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POR MÔNICA TRINDADE CANEJO E MAURÍCIO DE PAIVA, de Iranduba FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA
AMAZÔNIA
O caboclo de hoje perpetua a lida milenar de seus antepassados na floresta e reflete...
POR MÔNICA TRINDADE CANEJO E MAURÍCIO DE PAIVA, de Iranduba FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA
AMAZÔNIA
O caboclo de hoje perpetua a lida milenar de seus antepassados na floresta e reflete...
HIERARQUIA E BANQUETES
“A cerâmica é a maldição dos arqueólogos.” A frase, chacota
entre pesquisadores, brinca com o fato da onipresença do
material em todo lugar que se faça arqueologia. A cerâmica
brota das profundezas. No caso da Amazônia, onde as
ocupações humanas podem passar dos 10 mil anos, ela
aparece da Ilha de Marajó ao Equador. Estudar seus desenhos
e formatos ajuda a entender a organização e até a mitologia
das antigas sociedades. Diferenças na decoração de urnas
funerárias indicam hierarquia. Pratos grandes, às vezes com
restos de alimentos, levam a crer em banquetes. Na Amazônia
Central e arredores, os pesquisadores acharam cerâmicas com
mais de 2 mil anos de vida. Nas páginas a seguir, um mergulho
por um Brasil oculto e desconhecido pelos próprios brasileiros.
ˆ
As ocupações humanas na Amazônia
são divididas em quatro fases, de acordo
com o tipo de cerâmica encontrada
FASE PERÍODO
Açutuba 300 a.C. a 400 d.C.
Manacapuru 400 d.C. a 900 d.C.
Paredão 700 d.C. a 1200 d.C.
Guarita 900 d.C. a 1500 d.C.
om seu olhar claro, misto de ram envolvidos em situações que deixariam com água na
C
melancolia e espírito renovado, boca os exploradores mais ousados. Caminhos improváveis
Jennifer Brennon bate na porta do na floresta, viagens de canoas em imensas estradas
quarto e pergunta se pode parti- de água, noites dormidas em redes sob rasantes de insetos
cipar da reunião dos arqueólogos. assustadores e uma ou outra picada de cobra apareceram
Entra, mistura-se aos presentes na volta ao passado traçada pelo PAC. Mas fique claro que
com naturalidade e senta-se como a intenção do projeto não é a aventura. É ciência. A busca é
quem teve um dia duro. Paira no unificar as pesquisas em torno de seu próprio Santo Graal:
ar o silêncio e a sensação acolhe- encontrar vestígios de grandes e complexas ocupações hu-
dora de conforto, tanto dos pesqui- manas na Amazônia. Eduardo é categórico: “Grandes ocu-
sadores atrelados a bochinchos pações existiram na Amazônia. A questão é entender como
científicos quanto por parte dela elas funcionavam”.
própria ao revelar-se aliviada. No Aqui abrimos parênteses para explicar ao leitor porque
momento em que espia o retrato isto é tão relevante. Lá pela década de 40, e por muitos anos,
emoldurado do finado arqueó- então, a idéia de a Amazônia ser densamente habitada era
logo de camisa xadrez, a viúva carta fora do baralho. A justificativa dos céticos cientistas –
pega uma bebida destilada e, notadamente Betty Meggers e Cliford Evans, até hoje duas
num trejeito de brinde, saúda a das mais importantes referências para os pesquisadores –
notícia do dia, atestada pelo Tri- era de que a baixa fertilidade do solo não permitiria o flo-
bunal do município de Iranduba, a 25 quilômetros de Ma- rescimento da agricultura, e a falta de caça de grande porte
naus. Saiu a sentença dos assassinos do marido: 29 anos tornava escassa a oferta de proteína animal. Sem agricultu-
de prisão para os quatro arrependidos. ra e sem carne, não haveria jeito de “desenvolvimento”. Se-
Nessa hora, assistindo à cena, perguntamos se nossos gundo a tese, existiriam, no máximo, pequenos grupos nô-
ancestrais indígenas também ritualizavam a justiça há mais mades que pelejavam por comida e praticavam o extrati-
de 2 mil anos como esses pes-
quisadores sentados no quar-
to da grande casa alugada em No meio da floresta, o topógrafo norte-americano Morgan Sc
Manaus. Havia nas numerosas
aldeias do Amazonas pré-colonial a noção de crime e vismo conforme as cheias dos rios.
castigo? De redenção e punição? Pensar em questões como Indícios inegáveis, coletados nas últimas décadas, no
essas era uma das tarefas de James B. Petersen, o arqueó- entanto, dão conta de afloramentos demográficos com gran-
logo norte-americano morto há dois anos durante um des núcleos habitacionais. Os antigos habitantes da Ama-
assalto em um restaurante na beira da estrada entre zônia caçavam, pescavam, colhiam vegetais e, sim, eram
Manaus e Manacapuru. Junto com Eduardo Góes Neves, agricultores – pilotavam, principalmente, roças de mandio-
do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), ca, raiz rica em amido e fácil de armazenar por períodos
e Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida longos, se devidamente beneficiada e transformada em fa-
(EUA), Petersen criou em 1995 o Projeto Amazônia Cen- rinha. Soa familiar? Apesar de estarmos falando de datas
tral (PAC), responsável pela localização de mais de uma que podem passar dos 2 500 anos, isso não difere do cotidi-
centena de sítios arqueológicos. ano do caboclo de hoje. É esse homem que, ao capinar sua
Fora o trágico fim de Petersen, os pesquisadores estive- roça, tropeça em fragmentos de cerâmica arqueológica, sem
9000 a.C. 6500 a.C. 6000 a.C. 5000 a.C. 500 a.C.
Data provável Data do mais Início da Data das Mudanças de
das primeiras antigo artefato domesticação cerâmicas mais padrão de
ocupações na encontrado na das plantas antigas no Baixo organização
Amazônia Amazônia, a ponta na Amazônia Amazonas social, econômica
da flecha de sílex, e política
escavada por
James B. Petersen
no Sítio Dona Estela
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Schimidt solta a ousada sentença: “Este lugar foi habitado por gente muito interessante”
Depois de desenterrar esta lâmina de machado feita de pedra, material raro na região, os arqueólogos colocam o mosquiteiro nas redes para garantir o sono
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ter a exata noção de seu valor. O caboclo do Amazonas – Dias é o proprietário das terras onde estão sendo feitas
que, diga-se, não costuma ler livros de arqueologia – tam- escavações e anda preocupado com a condição da estra-
bém parece ignorar a já superada hipótese de que o seu da. “É boa para os mamões, só que ruim para o ramal”, res-
ambiente é inapropriado para grandes populações. Se- pondeu. Filho de nordestinos migrantes, neto de peruano,
guem em sua lida diária na floresta e na várzea, obede- Pedro é um exemplo do modo de vida local. Tem cabeças
cendo à ordem divina do “crescei e multiplicai” – afinal, de gado, pesca no igapó e constrói sua casa com madeira
a Bíblia eles devem ler. nativa. A produção de mamão é sua principal atividade.
Quando o ramal está impedido, por conta da chuva ou pela
Mamoal mágico queda de uma árvore, a alternativa é a tradicional canoa.
“Há três dias que a chuva dá as cartas”, comenta alguém A área é um conjunto de elevações milenares construí-
entediado enquanto lê um artigo sobre cerâmicas na tela das pelo homem com terra e cacos de cerâmica e chamadas
do laptop. A tempestade perdurou de fato durante dias e pelos arqueólogos de montículos. Foram erguidas num lon-
um raio derrubou uma árvore no meio da estrada que leva gínquo passado para prevenir cheias, defender aldeias ou
ao Sítio Arqueológico Laguinho, próximo à calha do Soli- demonstrar poder. Sob as raízes da plantação, uma terra
mões, perto da cidade de Iranduba. Como é domingo, dia escura e fértil batizada de Terra Preta (veja quadro abaixo)
de futebol, os ribeirinhos ficaram de fora da desobstrução esconde respostas para as intrigantes perguntas dos pes-
do caminho, em uma força-tarefa proposta pelo arqueólo- quisadores. “Tudo revela 1 800 anos de ocupação com um
go Márcio Castro, coordenador dos trabalhos de escavação ápice no fim do primeiro milênio”, pensa alto Marcio, no
no local – onde funciona um “sítio escola” para mais de 40 meio do sítio. “Os indígenas atuavam nestes montículos
pesquisadores. A Kombi se abarrotou com 14 deles muni- como lugar de ritual e para demonstrar poder”, diz.
dos de dois machados emprestados. Márcio foi o primeiro Os arqueólogos iniciam seu balé. Espátulas e pincel em
a cansar os músculos. Raoni, com um grande golpe e pés na punho, ficha de registro e trena ao alcance das mãos. Esca-
lama, o segundo. Pupunha suou em seguida. Levemylson, vam centímetro a centímetro, abrem perfis, peneiram a ter-
amazonense de alcunha “Delegado”, abateu a tora de uma ra, observam cada detalhe. Logo cedo, o sol já torra a pele
vez por todas. A união fez a força e garantiu a liberação do de quem vem de terras mais frescas (como São Paulo, Mi-
ramal, como os locais chamam a estrada. lão ou Quebec) e não ousa dispensar chapéu e protetor so-
Para Eduardo, a intempérie também foi motivo para lar. Não há queixas. “Escavar é o fetiche de todo arqueólo-
puxar conversa com o caboclo.
“Pedro, e essa chuva, foi boa
para o mamão?” Pedro Gomes O sol torra a pele, mas os arqueólogos iniciam seu balé: pincéis e
Material orgânico, como ossos, cadáveres e restos de frutas, forma a instigante Terra Preta
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Sobre a Terra Preta, o caboclo plantou seu mamoal e faz o ritual com piras de fogo. S
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até dos pesquisadores, é que o objeto primordial A quantidade de urnas funerárias nos montículos faz os
a ser estudado é o ser humano. Nessa paisagem fantasma, pesquisadores pensarem também nos motivos que levavam
muita gente circulava e reunia-se no rio. Desvendar sinais os habitantes à morte. A violência humana, tão antiga quan-
de uma casa, como um esteio de poste, seria coroar esses to qualquer civilização? A malária? A picada de uma cobra?
estudos não apenas porque edificações são raridades na Aliás, esta última hipótese fez suar frio o biólogo Leandro
arqueologia amazônica (afinal, não há pedra ali), mas por- Cascon, o “Ceará”. A caminho de sua unidade de escavação,
que daria suporte para se compreender mais sobre as pes- recebeu o bote da jibóia. Chamar o canoeiro, fazer o resga-
soas que a construíram e nela moraram. “De repente, po- te, ser carregado até o atendimento... Tudo se calou em sua
demos encontrar a casa do pajé. Será que ele descia para mente. “Deu um silêncio estranho no igapó. Não houve o
nadar no igarapé e checar a pescaria?”, viaja Eduardo. As luxo de pensar em angústia e morte naquele momento”, lem-
palavras de Morgan completam a especulação: “Este lugar, bra. É o mito dos perigos amazônicos em nosso inconsci-
sem dúvida, foi habitado por gente muito interessante”. ente. De fato, não era sua hora: apesar da mordida dolori-
da, a dentada da jibóia não é venenosa.
Mas, enfim, começamos a falar de morte por conta das
ANTES E DEPOIS DE EDUARDO urnas funerárias. Só no Sítio Hatahara, em Iranduba, mais
de 30 esqueletos foram encontrados. Os formatos das ur-
nas, suas pinturas e seus apliques nos falam de uma cosmo-
logia – uma relação com o natural e com o sobrenatural –
esquecida, mas perpetuada nas faces de animais e pessoas.
São deuses, santos de devoção, míticos heróis. Até hoje, a
convivência com o sagrado parece não se desprender des-
ses objetos desenterrados. “Foram feitos pela mão de Deus”,
arrisca, sem a propriedade de um arqueólogo, mas cheio de
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o: “Vivemos no presente, mas queria que me contassem a história das coisas do passado”
Escavação no
“ASítio Laguinho
cerâmica desvendados
é a maldição cacos de cerâmica
arqueólogos.” Ae outros
frase, indícios
espécie de inegáveis da passagem
chacota entre pesquisa do homem TERRA 43
Antes da noite sem energia elétrica, o menino conta sobre assovios que quiseram lhe a
44 TERRA Enquanto os pais suam no mamoal da família, a filha os espera em sua palafita de cores intensas na calha do Rio Solimões