes de
existência foram expurgados do espaço construído pela televisão, que
propunha, em seu lugar, as maravilhas do mundo do consumo e sua
abundância. Como dispositivo de inclusão e performação, foi com essas
presentações de uma realidade desejável que ela expandiu-se, ampliando e
diversificando seus alvos progressivamente para todos os segmentos da
população virtualmente capturáveis que compõem nossa diversa
complexidade social.
Assim, em seus primeiros anos, as classes por ela privilegiadas como
referentes para a construção de suas imagens de inclusão foram as elites e as
médias altas, mesmo porque foram estas as primeiras a ter acesso ao
dispositivo televisivo. Nos anos 60 a televisão já chegara às classes médias e
avançara mais para as cidades do interior, anunciando-se a tarefa seguinte,
desenvolvida nos anos 70 sob o ideário do “Brasil Grande” e da integração
nacional: a construção e consolidação, como público-alvo, do amplo
segmento das classes médias médias e a propagação de estilos de vida e de
representações do corpo gestados nos pólos mais desenvolvidos
economicamente (eixo Rio-São Paulo) e propostos como signos de
modernidade a serem assimilados pelo resto do país. Esse, podemos dizer,
foi o papel da Rede Globo (que surge nos anos 60, com a aquisição por
Roberto Marinho das Organizações Victor Costa) e seu Padrão de Qualidade
construído no decorrer dos anos 70, daí costumarmos identificá-la como

359
porta-voz do discurso oficial, principalmente porque foram exatamente essas
classes médias por ela privilegiadas que, com sua adesão, asseguraram aos
militares sua longa permanência no poder. Os anos 70, período de
consolidação das classes médias, é também o de construção dos diferenciais
construtores de sua imagem desejável: o cultivo do corpo saudável, da beleza,
do sexo recém-liberado, da moda e dos objetos propiciadores e
visibilizadores de seu sucesso e bem-estar.20
Esse cultivo deixou rapidamente, nas décadas seguintes, de ser
propiciador de um bem-estar efetivo para transformar-se mais e mais em
esforços ansiosos de sustentação, a qualquer preço, das imagens desse bem-estar:
as classes médias, exatamente por sua posição intermédia entre ricos e pobres,
oscila continuamente entre o desejo de ascensão e os esforços para manter a
própria posição no patamar conquistado. Paira sempre sobre ela a possibilidade
de perder recursos e de recuar para uma posição menos favorável
economicamente, um risco real continuamente acenado pela instabilidade
econômica e de trabalho do país.21 Seu esforço de diferenciação tem, assim, dois
vetores: distanciar-se dos mais pobres e aproximar-se dos mais ricos, o que a faz
consumidora privilegiada de uma variedade de produtos mediáticos, de
programas televisivos a revistas de variedades, de comportamento, de moda,
sobre personalidades etc. que funcionam como seus referenciais do que é in ou
out no mercado da visibilidade, do pareser.
Os shoppings centers e os supermercados florescem também nos anos
70, que é de consolidação da cultura de consumo no Brasil após a turbulência

20 É conhecido o lugar que determinados objetos ocupam como indicadores de status social, uma
indicação que supera sua própria função, como ocorre com o automóvel, proposto como sonho
máximo de realização e de potência permanentemente renovadas, principalmente em um país
como o nosso, cujos investimentos no transporte coletivo são proporcionalmente indigentes.
21 A progressiva penalização das classes médias promovida pelos governos subseqüentes ao

militar, longe de as politizar, provocou nelas um recuo ressentido e cínico em relação aos
que, ocupando posições inferiores na escala social, passaram a ser incluídos nos mesmos
mecanismos que permitiram anteriormente sua diferenciação. A responsabilização dos mais
pobres pela degradação do gosto na programação televisiva é uma das expressões desse
ressentimento e, ao mesmo tempo, de sua contradição, já que essas mesmas classes médias
não abrem mão de consumir esses produtos já tão desprovidos do glamour dos 70,
contribuindo, como audiência, para sua sustentação.

360
política dos anos 60. De certa forma, as classes médias, por ocuparem essa
posição intermédia entre duas classes sociais que se opõem e se diferenciam
mais radicalmente, constituíram-se e se sustentam como o “sujeito” por
excelência da modelização, aceitando prazerosamente e sem grandes conflitos
sua inscrição pela tele-realidade.
No início dos anos 80, configura-se um novo quadro. A Globo
consolidara-se como a preferida das classes médias – acompanhada à
distância pela Bandeirantes –, e excluía, com isso, de sua programação, as
camadas mais populares, que não se sentiam nela representadas, ou só
representadas depreciativamente em posições subalternas e sem voz
(principalmente nas telenovelas e nos programas humorísticos). As classes A
e média alta já haviam migrado para a novidade dos videocassetes.
Surge a Manchete, com uma programação que procurava recapturar
esse segmento perdido, anunciando-se como canal Classe A, sem jamais ter
conseguido consolidar-se, por impossível, nessa posição. Seus sucessivos
fracassos acabaram por levá-la a infindáveis recomposições de sua
programação até a falência, em fins dos anos 90, dando origem à atual
RedeTV!, que se sustenta heterofagicamente da programação dos outros
canais, principalmente com o TV Fama, de Nelson Rubens. Atualmente – o
que não deixa de ser irônico, se pensarmos nas aspirações iniciais da Rede
Manchete – a RedeTV! concorre, com seus programas de formato trash (Eu Vi
na TV, TV Fama), com os dos canais de menores índices de audiência, como
Festa do Mallandro, da TV Gazeta (os programas trash têm oscilado entre 3 a 6
pontos no Ibope).
Privilegiando as camadas populares, o SBT, de Sílvio Santos, surge
no início dos anos 80, por concessão derivada da extinção da TV Tupi,
acompanhado pela Record, um dos poucos grandes canais que sobreviveram
aos anos 60 e 70 (a Excelsior extinguira-se nos anos 60, a Tupi nos anos 70). O
investimento em programas de auditório, com a participação do público em
jogos e brincadeiras, além da difusão de produtos da teledramaturgia menos

361
sofisticados que os da Globo, a maior parte comprados da Televisa mexicana,
garantiram sua posição de segundo lugar nos índices de audiência, no
decorrer dos anos 90. Atualmente a SBT tem uma audiência cativa,
principalmente nos segmentos C, D e E (que representam 76% de seus
telespectadores), e mantém um patamar médio de 16% de audiência com
seus produtos teledramatúrgicos que, embora atualmente produzidos pela
própria emissora, mantém a estética e estrutura de seus antecessores
mexicanos.
O sucesso de novelas e programas de origem mexicana junto a esse
público mais popular talvez se explique pelo fato de as novelas da Globo,
reféns da estética das classes médias, tenderem a apresentar as classes menos
favorecidas muito esquematicamente, ora glamourizando-as, ora
apresentando-as como “pitorescas”, ora em posições exageradamente
submissas, o que nem sempre corresponde à percepção que esses grupos
sociais têm de si mesmos. Podemos supor que o produto mexicano –
centrado em temas românticos comuns aos folhetins e, de certa forma,
universais, e movendo seus personagens por estados de amor, ciúme, traição,
separados esquematicamente entre bem e mal –, por apresentar tramas mais
distantes de nossa realidade socioeconômica e cultural, seriam mais
facilmente assimiláveis pelos públicos populares, na medida em que, não
sendo representados nas tramas com os contornos que os restituem à própria
realidade vivida de exclusão, as dissonâncias perante seus conteúdos nem
sequer chegam a ocorrer ou ser apreendidas.
Em linhas gerais, a popularização e expansão da televisão de rede
aberta, a partir dos anos 90, começou a desfazer parcialmente essa
segmentação de públicos-alvo por canal, mais claramente delimitada nos
anos 80. Um bom exemplo é o Domingão do Faustão, da Rede Globo, que
concorre pelo mesmo segmento de público com o Domingo Legal de Gugu
Liberato, do SBT. A ascensão do SBT, tendência já indicada em texto anterior
(Rodrigues, O toque da mídia, comunicação&política, Ano XIII, no. 22/25, 1993,

362
p. 47-56), tem representado, nos últimos anos, uma real ameaça à hegemonia
da Rede Globo, cujos esforços de popularização esbarram em seu já
consagrado Padrão de Qualidade, além de serem limitados por seu
atrelamento comercial a um mercado publicitário mais exigente e
diferenciado. Sílvio Santos, ao contrário, com uma programação híbrida que
oscila entre as ousadias do extinto Aqui Agora, do Ratinho Livre e da Casa dos
Artistas e o conservadorismo dos programas de auditório por ele
comandados e de suas telenovelas, privilegia uma maior comunicação com
seu público e arrisca experimentações que desenham um novo perfil para a
televisão brasileira, de uma forma surpreendentemente mais competente que
sua principal concorrente, apesar de toda a sofisticação tecnológica da Globo.
Com o Plano Real, que estabilizou temporariamente a moeda, o
mercado de consumo de bens duráveis e de conveniência ampliou-se,
incluindo outros segmentos da população antes dele excluídos, com várias
derivações, das quais o acesso ao dispositivo televisivo e outros (rádios,
aparelhos de som, celulares etc.) é uma delas, mas não a única: amplia-se
também, com o crescimento do comércio informal e a expansão das grandes
magazines, a possibilidade de as camadas populares terem acesso a roupas e
adereços similares aos consumidos pelas classes médias; a proliferação de
consórcios de carros, um dos sonhos de consumo dos mais valorizados,
torna-os mais acessíveis; programas de financiamento habitacional com juros
baixos permitem a reativação do sonho da casa própria; o acesso à educação
formal se amplia (independentemente de sua qualidade), inclusive à
superior, com a expansão das vagas em universidades particulares, que
associam baixa qualidade de ensino e facilidade de acesso, agregando
segmentos antes irremediavelmente excluídos dessa possibilidade de
ascensão social.22 Como resultado final, a diferenciação por acesso a bens e

22As universidades particulares consolidaram-se no decorrer dos anos 70 e conheceram uma


expressiva mudança de seu público nos anos 90: as exigências de educação formal
diferenciada para a entrada no mercado de trabalho têm levado boa parte da população
jovem de menor renda e sem vínculo com a produção da cultura e do conhecimento (como já
ocorria com boa parte das classes médias dos anos 70), antes pouco motivada a continuar os

363
serviços tende a se diluir, pelo menos na aparência, já que determina o
aparecimento de outros produtos, serviços e dispositivos diferenciadores.23
Vivemos assim um quadro, pelo menos nos meios urbanos, de aparente
democracia social, racial e econômica, com uma significativa diluição dos
elementos diferenciadores de pertencimento social e uma expressiva
expansão dos dispositivos de inclusão no consumo. Se esses dispositivos
mostram-se suficientes para a despotencialização das inquietações políticas
coletivas, acabam funcionando, por outro lado, como incitadores da violência
urbana ligada a interesses individuais (que vão dos furtos, assaltos e
seqüestros à luta por prestígio a qualquer preço).24
Esse quadro irá se refletir na luta pelos novos públicos pelos canais
de televisão de rede aberta, que perderam seu público tradicional para as

estudos, a fazer enormes sacrifícios financeiros para ingressar e se manter nessas instituições,
buscando manter a perspectiva de um melhor trabalho futuro.
23 A expansão do mercado de videocassetes para os segmentos mais populares determinou

uma diferenciação nas fitas para venda e locação: os filmes de maior sucesso comercial são
atualmente lançados em duas versões: legendada e dublada. Anteriormente, os aparelhos de
televisão haviam passado a ser produzidos com a tecla SAP, que permite a recepção dos
filmes usualmente transmitidos na versão dublada em sua versão original, legendada,
concorrendo com os videocassetes. Atualmente, alguns canais pagos já começam a incluir
filmes dublados em sua programação. Em um país em que boa parte da população é ainda
analfabeta, e, entre os alfabetizados, muitos apresentam dificuldades de leitura, quando não
ocorre de serem identificáveis como analfabetos funcionais, ajustes desse tipo acabam sendo
inevitáveis.
24 Cada vez mais pergunta-se menos pelos dispositivos que produzem a exclusão,

ignorando-se seus determinantes culturais e sociopolíticos, e concentra-se todos os vetores


no econômico, pois o dinheiro, fator de equivalência que confere mensurabilidade à parte
homogênica do social, dilui todas as diferenças, inclusive as mais resistentes, como as
étnicas. O mito da democracia racial brasileira resultante da miscigenização, celebrado por
etnólogos, é sempre relativizado por essa mensurabilidade. De todas as etnias que aqui
convivem sem que se radicalizem os conflitos, a condição do negro é exemplar quanto a esse
relativismo. Ser anônimo, pobre e negro é estar permanentemente na mira dos olhares que o
colocam, no registro da suspeição, como marginal. Para os que não alcançam o sucesso pelas
estreitas vias disponíveis, a adesão à atividade marginal, que inclui (embora não se limite a
ela) a da violência contra o outro, surge como via reparadora ou como vingança ressentida
em relação à exclusão. A outra alternativa é mediática. O quase escândalo racial do affair
amoroso Xuxa-Pelé foi rebatido, nos anos 80, pelo prestígio do campeão de futebol e tornou-
se rapidamente signo e modelo de sucesso e ascensão para a população negra e mulata.
Cantores populares, jogadores de futebol e outras personalidades mediáticas
negras/mulatas são eleitos como símbolos sexuais e privilegiam as loiras em suas conquistas
amorosas, visibilizadoras privilegiadas de seu sucesso. As mulheres, embora vivendo em um
país cantado pela beleza e sensualidade de suas mulatas, apressam-se na oxigenação de seus
cabelos como condição de ascenderem rapidamente à condição de também símbolos sexuais
mediáticos.

364
opções de entretenimento que atraem as camadas mais diferenciadas
economicamente, como os canais pagos, os DVDs e, nas metrópoles, as
sofisticadas casas de espetáculo de padrão internacional. É nesse contexto de
transformação cultural que foram escolhidos os programas televisivos nas
leituras apresentadas na seqüência.

AGENCIAMENTOS DE
UM ETHOS DOMINANTE

Para compreendermos a maneira como a mídia televisiva funciona


como agenciadora de determinadas formas de subjetivação, nada melhor do
que buscarmos em alguns quadros de sua programação como se processa
esse agenciamento. Para que a leitura responda o mais fielmente possível às
condições de complexidade que estão envolvidas nesse processo, tomarei
como ponto de partida dois programas de auditório que, guardadas suas
diferenças, destaco como bastante diferenciados, cada um, na programação
de seu próprio canal: o Programa do Jô, exibido diariamente pela Rede Globo,
e o Show do Milhão, da SBT.

PROGRAMA DO JÔ: O JOGO DOS IGUAIS

O Programa do Jô é diferenciado e diário, atendendo a um público


amplo e heterogêneo, situado nas classes A, B e C, o que acaba determinando
a diversidade de entrevistados que comparecem ao programa.
Jô Soares tem para apresentar como currículo uma sólida carreira
como humorista, comediante, escritor, autor de teatro e artista plástico.
Como humorista, foi um comentarista sutil e irônico do cotidiano político
brasileiro durante os anos críticos da ditadura militar e da conturbada
“transição democrática” iniciada com o governo Sarney. Posteriormente,
soube migrar, no momento certo, dos programas humorísticos que, de

365
maneira geral, assumiram um padrão repetitivo e enfadonho (Chico Anísio, A
Praça é Nossa, Sai de Baixo etc.), para novos formatos, nos quais pôde
continuar a exercitar-se como one man show. Assim, nos anos 90, investiu o
formato talk show, com o programa de entrevistas Jô Onze e Meia, na SBT.
Sofisticado, culto, elegante, narcisista, não deixou em nenhum momento de
ser, acima de tudo, um humorista que faz de seus parceiros de palco os
necessários coadjuvantes (“escadas”, isto é, aqueles que permitem que a
piada se desenvolva e leve ao riso) no direcionamento do foco para o
personagem-Jô. Ao transferir seu programa para a Globo,25 em 2000, essa
estratégia de construção de “escadas” só fez visibilizar-se mais. Hábil metteur
en scène, do primeiro momento do programa, em que faz sua entrada triunfal
como verdadeira vedete sob os holofotes, até o fechamento, em que identifica
os grupos que participaram, no auditório, do programa, todos os
movimentos de cena convergem para sua figura. O personagem-Jô está “em
casa”, e os convidados cumprem fielmente o ritual do anfitrião. Como
elemento semiotizante dessa configuração, o último quadro do programa,
“Fundo da Caneca” recorda aos possíveis desmemoriados, estabelecendo um
continuum histórico, que o cidadão Jô Soares é não só um camaleônico criador
de personagens, como não opera, em seu talk show, de maneira diversa. Esse
ricordo é enfatizado quando seu convidado é um ator que participou,
anteriormente, como coadjuvante de seus quadros humorísticos.
Invariavelmente, ao longo da conversação, há o momento de “vamos ver
aquele quadro em que você fazia tal personagem”. O quadro “Fundo da
Caneca”, que tem a função semiotizante de fechamento, é deslocado e

25 É prática comum a Rede Globo atrair para seu staff, com contratos mais vantajosos, artistas e
apresentadores bem-sucedidos em outros canais. Esses artistas rapidamente assimilam o Padrão
de Qualidade da emissora, o que geralmente tende a limitar sua expressividade e criatividade.
Isso sucedeu com Fausto Silva, que dirigia o anárquico e criativo Perdidos na Noite, na
Bandeirantes, e há anos mantém-se preso aos índices de audiência com o repetitivo Domingão do
Faustão; com Serginho Groismann, que comandara anteriormente o Matéria-Prima, na Cultura,
passando posteriormente para o Programa Livre da SBT e, após sua contratação pela Globo, após
ser mantido no limbo por longo tempo, assumiu o indefinido Altas Horas, na madrugada global.

366
incorporado à entrevista, que assume claramente um caráter de conversação
entre amigos.
Comparecer ao Programa do Jô é, de certa forma, um privilégio para
todo aquele que faz alguma coisa e deseja dar maior visibilidade a si mesmo
e ao que produz. Assim, podemos dizer que o programa, embora centrado no
one man show Jô Soares, sustenta-se, secundariamente, na fórmula “gente que
faz”, sendo, por isso, bastante disputado como espaço de visibilização. Por
ele desfilam, diariamente, personagens já consagrados na mídia e que estão
lançando algo novo e diverso, ou que simplesmente desejam expor o que, em
seu prestígio mediático, não é dado a ver, e ilustres anônimos em busca de
visibilidade mediática.
Por exemplo, limitando-nos a atores familiares ao público de
telenovelas, o casal Marcos Palmeira e Ana Paula Arósio (16.01.2001) falando
sobre uma nova peça, sua paixão por cavalos e as atividades de Marcos como
produtor agrícola de alimentos orgânicos; Júlia Lemmertz e Alexandre
Borges (26.05.2000) e seu novo empreendimento, um espaço de artes em São
Paulo, com uma sala de cinema e outra de teatro, no bairro Pompéia.
Comparecem também personagens às vezes conhecidos apenas no
círculo restrito de suas especialidades, que no programa encontram a
oportunidade de publicizar suas idéias, produções ou pesquisas, ou
simplesmente tipos curiosos, como Marlon Brando Benedito da Silva
(04.01.2001), cuja entrevista teve como motivação seu próprio nome,
homenagem de seu pai ao ator Marlon Brando, e o nome de seus irmãos:
Johnny Weissmuller, Abilene, Mohab, Adigaman. Comentou que seu pai
teve várias fases: hollywoodiana, geográfica e “viagem total”, quando
escolheu o nome de Adigaman, contando histórias engraçadas sobre as
confusões que os nomes já geraram.
A variedade de personagens e temas é, portanto, grande, e citaremos
genericamente mais alguns de forma a indicar essa diversidade: uma
pesquisadora que se dedica à criação de minhocas e as comercializa para

367
praticantes de jardinagem (entrevista apresentada no período da SBT, Jô Onze
e Meia); um médico, autor de um livro publicado no exterior e com
lançamento recente no Brasil no qual apresenta sua polêmica tese de que a
menstruação é não só obsoleta como contornável pelo uso de medicações;
um colecionador de bonecas Barbie, ex-drag queen, que aproveita o momento
da entrevista para fazer um discurso pró-homossexualidade; um bombeiro
que se tornou notável assoviador e responde a todas as questões assoviando
trechos de músicas; um diretor de teatro que fala sobre a montagem de uma
nova peça e faz também uma breve digressão sobre a dimensão subjetiva e
singular de suas escolhas eróticas; músicos mais conhecidos no circuito
“alternativo” que mostram seu trabalho; músicos estrangeiros em passagem
pelo Brasil, que após a entrevista são convidados a tocar, com seu grupo,
alguma peça de seu repertório etc. Apresentar-se no Programa do Jô tem se
tornado, aliás, agenda obrigatória de músicos e atores estrangeiros em
tournée pelo Brasil, o que é indicativo de seu prestígio.
Reforçando a configuração do espaço do programa como de
visibilização de pessoas e atividades, um quadro não-fixo, “Momento da
Fama”, captura alguém na platéia e, por instantes, o até então anônimo e
silencioso participante encontra aqueles minutos de fama que Andy Warhol
afirmou serem a busca e o desejo de todos em nossos tempos pós-modernos.
Para que o programa se construa, há regras que, embora não
explicitadas no ar, parecem ser tacitamente aceitas. O convidado deve estar
disposto a ser provocado pelo entrevistador; deve saber responder
elegantemente aos comentários, muitos deles chistosos e de duplo sentido
(por exemplo, as perguntas de Jô pelo interesse da pesquisadora em “criar
minhocas”: “Você pega nelas?” “O que você sente quando pega em uma
minhoca?”, que provoca risos na platéia e constrangimento na entrevistada,
que procura manter sua fala em um nível estritamente técnico); deve, enfim,
dispor-se a também fazer rir, por mais seriamente que encare a si mesmo e
sua atividade. Se a convidada for uma mulher bonita, deverá estar disposta

368
ao assédio pouco sutil, e sempre em tom farsesco, no qual Jô a envolve,
debruçando-se sobre ela, mantendo as mãos da entrevistada enlaçadas nas
suas, levando-as ao próprio peito.
Quanto mais conhecido o personagem (um político famoso, um ator,
um cantor), mais a entrevista decorre como um encontro de amigos que não
dispensam a ocasião de se elogiarem e relembrarem situações anteriores em
que estiveram juntos, o que faz da entrevista um momento de celebração
narcísica de um e outro.
Raramente há conflitos no Programa do Jô, quaisquer que sejam os
temas abordados. Eles ocorrem quando um entrevistado rompe o contrato ao
longo da conversação, ou não responde aos comentários direcionadores da
fala introduzidos pelo interlocutor/apresentador. Isso ocorreu, por exemplo,
com um guru esotérico, Omar Khayyam (que foi entrevistado em 17.07.2000
e retornou na semana seguinte, para uma longa entrevista, em 20.07.2000).
Na primeira entrevista ele agradou o público, o que justificou seu retorno na
semana seguinte. Nessa segunda entrevista, mergulhou em uma
discursividade prolixa e cifrada, com afirmações presunçosas que irritaram o
público. Jô Soares, apesar de várias tentativas de interromper/interpelar seu
entrevistado, perdeu o controle da entrevista, fazendo intervenções mais e
mais agressivas, sendo acompanhado pelo público, incitado pelo próprio
apresentador a fazer intervenções, o que não é usual no programa. A
entrevista ocupou praticamente todo o programa (aproximadamente 45
minutos). Quando conseguiu concluir, Jô recuperou seu estilo brincalhão,
finalizando com: “Hoje fui entrevistado por...”
Essa frase marca esses momentos de ruptura de contrato. Não se
trata, no programa, de “quem fala” e “o que fala”, nem do tempo ocupado
pela fala do convidado e a fala do entrevistador. Como entrevistador, Jô faz
falar, sendo ele que dá a direção da fala e dos sentidos que ela produz. Se o
entrevistado se apropria da palavra, passando a conduzir os movimentos da
“entrevista”, ele passa a ser o entrevistador, e não mais o entrevistado.

369
Sempre, nesses momentos, Jô finaliza com: “Bem, fui entrevistado por
fulano...”, e não com sua fala usual: “Entrevistei fulano...”, marcando, para a
platéia, que houve ruptura.
Fazer falar o entrevistado e fazer rir seu público é o que define o
Programa do Jô, enquanto, propriamente, exercício de um one man show.
Reafirmando sua função de visibilidade e de talk show, mais do que de
informação sobre as atividades do entrevistado, importa pouco o conteúdo
das falas, mas muito mais o “fazer falar”. Assim, seu público cativo não
pergunta “quem será entrevistado”, ao escolher expor-se ou não ao
programa em determinado dia, como costuma ocorrer com programas
efetivamente de entrevistas, como Conexão Roberto D’Ávila ou Roda Viva,
ambos da TV Cultura. A expectativa que se repete diariamente é,
efetivamente, o “encontro” com Jô Soares e com a regularidade dos tempos
que constróem o programa.
Há outros momentos em que Jô Soares atua de uma maneira que, se
não é explicitamente agressiva, tende a desqualificar as afirmações de seu
entrevistado. Essa atuação caracterizou-se bem claramente em uma
entrevista com a cantora Baby do Brasil (18.07.2000), que entrou no cenário
musical brasileiro no início dos anos 70, então ainda Baby Consuelo, com o
grupo “Os Novos Baianos”. Baby do Brasil faz sua entrada cantando uma
música de seu novo disco, “Exclusivo para Deus”, fruto da nova busca
mística que está vivendo, e em seguida é recebida por Jô. Ela conta que em
1999, desencantada com os próprios rumos, começou a pedir que Deus lhe
desse um sinal, sendo atendida em seu pedido. Baby narra os encontros que
teve com Deus, afirmando ter sido banhada no sangue de Jesus Cristo
crucificado, gerada no ventre de Deus e ter visto a terra de longe. Afirma
ainda que estamos vivendo no Apocalipse, mas quem estiver com o Espírito
Santo irá sobreviver. Esse relato é feito de forma exaltada e entusiasmada,
marcada por sua recente conversão e adesão a uma igreja do segmento
evangélico. A cada intervenção de Jô, a cantora mergulha mais e mais

370
exaltada no relato. Jô começa a fazer observações irônicas que colocam em
questão a crença e a “conversão” de Baby, solicitando, em alguns momentos,
comentários do poeta Waly Salomão, que seria o entrevistado seguinte. Em
suas intervenções, Jô dirige olhares à platéia, sugerindo que a cantora
provavelmente está em estado delirante, numa provável crise histérica, como
comentou posteriormente com Waly, colocando-se numa posição crítica
característica do intelectual que recorre a argumentos racionais perante tais
manifestações. E finaliza com: “Hoje fui entrevistado por...” O que se
configura nessa entrevista é um notável mal-estar perante essa cartografia de
contornos fundamentalistas construída por correntes religiosas que
dispensam os argumentos da racionalidade a favor da iluminação, da
conversão e da fé, que tem capturado crescentemente adeptos em estratos os
mais diversos do campo social.
Jô Soares sustenta, continuamente, uma cumplicidade em sua relação
com o público. Estamos, nesse contexto, em um mundo de iguais. Iguais que
se desafiam, que se constituem num vínculo de camaradagem que pode
caminhar do humor sutil ao deboche sem que, salvo as exceções indicadas de
“desqualificação” do entrevistado, manifeste-se um conflito irresolúvel.
Manter-se nesse mundo exige flexibilidade, competência para
formular, cada um, seus próprios chistes, preferencialmente inteligentes e
elegantes, por mais desqualificadores do outro possam parecer. Isso ocorre
com ênfase na relação de Jô com seus parceiros musicais, e em grau um
pouco menor com sua equipe técnica, incluindo-se nesse grupo o garçon, um
“igual” ao seu serviço, igualdade não transitiva, portanto. É exatamente por
todos se reconhecerem como partners em um jogo cujo objetivo final é o
entretenimento do espectador sentado na poltrona de sua casa que o deboche
pode ocorrer sem que sejam abertos espaços extremos de conflito.
O deboche a que venho me referindo aqui, retiro-o da cena sadeana,
que faz desse jogo com o outro seu estilo. Embora presente na maior parte
dos livros de Sade, o deboche ocorre nos momentos em que, em Os 120 dias

371
de Sodoma (1980) (comentado na INTRODUÇÃO), um libertino expressa paixões
não previstas pela narrativa construída para sua mobilização. O deboche
assume, assim, o caráter de um dispositivo regulador que marca a relação
entre iguais e de sua diferença em relação aos que não fazem parte de seu
mundo e não compartilham sua linguagem.
A cena sadeana não deve ser confundida com a cena sádica, que
elege os corpos das vítimas como objetos de sua ação. Ela ocorre no nível da
linguagem e pertence aos processos de reconhecimento daqueles que se
apresentam enquanto iguais em sua condição de portadores da e
atravessados pela linguagem. Em Sade, como vimos, o que distingue os
libertinos e suas vítimas é o “poder dizer” dos primeiros e a impossibilidade
de articular o discurso dos segundos. O deboche tem a função, portanto, de
verificar se aquele que se apresenta como igual consegue sustentar-se nessa
posição, daí os desafios verbais com os quais é continuamente deslocado de
sua posição, à qual deve ter competência para retornar, sob o risco de sua
exclusão do grupo de iguais. Esse sistema, estruturante das narrativas
sadeanas, presentifica-se, por exemplo, nos círculos sociais nos quais se
reúnem amigos dispostos a fazerem de seu encontro o momento de suas
auto-celebrações narcísicas (como ocorre nos relatos das conquistas
amorosas, cuja maior qualidade não está na veracidade do acontecimento,
mas sim na habilidade do narrador de sustentar o próprio relato, ainda que
sob o risco de ser desmentido pela mulher que eventualmente pertença ao
mesmo circuito de trocas). Assim, o deboche promovido por Jô Soares
encontra ressonância na experiência vivida, estabelecendo um continuum
entre seu “teatro” e a realidade vivida por seu público.
Se há uma “familiaridade” no Programa do Jô, que faz dele um
encontro de amigos e de iguais, ela está portanto nesse jogo em que os
personagens se expõem até o limite em que podem suportar tal exposição
sem se desautorizarem, derivando daí as condições de seu reconhecimento e
de sua aceitação pelo telespectador. Sua função social, como modelizador de

372
subjetividade, torna-se, portanto, clara. Jô nos confirma e nos indica uma
dupla condição que marca a posição do homem enquanto ser autônomo,
livre e anônimo que se inscreve no espaço concorrencial das relações sociais e
do mercado para visibilizar-se e constituir um território vivível: à
necessidade de afirmar-se corresponde a de manter continuadamente essa
afirmação, já que a afirmação, por si, não assegura a permanência em uma
posição já conquistada; ela será continuamente verificada e testada no
confronto de forças que caracteriza as relações entre os homens. Não
sustentá-la implica perder sua posição e, conseqüentemente, perder a si
mesmo no conjunto dos iguais.
O entretenimento encontra-se, portanto, com o performativo:
diariamente, personagens simulam suas potências perante o apresentador Jô
Soares que, senhor em sua casa, os testa, os provoca, os consagra (ou não).
Para o telespectador, a repetição dessa relação estruturante dos quadros, se o
diverte, também o “educa”, pois é sempre ao mesmo movimento que ele é
devolvido, é sempre com o mesmo movimento que ele é convidado a compor
suas estratégias de diferenciação que lhe permitam fazer parte desse mundo
exclusivo e restrito dos iguais que não cessam de ter a si mesmos como
principal referência no mercado das identidades emergentes.

Sílvio Santos, Agente de Inclusão

Podemos dizer que Sílvio Santos é um caso único na televisão


brasileira. Tendo construído seu prestígio como apresentador de programas
de auditório populares nos anos 60/70, na rede Globo e na Record, a partir
dos anos 80, com seu próprio canal, SBT, vem mantendo seus programas com
o mesmo estilo e estrutura, acrescentando-lhes quadros que nada mais são
que pequenas variações em torno a uma mesma formatação. Além disso, é o
único empresário de televisão no Brasil que atua em contato direto com o
público.

373
Seus programas estão atrelados a dois dispositivos com grande poder
de atração para as classes populares: 1. a venda de carnês de prestação e
sorteio – sendo Baú da Felicidade o principal e mais antigo – e, mais
recentemente, da Revista do Milhão, que equivale a um bilhete de loteria; 2. a
distribuição de prêmios em dinheiro aos que participam dos programas
como platéia e aos possuidores de carnês sorteados.
Essa distribuição de prêmios em dinheiro é bastante singular, pois
remete continuamente a sua posição de empresário-apresentador: como “dono”
do dinheiro, pode distribuí-lo a quem quer que seja sem ter de se justificar a
qualquer outro. Seu gesto displicente de lançar notas de papel-moeda para o ar,
como “aviãozinhos”, com um sorriso permanente no rosto é sempre suntuário,
remetendo à prática de potlach: “meu poder está em ‘poder dar’, ‘poder gastar’,
‘poder perder’, distribuir indiscriminada e injustificadamente, isto é, não por
mérito do outro, mas por ‘minha generosidade’”. Basta que o interessado se
disponha às “adivinhações” ou “testes” propostos para ser premiado.
A percepção do apresentador por seu público como um homem “bom”,
interessado em ajudar a realizar seus sonhos (como no tradicional quadro Porta
da Esperança, que é recuperado, com outros contornos, no programa de Ratinho,
do mesmo canal), remete às relações de poder que se instituíram e se
cristalizaram no Brasil, verdadeiras resistências à modernidade marcadas pelo
populismo, e que se estenderam para as relações de trabalho: é sempre por uma
“generosidade” do empregador que o empregado se mantém no trabalho, mais
raramente por seus méritos. Por essa razão, para o empregado, manter uma
relação de familiaridade com o patrão, ser cumprimentado por ele, ser alvo de
uma pequena atenção sua, sinaliza sua aceitação e o possível perdão por alguns
deslizes. Direitos trabalhistas básicos são assim traduzidos como concessões,
não como direitos efetivos, garantidos por um contrato. É a esse quadro que os
vários programas mantidos por Sílvio Santos remetem, daí sua identificação,
aqui, como agente de inclusão. Inclusão, portanto, nas relações de poder e de
trabalho que organizam o cotidiano e seu deslocamento para as aspirações de

374
consumo. Com a mudança das relações de trabalho em curso estão surgindo
novos quadros, nos quais o “desempenho” dos participantes passa a sofrer
novas exigências – participar de brincadeiras ou submeter-se a situações que,
em outro contexto, seriam constrangedoras ou recusadas.26
A compra do carnê do Baú da Felicidade (nome que, por si, é auto-
explicativo da idéia de felicidade que identificamos como promovida pela
moral utilitária) garante ao que aceita suas regras que ele não só não terá
perdas (uma garantia relativa: o dinheiro investido ao longo dos meses, em
pequenas prestações, pode ser recuperado por seu possuidor, no final,
trocando-o por produtos disponíveis nas lojas do Baú, equivalentes ao valor
nominal investido, isto é, sem correção), como lhe assegura a possibilidade de,
sendo sorteado, participar do programa e concorrer a prêmios bem mais
significativos e tentadores. Realizar o sonho da casa própria (dos desejos, o mais
freqüente em um país com uma política habitacional sempre precária), ter
dinheiro para pagar os estudos (e, assim, entrar com maiores chances no
mercado concorrencial do trabalho), ou, mais intensamente desejado ainda,
liberar-se da necessidade de trabalhar (promessa irresistível do Show do Milhão),
são as vias de “simulação de potência” ofertadas por Sílvio Santos.
Essas vias, se ficássemos só com elas, não são diversas das oferecidas por
muitos outros dispositivos que sustentam sonhos no cotidiano do brasileiro,
como as várias loterias mantidas pelo Governo (que vêm sendo criadas desde a
bem-sucedida Loteria Esportiva, primeira alternativa às tradicionais Loterias
Federal e Estadual introduzida pelo governo militar na transição dos anos
60/70, aproveitando-se da euforia popular pela Copa), os Títulos de
Capitalização disponibilizados pelos bancos, que constituem formas alternativas

26 Por exemplo, é apresentada a um casal a seguinte proposta: a mulher ficará suspensa,


amarrada a uma corda, sobre uma tina cheia d’água; o homem, de olhos vendados, e
seguindo as instruções da mulher, deverá encontrar, em tempo hábil, um maçarico cuja
chama está queimando a corda. Caso ele não consiga encontrar o maçarico a tempo, a corda
se romperá e a mulher cairá na tina. Quando isso ocorre, o casal perde o prêmio que, no
caso, não chega a ser muito expressivo. Conjugam-se, no mesmo quadro, o desejo de
visibilidade mediática – ser visto pelos amigos e vizinhos no programa de Sílvio – e de
acesso a um dinheiro extra e relativamente fácil.

375
de poupança por incluírem premiações periódicas que ultrapassam
expressivamente o valor investido por seus portadores, além de outros não-
oficiais, como o Jogo do Bicho, uma prática marginal já de há muito instituída.
Dos programas de auditório centrados nas distribuições de prêmios, o de Sílvio
Santos é o mais estruturado em conformidade com essa lógica encontrada no
mercado, que opõe acaso (traduzido como sorte) e trabalho. Seus programas
estabelecem um continuum entre dois mundos, o do cotidiano e o da televisão,
legitimando-os no desejo manifesto daquele que aspira por um lugar (no
mundo e no próprio programa). O diferencial introduzido por Sílvio Santos em
relação a esses dispositivos, que justifica sua identificação como agente de
inclusão e de modelização de subjetividade dominante, são as regras por ele
definidas para o acesso à realização do sonho, que justifica seu apelativo à
platéia: “minhas companheiras de trabalho”. Trata-se efetivamente de um
trabalho, do qual todos participam. Mais precisamente, um “trabalho do sonho”
com vistas à sua realização.
Sílvio Santos é um hábil entrevistador. Suas perguntas, suas
reiterações, suas reticências, suas provocações “fazem falar”, só que de forma
bastante diversa à incitada por Jô Soares, pois se Jô promove o “jogo dos
iguais”, sendo nessa direção que ele faz falar, Sílvio Santos sustenta o dos
desiguais que demandam reconhecimento e lugar. Perante ele, o
“entrevistado” diz com que sonha, expõe sua demanda, deposita suas
esperanças nas mãos do apresentador. Reconhecido como via de passagem, de
acesso à realização, o apresentador diz, “vamos ver”. Trata-se, nessas trocas de
perguntas e respostas, de quebrar resistências, de colocar-se consistentemente
no lugar do condutor capaz de realizar a demanda. Sílvio faz o trabalho do
sonho dirigindo-o e fornecendo-lhe tanto continente como conteúdo: “Você já
tem uma casa?”; “Gostaria de trocar seu carro, ou ter um?”; “De quanto você
precisa para conseguir reformar sua casa?”; “40 mil são suficientes para você?”
São perguntas que vão estabelecendo tanto o que desejar como os limites a esse
desejo e as condições de possibilidade de sua ampliação.

376
Nos programas habituais de auditório, praticamente não há conflito. A
simples presença do participante no programa já supõe uma aceitação tácita
do pacto, assim como dos jogos e brincadeiras propostos como obstáculos a
serem vencidos para se chegar ao prêmio, por mais ridicularizadores ou
humilhantes sejam. Podemos reconhecer aqui um exercício pouco sutil e sem
quaisquer conflitos da forma de controle social por desempenho
característica das sociedades liberais.27
Algo um pouco diverso ocorre no Show do Milhão, mais sofisticado em
relação aos demais programas da rede, ao apresentar-se como uma gincana
“cultural”, que tem atraído telespectadores não habituais dos programas de
auditório da SBT e gerado polêmica entre alguns comentadores da
programação televisiva, que abordam esse novo produto com cuidado e
reserva. O que às vezes gera polêmica são as avaliações equivocadas das
respostas fornecidas pelo programa, motivando matérias em cadernos
especializados dos jornais que pressionam por reparação. A presença de
universitários, que atuam como auxiliares do participante em respostas que
demandem um saber mais específico ou “difícil”, legitimam o propósito
“cultural” e “educativo” do programa, além de estabelecer claramente a
hierarquia dos saberes – hierarquia essa já marcada pela indumentária dos
universitários, sempre vestidos com roupas de gala – em conformidade com

27 Enriquez (1990: 285) indica que cada forma de organização política conta com seus próprios
dispositivos de controle social. O predominante nas sociedades liberais, ao lado dos controles por
dissuasão e por sedução, é o de desempenho ou dos resultados. Seu ponto de partida é a
oportunidade igual para todos e o desejo comum de sucesso nos negócios e na vida. Será pela
maneira como cada um se mostrar competente e se dispuser a fazer corpo para as demandas que
lhe são feitas que alcançará ou não o sucesso e os lugares de reconhecimento. Para isso, não
cabem quaisquer argumentos sobre limites pessoais, gosto ou validade do que é demandado,
mas sim o bom desempenho das tarefas. Aos que fracassam, resta-lhes a culpa pelas próprias
deficiências e seu recolhimento ao limbo dos incompetentes. O controle por desempenho e
resultados atualiza-se nos jogos propostos aos candidatos em processos de seleção para o
trabalho ou nos treinamentos promovidos para desenvolvimento de pessoal, em confrontações
que se assemelham aos combates esportivos: atue em equipe, atue individualmente, faça isto e
aquilo, defenda, com todos os argumentos possíveis, as qualidades de um clipe. Trata-se de um
saber fazer o melhor possível o que quer que se lhe demande, superar inibições, ter
“competência/inteligência emocional” para lidar com o arbitrário das regras etc. A maior parte
dos jogos e brincadeiras propostos pelos programas televisivos inscreve-se nesse tipo de controle,
cujas regras conferem à vida pública e privada seu caráter de espetacularidade e de teatralidade.

377
os que a portam: a resposta dos universitários é decisiva em caso de dúvida,
pois são eles os representantes do saber.
Para o telespectador, o programa assume dimensões de interatividade,
já que lhe possibilita uma participação também ativa, em seus esforços de
encontrar a resposta certa antes do participante. Haverá o momento em que o
telespectador se sentirá tentado a comprar a revista, inscrever-se como
candidato, aguardar o momento de arriscar a sorte grande. Para treinar e
ampliar as possibilidades de sucesso, enquanto aguarda o grande momento,
poderá comprar o Jogo do Milhão, disponível em CD-Rom. O próprio
programa, a partir de um acordo com a Microsoft, promove a venda de
computadores com financiamentos de longo prazo e prestações acessíveis,
ampliando assim as possibilidades de participação e introduzindo nos
sonhos de consumo de seu público um objeto provavelmente ainda não
plenamente constituído como desejável no espaço doméstico.
Nesse programa insinua-se uma dimensão de conflito cuidadosamente
evitada nos demais programas comandados pelo apresentador, bastante
visível nas conversas iniciais estabelecidas entre ele e os participantes
sorteados. Aquele que se apresenta muito seguro de si, com muitas armas,
pleno de saberes, não conta com a benevolência do apresentador. Este recua,
estabelece uma relação mais formal, pouco simpática, procurando confundir
as respostas ou propor mais desafios. Fica aberto o caminho para o fracasso
do participante, assim como fica formalizado o contínuo desafio àqueles
pertencentes aos setores mais informados da sociedade, como professores e
profissionais liberais, a submeterem seus saberes ao crivo do programa. Um
desafio que recorre a muitos artifícios que não deixam de portar uma carga
de responsabilização ou de culpabilização daqueles que, a princípio, não se
dispõem a ocupar esse lugar, por mais tentadora que seja a promessa de
dinheiro fácil: “Compre uma revista para seu pai, se ele for sorteado, com
certeza não vai deixar escapar a chance de ganhar um milhão”. Ao mesmo
tempo, o apresentador parece deixar claro que esse lugar que ele oferece não

378
é, efetivamente, para esses personagens. O desafio, assim, assume um
sentido mais próximo ao que o próprio mercado de trabalho, com sua
política de resultados, propõe aos que valorizam mais o saber que seus fins
utilitários: uma desqualificação, mais que um convite. O desafio toma, assim,
a forma: “Vamos ver se isso tudo que você sabe serve para ganhar algum
dinheiro”.
Esse desafio constitui, na superfície e num primeiro momento, uma
ameaça narcísica a qualquer um que ocupe um lugar diferenciado no quadro
social e que tenha, como fator de diferenciação e posição na própria
comunidade, algum tipo específico de conhecimento. A simples presença em
um programa comandado por um apresentador tradicionalmente
reconhecido como de apelo popular já constitui, por si, uma repulsa a
superar (se a recusa é tão-somente narcísica, resta sempre perguntar se não
vale a pena tal superação). Mede-se a possibilidade de fracassar
publicamente, com todos os riscos da ridicularização (por ter participado,
por ter fracassado...) e da perda de prestígio no próprio círculo de convívio.
Entretanto, há outros fatores, menos determináveis por inquietações
imaginário-narcísicas, que por si já justificam uma reserva mais crítica dos
“desafiados” à participação. O primeiro é informado pelo próprio programa: as
questões propostas são retiradas de uma enciclopédia, evidenciando uma
concepção do saber e da cultura como “quantidade de informação” memorizada
e acumulada; essas questões se misturam a outras derivadas da própria
programação televisiva (conhecer cantores e músicas populares, personagens de
programas de humor etc.). A elas agregam-se saberes da cultura popular, como
provérbios, ou o mais prosaico sentido dicionarizado das palavras. Como são
saberes diversos, propostos aleatoriamente e, sobretudo, descontextualizados,
responder acertadamente a uma pergunta depende muito do fator acaso, e não de
conhecimentos efetivos adquiridos em uma formação. Se aqueles que não portam
quaisquer conhecimentos específicos encontram em cada sucesso a satisfação de,
afinal, saber mais do que supunham, para o portador de algum conhecimento

379
cada resposta correta representa tão-somente mais uma ultrapassagem do risco
de fracassar.
Assim, de uma proposta que aparenta ser, à primeira vista, bastante
democrática, por oferecer as mesmas chances de sucesso a qualquer um que
se disponha a ela, emerge outra bem mais autoritária, que desqualifica o
conhecimento por nivelá-lo e reduzi-lo a itens de uma lista; um nivelamento
– todos os saberes se equivalem e são válidos em si, quando postos em
relação ao objetivo, no caso, a premiação – que, longe de estabelecer uma
horizontalidade dos saberes, como propõe Lévy,28 é extremamente vertical.
Vejamos as condições em que essa verticalidade se constrói: o saber é
nobre, emblemático e diferenciador, sinaliza o programa na roupa de gala
que os universitários portam; o saber tem uma função e uma utilidade:
garantir o status social e permitir que se ganhe dinheiro; o saber é uma via
para o conforto: se você sabe, pode ganhar mais dinheiro e sem grandes
esforços, esses excessivos e inglórios esforços do trabalho;29 o saber tem um
caráter progressivo e acumulativo: quanto mais se sabe (isto é, quanto mais
se responde acertadamente as questões), mais se ganha e mais se tornam
possíveis os prêmios maiores, caminhando-se em progresso para o sonho
dourado do “primeiro milhão”. Esta é a tradução popular, espetacular e
mediática do programa de Sílvio Santos para o lugar do conhecimento e da
formação continuada na atual ordem da cultura.30

28 Em Lévy, a hierarquização vertical dos saberes remete ao seu entrelaçamento com o poder,
enquanto a horizontalização implica necessariamente uma transversalização: os saberes
valem e são efetivos conforme os contextos em que são demandados e só nesse sentido eles
se equivalem, não sendo hierarquizáveis por si.
29 Como foi observado anteriormente, liberar o corpo é, em primeiro lugar, liberá-lo da

utilização de sua própria força no trabalho para cultivá-lo como imagem de si e da própria
competência, altamente privilegiados no setor de serviços. Este o sentido utilitário do
estudar, proposto já no início dos anos 70 com a expansão dos cursos superiores promovida
por instituições particulares de ensino.
30 Uma tradução que não deixa de legitimar-se, se considerarmos os sistemas de provas e de

exames vestibulares que dão acesso ao ensino superior em nosso país.

380
O Show do Milhão não abandona os formatos dos demais programas de
auditório do SBT31 nem a bem-sucedida fórmula do Baú da Felicidade. A
humildade e o entusiasmo pleno de esperanças são a senha para a plena
aceitação do candidato pelo apresentador e a via para o sucesso das respostas
às questões que vão se encadeando. Para um candidato com tais qualidades,
Sílvio Santos fará todo o possível para que as etapas representadas pelas
questões sejam vencidas, interrompendo, questionando, sugerindo, às vezes
quase indicando a resposta correta. Aos que se apresentam nessa posição de
humildade e reverência perante o “seu” Silvio, o Show do Milhão funciona,
assim, similarmente à Porta da Esperança. Com o que se sonha, quantas
moedas são necessárias para realizar esse sonho, até que ponto se deseja
continuar sonhando ou o sonhador se dispõe ao risco para realizar seus
sonhos, são essas as verdadeiras questões que movem o programa, para as
quais as que demandam respostas corretas oferecem sustentação, daí ser
indiferente a que temas elas se referem.32 À medida que o candidato avança,
de resposta para resposta (com os valores de premiação aumentando
expressivamente: mil, 10 mil, 50 mil, 100 mil...) não só ele próprio vai se
potencializando (o sucesso funciona como um operador de intensidades)
como o programa progride num crescendo de exaltação nervosa (música que
cria um clima de suspense, maior intervalo entre a resposta e sua

31 Sílvio Santos realiza seus sonhos, sejam eles financeiros ou afetivos; a visibilidade
televisiva é o caminho da realização pessoal; a televisão é legitimadora das aspirações
individuais. A “novidade” dos reality shows não é, assim, tão nova. Um candidato à
felicidade conta ao apresentador, em Namoro na TV, o motivo de ter escolhido seu programa
para declarar-se enamorado de uma mulher sua vizinha: declarar-se em público a levaria a
reconhecer a sinceridade de seu afeto e a seriedade de suas intenções, daí a necessidade de
que todos soubessem de seu afeto para que fosse reconhecido por ela como legítimo e
verdadeiro.
32 O quiz show não é novo no Brasil, tendo feito grande sucesso na era do rádio e nas

primeiras décadas da televisão. Nessa época, entretanto, tratava-se, com mais freqüência, de
promover personagens que portavam um saber específico qualquer, como o nome das ruas
de uma cidade, nomes de filmes e seus respectivos atores, músicas e seus intérpretes,
literatura etc. Esse era o formato, por exemplo, de O Céu É o Limite, comandado por J.
Silvestre nos anos 60. Embora seja possível argumentar que o formato atual do Show do
Milhão procura corresponder às demandas atuais de saberes múltiplos e não-especialistas,
penso que a leitura que proponho corresponde mais ao estilo dos demais programas de
Sílvio Santos.

381
confirmação...). Rapidamente o candidato é destacado como estrela, criando-
se novos suspenses em torno de sua progressão ao sucesso: sua participação
é interrompida, entra outro participante, cria-se a expectativa de seu retorno,
no mesmo dia ou no programa seguinte. O candidato que ascende à condição
de estrela transforma-se em promotor do programa nos breaks publicitários,
é mostrado em seu cotidiano, agora pleno de novas promessas de felicidade,
progressivamente maiores quanto maior seja o prêmio já acumulado.
Trata-se, portanto, para cada participante, não só de ser “bem-sucedido”,
mas, principalmente, de compreender claramente qual a via única e
reconhecível pelos demais de se aceder ao sucesso e à realização da existência,
de forma que a possibilidade de quaisquer outras vias não chegue sequer a ser
pensada ou posta no horizonte dos possíveis. Os programas populares de Sílvio
Santos estabelecem, assim, um continuum entre sua própria retórica, a da
linguagem publicitária veiculada por sua rede e a dos sonhos acordados de seus
telespectadores. Como anunciou insistentemente a campanha publicitária de
fim de ano (2001) da Marabrás, rede de lojas de móveis padronizados para o
consumo popular que conta com a dupla neo-sertaneja Zezé de Camargo e
Luciano como garotos-propaganda, “a Marabrás realiza os seus sonhos”.
Confirmando a veracidade do mote, depoimentos de pessoas que tiveram seus
“sonhos realizados” desdobram-se nos intervalos comerciais da programação da
SBT (e de outros canais). O que merece ser destacado aqui é a presença de um
modus operandi que não é específico do estilo de Sílvio Santos nem exclusivo da
mídia televisiva, mas, sim, que reflete um modo de funcionamento próprio das
sociedades de massa e suas formas de controle.
Este é um aspecto extremamente importante para a compreensão do
papel da mídia nos Estados modernos, que, como reiteradamente venho
argumentando, ocupa de modo bem mais eficiente o lugar dos dispositivos
institucionais vigentes nas sociedades disciplinares do século XIX e início do
XX em sua função de regulação dos vínculos sociais e da vida expressiva dos
corpos. Esses modos de controle da vida no espaço social foram analisados

382
por Enriquez (1990) em seu estudo sobre a organização dos Estados
modernos e classificados em um quadro, que reproduzo na seqüência para
melhor compreensão dos argumentos aqui apresentados. É importante
observar que, conforme adverte o próprio autor,

“os diferentes tipos de Estado que ressaltamos podem combinar (e


combinam sempre) diversos modos de controle e podem sempre, desviando-
se e evoluindo, adotar meios de controle que não parecem pertencer, de
início, à sua essência. O quadro que propomos em seguida só tem, então,
valor indicativo. Atribuir-lhe maior importância seria conferir-lhe o papel de
um ‘tipo-ideal’ que não lhe pode ser atribuído”

Modo de controle privilegiado Modo de controle associado


Democracia liberal desempenho sedução
dissuasão
Democracia programada ideologia comum organização
desempenho
Despotismo organização controle direto
fascínio
Militarismo controle direto dissuasão
saturação
Ditadura fascínio controle direto
ideologia
organização
Totalitarismo fascínio organização
saturação controle direto

quando os Estados tornam-se
autoritários
(Enriquez, Da horda ao Estado; psicanálise do vínculo social, 1990: 290)

Conforme vimos há pouco (Nota 27), o controle por desempenho é


predominante nas sociedades democráticas liberais atuais (com freqüência
combinado com o da ideologia comum das democracias programadas, das

383
quais os EUA são exemplares: republicano ou democrata, a alternância
desses dois partidos no poder não altera significativamente o funcionamento
político norte-americano). Enriquez indica, entretanto, no quadro, o modo de
controle por saturação como o momento em que os Estados se tornam
autoritários. Diz ele que o controle por saturação ocorre quando o poder já
não tem o projeto nem os meios de controlar as consciências, só lhe restando
investir na direção das manifestações e das condutas, e pode ser reconhecido
quando um só texto é repetido indefinidamente, com

“monopolização da expressão do discurso social e a censura


generalizada, que privam todas as classes de seus próprios desejos e
meios de expressão. Dessa maneira, não somente as classes (como os
grupos sociais e os indivíduos) tornar-se-ão sem voz e serão roubados de
uma parte essencial de sua existência social, como ainda, mesmo não mais
acreditando no discurso oficial, eles não poderão mais encontrar as
palavras para exprimir seus pensamentos e, no final das contas, correm o
risco de serem privadas completamente de sua capacidade de pensar e de
julgar. O discurso doutrinador infinitamente repetido nos jornais, nos
cartazes, rádios e televisões tem menos o objetivo de condicionar as
populações (mesmo que em alguns casos o consigam) do que o de
inscrever, em seus comportamentos (em princípio) e em seus
pensamentos (em seguida), uma mensagem que não tem valor em si
mesma, mas que visa reprimir e inibir toda emergência de ação ou de idéia
inovadora. Com o espírito totalmente saturado, os indivíduos tornam-se
apáticos e prontos não a crer, mas a fazer simplesmente o que lhes é
pedido. O aparelho de influenciar de Tausk, aparelho imaginário, se
metamorfoseou em realidade social [grifo nosso]33” (Enriquez, 1990: 288-289).

33Quando indiquei, na PARTE I, CAPÍTULO 1 – DENTRO, ser a psicose o ponto de partida para
minha abordagem dos dispositivos comunicacionais em sua função de agenciamento da
subjetividade humana, apresentei (p. 197-198) uma descrição da máquina de influenciar de
Tausk, destacando sua observação: “Porque las máquinas, creadas por el espíritu ingenioso del
hombre (Witz) a imagen misma del cuerpo humano, son una proyección inconsciente de su
propia estructura corporal. El espíritu del hombre no puede abandonar su relación al
inconsciente” (Tausk, 1977: 207). Reencontramos, agora, com Enriquez, a máquina imaginária de

384
Se podemos reconhecer mais facilmente a saturação nos Estados
totalitários, com seus mecanismos de censura e controle estrito de todas as
formas de expressão que não as da ideologia dominante (dos quais o Estado
soviético foi exemplar, no século XX), ela não deixa de estar presente em
situações excepcionais (como ocorreu e continua ocorrendo em relação ao
atentado terrorista aos EUA de 11 de setembro, que acionou mecanismos de
controle da circulação de pessoas característicos dos Estados ditatoriais,
totalitários ou militaristas, gerando fundadas inquietações sobre o destino das
democracias ocidentais), além de ser facilmente reconhecível nos procedimentos

Tausk metamorfoseada em realidade social como eficaz dispositivo de controle social pelo
discurso mediático. Enriquez dá continuidade a sua análise do poder nas sociedades modernas
(Parte B, Cap. III, Poder, morte e amor: o sexual e a morte à sombra do poder: 290-318)
identificando a forma predominante dos discursos que as percorrem, segundo dois modelos: a) o
paranóico, com suas características dogmáticas, reveladoras da “verdade oculta das coisas”,
fechado em si mesmo e que anuncia uma sociedade futura idealizada, cujo propósito jamais é
violento, pois o que ele propõe é a reconciliação dos seres em um mundo purificado, honesto,
respeitoso dos direitos e dos rituais associados à lei organizadora, no qual cada um realizará
somente o que lhe está prescrito; é em seu pólo paranóico que os discursos assumem uma forma
plena, harmônica, consensual, e se fazem ouvir porque colocam questões verdadeiras para as
quais os sujeitos não encontram em si mesmos a resposta (“como lidar com o caos, as
transformações, a aceleração tecnológica e a violência de um mundo turbilhonado pelas forças
não-ligadas do Fora? Como conquistar a paz em um mundo habitado por impuros, traidores e
marginais perturbadores da ordem?”, perguntam os dedicados comentadores do caos e da
violência urbana, como, por exemplo, Datena, de Cidade Alerta, da Record), isto é, eles se fazem
ouvir porque são discursos sobre o social, sobre seu funcionamento e fundamento, daí sua
indissociabilidade com a própria estrutura social; b) o perverso, para o qual a única lei possível é
a do gozo, é um discurso que enuncia a possibilidade de gozar e simultaneamente não se sentir
sujeito à lei do outro, pois a cada um é prometida a possibilidade de ser o produtor da própria
lei; o discurso perverso faz desejar a sujeição com a promessa de um gozo maior, o da aliança
entre pulsão e razão, do transbordamento e da civilidade. Seu projeto é a edificação de uma
organização, sendo, assim, um discurso da razão, do contrato e do cerimonial. “Discurso da razão,
já que o perverso é mestre na arte da demonstração, pois lhe é necessário convencer o outro a se
dobrar frente à sua lei, não porque ela reflete o seu prazer, mas, como dizia Hegel, porque reflete
a razão atuando no mundo (...) ele deve tudo explicar para mascarar a arbitrariedade de seu
desejo. Discurso do contrato, pois o perverso não existe sem parceiro. No ‘casal perverso’ se
estabelece a regra do jogo, o círculo dos sofrimentos, são especificados os acessórios úteis para
alcançar o gozo, que se enuncia como um dever de gozo, ao qual nenhum dos protagonistas pode
escapar. (...) O essencial é que a realidade seja conforme as estipulações sobre as quais os dois
parceiros se colocaram de acordo. Paradoxo prodigioso: a lei do desejo culmina com a expulsão
do desejo em seu aspecto essencial de impulso e de vida. (...) Discurso do cerimonial que faz a
volúpia. O perverso precisa de um espaço teatral, de trajes precisos e idênticos; para ele só a
repetição da cena, dos gestos e do aparato dá existência à sua volúpia. Sem essa ‘cerimônia
secreta’, sem os rituais que a acompanham, sem a criação de um mundo próprio do qual ele é o
único mestre e o único ‘diretor’, ele seria remetido à dramaticidade habitual dos outros seres
humanos, ele cairia de sua categoria de deus” (Enriquez, 1990: 300; 301; 302).

385
cotidianos da mídia televisiva, que, perante determinado acontecimento,
multiplica informações sobre ele até esgotá-lo, isto é, até que ele deixe de ser
mobilizador do interesse de seu público. A saturação é também um mecanismo
privilegiado em relação a eventos gerados pela própria mídia, como
determinados programas destacados como carros-chefe por sua novidade. É o
caso, por exemplo, do Show do Milhão, de Sílvio Santos, ou dos reality shows No
Limite, da Rede Globo, e Casa dos Artistas, da SBT, tratados como verdadeiros
acontecimentos sociais de importância decisiva para a vida das populações. Se
desejamos identificar a disposição autoritária de nossas instituições sociais, a
espetacularização de si mesma promovida pela mídia televisiva oferece-se como
sua mais clara expressão.

O Sexual e a Afetividade na Mídia

A sexualidade, ou mais apropriadamente, o sexo na mídia televisiva é


apresentado com múltiplos contornos. Caminha-se da abordagem
cientificizante que afirma sua naturalidade, sua saudabilidade, às formas de
presentação mais propriamente narcísicas, em suas múltiplas simulações de
pareser. De qualquer forma, comum aos programas informativos/educativos
e aos de espetacularização reiterativa, sejam quais forem as formas de
construção do corpo próprio e da sexualidade, investe-se a busca de sua
legitimidade, de sua naturalidade e de sua variabilidade já devidamente
mapeada e apresentada como um leque de escolhas possíveis disponíveis ao
telespectador.
De um lado, é forçoso reconhecer que esses modos de presentação do
corpo e do sexo atuam de maneira desculpabilizante, em um aparente
"progresso" em relação à abordagem que os antecedeu, na qual o sexo era
um sujo segredo que só podia ser enunciado de forma velada ou metafórica:
hoje é reiteradamente afirmado que na dimensão sexual tudo é possível e
legítimo, desde que haja consentimento entre as partes envolvidas na relação,

386
o que aparentemente colocaria a mídia em consonância com os debates
contemporâneos sobre a ética como dimensão da intercorporeidade e da
intersubjetividade, que tomam as ações humanas como “negociáveis” e
instituintes da relação intersubjetiva. “A cada um seu próprio sexo”, já
indicava Foucault como via necessária para libertar o corpo e a sexualidade
de suas modelizações deletérias.
Entretanto, trata-se de outra coisa, na televisão e na ordem da cultura
do corpo livre e saudável. Foucault indicava, com seu invocativo, a dimensão
trágica, imanente e imperativa da sexualidade (no sentido nietzscheano do
amor fati), assim como o equívoco dos discursos sobre sua repressão, que, ao
serem formulados, elidiam a possibilidade de reconhecerem-se como
também produtores de determinadas formas de apreensão e modelização da
sexualidade, reconhecimento que os colocaria na mesma vertente das
estratégias denunciadas como repressivas e em relação às quais se
propunham como liberadores. Falar do sexo, fazer falar o sexo, produzi-lo
reduzido ao casal e ao sujo segredo familiar teria sido o grande investimento
da cultura dita repressiva; em seu lugar, indicar sua irredutibilidade ao
discurso (o sexo e a vida pulsam no silêncio), tal foi o caminho proposto por
Foucault, ao dirigir-se, no terceiro volume de sua História da sexualidade (O
cuidado de si), para as formas expressivas da amizade e para as estratégias
de singularização, numa superação da reivindicação identitária que marcou
os movimentos de afirmação sexual a partir dos anos 60.
Na mídia e na cultura do corpo e do sexo “liberados”, por sua vez, não
se trata de reconhecer a dimensão trágica que marca a construção do corpo
próprio, isto é, como cada um constrói um corpo sem órgãos para si
determinado não por suas “escolhas conscientes”, por livre-arbítrio, mas
conforme aquilo que podem seu corpo e sua alma no encontro com outros
corpos. Nas modelizações mediáticas, trata-se de propor ao corpo sempre
novos imperativos que reduzem a subjetividade (e a sexualidade) a um “si-
mesmo sem outro”, reiterando e validando a formidável inversão do

387
imperativo categórico kantiano apontada por Zizec (O super-ego pós-
moderno, FSP, Mais!, 23.05.1999, p. 7-8) como característica das sociedades
de “reflexibilização”: “você pode [posto que livre], logo, você deve”.
Nesse sentido, o Programa Livre (SBT), comandado por Babi, é
exemplar. Até recentemente, o mote que marcava o momento que dava
sentido ao programa era “Vamos falar de sexo!”34 Para esse “falar de sexo”,
era convidado um especialista (psicoterapeuta, médico, sexólogo ou outro
profissional ligado às psico/biotecnologias sexuais, de “professores” de strip-
tease e de sedução a estilistas da moda produtores de objetos-fetiche,
proprietários de sex-shops etc.).
Após breve exposição de seu pensamento, eram dirigidas perguntas
ao especialista, recebidas por e-mails ou originadas da platéia. Todas as
perguntas eram pontuadas por Babi, que, reiteradamente, afirmava a
normalidade das múltiplas expressões sexuais, desde que consentidas pelos
parceiros. Sendo esse o propósito, algumas questões demandavam
verdadeiros malabarismos por parte da entrevistadora e do entrevistado
para sustentarem seu discurso positivado. Por exemplo, uma das perguntas
enviadas por e-mail e submetida ao crivo do “saber psi” pôs em cena a
coprofilia, ou, mais precisamente, a coprolagnia: uma jovem perguntava pela
normalidade do desejo de seu namorado de que ela defecasse sobre seu
corpo de forma a amplificar a excitação sexual na relação. Um instante de
breve constrangimento, quebrado com a usual “naturalidade e abertura” da
apresentadora face à variabilidade dos comportamentos sexuais ao dirigir-se
ao entrevistado da noite – “E daí?” –, deu espaço para as argumentações de
praxe: “Realmente, algumas pessoas sentem prazer etc.”, seguidas de
“recomendações” à consulente: “Se isso não te incomoda, se te dá prazer,

34 Quando Babi foi contratada pela SBT, migrando da MTV, onde apresentava seu Erótica,
transportou para o novo programa, como quadro principal, o que garantira seu sucesso na MTV.
Recentemente, esse quadro começou a perder efetividade, sendo praticamente extinto do
Programa Livre. Atualmente, esse programa propõe-se como um amplo painel de tendências
comportamentais as mais diversas, sem entretanto, abandonar sua proposta original de ser ao
mesmo tempo de entretenimento e “ïnformativo/educativo”, apresentando o que está
disponível no “mercado” do comportamento.

388
tudo bem. Mas, caso esteja te incomodando, converse com seu namorado
etc.” Comentário da Babi, ainda atravessado por indisfarçável
constrangimento: “É, existem outras formas de se obter prazer, converse com
seu namorado...” O que podemos observar nessas breves considerações sobre
a questão proposta é uma postura “politicamente correta” travestida de
postura ética ao destacar o livre acordo entre os parceiros que elide,
entretanto, seu caráter perverso sob a forma de “alternativa” ao prazer, que
tende a uma “naturalização da perversão”. Como já foi observado
anteriormente, não existe uma sexualidade “normal” que se oponha a uma
desviante, já que ela é atravessada por múltiplas manifestações que podemos
identificar como derivadas do polimorfismo perverso do corpo infantil.
Entretanto, o que caracteriza a relação perversa não é a experiência vivida
dos corpos em suas expressões pulsionais, mas seu caráter contratual, que
introduz o sistema das pulsões num sistema de regras que sujeita as pulsões
a uma racionalidade que as desintensifica para torná-las administráveis. Há,
assim, um tênue limite entre a ética “negociada”, que resulta das afetações
dos corpos, e o acordo prévio, contratual, dos parceiros sobre suas formas de
obter prazer.
Exemplar também foi a resposta de um psicólogo sexual (sic) às
inquietações e conflitos de um telespectador quanto a uma preferência por
pessoas do mesmo sexo que o perturbava e estava interferindo na relação
com sua namorada. Comentando ligeiramente as noções da psicanálise a
respeito da escolha homossexual como “ultrapassadas”, o psicólogo,
provavelmente ansioso por dar uma resposta tranqüilizadora e
“despreconceituosa”, negou enfaticamente a dimensão subjetiva dessa
preferência (que, na psicanálise, está determinada pelas escolhas objetais que
se operam associadas ao complexo de Édipo e aos processos de
identificação), indicando-a como disposição natural e biológica/genética.
Com essa resposta, o psicólogo não só evitou/apaziguou as inquietações
manifestadas pelo telespectador como o incitou a precipitar-se na direção de

389
sua “tendência natural”. A apresentadora, como costuma agir perante os
especialistas seus convidados, imediatamente aderiu a sua recomendação,
reafirmando-a. Caso a recomendação do especialista fosse outra, sua adesão
provavelmente também ocorreria da mesma forma, confirmando uma
disposição cada vez mais freqüente na mídia televisiva, em sua concepção de
liberdade de expressão: nela, todas as “verdades” se equivalem, todas são
"válidas", não havendo espaço para inquietações ou incertezas. O
telespectador/público-consumidor deve ter sua demanda prontamente
satisfeita, qualquer que seja a forma de realizar essa satisfação. Ao ser
entrevistado um proprietário de sex shop, os pequenos dispositivos de
amplificação do prazer tomaram essa mesma direção: falos artificiais
(godemichès), vibradores, "bolinhas chinesas", pequenos chicotes e máscaras
de "Tiazinha", objetos "sádicos" e "masoquistas" normatizados como opções
do teatro S-M foram discutidos como opções disponíveis para a satisfação do
consumidor. A lógica que move essas apresentações é sempre a mesma: se
está no mercado "legal", seja ele de comportamentos ou de produtos, é bom,
é legítimo, e, como tal, pode ser consumido sem inquietações. O mercado
legitima a si mesmo.
Se em Programa Livre esses dispositivos podem eventualmente ser
celebrados quando surgem na palavra de um convidado, assumindo o
mesmo valor que as "abordagens psicológicas" e práticas comportamentais as
mais diversas, conforme o princípio de equivalências necessário para um
"programa livre", no mesmo horário, um programa sem a mesma pretensão
de ser educacional e informativo, Noite Afora (Monique Evans, Rede TV!), faz
deles, em primeiro plano, seu motivo. Em um cenário de "alcova" (com
decoração similar a de muitos motéis), Monique Evans os consagra como
norma, estendendo-os como elementos significantes da relação "livre" com o
corpo do outro e como formas privilegiadas de livre expressão do si-mesmo,
acentuando até o limite do grotesco o caráter narcísico/perverso de boa parte
das manifestações sexuais. Durante todo o programa, os entrevistados/

390
convidados – esportistas e cantores que atuam como modelos para revistas
eróticas, garotas-Playboy, atores de filmes pornô, drag quens, transformistas
etc. – são celebrados e provocados por seus atributos físicos sexuais e
incitados a expor esses "atributos" ou a falar de sua vida sexual. A
apresentadora os submete a um assédio sistemático, embora informal. A
respeito dessas formas de expressão da sexualidade, observa Vignoles (1991:
111-112):

"Não somente o sádico mas o onanista mesmo tem o outro como meio e
somente como meio. A perversidade inerente à utilização da boneca inflável ou
do falo artificial como instrumentos de desfrute não se pode justificar pela
solidão de uma prática egoísta que não faria mal a ninguém. Pois esses objetos
substitutivos da atividade libidinal supõem a visão de outrem como meio e
repousam em uma destituição já operada da subjetividade do outro. É preciso
ter negado o ser razoável como fim em si na pessoa do outro e tê-lo renegado
em si mesmo, para vir a utilizar como meio de prazer a representação da pessoa
humana, para tratar, quando se está em situação de carência, o corpo do outro
como facticidade sem transcendência, como corpo des-subjetivado, matéria sem
espírito, alma ausente. Em outras palavras, a perversidade em relação a outrem
repousa em uma negação anterior da pessoa humana, em uma primeira
perversão da relação com outrem. A perversidade não tem outra origem que
não ela mesma, isto é, a ausência ou a morte já dadas a outrem. (...) Outrem
jamais foi ou é como se já não fosse, quando não é nada além de uma reunião
mecânica de peças ou de lugares lúdicos sobre os quais a libido pode
desempenhar suas variações. O outro do perverso é o corpo-brinquedo evocado
pela boneca sobre a qual a criança simultaneamente exerce simbólica e
realmente sua crueldade. Não mapa da ternura ou geografia do amor, mas
cardápio da libido, de uma libido desafeiçoada pela própria afetividade e que já
não sabe desejar, pois não tem (ou já não tem) outro sujeito desejante".

Essa leitura do perverso corresponde à atitude da apresentadora em relação


ao corpo de seus entrevistados: corpos-brinquedo, objetos possíveis de gozo,

391
valorizados por seus atributos específicos. Notável no programa Noite Afora é a
afirmação, insistentemente destacada pela apresentadora, de que "há muito
tempo não mantenho relações com ninguém", "não tenho um amor", revertendo
tal condição – que lamenta enfaticamente, embora o faça com expressão de
indiferença – como estatuto "simbólico" que autoriza os quadros que apresenta
como "normais", altamente desejáveis e facilmente realizáveis, bastando, para
isso, "assumir o próprio desejo sem culpa e sem censura". Um estatuto extenso,
que, virtualmente, procura capturar até mesmo pessoas "morais e religiosas":
com a mesma ênfase, a apresentadora não cessa de lembrar ao telespectador ser,
ela própria, bastante moralista e inclusive evangélica, sendo seu trabalho tão
legítimo e digno como qualquer outro; "Deus tem me abençoado", declarou em
entrevista no programa Gabi (de Marília Gabriela, no mesmo canal). O que aqui
se traduz não é uma contradição nem uma superação da associação sexo-pecado
estabelecida pela tradição judaico-cristã, mas uma reiteração de sua
indissociabilidade: “pecar”, penitenciar-se e ser perdoado para novamente
“pecar” constituem ainda o principal “tempero” do triste erotismo ocidental.
O furor normativo, “politicamente correto”, das sociedades de
reflexibilização não tem limites para seu exercício. Vimos anteriormente que
a cristalização das transformações culturais e comportamentais em níveis
suportáveis no campo social operam-se por uma permeabilidade às
reterritorializações (molares) dos fluxos desterritorializados (moleculares)
que desfazem a efetividade e os planos de consistência dos territórios
existenciais (molares e moleculares, em sua processualidade) anteriormente
vigentes. Esses territórios, resistentes ao próprio desmanchamento,
incorporam elementos dos fluxos desterritorializados, os assimilam e os
desinvestem de sua potência transformadora. As emergências singulares de
transformação são, assim, rapidamente assimiladas coletivamente e feitas
retornar como novas matérias de expressão com que contam os corpos para a
efetuação de suas intensidades no real. Entretanto, dessa processualidade
composta por linhas flexíveis e mutantes, a reterritorialização opera uma

392
extração que as converte em linhas duras, performativas, assimiláveis pela
parte homogênea do social, que irão constituir, por sua vez, segmentaridades
duras que passam a atuar, já desinvestidas de suas próprias intensidades,
não só como modelos disponíveis no mercado cultural, mas também como
desintensificações das linhas flexíveis e mutantes. É isso que confere ao
mundo normativo, administrado e tecnicizado contemporâneo suas
características ora perversas, ora paranóicas.
Na novela Porto dos Milagres (Rede Globo, 1º-2º semestre de 2001),
adaptada de Porto dos Milagres e A descoberta do Brasil pelos turcos, de Jorge
Amado, uma das personagens, Maria do Socorro, é apresentada como
mulher sensual que encontra seu prazer em ser desejada por todos os
homens,35 como ocorre com as mulheres típicas dos romances de Jorge
Amado, como Dona Flor, Gabriela, Tieta: belas, sensuais, expressivas, que
buscam viver prazerosamente e sem conflitos sua sexualidade. No
desenvolvimento da trama, ela é posta em confronto com a irmã,
extremamente devota e severa nos gestos e no vestir, continuamente
atormentada por turbulentas fantasias eróticas que só fazem acentuar sua
distância dos homens (e seu intenso desejo por eles) e amplificar sua
demonização das atitudes da outra, que surge a seus olhos como a própria
imagem da devassidão e do pecado; caracteriza-se, assim, no
desenvolvimento da trama, com esses desenhos de personagens, a
pequena cidade tropical praieira, exuberante e conservadora, em que
sensualidade à flor da pele e controle moral/religioso fazem o jogo e a
trama dos desejos. Num dado momento, Maria do Socorro descobre o
bordel da cidade – o Centro Noturno de Lazer – e encanta-se com esse
lugar no qual as mulheres podem expor claramente seu desejo do desejo
dos homens. A partir desse momento constitui o bordel como seu fator de

35 Na intersubjetividade, o desejo é sempre desejo do desejo do outro. Não deixa de ser


interessante que, para se caracterizar uma personagem, ela seja definida exatamente por
uma condição que é, como posição de desejo, comum a todos. O que diferencia as demandas
é a maneira como se imagina as estratégias de situar-se perante esse desejo.

393
a(fe)tivação, um pólo de atração irresistível no qual se desenham todas as
possibilidades de viver seu desejo de ser desejada, e passa a freqüentá-lo,
integrando-se ao grupo das “quengas” e envolvendo-se sempre em várias
peripécias para escapar ao controle do marido. Transforma-se na “Belle de
Jour” da novela (pelo fato de freqüentar o bordel à tarde, mas sem as
angústias e ambigüidades da personagem do filme de Luis Buñuel),
entregando-se afirmativa e alegremente ao novo trabalho. Quando
descoberta em sua dupla vida pelo marido, e após alguns confrontos e
tentativas mal-sucedidas de negociação da nova situação entre os dois,
escolhe permanecer no bordel. Uma frase, repetidamente dita pela dona
do bordel, marca essa sua escolha: a de que ser “quenga” é, nela,
“vocacional”. A novela trabalha “positivamente” a associação entre livre
expressão da sexualidade feminina e a prostituição como uma de suas
vias, como já fizera anteriormente em Laços de família, com uma
personagem universitária que, vendo-se na condição de mãe solteira,
transforma-se em garota de programa como estratégia de sobrevivência;
essa personagem conquistara plenamente a simpatia e aprovação do
telespectador, o que provavelmente incentivou a Globo a manter uma
personagem com perfil similar na novela seguinte.

Pode-se até mesmo reconhecer, como têm indicado Janine Ribeiro e


Priolli, que, com a construção dessas personagens femininas, os autores de
telenovelas estejam propondo uma flexibilização das atitudes do
telespectador em relação à mulher independente que vive livremente a
própria sexualidade com vários parceiros (ainda que representada, num
primeiro momento, como “galinha”, “prostituta”, o que corresponderia a
uma sua representação coletiva negativizada, para em seguida relativizá-
la, “humanizá-la”). Flexibilização que, para ser assimilada pelo público
das telenovelas em sua demanda de “finais felizes”, geralmente propõe,
como destino final dos personagens, saídas mais toleráveis e menos
dissonantes, por serem valorizadas socialmente, para sua situação: Maria

394
do Socorro transforma-se, de “quenga”, em empresária-proprietária do
Centro Noturno de Lazer, o que a desloca novamente para a posição da
mulher que pode escolher um parceiro e não ceder ao desejo de todos e,
sobretudo, bem-sucedida economicamente; uma outra personagem,
também “quenga”, abandona o bordel e casa-se com o marido
abandonado por Maria do Socorro. Em Laços de família, a garota de
programa finalmente realiza seu ideal romântico, casando-se com seu
namorado de adolescência.

Às vezes, na mesma Rede Globo (por exemplo, em programas de


auditório como o Domingão do Faustão, ou nos de humor, como Casseta &
Planeta), e muito freqüentemente em redes concorrentes, uma outra
construção do tema ou personagem que conquistou o público, mais
imediatista (que podemos entender como mais sensacionalista), se sobrepõe à
apresentada na telenovela.36 Construir sua programação a partir de
referências a temas e situações propostos pelas redes de maior penetração
tem se tornado, aliás, uma prática cada vez mais habitual em canais com
menores índices de audiência, confirmando ser a televisão auto-referente e
autofágica. Uma assimilação temática que não significa combater no mesmo
campo de “padrão de qualidade” da concorrente, mas sim estabelecer uma
concorrência “paralela” pelo sobreinvestimento de algumas extrações de um
personagem com contornos mais simplificados do que, no outro canal,
produzido para segmentos mais amplos de público, se apresenta de forma
mais cuidadosa e matizada. Assim, no mesmo período da novela Porto dos
milagres, na Rede TV! – programa Superpop comandado por Luciana Gimenez
– foi promovido um concurso de “a melhor Socorrinho”. Concorreram
mulheres jovens, de 18 a 20 anos. Se, entretanto, a referência do concurso é a
personagem Maria do Socorro, de exuberante e brejeira expressividade na
telenovela, o que as candidatas extraem e assimilam dessa expressividade

36
Com freqüência derivando-o, por extração, dos próprios personagens apreciados pelo
público e assimilando seus traços aos dos próprios atores, o que reforça, para o público, as
indiferenciações personagem/ator.

395
surge reduzido a sistemas de gestos bastante estereotipados em corpos que
se esforçam, para o auditório e a câmera, em simular uma sensualidade que
as aproxima mais propriamente do padrão das modelos que apresentam os
serviços tele-eróticos que, na madrugada, preenchem os intervalos
comerciais de alguns canais. Uma simulação que se produz como pura
assimilação do visível, isto é, como assimilação de uma pura exterioridade,
como costuma ocorrer também com a afetação “feminina” do homossexual,
que exagera traços da mulher, não necessariamente os mais “positivos”, de
uma forma que se aproxima do caricato. Algumas das participantes do
concurso, entrevistadas pela apresentadora, admitiram não terem tido ainda
quaisquer experiências sexuais, embora se declarassem plenamente
identificadas à personagem que lhes servia de referência e, como ela, também
“safadinhas”.
O que resulta, enfim, como extrato, é não a eventual proposta de
flexibilização das atitudes em relação às várias formas de manifestação da
sexualidade, mas sim a positividade da associação sensualidade-
disponibilidade ao outro-figura da “safadinha” (termo que tende a ser mais e
mais positivado pelos programas de entretenimento, inclusive alguns infantis),
quando não garota de programa/prostituta (particularmente a primeira, que, às
vezes re-significada como “acompanhante”, surge como alternativa de trabalho
rentável bastante positivado por algumas mulheres jovens, numa extensão da
atividade sexual à apreensão mercantilizada do corpo e da auto-imagem pela
ordem do mercado e seu sistema generalizado de equivalências).

É provável, dada a dominante asssociação da sexualidade à


“sacanagem”,37 que é como o excesso, o ilimitado, a violência e o contínuo do

37 Fazer uma “sacanagem” é, em seu sentido original, agir deliberadamente com a intenção de
prejudicar o outro. A tradução da intensidade como intenção provavelmente legitima que o termo
seja utilizado para expressar um acordo tácito entre parceiros de cada um extrair, da relação, um
máximo de prazer para si mesmo: “Vamos fazer uma sacanagem gostosa”. No jogo erótico, o
desejo é tão mais intenso quanto mais se supõe que a sedução ocorre como um poder de fazer
ceder ou, mais ainda, como um poder de se apropriar do corpo do outro sem seu consentimento,
como Sade procurou demonstrar. À “sacanagem” se associa a expressão “fazer mal”, bastante
presente nas expressões populares para se referir à sedução amorosa: “Ele ‘fez mal’ pra ela” .

396
erotismo são apreendidos pelo homem na tradição judaico-cristã – na medida
em que nossa cultura, diferentemente da oriental politeísta, jamais contou com
uma ars erotica, acentua-se a assimilação redutiva do sexo à idéia do pecado
original –, que essa assimilação imediata do que se destaca como mais visível,
como traço, da personagem Maria do Socorro (ser sensual/ser “quenga”) não
seja exclusiva das “candidatas” que se apresentaram no Superpop, devendo
corresponder também à percepção que têm boa parte dos telespectadores da
figura da mulher, na medida em que, como síntese conectiva e disjuntiva,
remete a uma sua apreensão conforme as equivalências sexualidade
“normal” ⇒ ”mulher respeitável” ⇒ ”conjugalidade” ⇒ ”parceira exclusiva”
⇔ sexualidade “excessiva” ⇒ ”mulher desfrutável” ⇒ “não-conjugalidade”
⇒ “compartilhável no circuito das trocas”, bastante persistente ainda na
apreensão excludente da mulher ora na posição de companheira, ora como
objeto de satisfação sexual imediata pelo universo masculino, apesar de a
maior afirmação da mulher, de seu direito de domínio do próprio corpo e de
sua liberdade de expressar o próprio desejo ter aberto significativamente,
após os anos 60, linhas de fuga a essas territorializações. De qualquer forma,
essa dicotomia/traço se destaca e se confirma no Superpop: a essa
assimilação, corresponde o sobreinvestimento promovido pelo programa
desse traço na maior parte de seus quadros, que o confirma positiva e
reativamente como forma, se não única, das mais dominantes de assimilação
da expressão da sensualidade feminina. O que não implica, necessariamente,
que a essa apresentação e incitação de superexposição sexual correspondam
respostas uníssonas que a ratifiquem. Ela pode determinar, e parece ser
mesmo o que ocorre mais freqüentemente, uma resposta contrária: a de se
atuar de maneira mais contensiva dessa expressividade, de maneira a não se
diluírem excessivamente as diferenças entre “mulher liberada/garota de
programa”, ou, ainda, o aparecimento de outras formações subjetivas
intermédias entre adesão e contenção, como evidenciam as pesquisas nas

397
quais as mulheres declaram não se reconhecerem na representação que a
mídia faz delas (www.tver.zip.net/pesquisas.htm).

Quando dizemos que, hoje, a televisão é auto-referencial, que se


alimenta de si mesma, que faz de si mesma a principal notícia e principal
acontecimento, é interessante atentarmos não só para o que se produz em
uma mesma rede (em que programas remetem a outros programas da grade
de programação), mas também ao entrelaçamento que se forma entre as
redes que concorrem por suas fatias de audiência. É desse entrelaçamento, no
qual os mesmos referentes são reproduzidos ou reinventados, com suas
redundâncias, imitações, oposições, que podemos cartografar o plano de
realidade produzido pelo dispositivo televisivo e seus diagramas de força
que determinam formas hegemônicas de relação entre os campos de
visibilidade e os campos de enunciados, dos quais resultam formas de Saber
e de Poder bastante resistentes a alterações, por submeterem as
transformações que ocorrem na cultura a filtragens muitas vezes limitantes e
despotencializadoras, reinvestindo-as em territorialidades mais
reconhecíveis e assimiláveis, mesmo que reduzidas já a puras estereotipias
que, como tais, desenham-se como perversamente construídas.
A insistência com que a televisão, de maneira generalizada, investe o
tema sexual merece, por isso, atenção. O simples argumento de que é isso
que interessa ao público não deve nos iludir. Inevitavelmente, em tempos de
valorização da livre expressão sexual e de correspondente desintensificação
da relação amorosa, é irresistível o potencial de captura que personagens
como Maria do Socorro ou concursos como o de “melhor Socorrinho”
exercem sobre telespectadores e, principalmente, telespectadoras. Há, hoje,
uma cultura de legitimação da atividade das garotas de programa como
opção de trabalho, apesar de toda a ambigüidade das respostas a essa
cultura,38 o que faz da escolha de “Socorrinho” uma aparentemente feliz

38Em “Meninas em pé de guerra”, a Revista da Folha (FSP, 5.11.2000, no. 9, no. 443: 10-16)
apresenta essa ambigüidade e, aparentemente, uma dificuldade crescente de diferenciação

398
associação entre prazer e autonomia econômica. A associação sexo-dinheiro
nos encontros homem-mulher, até recentemente identificada como atividade
marginal de prostituição e associada à impossibilidade de algumas mulheres
de se afirmarem de maneira integrada (como esposa, por exemplo) no espaço
social, deixa progressivamente de ser circunscrita aos espaços de exclusão
para ser representada como escolha possível, como atividade útil mensurável
pelas equivalências monetárias do mercado, sendo, assim, assimilada tanto
como trabalho quanto como postura auto-valorativa (“Sou independente
economicamente, mas prefiro sair com homens que pagam as contas e me
dão presentes caros; eles têm de me valorizar se querem fazer sexo comigo”,
declara uma entrevistada em Noite Afora) e, como tal, integrada às sociedades
de reflexibilização atuais, que resultam das mutações das sociedades
disciplinares/homogêneas que as antecedem.39

entre garotas de programa, identificadas como “primas”, e as “patricinhas” (mulheres jovens


de classe média, universitárias ou profissionais do setor de serviços, que seguem
estritamente a moda e apresentam-se como modernas) que freqüentam os mesmos lugares
noturnos da moda. A reportagem apresenta o mapa do conflito: as mesmas roupas, o mesmo
comportamento, os mesmos carros, os mesmos referentes modelizadores, às vezes o mesmo
status de “universitárias”, a quase mesma disposição de conhecer rapazes, com a diferença
de que as primeiras cobram (e bem) e as segundas não. Os homens, os “mauricinhos”,
segundo a reportagem, incapazes de diferenciar umas e outras, adotam com ambas o estilo
de abordagem utilizado com as garotas de programa, o que gera alguns conflitos e revolta
nas “patricinhas”. Entretanto, em uma posição caracteristicamente masculina que se
constrange por ter de pagar o que desejaria lhe fosse oferecido pela mulher por desejo e
atração, um deles observa, de forma condescendente: “As ‘primas’ que freqüentam esses
lugares não vão para faturar, mas para resolver pequenos problemas”. Não é essa,
entretanto, a disposição dessas garotas de programa (que se diferenciam das que atuam nas
ruas), que, além de fazerem suas escolhas entre os que as abordam, vêem em sua atividade
um negócio altamente rentável, superior a qualquer outro trabalho em que pudessem
investir suas forças. Indicadas por outros freqüentadores como mais discretas, nas atitudes,
que as “patricinhas” que a elas se opõem, não são diversas das “Rule Girls” (garotas que
seguem regras) que, como observa Zizec (O super-ego pós-moderno, FSP, Mais!, 23.05.1999:
5), “são mulheres heterossexuais que seguem regras precisas relativas a como se deixar
seduzir (só aceitar um encontro quando se é convidada com pelo três dias de antecedência,
por exemplo). Embora essas regras correspondam aos usos e costumes que, em tempos
passados, moldavam o comportamento de mulheres à moda antiga, ‘caçadas’ ativamente
por homens à moda antiga, o fenômeno das ‘Rule Girls’ não representa um retorno aos
valores conservadores porque hoje as mulheres escolhem livremente as regras que querem
seguir”.
39 Em 1977, Bruckner & Finkielkraut (1981: 84-85) já observavam: “Diante do cliente que lhe

paga e com isso compra sua docilidade, a prostituta é esse corpo que se verá, pela duração
de um michê, mobilizado, requisitado por um poder exterior, subjugado por forças novas,
posto a serviço de outras finalidades. Basicamente chamada a submeter-se, mediante

399
O que merece ser destacado em um programa televisivo como o
Superpop, assim como Noite Afora (Monique Evans, Rede TV!) e em quadros
de Domingo Legal (Gugu Liberato, SBT), Domingão do Faustão (Fausto Silva,
Globo), Festa do Mallandro (Sérgio Mallandro, Gazeta), Te Vi na TV (João
Kleber, Rede TV!) e outros que se distribuem pela programação televisiva de
rede aberta, é a representação da sexualidade e da sensualidade
invariavelmente reduzidas a gestualidades e linguagens que se
indiferenciam da representação pornográfica e suas esterotipias. Quando são
apresentados os “testes de fidelidade”, por exemplo, é na tensão com essas
representações que eles se constróem. É ao mesmo tempo e num mesmo campo
que se afirma a positividade e inevitabilidade da liberdade sexual e a
necessidade de se manter o parceiro amoroso sob vigilância estrita para
mantê-lo como exclusivo, sinalizando ser esta a única condição desejável no
mercado concorrencial do sexo: a liberdade é ótima, desde que a do outro
não nos afete ou nos ameace em nossas prerrogativas ou na sustentação de
nossa imagem perante os demais.40 Testar o parceiro, submetê-lo às provas

retribuição, aos fantasmas de um homem, a realizá-los sem protestar (...), a não romper com
um roteiro implacável, uma vez que o usuário a remunera apenas para povoar com seres de
carne e osso suas próprias imaginações eróticas (...) a prostituta não é um corpo que goza, se
comove, ri, chora, se dilacera, se extasia, sofre; é um corpo que trabalha, que representa uma
personagem particular numa peça particular escrita pelos clientes, é um corpo que encarna o
teatro íntimo de um estranho e, por isso, será chamado a fazer calarem-se nele seus
caprichos e suas vontades (a menos que lhe seja pedido). Corpo que assinala a total
incompatibilidade entre o assalariado e a perversão [grifo nosso], exatamente porque ele exerce
uma profissão e se vê por isso arrastado para os domínios fantasmáticos de outros corpos
que o constrangem. A prostituição é um emprego entre outros, e a sociedade burguesa está
atrasada em relação a seus próprios axiomas quando ela a condena em nome dos bons
costumes ou da proteção da infância. Isso exatamente quando a venalidade amorosa
consagra a abstração do trabalho, ‘pura atividade criadora de riquezas’ (Marx), e não é mais
imoral que o trabalho de um operário especializado, de um mineiro, do funcionário
burocrático, do artista, do escritor, da datilógrafa, não é mais abjeto nem menos abstrato,
cinicamente concentrado no resultado (o dinheiro) e indiferente aos meios de consegui-lo.
Dizer que as prostitutas trabalham (...) significa dizer que ela tem vários corpos ou, melhor,
que a mulher pública se liberta do mito do corpo próprio porque faz dele um meio de
ganhar a vida”.
40 A mesma lógica domina os atuais discursos em defesa do livre mercado: ele sem dúvida é o

mais desejável num Estado democrático regulado pela livre concorrência entre empresas, já que
as oportunidades devem ser iguais para todos e os monopólios são mal-vistos. Entretanto, fica
autorizado que a competição se estenda a todos os domínios: competição entre empresas,
concorrência interna entre departamentos, rivalidade entre indivíduos, candidatos políticos,

400
de resistência da sedução, decepcionar-se se ele cede, ameaçar uma ruptura
para em seguida submeter-se aos argumentos sedutores e moralizantes do
apresentador, que passa da dramatização da descoberta (“você quer
continuar, você quer mesmo descobrir a verdade?”) à posterior redução do
evento “traição” a um incidente não-renovável e insignificante perante “o
amor que os une” assume a função de um reasseguramento e de uma
advertência: “que a situação não se repita, pois o mundo tem olhos e nada
pode lhe assegurar que, numa próxima vez, uma câmera não esteja
registrando suas ações”.
A alegre cultura da visibilidade mediática e da superexposição da
intimidade de seus personagens encontra, assim, nesses pequenos
entretenimentos propostos aos telespectadores, seu pleno sentido: tornar
desejável, posto que inevitável, o poder que nos sujeita.

Os Códigos e as Senhas de Inclusão

“Testes de fidelidade”, “pegadinhas”, “videocacetadas”, trotes


telefônicos, alegres e inúteis competições e provas que se multiplicam,
construção de mundos artificiais com suas próprias regras fazem do mundo
televisivo o espaço no qual o desejo humano de potência faz a aprendizagem
de suas mediações. Aquele que, capturado por uma “pegadinha”, se exalta,
ameaça reagir agressivamente ou se sente confuso, sorri desconcertado tão
logo lhe é anunciado que está, sob a mira da câmera, no show de Faustão, de
Gugu, de Mallandro. Imediatamente apaziguado, acena para a câmera,
aproveita os poucos minutos de chance que a televisão está lhe fornecendo,
graciosamente, de sair do anonimato. “Estive na mídia, tornei-me famoso,
amanhã serei reconhecido na rua; penso que me saí bem, todos viram como
reagi”. A exaltação emocional que há poucos instantes lhe retirara o chão

universidades. Aceitas as regras, valem todos os meios para se tornar vencedor. No final, que os
bons triunfem e os maus sucumbam. Vae victis!, nenhuma comiseração com eles...

401
torna-se irrisória perante essa nova comoção que lhe traz a própria
visibilidade. Talvez ele pense, depois, o que aconteceria se não tivesse
respondido adequadamente tão logo foi anunciado tratar-se de uma
brincadeira e não de uma agressão por um outro tão anônimo como ele.
Talvez se impressione com a própria capacidade de alterar-se, de deslocar-se
de um estado emocional para outro tão rapidamente. Talvez considere que
nada pode ser levado demasiado a sério, que a vida nos reserva surpresas às
quais devemos ser competentes para responder, fazendo eco aos argumentos
de Skinner em seu Walden II (ver INTRODUÇÃO, Nota 64) a favor de uma
sociedade previamente planejada: “Encorajamos o senso de humor como
uma boa forma de não tomar um aborrecimento a sério”.
“Pegadinha”, “teste de fidelidade”, “telegrama legal”, “trote
telefônico”, que importa? Ser retirado da própria rotina com a notícia de que
sua loja foi assaltada ou está sendo consumida por um incêndio e descobrir
em seguida que está falando com Jô Soares, que alívio e que alegria! Embora
o coração tenha disparado e a mão tateado rápida e inutilmente o fundo da
gaveta em busca do remédio salvador, não é incrível que um amigo tenha se
lembrado dele e fornecido seu telefone para incluí-lo no Programa do Jô?
As infindáveis invasões cotidianas reais a que estamos sujeitos
encontram nessas pequenas brincadeiras da mídia televisiva seu contraponto
como simulacro, e talvez, com suas repetições, elas possam sinalizar uma
intenção educativa, ainda que não planejada, das respostas emocionais ao
inesperado, principalmente em uma sociedade desigual como a que vivemos,
na qual as tensões no contato com o outro estão sempre prontas a se
transformarem em conflito. Ser testado em seus limites físicos e emocionais,
propósito dos reality shows nos quais os participantes aceitam tácita e
previamente as regras, encontra nessas intervenções “espontâneas” e não
consentidas de antemão o duplo de um mundo que perdeu extensivamente
sua estabilidade e seus asseguramentos: no trabalho, nas ruas, nas relações
amorosas, na afirmação identitária, pouco justifica a sustentação das certezas

402
sobre a possibilidade de preservação da existência. Ajustar-se às regras do
mundo, se não assegura uma certeza maior, é sempre uma possibilidade de
não ser excluído de antemão. Resta perguntar, por outro lado, se essas
mesmas reiterações não funcionam mais consistentemente como incitações à
invasão dos limites do outro, trabalhando no sentido oposto ao educativo e
contribuindo para uma aceleração da dissolução dos já frágeis vínculos
sociais em uma sociedade excessivamente individualista e temerosa frente a
mudanças.
É isso o que sugerem os mais bem-estruturados reality shows, cujo
discurso é claramente perverso, no tripé que o organiza: da razão, do contrato,
do cerimonial. Em No Limite, da rede Globo, as regras arbitrárias, as provas e
desafios absurdos, a ritualização das exclusões nas passagens de uma prova
a outra configuram, para os participantes, que, se nada mais tem sentido, é a
estrita sujeição à exterioridade e a obediência cega e sem contestações às
regras do mundo artificial criado pelo programa que assegura a cada
participante o acesso ao próprio triunfo. O fato de a produção do programa
selecionar os candidatos visando formar um quadro representativo das
aspirações individuais no atual quadro social (a aspirante a modelo, a
romântica sonhadora, o jovem trabalhador, a dona de casa, o homem de meia
idade que deseja afirmar sua juventude etc.), sujeitando todos às mesmas
regras, já por si evidencia suas intenções modelizantes e suas sinalizações do
como ser e agir na moderna sociedade pós-industrial e mediática. Como
produtora dos códigos e signos de inclusão, ainda que de uma maneira
pouco sensível à variabilidade das paixões humanas e extremamente
totalizante, a eficácia da televisão é sem limites.

403
CONCLUSÃO

ESCHER, Band of Union, 1956

M U N D O S
POSSÍVEIS
This is not exactly what I mean
Any more than the sun is the sun,
But how to mean more closely
If the sun shines but approximately?
What a world of awekwardness!
What hostile implements of sense!
Perhaps this is as close a meaning
As perhaps becomes such knowing.
Else I think the world and I
Must live together as strangers and die –
A sour love, each doubtful whether
Was ever a thing to love the other.
No, better for both to be nearly sure
Each of each – exactly where
Exactly I and exactly the world
Fail to meet by a moment, and a word.
(Laura Riding, The World and I)

Gostaria que um livro, (...), nada fosse além das frases de que é feito (...).
Gostaria que esse objeto-acontecimento, quase imperceptível entre tantos outros,
se recopiasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem que aquele a quem
aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reivindicar o direito de ser seu senhor,
de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro deveria ser. Em suma,
gostaria que um livro não se atribuísse a si mesmo esse estatuto de texto ao qual
a pedagogia ou a crítica saberão reduzi-lo, mas que tivesse a desenvoltura de
apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, estratégia e
embate (”choc”), luta e troféu ou ferida, conjunturas e vestígios, encontro
irregular e cena repetível. (Foucault, 1972, p. 10)
POR UMA ÉTICA E
UMA ESTÉTICA
DA EXISTÊNCIA

A diferença e a repetição tomaram o lugar do idêntico e do negativo, da


identidade e da contradição, pois a diferença só implica o negativo e se deixa levar
até a contradição na medida em que se continua a subordiná-la ao idêntico. O
primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define
o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da falência da
representação, assim como da perda das identidades, e da descoberta de todas as
forças que agem sobre a representação do idêntico. O mundo moderno é o dos
simulacros. (...) Todas as identidades são apenas simuladas, produzidas como um
“efeito” óptico por um jogo mais profundo, que é o da diferença e da repetição.
(Deleuze, 1988: 15-16)

À medida que fui introduzindo, neste trabalho, os conceitos que me


serviam ao pensamento, associei-os, principalmente nas Notas, a leituras do
estado da cultura contemporânea e suas produções, ora literárias, ora
cinematográficas, ora televisivas. As Notas, assim, constituíram-se como o
espaço dos desdobramentos, dos restos a serem ditos ou da outra coisa a
dizer à medida que as idéias iam se encadeando e sugerindo derivações para
outros textos. Como experiência, essas Notas surgiram-me, assim, em muitos
momentos, como a possibilidade de trabalhar com o hipertexto e sua
conectividade. Na PARTE II, CAPÍTULO 4 – FORA-DENTRO, retomei parte dessas
leituras, sem pretender ser exaustivo, para a análise de alguns programas
televisivos, de forma a verificar como se expressam esses recortes do estado
da cultura nas presentações e representações de mundo e suas figuras, seus
personagens e suas “pessoas” na programação televisiva.
Essa forma de estruturação do trabalho – que ensaia explicitar sua
própria processualidade e, com freqüência, suas contradições –, se surgiu-me
como inevitável, foi também estratégica para a constituição do plano

406
diagramático proposto para a leitura dos aspectos ético-estético-políticos da
programação televisiva atual, que espero, se não tê-lo realizado, pelo menos
ter esboçado seus contornos para trabalhá-los melhor em outro momento.
Penso que essa estratégia permitiu-me abrir algumas linhas de fuga em
relação à produção discursiva corrente sobre a televisão, tanto aquela mais
informada, a das produções acadêmicas sobre o campo comunicacional,
como a de cunho mais opinativo exposta em colunas especializadas dos
jornais ou as manifestadas pelos telespectadores.
Paralelamente, foi nas passagens do campo psicanalítico, tal como me
é possível apreendê-lo, para as rearticulações conceituais da esquizoanálise
de Deleuze & Guattari, passagens às quais sempre me é necessário retornar e
rearticular, que procurei compor alguns planos que assegurassem, ainda que
minimamente, consistência às minhas leituras. Entre a representação e a
presentação, isto é, entre a linguagem como representação das figuras do
pensamento e a linguagem enquanto simulação, passagem, para as figuras
propiciadoras do pensamento, esses foram também os pólos de oscilação
molar/molecular de minhas leituras.
Sem pretensão à originalidade, mas tão somente a de deixar que as
marcas que singularizam meus percursos se simulassem em algumas matérias
de expressão e construíssem a tessitura de meu pensar, algumas vezes compus
minhas leituras com produções discursivas já dadas e aceitas, das quais não
cesso de me aproximar e me afastar; outras, propus-lhes alternativas, ao
recorrer, para elas, a outros referentes conceituais, de origens as mais diversas,
que emergiram à medida que fui formulando meu campo problemático. Um
dos motores desta estratégia, aliás, foi a verificação da efetividade dos conceitos
que tenho freqüentado para a formação de um campo compreensivo e
contextualizado sobre a atual produção mediática, transversalizando-os com
múltiplas e diversas outras produções humanas que constituem nosso ethos e as
formas de apreendê-lo.

407
Provavelmente, alguns dos referentes aqui expostos podem ter
parecido, à primeira vista, excessivos para a realização das leituras a que me
propus. No curso da escrita, e sem evitar demasiadamente um certo
automatismo e suas intuições, procurei incorporá-los à medida que
apareciam como significativos, mesmo que só para registrá-los para uma
possível retomada futura. Se alguns autores surgiram-me, durante a escrita
do texto, como “naturais” e imediatamente reconhecíveis como suficientes e
necessários, outros se impuseram, imperativos, de uma forma tal que me
parecia impossível continuar a escrita sem passar por eles. Nesse sentido, sua
presença não deixou de assumir um caráter curativo, na medida em que me
permitiu tanto corrigir e ajustar as leituras que me acostumara a fazer deles
como de algumas idéias que se apresentaram ao iniciar o texto, idéias essas
que prometiam um percurso mais linear e tranqüilo em seu
encaminhamento. Aceitando-os e deixando-me dirigir por eles, foi possível
estabelecer algumas conexões mais consistentes entre várias idéias que têm
me atraído em meus percursos, não raro em aparente ou franca oposição.
Assim ocorre, por exemplo, com Espinosa, Sade e Nietzsche. As
conexões entre eles não podem se justificar simplesmente por Sade e
Nietzsche terem sido leitores de Espinosa, como, aliás, a maior parte dos
pensadores que se depararam com sua obra nos séculos XVIII e XIX. Ler
Espinosa, por si só, não implica, de imediato, pensá-lo adequadamente, como
o espinosismo bem o demonstra (inclusive a leitura que dele faço, ainda que
intermediada por pensadores rigorosos como Chaui e Deleuze; afinal, há a
maneira como também leio esses seus leitores, leitura na qual me deparo com
meus próprios limites). Poucos textos, na história da Filosofia, foram tão
abertos a equívocos como o de Espinosa, e não por uma falta de rigor em seu
pensamento. As paisagens que Espinosa pôde desenhar com seu recurso à
demonstração geométrica é que se fazem, em muitos momentos,
insuportáveis aos que o lêem, pelos atravessamentos que sua leitura convida
a fazer das idéias já formadas e consolidadas em outras paragens.

408
Sade e Nietzsche, por sua vez, não são menos abertos a equívocos e a
leituras “perturbadas”, principalmente quando clivados por noções como
moralidade, perversão, individualismo, nazismo etc., que não raro os
transformam em “profetas” de um mundo sem outrem. Não são autores
que, de imediato, nos atraem a atenção em nosso curso natural de formação,
salvo, eventualmente, por curiosidade.
Só a curiosidade, entretanto, não é suficiente para mantê-los como
interlocutores, pois, embora seja a curiosidade o primeiro motor de nossas
entradas na existência, de nosso ir cegamente ao encontro do mundo e suas
matérias ativadoras de nossos desejos – o que faz das crianças “filósofos”
potenciais –, só permanece desses encontros aquilo que nos marca mais
profundamente e se particulariza, marcas que propõem questões que nos
incitam a retornar a elas, ou, mais ainda, que nos impedem ignorá-las. É
assim que não cessamos de retornar ao que nos afeta, sendo nessas
reiterações, nessas repetições, nesses ir-e-vir que as pequenas diferenças são
extraídas, com suas variações e suas modulações. Assim, só chegamos a elas,
e com elas permanecemos e duramos, por serem essas marcas que fazem de
nossas experiências e nossas trajetórias algo de absolutamente singular e
único, nem sempre significável pelo discurso. São necessários muitos
silêncios, muitos desertos, muitas rupturas, suspensões, retornos e repetições
até que possamos tocar os contornos daquilo que nos consiste. Não se trata,
jamais, de, na praia, perante a imensidão azul, de avançarmos cegamente
mar adentro, mas de continuamente testarmos os limites terra-mar,
verificarmos até onde podemos avançar sem que nossos próprios limites se
desmanchem sem possibilidade de recuperá-los, ainda que minimamente,
ainda que somente o necessário para não nos desagregarmos, regra de
prudência tanto perante o que nos restringe como perante o que nos amplia a
existência. É necessário sempre perguntar se o mundo que se descortina à
nossa frente é para-nós, se com ele potencializamos nossa existência, se suas
promessas de alegria servem a nós e àqueles que amamos.

409
Assim, aproximar Espinosa, Sade e Nietzsche para compor um quadro
compreensivo no qual mover minhas leituras implicou desfazer, ainda que
relativamente, seus campos, para poder retomá-los em conjunto com outras
leituras (ainda que limitadamente, para os propósitos específicos deste
trabalho), particularmente as da pragmática esquizoanalítica de Deleuze &
Guattari, da diagramática de Foucault e da conectividade de Pierre Lévy.
Foi portanto a partir das considerações sobre meus que-fazeres e de
meus atratores psíquicos que procurei chegar à composição de alguns
esboços sobre a atual programação televisiva brasileira. Não me pareceu
possível transpor modelos, aplicá-los seca e mecanicamente ao que se me
presentava, mas compor, com essas leituras, planos que, postos em relação
de proximidade, funcionassem uns como interpretantes de outros. Por
exemplo, da leitura de quadros da programação televisiva, foi-me possível
reconhecer e situar melhor o sistema de Sade. Da pergunta pelas afetações
corpo-técnica-mídia, apreendi melhor algumas passagens que faz Espinosa
da idéia que se forma na afetação corpo-imagem para a idéia dessa idéia na
alma. Da pergunta pela maneira como a mídia filtra os processos de
transformação socioculturais e os captura em linhas de segmentaridade
duras, foi-me possível elaborar uma melhor compreensão da potência
disruptiva e transformadora das forças do Fora. Não se tratou, portanto, de
aplicar conceitos com vistas a uma interpretação da cultura ou do estado de
arte da televisão, mas de compreender e ensaiar, nos movimentos dos
conceitos, a produção de novas operacionalidades para esses conceitos, de
forma a compor uma cartografia de determinados estados de cultura e dos
meios que os veiculam e os efetuam, como linguagem, para os que a eles se
expõem.
Assim, procurarei, a título de conclusão, desenhar agora um quadro
geral sobre o estado presente da mídia televisiva e a formação de seus
promotores a partir dos recortes que propus dos programas de auditório que
se inserem na grade de programação da televisão de rede aberta.

410
O primeiro campo problemático que as leituras aqui realizadas mantêm
aberto é o da ética. Tema candente nos debates sobre os meios de
comunicação, penso que foi me possível sustentar, embora não o colocando
como foco principal, o argumento de que a restrição de cada área de atividade
ao seu próprio Código de Ética Profissional como regulador de suas práticas,
mesmo que se faça necessário como ponto de partida, está distante, entretanto,
de ser suficiente.1 A ética é crucial, por exemplo, no Jornalismo,2 e sabemos
que os critérios de objetividade propostos à sua prática – que tanto buscam
evitar que a subjetividade do jornalista em suas aproximações ao fato
contamine a compreensão da notícia, falseando-a em relação ao
acontecimento, como reduzir, com a utilização de uma linguagem
padronizada e direta, os ruídos na comunicação, além de, claro, garantir a
linha editorial do jornal3 –, não só se mostram insuficientes como, levando em
conta os argumentos aqui apresentados, acabam por produzir recortes da
realidade que não só se apresentam excessivamente esquemáticos como
acabam por inscrever essa realidade em formas de verdade bastante
fechadas, ao ponto de se dispensar ou se evitar o esforço de reconhecê-la em

1 Não nascemos humanos, nos tornamos humanos; da mesma maneira, não nascemos éticos, nos

tornamos éticos. O Código de Ética equivale à polidez – adquirida a partir da aprendizagem das
regras sociais sobre o bem agir com o outro – como primeira condição para se chegar à ação ética,
sem, entretanto, constituir-se, ela própria, como uma virtude ética. Os discursos marcados por
atitudes “politicamente corretas” que atualmente minam as relações interpessoais ao impor-lhes
um padrão uniforme, cultivados principalmente pelos promotores da cultura do bem-estar a-
qualquer-preço, são, nesse sentido, exemplares: mantêm-se as exclusões, os preconceitos, as
diferenciações, só que de uma forma elegante e polidamente perversa que põe os “politicamente
corretos” a salvo de quaisquer inquietações ou conflitos morais. Uma atitude ética não implica a
plena e lisa aceitação do outro “por princípio”, mas sim o reconhecimento da diferença que ele
introduz em nosso campo, isto é, da intensidade com que nos afeta e nos propõe formas de
existência e de devir-outro.
2 Mesmo não o privilegiando como meu objeto, penso que as idéias expostas até este

momento permitem-me formular algumas considerações sobre o Jornalismo sem fugir


excessivamente ao que minha proposta delimitou.
3 Os critérios de objetividade, ao prescrever a forma de apresentação da notícia, o recurso a fontes

confiáveis (vale dizer, “autorizadas”) para validação da informação, o agendamento das pautas
etc. não deixam espaço, ao jornalista, para seu exercício de estilo (compreendendo o estilo como
singularidade que se constrói nas afetações dentro-fora, nos entrelaçamentos entre os campos da
visibilidade e dos enunciados); esta possibilidade fica reservada, ainda que limitadamente, aos
comentaristas em suas colunas assinadas. As tradicionais divisões entre jornalismo informativo,
opinativo, analítico etc. correspondem a uma verdadeira divisão do trabalho e às resultantes
lutas concorrenciais por prestígio no interior das redações.

411
abertura para outros possíveis.4 Não por acaso, das práticas de comunicação
que se constituem como campos próprios e específicos, o Jornalismo é o que
mais consistentemente busca efetuar-se e efetivar-se pelo caminho racional
da objetividade sem parênteses (cf. Maturana, 1999: 248-249 [ver PARTE I,
CAPÍTULO 1 – DENTRO, Nota 4]), reforçando seus argumentos com a
espetacularização da notícia que ele promove como estratégia de captura de
seu público. Podemos mesmo dizer que a espetacularização é tão mais
intensa e necessária quanto mais se pretende garantir a univocidade na
transmissão/apreensão de um acontecimento, como Goebbels bem o
compreendeu e promoveu no Estado nazista. Paradoxalmente, é esse mesmo
caminho da objetividade sem parênteses na apreensão “racional e objetiva”
de um fato que autoriza um jornalista a fazer sua crítica às apresentações
sensacionalistas da notícia praticada por outros, acusando nestes uma “falta
de ética” por recorrerem a uma super-espetacularização de contornos mais
emocionais que racionais para a captura de seus públicos. Ora, não se trata
de mensurar graus de espetacularização, mas de perguntar por sua própria
necessidade para a validação de um argumento ou para se manter um foco
de atenção. Como vimos na PARTE I, CAPÍTULO 2 – DENTRO-FORA, há uma
diferença entre o refinamento de uma percepção, tornando-a mais acurada, e o
superdimensionamento de uma mesma forma de perceber pelo recurso a
“efeitos especiais” ou a enunciados que buscam reduzir um todo complexo a
uma fórmula única.
As delimitações que se procura fazer entre Jornalismo ⇐
Publicidade/Propaganda ⇒ Relações Públicas/Comunicação Organizacional e
Empresarial, que geralmente estabelecem ser a Publicidade o divisor de águas
entre aos critérios de objetividade da informação e a manipulação emocional,
evitam reconhecer que, como práticas comunicacionais, elas são, hoje,

4 Qualquer outra possibilidade de apreensão da realidade, face a essa univocidade,

submerge numa “espiral do silêncio”: perante o caráter saturante de um mesmo enfoque do


fato, aquele que propõe uma outra leitura, dissonante em relação à aceita por todos, tende a
silenciar-se ou simplesmente a não ser ouvido (cf. Barros Fo. 1995).

412
interdependentes e coextensivas. Não podemos, portanto, atribuir somente à
Publicidade5 a responsabilidade pela produção das ilusões que fazem da
realidade a superfície na qual depositamos nossos ideais de bem-estar,
conferindo a ela a quase exclusividade da direção emocional e das condutas do
leitor/telespectador/consumidor. Esses ideais são não só coextensivos, por
pertencerem à mesma tessitura do social inscrito pela cultura de consumo do
capitalismo pós-industrial, como constituem o próprio campo que fornece
direção e sentido às práticas discursivas presentes hegemonicamente nos
veículos de comunicação de massa, cuja função, como vimos, é
predominantemente de designação, de controle e de produção de signos
mundanos, sendo só secundariamente (quando o é) informativa.
Da mesma forma, os discursos que sustentam hoje a comunicação
interna nas organizações e destas com seus públicos externos pertencem a
esse mesmo circuito de produções saturantes de sentido que encontramos na
mídia e que visam à sustentação dos diagramas de poder dominantes. Os
profissionais encarregados da gestão dos fluxos comunicacionais nas
organizações são, por isso, convocados muito mais freqüentemente a
sustentar uma imagem desejável destas, conforme esperado por seu staff
diretivo, do que efetivamente trabalhar na conectividade entre o discurso
institucional e as vozes que o atravessam, o que lhes conferiria efetivamente
uma função política. Se a comunicação interna e externa das organizações
têm o importante papel de mediação, pela linguagem, dos processos de
mudança e de sustentação organizacional, de forma a evitar que prevaleçam
o caos e as inseguranças que a ameaçam, e aos que a ela pertencem, de
desestabilização, realizando, nesse sentido, o que chamo de “contínuo
trabalho de morte das instituições”,6 um amplo debate sobre seu lugar e

5 Cuja linguagem é predominante e deliberadamente construída como espetacularização da

existência e que seduz seus públicos com o recurso aos mecanismos ativadores da síndrome de
carência-e-captura apresentados na PARTE II, CAPÍTULO 3 – FORA.
6 Derivo este conceito, não apresentado no desenvolvimento deste trabalho, de esforços

para constituir uma linha de investigação, inspirada pela Análise Institucional (em
particular a de Enriquez) e pela psicanálise lacaniana, sobre o papel da Psicologia como

413
função se faz necessário, para muito além do trabalho com a imagem
institucional que lhe é designado.
Para que novas possibilidades de lidar com os fluxos comunicacionais
e seus efeitos sejam ensaiadas, os próprios critérios de formação dos
profissionais atualmente propostos pelas instituições de ensino superior
deveriam ser revistos. Quando se argumenta que outros formatos e
procedimentos comunicacionais esbarrariam nas limitações do público e se
dispersariam por não serem compreensíveis ou assimiláveis por ele, o que se
procura evitar é a própria responsabilidade dos que hoje ocupam uma
posição de poder e prestígio na mídia na sustentação dessas limitações.
Uma formação que investisse menos o “saber fazer bem-feito aquilo que se
espera no mercado” a favor de saber pensar o que se faz seria um primeiro
passo. É nesse sentido que olho criticamente a utilização, nos cursos de
Comunicação, das psicotecnologias promotoras do aggiornamento do eu, que
investem esse “saber fazer” e celebram seus resultados na maior
adaptabilidade às demandas do mundo daqueles que a elas se sujeitam.
“Formar estritamente para o mercado” não tem sido uma boa via para ações
transformadoras.
Se concordamos com a impossibilidade de a razão produzir efeitos
sobre as paixões, como procurei expor aqui, ou com as dificuldades de se
estabelecer uma conectividade razão transcendente-experiência vivida sem
que a experiência vivida não tenha sua voz seqüestrada na construção das

disciplina nos cursos de Relações Públicas, no período em que atuei como docente nesse
campo. Resumidamente, penso que o papel da comunicação numa organização qualquer
inscreve-se no entrelaçamento entre o real vivido (a-significante, não-dizível), o
imaginário organizacional e o simbólico que a legitima. A comunicação trabalha,
portanto, com componentes discursivos e os não-discursivos que os atravessam e tem
como tarefa a elaboração de linguagens que estabeleçam uma transitividade entre uns e
outros, produzindo, nessa transitividade, planos mínimos de consistência. Nem o vivido
no cotidiano de uma organização pode se sobrepor excessivamente ao imaginário
institucional e aos discursos que o sustentam, nem o imaginário e seus discursos podem
se sobrepor excessivamente ao vivido, sob o risco de desagregação de um e outro e do
inevitável desmanchamento dos laços de desejo que os sustentam.. Fazer o “trabalho de
morte das instituições” implica esse trabalho continuado de atenção aos fluxos de desejo
que as atravessam e as sustentam.

414
referências para o agir, ou, ainda, com a dimensão de delírio ou de
perversidade que inscreve todas as formas de poder, teremos de considerar
que os critérios de objetividade e de racionalidade conforme a ordem do
mundo dos procedimentos comunicacionais os sustentam como formas de
controle social pelo convite ao desinvestimento, por parte do fruidor dos
fluxos de informação que ele produz, do recurso à experiência vivida. Defini-
los, entretanto, como agentes de controle social não implica negativizá-los,
mas sim reconhecer-lhes limites e função. Como dispositivo de controle, a
comunicação, hoje, tem a inglória tarefa de funcionar como filtro das forças
não-ligadas do Fora, e ela se torna problemática não por essa função, mas por
pretender ser, no conjunto de forças que constituem os diagramas de poder
que buscam capturar essas forças e desintensificá-las, a central de
distribuição dos sentidos e valores, passando a se constituir, ela própria,
como produtora dos acontecimentos e não a que busca, em sua apreensão,
produzir novos entrelaçamentos entre o Ver e o Falar propiciadores da
emergência de novas vozes, com seus próprios entrelaçamentos. Afinal,
como bem o disse Nietzsche (Aurora, # 507):

“Mesmo que fôssemos loucos o bastante para considerarmos como


verdadeiras todas as nossas opiniões, não gostaríamos, porém, que elas
fossem as únicas a existir; ignoro por que razão a hegemonia e a onipotência
da verdade seriam desejáveis; já me bastaria que ela possuísse um grande
poder. Mas ela deve poder lutar e ter um adversário, devemos poder
descansar dela de tempos em tempos na não-verdade – senão ela se tornará
tediosa para nós, sem força nem gosto, e nos tornará assim também”.

É, portanto, o fascínio com o próprio poder que faz da mídia um


dispositivo que trabalha contra os próprios princípios de luta pela liberdade
de expressão e de conscientização das populações que lhe deram origem.

415
Para concluir, assumo como minhas as palavras de Michel Foucault
em “Introdução a uma vida não-fascista”, prefácio à edição norte-americana
(1978) de O Anti-Édipo, de Deleuze & Guattari. Se essas palavras não
pretendem ter o valor de uma prescrição, à maneira dos manuais da vida
cotidiana, penso serem finas sinalizações e uma boa “carta de princípios”
para todo aquele que trabalha por um mundo real e não somente utópico no
qual as riquezas humanas sejam efetivamente construtoras de uma arte de
viver contrária a toda forma de fascismo, esse “fascismo que está em todos
nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que
nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e
explora”:

• “Liberem a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante.


• “Façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação,
justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização
piramidal.
• “Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as
castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental
considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à
realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à
uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos
sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas
nômade.
• “Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o
que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e
não sua fuga nas formas de representação) que possui uma força
revolucionária.
• “Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de
Verdade, nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se
ele não passasse de pura especulação. Utilizem a prática política como
um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador das
formas e dos domínios de intervenção da ação política.

416
• “Não exijam da política que ela restabeleça os ‘direitos’ do indivíduo tal
como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder. O que é
preciso é ‘desindividualizar’ pela multiplicação e o deslocamento, o
agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o liame
orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador
de ‘desindividualização’.
• “Não se apaixonem pelo poder”. (Foucault, O anti-Édipo: introdução a uma
vida não fascista, in Cadernos de Subjetividade, num. esp. Gilles Deleuze,
1996, p. 199-200).

417
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444
ANEXO
QUALIDADE NA TV

DOCUMENTO

O que o Brasil pensa da TV


Pesquisa mostra por que a televisão mais atrapalha do que ajuda na educação de
crianças e jovens
O espírito da portaria nº 796, baixada pelo Ministério da Justiça em 12 de setembro e
que obriga a classificação da programação de TV por público e horário (a que o
lobby empresarial indevidamente tachou de "censura"), teve como base as
informações coletadas pela pesquisa Valores sociais e meios de comunicação de
massa, cujos levantamentos de campo deram-se entre junho e julho de 1997. As
conclusões da pesquisa – financiada pela Unesco – são estarrecedoreas e o
Observatório da Imprensa reproduz abaixo seus principais resultados.
A etapa qualitativa desse levantamento, realizada pela Retrato Consultoria e
Marketing, consistiu numa pesquisa exploratória, por meio da técnica de discussões
em grupo, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Goiânia, Recife e
Uberlândia. Essa etapa trabalhou homens e mulheres adultos (30 a 50 anos), pais ou
responsáveis por crianças e/ou adolescentes na faixa de 8 a 17, com dois filhos ou
mais nessa faixa etária, das classes sócio-econômicas B e C (critério Abipeme); e
crianças (10 a 14 anos) das classes sociais B, C e D+, que tivessem irmãos na mesma
faixa etária. Foram montados 18 grupos de discussão, entre 4 e 20 de junho de 1997,
assim distribuídos em cada praça pesquisada:
• Um grupo masculino, na faixa etária entre 30 a 50 anos, pertencente às
classes sociais B, C e D+ (critério Abipeme), pais e/ou responsáveis por
crianças de 8 a 17 anos, com dois filhos ou mais nesta faixa etária;
• Um grupo feminino, na faixa etária entre 30 a 50 anos, pertencente às classes
sociais B, C e D+ (critério Abipeme), mães e/ou responsáveis por crianças de
8 a 17 anos, com dois filhos ou mais nesta faixa etária;
• Um grupo misto, infanto-juvenil, na faixa etária entre 10 a 14 anos,
pertencente às classes sociais B, C e D+ (critério Abipeme), que tenham
irmãos nesta mesma faixa etária.
A fase quantitativa, realizada pelo Ibope, consistiu num estudo entre a população
das regiões brasileiras do Norte, Centro-Oeste, Nordeste, Sul e Sudeste (junto a
municípios em condições de capital, periferia e interior, com contingentes eleitorais
de até 20 mil eleitores, mais de 20 a 100 mil e mais de 100 mil eleitores), segmentada
entre pessoas com idades a partir de 30 anos, de ambos os sexos, pertencentes às
classes sócio-econômicas A/B, C, D e E (critério Abipeme), pais ou responsáveis por
crianças e/ou adolescentes, na faixa etária de 8 a 17 anos. Nesta etapa, foram
realizadas 2.000 entrevistas, entre 24 e 29 de julho de 1997.

Os resultados da pesquisa
Percebe-se, inicialmente, a preocupação dos pais com a educação dos filhos,
demonstrada não apenas pelo gap existente entre a educação recebida pelos adultos –

ii
em geral avaliada como pautada em um modelo repressivo – e aquela que desejam
oferecer aos filhos, mais liberal, como também com o cuidado necessário para criar
cidadãos éticos sem permitir, contudo, que sejam engolidos pela grande
competitividade que, acredita-se, regula as relações sociais atualmente.
O grande volume de informações nas quais a exacerbação do consumismo pela mídia
se mostra predominante, redunda, na visão dos adultos, na distorção dos valores
fundamentais que desejam transmitir aos filhos, uma vez que o desejo de "ter sempre
mais" tenderia a estimular o abandono de uma postura ética, substituindo-a pela "Lei
do Gérson" ("levar vantagem em tudo").
Observa-se a existência de uma dicotomia entre a lógica que rege o mundo "real" e o
papel da família, posicionada como um núcleo moral que tem como função precípua
garantir a soberania dos valores éticos frente a uma realidade em constante mutação e
com amplo acesso à informação. A necessidade de manter aberto um eficiente canal
de comunicação na família se coloca de de modo a fazer frente à imposição de
valores espúrios na formação dos jovens.
Além disso, existe a percepção de que a realidade familiar vem passando por
mudanças rápidas, principalmente com a entrada da mulher no mercado de trabalho,
dividindo assim, com terceiros (a exemplo da escola), a responsabilidade sobre a
formação das crianças. Soma-se a isso a mudança do papel dos filhos no interior da
família e da sociedade, que agora têm seus direitos ampliados e passam a ser vistos
como indivíduos com desejos e necessidades específicas.
Esta situação, associada à velocidade das mudanças do mundo atual assim como à
democratização do acesso à informação, teria ampliado a rede de relações sociais,
posicionando a família como apenas mais um dentre os diferentes ambientes por
onde a criança transita, tendo sido as influências em sua formação alargadas e,
portanto, convivendo constantemente com valores e comportamentos por vezes
opostos aos que encontra em casa.
Neste contexto, a televisão surge, como o principal veículo informativo (30% da
amostra) e, para muitos, formativo (28%) – sendo avaliada como uma importante
fonte de atualização de conhecimentos e como a mais importante forma de
entretenimento (40%) ao oferecer uma gama de programação a custo zero.
Como principais atributos positivos da televisão identifica-se sua importância como
um veículo que permite a constante atualização sobre os acontecimentos, colocando
o telespectador como um "cidadão do mundo", ampliando suas fronteiras e
permitindo que entre em contato com diferentes realidades. Mais ainda: sua
linguagem ágil, associada aos recursos visuais, imprime à informação leveza e
dinamismo, sendo considerada a audiência à sua programação como uma valorizada
forma de lazer.
Ressalta-se a importância atribuída aos programas televisivos como elementos
capazes de fomentar o diálogo familiar, muitas vezes atuando como um catalisador
frente a temas polêmicos e/ou constrangedores, quebrando assim as barreiras
porventura existentes. Além disso, especificamente junto às classes de menor poder
aquisitivo, a televisão atua como um estímulo para manter os filhos em casa (classe
A/B–0%; C–3%; D–8% e E–10%), amenizando os riscos associados ao mundo
externo, onde a violência e o uso de drogas se apresentam como ameaças bastante
próximas.

iii
Porém, em se tratando da influência que exerce no processo educativo, identifica-se
uma avaliação ambígua, posicionando-se para alguns como "mal necessário", que
"ajuda e atrapalha"; e para outros, mais conservadores, como essencialmente
prejudicial, posto que conflitante aos valores da família.
Desta forma, destacam-se como objetos de críticas:
• programação considerada inadequada, ao veicular, sem qualquer critério,
temáticas polêmicas (sexo, drogas), sendo responsável por uma certa
"distorção" da realidade;
• antecipação de temas e problemas (homossexualismo, traições, subornos,
violência – 25% –, drogas, prostituição), reduzindo o período de inocência, o
que, acreditam, pode gerar problemas comportamentais no futuro;
• usurpação do tempo de convívio familiar, avaliação esta identificada mais
intensamente junto aqueles que possuem diversos aparelhos, fazendo com
que a audiência assuma um caráter individualizado, na medida em que os
filhos assistem TV em seus quartos, dificultando desta forma sua regulação e
acompanhamento.
De forma a amenizar os efeitos provocados pela exposição a programas percebidos
como incompatíveis ou conflitantes com a educação que a família oferece, identifica-
se um conjunto de estratégias no sentido de evitar que a televisão assuma um papel
relevante no cotidiano dos jovens:
• estabelecimento de horário para dormir (27%), alegando a necessidade de
acordar cedo para estudar;
• as classes mais favorecidas ressaltam o oferecimento de atividades extra-
classe, tais como esportes, curso de línguas estrangeiras e informática,
buscando preencher de forma produtiva os horários livres das crianças;
• estabelecimento de uma relação direta entre a realização dos deveres
escolares e a audiência de televisão, ao deixar os filhos brincarem durante o
dia, fazendo com que as lições tenham que ser realizadas no período noturno,
horário com temática mais "pesada";
• apresentação de alternativas de programação, como a adesão às televisões por
assinatura, aspecto predominante junto às classes de maior poder aquisitivo.
Nesse sentido, destaca-se a valorização do canal de desenhos animados
Cartoon Network, principalmente como forma de entretenimento para as
crianças menores.
Torna-se interessante notar que os segmentos jovens, pesquisados somente na fase
qualitativa deste estudo, reconhecem integralmente todas as tentativas efetuadas
por seus pais no sentido de estabelecer mecanismos de controle à audiência irrestrita
à programação televisiva, demonstrando, por seu turno, estratégias próprias para
burlá-las. Assim, fingem aceitar as sugestões dos adultos quando estes afirmam não
ser o programa adequado às suas faixas etárias, deixando de assisti-los junto aos pais
e recolhendo-se em seus quartos, onde são, teoricamente, senhores dos aparelhos de
TV.
Mais ainda, dado o controle remoto, mudam rapidamente de canal ou desligam o
aparelho quando pressentem a aproximação dos adultos. Outros fingem dormir ou

iv
esperam que os pais adormeçam para que então possam, livremente, assistir ao que
melhor lhes aprouver.
Cabe ressaltar, contudo, que em linhas gerais, observa-se que os jovens tendem a
concordar com as orientações oferecidas pela família em termos da adequação da
programação de TV, cinema e vídeo às diferentes faixas etárias, sendo movidos
basicamente pela curiosidade, que uma vez saciada, os impede de tornarem-se
espectadores fiéis.
Neste sentido, verifica-se que a principal motivação à audiência dos programas
considerados como inadequados volta-se para a necessidade de "estar por dentro" dos
acontecimentos, podendo conversar com os colegas em situação de igualdade.
A confiança que depositam na educação recebida faz com que afirmem que
adotariam as mesmas atitudes dos pais caso tivessem filhos, reconhecendo que certos
temas, especialmente sexo "pesado", são inadequados às faixas etárias mais jovens.
Faz-se mister notar, no entanto, a percepção de que são capazes de identificar e
separar plenamente ficção da realidade, assim como conter qualquer possível efeito
negativo provocado pela programação, posicionando-se como "senhores de seu
próprio destino", razão pela qual se sentem bastante confortáveis e seguros ao
burlarem as determinações paternas.
Merece registro que, segundo os dados da pesquisa quantitativa, cerca de metade da
amostra pesquisada de adultos / pais (53%) não exerce qualquer tipo de controle
sobre a audiência televisiva.
Apesar da maioria dos entrevistados (57%), afirmarem não se preocupar
sensivelmente com o conteúdo da programação televisiva – ao contrário do que se
observa na fase qualitativa –, verifica-se que este veículo é considerado para 68% da
amostra como exercendo muito ou algum tipo de influência na formação das crianças
e jovens.
Relativamente à influência que a televisão exerce na formação dos jovens, identifica-
se como primeira reação sua avaliação como "vilã", contrapondo-se aos valores
transmitidos pelos pais.
Em geral, detecta-se a avaliação de que a TV atrapalha mais do que ajuda a
educação das crianças e jovens:
30% do total da amostra – Ajuda;
41% do total da amostra – Atrapalha.
Verifica-se que a percepção de que a TV atrapalha é maior quanto mais baixa a
classe social (A/B–32%; C–39%; D–40%; e E–47%); assim como entre aqueles que
praticam alguma religião, na medida em que, como demonstra a fase qualitativa, os
valores veiculados pela programação televisiva contrapõem-se aos ditados pelas
diferentes religiões.
Entre aqueles que apontam espontaneamente que a TV atrapalha a educação dos
filhos, verifica-se que o principal problema volta-se para o fato de "atrapalhar o
horário dos estudos / fazer com que não queiram estudar" (42%); sendo também
citados a veiculação excessiva de "programas violentos" (13%), "faz com que as
crianças sejam indisciplinadas / sem limites" (9%); "influencia nas atitudes" (9%) e
"mostra cenas de sexo / eróticas / pornográficas" (8%).

v
Entre as programações consideradas inadequadas às crianças e adolescentes:
Novelas – 52% da amostra (+ entre os pais + jovens, de instrução alta);
* "vilã" para as classes A, B e C
Filmes –51% do total (+ entre os pais de educação primária);
* "vilão" para as classes D e E
Programas Policiais – 34% (Na Rota do Crime, Cidade Alerta, Aqui Agora)
(+ forte entre os pais + jovens, de alta instrução).
* mais inadequados para as classes A e B. Para as demais, são menos rejeitados que
filmes e novelas.
Porém, à medida em que avança – durante as discussões em grupo – o processo de
reflexão sobre esta questão na Pesquisa Qualitativa, observa-se que os possíveis
males provocados por este meio de comunicação ou pela veiculação de temáticas
impróprias a determinadas idades são amenizados pela confiança que demonstram
depositar na educação que oferecem aos filhos.
Sob esta ótica, detecta-se que parcela considerável do segmento adulto acredita no
papel educativo da programação televisiva, sendo importante ressaltar, contudo, que
esta assume uma função que não ultrapassa os limites de uma coadjuvante neste
processo, na medida em que apontam que a responsabilidade na formação moral dos
filhos não pode e não deve ser delegada a qualquer outra instância que não seja a
família. Assim, mesmo aqueles que inicialmente a posicionavam como capaz de
exercer influências significativas no comportamento, tendem a reconhecer a
soberania do núcleo familiar, na medida em que apontam caber a família o controle e
acompanhamento do tipo de informação a que seus filhos têm acesso, resumindo em
uma frase esta relação: "O importante é não deixar engolir sem mastigar".
Entre os que acreditam que a TV auxilia a educação dos filhos, destaca-se que esta
"ajuda a conhecer o mundo e traz informações" (25%); por permitir que sejam
assistidos "programas educativos, aulas e TV Escola" (17%), e porque "ajuda a
ensinar e educar" (10%).
Em acordo com este posicionamento, identifica-se que junto aos adultos pesquisados,
a influência negativa da televisão se apresenta de forma mais intensa,
especificamente junto a pessoas que apresentam problemas de personalidade ou no
relacionamento familiar, indivíduos que por terem "a mente fraca", se tornam
suscetíveis a qualquer tipo de apelo. Neste sentido, apontam serem os
comportamentos desviantes gerados no âmbito familiar, eximindo a programação da
televisão, cinema e vídeo de qualquer responsabilidade, posto serem a ela anteriores,
cabendo portanto às famílias a sua resolução.
Os jovens, por sua vez, tendem a amenizar ainda mais a possível influência da
programação em seus comportamentos, apontando que esta, quando ocorre, não
ultrapassa um nível superficial, sendo exercida basicamente através de modismos
(roupas, gírias, cortes de cabelo), aspectos estes que em nada interferem em suas
personalidades ou comportamentos. Neste sentido, observa-se a valorização da
educação recebida através da família, vista como a principal referência em termos de
modelo de conduta e valores morais.

vi
Apesar do reconhecimento por parte dos jovens e dos adultos sobre o papel menor
dos meios de comunicação frente à influência da família na determinação do
comportamento, torna-se importante ressaltar a preocupação dos pais no sentido de
acompanhar a audiência de seus filhos, tomando conhecimento sobre os valores que
são apresentados, de modo a contrapô-los, se necessário, àqueles que têm como
paradigma.
Nesse contexto, destacam a impossibilidade de estarem fisicamente presentes durante
todo tempo em que os jovens assistem à programação da televisão, cinema e vídeo,
seja por motivos de trabalho ou ainda pelo fato de não compartilharem dos mesmos
interesses e preferências que os demais membros da família no que tange aos
programas.
Em se tratando da avaliação sobre os filmes veiculados no cinema, verifica-se que a
frequência das crianças e jovens aos cinemas, a exceção da classe A/B, se apresenta
bastante reduzida - 73% (classe A/B: 38% - C: 60% - D: 81% - E: 89%) afirmam que
seus filhos não possuem o hábito de frequentá-lo - admitindo assim uma preocupação
reduzida frente aos filmes assistidos (3% muito preocupados e 5% preocupados).
Cabe ressaltar que tendem a avaliar os filmes assistidos pelas crianças e jovens no
cinema como adequados às suas faixas etárias (20%).
Mais ainda, no que se refere aos mecanismos de controle sobre os filmes exibidos no
cinema, verifica-se um grande desconhecimento sobre as formas pelas quais este é
exercido (44%), enquanto que 42% acredita não existir qualquer forma de controle.
11% afirma a existência de controle por faixa etária.
Relativamente aos filmes assistidos em vídeo, observa-se que estes não se
apresentam como capazes de despertar grandes preocupações junto aos pais, na
medida em que apenas 4% afirmam estar muito preocupados / preocupados. Assim,
observa-se que estes se colocam como responsáveis pelo aluguel junto aos filhos
mais jovens, impossibilitados de irem sozinhos às locadoras, situação essa que
permite que os adultos selecionem eles mesmos aquilo que consideram adequado às
crianças. Da mesma forma, afirmam que a proibição do aluguel de filmes
pornográficos a menores é exercida pela própria locadora.
Por seu turno, em se tratando da programação televisiva, observa-se que esta se
revela capaz de suscitar constrangimentos quando temas considerados inadequados
são assistidos conjuntamente pela família. Diante disso, tendem a adotar uma série de
artifícios e estratégias de modo a superar esse sentimento de desconforto, a saber:
• Na etapa quantitativa, reafirma-se como estratégia adotada de forma mais
usual pelas famílias, a tendência a desligar a televisão ou a mudar de canal
(47%) quando se deparam com cenas constrangedoras, comportamento esse
que se acentua à medida em que diminui o grau de escolaridade dos pais.
• Outra forma de evitar maiores constrangimentos volta-se para a tentativa de
desviar o interesse frente às cenas apresentadas (23%), enquanto que o hábito
de aproveitar os temas apresentados pela TV para conversar com os filhos se
revela como prática de 12% da amostra. Cabe ressaltar contudo que quanto
maior a escolaridade dos pais, essa tendência se apresenta com maior
intensidade (primário – 7% vs. superior – 30%).
Verifica-se que a decisão sobre o tipo de programação assistida, assim como o
horário limite para que as crianças e adolescentes assistam TV, não é praticado por

vii
46% dos entrevistados, sendo que em 27% dos casos está nas mãos do chefe da
família (em sua maioria homens) e em 25% sob as rédeas das donas de casa.
A classe social também interfere significativamente nesta decisão, na medida em que
para 53% das classes A / B não há necessidade deste controle, enquanto que 49% da
classe C, 45% da classe D e 41% da classe E, observa-se o mesmo.
Como outra variável interveniente neste comportamento, identifica-se a adesão a
uma religião, sendo observado que:
• 63% dos evangélicos exercem controle;
• 55% dos católicos exercem controle;
• 48% dos católicos não-praticantes exercem controle.
O número de crianças em casa interfere também; quanto maior o número, maior a
necessidade de acompanhamento e mais a decisão sobre o que o que deve ser
controlado se concentra no chefe da família.
Muito embora, em geral, a decisão sobre o tipo de programação e o horário a ser
assistida a TV seja do chefe da família, observa-se que cuidar para que estas
restrições sejam cumpridas é eminentemente uma tarefa da dona de casa.
Entre os que estabelecem restrições, a tarefa de fazer com que estas sejam
cumpridas:
• 37% dos chefes das famílias;
• 55% das donas de casa.
Em se tratando da obediência às restrições impostas à audiência a TV, observa-se
que a maioria dos adultos pesquisados tende a acreditar que seus filhos respeitem
suas recomendações (93%), sendo totalmente obedecidos (59%) ou parcialmente
obedecidos (34%). Verifica-se que quanto mais elevada a classe social, menor a
crença de que este controle será totalmente obedecido, provavelmente pela presença
de maior número de televisores nos domicílios e especialmente nos quartos das
crianças.
Torna-se importante destacar o comportamento dos jovens frente a esta questão –
avaliado somente na etapa qualitativa deste estudo - que afirmam desobedecer
frequentemente as restrições impostas pelos pais, ainda que seja apenas como uma
forma de enfrentá-los ou de "matar" a curiosidade, e não por um interesse específico
na programação controlada pela família.
Relativamente ao posicionamento frente às diferentes temáticas, às quais crianças
e adolescentes encontram-se expostas através dos meios de comunicação, observa-se
que a questão sexual se apresenta de forma polêmica junto aos diversos segmentos
pesquisados. Mais ainda, detecta-se a existência de tratamento diferenciado na
audiência desta temática em função do sexo e idade dos filhos, havendo maior
aceitação do interesse dos rapazes pelo tema, enquanto que este se revela de certa
forma como um tabu junto à audiência feminina jovem. Cabe ressaltar, entretanto, a
dificuldade apontada pelos adultos na etapa qualitativa deste estudo, em estabelecer
mecanismos efetivos de controle junto à faixa etária acima de 10 anos,
depreendendo-se ser este o limite simbólico da infância.

viii
Em se tratando, porém, da adequação dos filmes pornográficos e programas eróticos
às diferentes faixas etárias, observa-se que para 31% dos adultos pesquisados na fase
quantitativa, estes só deveriam ser assistidos por maiores de 18 anos.
A extrema preocupação dos adultos frente às cenas de sexo explícito veiculadas pela
programação parece ecoar diferentemente junto ao segmento jovem, observando-se
que estes não demonstram interesse significativo nesta área, na medida em que
apresentam um comportamento de audiência episódica, identificando-se como mola-
mestra a curiosidade que, uma vez saciada, esgota-se em si mesma.
Cabe ressaltar que as cenas que envolvem sexo se revelam plenamente aceitas
quando este se apresenta contextualizado em uma história e, ainda assim, desde que
permeado por sentimento (amor romântico), sendo então destacado em sua beleza e
naturalidade. Como exemplos típicos desse tipo de abordagem identifica-se os filmes
Ghost e Lagoa Azul, onde o sexo recebe um tratamento distanciado de qualquer
forma de malícia ou apelação.
Assim, detecta-se forte rejeição às cenas de sexo quando estas se reafirmam segundo
os seguintes aspectos, a saber:
• associadas a algum tipo de violência – tal como ocorre em estupros (51% dos
pais), sendo importante notar que estas são consideradas como imagens
"chocantes" pelas jovens, provavelmente por se sentirem vulneráveis a este
tipo de ocorrência;
• realizadas sem qualquer outra motivação ou sentimento além da busca pelo
prazer sexual, situação esta que remete à preocupação em criticar, ainda que
de forma velada, este comportamento com seus filhos, na medida em que
somente o aceitam quando revestido por amor;
• apresentadas de forma explícita a exemplo do que ocorre nos programas Cine
Privê e Sexy Time. Cabe ressaltar que a audiência em família a cenas de sexo
explícito gera constrangimentos de toda ordem (para 71% da amostra),
especialmente quando adultos e crianças de sexos opostos (mães com filhos e
pais com filhas), sendo comum a utilização de recursos para desviar a atenção
– pais disfarçam, puxam outro assunto, filhos simulam desinteresse, indo
beber água, ao banheiro etc.
Considerando-se ainda a temática sexual, observa-se forte polêmica sobre a questão
homossexual na programação televisiva, assim como de cinema e vídeo. Se por um
lado esta se posiciona de forma valorizada junto ao segmento feminino adulto
quando apresenta uma relação de amor "verdadeiro" entre pessoas do mesmo sexo,
sendo apontada como uma importante contribuição no sentido de amenizar o forte
preconceito existente; por outro, verifica-se que esta relação não deve ultrapassar a
sugestão e / ou insinuação.
Assim, mesmo entre aqueles que tendem a se mostrar menos refratários a esta
temática, a explicitação do homossexualismo se revela como algo impactante, não
sendo concebível a veiculação de imagens que sugiram qualquer tipo de contato
físico entre os parceiros para 49% da amostra.
Por seu turno, identifica-se forte reação masculina à abordagem dessa questão,
observando-se um sentimento de indignação e revolta frente à veiculação de
programas nesta linha, vistos como prejudiciais à formação moral dos jovens.

ix
Merece registro a aceitação do homossexualismo quando revestido de comicidade, a
exemplo do que ocorre nos programas de humor.
Mais ainda, questionam este tipo de abordagem quando esta se apresenta de forma
absolutamente natural e corriqueira, sem envolver qualquer tipo de problematização
familiar, destacando que programações nesta linha desconsideram o tabu da
virgindade, assim como apresentam um comportamento bastante avançado –
associado, em nível imaginário, aos segmentos mais liberais dos grandes centros
urbanos.
A rejeição às cenas de sexo aparece também quando utilizadas apenas como um
artifício para a elevação dos índices de audiência dos programas – situação esta em
que se destaca o caráter apelativo, tal como ocorre no Domingo Legal (Gugu
Liberato), exemplo máximo do uso comercial do sexo, rejeitado em todas as praças
pesquisadas na etapa qualitativa.
Vem somar-se a esta avaliação a novela Xica da Silva, veiculada pela Rede
Manchete, sendo criticada pela intensa utilização das cenas de sexo como uma forma
de fazer frente à programação da Rede Globo, líder de audiência no horário. Neste
sentido, identifica-se restrições à audiência desta novela pelo público mais jovem,
sendo importante notar que estes, por sua vez, não demonstram grande interesse em
assisti-la.
Assumem também grande relevância na fase qualitativa as críticas à erotização do
corpo infantil, sendo rejeitados os programas que incentivam a apresentação de
"clones" de Xuxa e Carla Perez, assim como aqueles que se utilizam de "meninos
imitando Michael Jackson", situação esta que conota a ausência de respeito pelo
próprio corpo e a valorização de profissões tais como "modelos", onde a beleza se
apresenta como principal requisito para o sucesso, em detrimento de outras que
exigem estudo e disciplina, aspectos estes extremamente valorizados pelos adultos no
processo de formação dos jovens.
Além disso, a sensualização da criança tenderia a estimular a iniciação sexual
precoce, assim como a pedofilia. Neste sentido, a exploração comercial desse tipo de
atração pelas emissoras se apresenta como algo constantemente abordado de forma
crítica pelos adultos junto a seus filhos, objetivando amenizar os possíveis efeitos
deste tipo de programação sobre os jovens.
Merece registro, no entanto, que apesar dos preconceitos e constrangimentos na
abordagem da temática sexual, os adultos tendem a se utilizar deste tipo de
programas para conversar com os filhos, apresentando seus valores e visão de
mundo, contrapondo-a aos veiculados pela televisão. Neste sentido, esta atua como
uma ferramenta didática, sendo especialmente utilizada para o diálogo sobre
iniciação sexual, prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, contracepção e a
gravidez na adolescência, além de questões que envolvam os diversos aspectos de
um relacionamento afetivo.
Sob esta ótica, o filme Kids revela-se como um típico exemplo da apropriação pelos
adultos de uma temática conceitualmente avaliada como inadequada aos jovens,
sendo utilizado didaticamente para dar o start no diálogo entre pais e filhos. Assim,
temas como a Aids, o uso de drogas, o sexo sem amor e o desrespeito ao corpo da
mulher, presentes nessa produção, recebem grande valorização, sendo importante

x
observar a preocupação em que este seja assistido no ambiente doméstico, em
conjunto com os pais.
Por outro lado, identificam-se menores constrangimentos frente à questão da
violência, sendo que dentre essas, aquelas que enfrentam maior rejeição voltam-se
para imagens de corpos mutilados, cobertos de sangue, sejam estas imagens reais ou
ficcionais (28%) superam as restrições apresentadas pela veiculação dessas mesmas
cenas em filmes (24%), enquanto que imagens explícitas, ou comportamento racista
e de justiçamento (23%) se apresentam como mais aceitáveis.
Nesse sentido, detecta-se grande apreciação dos filmes de ação tanto pelos jovens
quanto pelos adultos, sendo "Rambo" e "Arnold Schwartznegger" tidos como ídolos
e garantia de um bom "programa familiar", reunindo em torno da televisão pais e
filhos.
A partir desse exemplo, observa-se que a violência ficcional – contextualizada em
uma história ou em uma "causa" (guerra, ideologia política, justiçamento etc) –
recebe plena aceitação, sendo eximida de qualquer possível influência negativa sobre
o comportamento dos jovens. Esta avaliação destaca que o uso intensivo de efeitos
especiais assim como de imagens rápidas e fortes imprime grande carga emocional a
este tipo de programação, distanciando-se assim da conotação de "realidade".
Observam-se porém restrições a filmes baseados na ação de gangues juvenis,
percebidos como capazes de estimular a reprodução deste comportamento pelos
jovens, percepção esta baseada na idéia da adolescência como um período onde a
influência do grupo de amigos se sobrepõe à opinião individual.
No que tange aos filmes de terror, identifica-se entre os jovens uma forte
ambigüidade, onde se mesclam sentimentos de medo, nojo e atração frente a este tipo
de programação, suscitados pelas imagens "cruas" e "sangrentas" – cabeças cortadas,
vísceras à mostra e cérebros explodindo, típicos da linha trash, na qual Brinquedo
Assassino posiciona-se como símbolo entre o público infanto-juvenil. Desta forma,
os filmes de terror são assistidos em geral junto a grupos de amigos e durante o dia,
sendo a experiência de assisti-los à noite percebida como uma prova de maturidade.
Cabe ressaltar a irrelevância atribuída pelos adultos à audiência desse tipo de
temática pelos jovens, sendo sua atratividade considerada como típica da
adolescência. Mais ainda, dado o reconhecimento de seu caráter eminentemente
ficcional, não se observam restrições significativas quanto a possíveis danos que
possam suscitar nos jovens.
Esta avaliação se apresenta invertida em se tratando da veiculação da violência real,
percebida como suplantando a ficção e sendo capaz de gerar forte impacto junto aos
telespectadores, além dos sentimentos de medo e revolta.
Neste contexto, identifica-se um elenco de acontecimentos recentes que se
enquadram nesta avaliação, a saber:
• a ação violenta dos policiais na Favela Naval, em Diadema;
• a chacina da Candelária;
• massacre de Vigário Geral;
• os massacres dos sem-terra;
• assassinato do índio pataxó em Brasília;

xi
• a prostituição infantil;
• a disseminação do uso de drogas, especialmente junto a crianças;
• a impunidade;
• a corrupção política;
• estado falimentar da saúde e da educação pública.
Identifica-se como preocupação central do público adulto pesquisado na fase
qualitativa, considerações frente aos efeitos que este tipo de informação pode gerar
em seus filhos, na medida em que colocam em xeque todos os valores que procuram
sedimentar em sua formação, a exemplo da obediência à lei e às autoridades, o
respeito pelo semelhante e pelas instituições, a dignificação pelo trabalho, entre
outros.
Neste sentido, temem que a exposição a este tipo de noticiário redunde na ausência
de parâmetros de valor, gerando uma forte descrença e desesperança nos jovens,
situação esta que acirra a preocupação em manter aberto um canal de diálogo com os
filhos, de modo a alertá-los sobre os "perigos da vida".
Torna-se importante notar, entretanto, que parcela significativa do público adulto
tende a considerar esses eventos como uma valorizada forma de conscientização
política, uma oportunidade ímpar para que os valores e o modus operandi da
sociedade sejam questionados junto aos jovens, contribuindo para o seu processo de
amadurecimento.
Não obstante essa avaliação, observam-se críticas à utilização indiscriminada e
abusiva da violência real pela programação televisiva, assumindo a conotação de
sensacionalismo, onde os acontecimentos são veiculados de forma a garantir a
elevação dos índices de audiência das emissoras. Como principais referências dos
interesses comerciais se sobrepondo à função informativa, identificam-se os
programas policiais Na Rota do Crime, Câmera Manchete e Aqui e Agora – sendo
seu encerramento percebido como consequência da exacerbação desta temática em
horário impróprio, sem qualquer preocupação com o fato de ser assistido por crianças
e jovens.
Merece registro a percepção da inexistência de qualquer tipo de controle da
programação televisiva, seja em nível governamental ou das próprias emissoras,
especialmente sobre o conteúdo / abordagem dos programas, sendo este aspecto
citado por 63% da amostra na etapa quantitativa.
Relativamente aos sistemas classificatórios adotados pelo Estado, identifica-se forte
desconhecimento de sua existência na maioria das cidades pesquisadas, observando-
se como justificativa à esta avaliação o reconhecimento da ausência de qualquer
critério na veiculação da programação, especialmente na televisão.
As emissoras, neste contexto, são percebidas como regidas apenas pela "guerra pela
audiência", onde os interesses comerciais e financeiros se apresentam como o único
parâmetro capaz de ser levado em consideração.
Vem somar-se a esta percepção o questionamento frente a existência de qualquer
preocupação ética que atue de forma a regular a programação televisiva através de
sua adequação às diferentes faixas etárias, sendo apontada como exemplo desta
situação a reprise das novelas noturnas no período vespertino.

xii
Neste sentido, identificam-se fortes expectativas de que algo seja realizado de forma
a permitir a adequação das temáticas consideradas como inadequadas às faixas
etárias mais jovens (sexo, violência, traições etc.) a horários mais avançados,
surgindo como referência unânime a lei que regula a veiculação da propaganda de
bebida alcóolica e cigarros, restringindo-as ao período noturno e amenizando assim
seus efeitos junto às crianças.
De modo a introduzir algum tipo de advertência aos adultos sobre a inadequação de
determinados programas a certas faixas etárias, observam-se sugestões, ainda que de
forma minoritária, sobre a pertinência da utilização de algum tipo de advertência para
indicar temáticas inadequadas, evidenciando-se a associação ao antigo certificado da
censura apresentado antes dos programas.
A valorização atribuída a este artifício (apelo visual) como mais um recurso para
legitimar o controle da audiência dos jovens pela família se faz presente mais
intensamente junto ao segmento masculino paulista, sendo importante observar,
contudo, a avaliação dos demais públicos pesquisados de que um aviso deste tipo
tenderia a aguçar a curiosidade dos jovens para programas que muitas vezes não
seriam sequer assistidos.
Por outro lado, identifica-se a utilização deste mecanismo por parte de algumas
emissoras, especialmente Rede Globo e SBT, percebida porém como uma atitude de
good will por parte destas para com seus telespectadores e não como obediência a
qualquer requisito legal de adequação das temáticas adultas aos horários noturnos.
Neste contexto, observam-se expectativas de que seja implantado algum tipo de
mecanismo externo de controle desta programação (75%), na medida em que, dado o
estilo de vida das famílias brasileiras (entrada da mulher no mercado de trabalho,
baixa escolaridade dos pais, crianças com vontade própria e muitas vezes sozinhas
em casa etc.), estas desejam ser auxiliadas nesta tarefa.
Assim, sugerem espontaneamente (pelos 75% da amostra que acham que deve
existir controle externo à família), as seguintes formas de controle, a saber:
Classificação de toda a programação por idade e horário – 17%;
Censura / proibição / corte de cenas impróprias – 17%.
Há que se observar, porém, que apesar de ocorrer um "empate", se agregarmos as
diversas citações espontâneas quanto a mecanismos de adequação da programação às
diferentes faixas etárias e de horário, verifica-se a predominância do sistema
classificatório sobre a censura.
Porém, ao serem estimulados (ainda os 75% da amostra que acham que deve haver
controle), mediante as opções censura vs. classificação por faixa etária e horário,
posicionam-se da seguinte maneira:
Classificação por idade e horário – 64%;
Censura – 32%;
Não souberam se posicionar – 4%.
Torna-se importante destacar, assim, junto àqueles que apesar de acenarem para um
possível retorno da censura como uma forma de controlar a "permissividade" que
identificam na programação televisiva, verifica-se que este posicionamento se

xiii
relaciona basicamente à necessidade de algum tipo de regulação, sendo o controle
pelo Estado a principal referência de que dispõem.
Neste contexto, e de forma mais detalhada na fase qualitativa, observa-se, de modo
geral, forte reação contra qualquer tentativa de retorno de mecanismos de censura,
argumento esse basicamente sustentado a partir de duas justificativas, a saber:
• grande descrença no Estado, percebido como distanciado da sociedade, sendo
incapaz de garantir o exercício de suas funções precípuas, a exemplo das
áreas de Educação e Saúde. Mais ainda, identifica-se como pano de fundo
desta avaliação, o desgaste e desapontamento da sociedade civil para com sua
atuação, percebida como direcionada para assegurar privilégios e
"mordomias" a políticos e grupos privados, em detrimento dos direitos dos
cidadãos;
• defesa inconteste destes direitos, sendo especialmente valorizado o amplo
acesso à informação e o livre arbítrio dos cidadãos, indicando forte rejeição a
qualquer tipo de tutela da sociedade civil pelo Estado.
Observa-se , porém, que o posicionamento contrário à idéia de que o Estado seja o
único responsável pelo controle da programação dos meios de comunicação de massa
não descarta a necessidade de implantação de algum outro mecanismo de regulação,
sendo necessário compartilhar com a sociedade como um todo a responsabilidade
familiar frente à programação de televisão, cinema e vídeo.
Assim, delineia-se um sistema classificatório baseado na adequação das temáticas às
diversas faixas etárias através de horários diferenciados de veiculação, mecanismo
esse percebido como uma forma de auxiliar as famílias na tarefa de ponderar os
efeitos da programação na formação moral de seus filhos. Cabe ressaltar, contudo,
que a decisão final sobre o que pode ou não pode ser assistido pelos jovens deve ser,
em última instância, do núcleo familiar, principal responsável pela educação dos
filhos e soberano neste âmbito.
Uma vez estabelecida esta necessidade de regulação, coloca-se como questão
imperativa a maneira como este controle deve ser estabelecido, identificando-se,
inicialmente a tendência a delegar esta tarefa a cada emissora de televisão que, assim,
deveriam dispor de profissionais especializados (pedagogos, psicólogos, sociólogos,
assistentes sociais) para a avaliação de seus programas, classificando-os em acordo
às diferentes faixas etárias e horários.
Torna-se importante destacar que receiam que este mecanismo provavelmente não
irá se sustentar por longo tempo na medida em que acreditam que os critérios de cada
emissora seriam suplantados por seus interesses comerciais específicos que, na
"guerra pela audiência", suplantam qualquer preocupação ética. Mais ainda, verifica-
se a percepção de que estes especialistas, na medida em que seriam funcionários
contratados por cada emissora, não deteriam o poder e a liberdade necessária para
fazer valer seus critérios, que seriam, em última instância, ofuscados pelos da
empresa.
Diante desse impasse, observa-se em geral duas tendências, a saber:
• o estabelecimento de um conselho de auto-regulamentação das emissoras, a
exemplo do Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação
Publicitária), onde seriam identificados e classificados os diversos tipos de
temáticas e programações, evitando assim que os interesses de cada empresa

xiv
fossem estabelecidos livremente, na medida em que seriam regidos por um
código de ética para o setor;
• a criação de um órgão misto, controlado pela sociedade civil, cujo
funcionamento, por intermédio do sistema de colegiado, reunisse
representantes de diversos segmentos sociais que teriam como tarefa
exclusiva a classificação dos programas através de selos ou certificados em
acordo com as diferentes faixas etárias. Seus membros seriam eleitos através
de voto direto da população, cumprindo um mandato por período
determinado, sendo destacada a necessidade de que a representação ocorra a
nível estadual de modo a garantir a observância das diferenças regionais.
Neste modelo específico de órgão, caberia ao Estado o papel de fiscalização das
emissoras, fazendo cumprir as suas determinações – uma espécie de "lei" – através
do estabelecimento de um conjunto de punições que partem da cobrança de multas de
valor significativo até a possibilidade de retirar a emissora do ar em caso de
reincidência.
Merece registro a avaliação de que este modelo não se encontra pronto e acabado,
devendo ser aprimorado e amadurecido pela sociedade. Esta preocupação se coloca
frente à identificação dos riscos deste órgão ou conselho vir a tornar-se uma
instituição burocratizada – "mais um cabide de emprego" – descaracterizando sua
proposta e posicionando-se como um "poder paralelo", onde a liberação dos
programas para horários de maior audiência tenderia a estabelecer situações
propícias à corrupção, transformando os certificados em uma valorizada "moeda
política".

www.observatorioda imprensa.com.br/artigos/qtv05102001.htm

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