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"MENSAGEM" E IDENTIDADE
Lição proferida na Abertura Solene
do ano lectivo de 2006-2007
2006
VITOR MANUEL AMARAL DE OLIVEIRA
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BENEDICTUS DOMINUS DEUS NOSTER
QUI DEDIT NOBIS SIGNUM 1
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Se procurarmos a definição de "Identidade" no excelente dicionário
da língua portuguesa que é o do brasileiro António Houaiss, aí vemos a
melhor explicação que dela se pode dar: "Conjunto das características e
circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma coisa, graças às quais é
possível individualizá-la".
Ora a "Mensagem" é um indicador de identidade e de
individualização. Individualização, no sentido em que apela ao mais fundo
do sentimento português, identidade, porque aponta o caminho. O último
verso do poema, em jeito de exortação: É a Hora! é um apelo, quase um
grito, para que quem andava – e anda – distraído, desperte e conjugue as
forças que lhe restam para não se perder no turbilhão desenfreado das
ideias contrárias, falsas e desviadoras.
A "Mensagem" é um poema simbólico, o único que o próprio
Fernando Pessoa organizou e publicou em vida. Nessa sua intenção
determinada – caso raro na indeterminação de que toda a sua obra é
exemplo – tem que ver-se algo mais do que o prognóstico de um simples
acto testamentário, já que Fernando Pessoa morreria exactamente um ano
depois, a 30 de Novembro de 1935.
O objectivo da "Mensagem" está todo contido no título. O que
Fernando Pessoa pretende com o seu livro é comunicar alguma coisa a
alguém. Essa coisa é a História de Portugal – o que ela tem de projecto
nacional, de projecto de vida – diríamos agora – esse alguém são os seus
concidadãos, os portugueses, nós, afinal.
O conteúdo deste poema epo-lírico é construído em torno das
figuras-chave da história portuguesa que, ao longo de cinco séculos foram
conduzindo o fio do projecto português. Esse projecto, mesmo começado
pelo mito do Milagre de Ourique – "O mito é o nada que é tudo", diz
Fernando Pessoa no poema "Ulisses" – é o que foi impregnando os agentes
da História de Portugal, desde Afonso Henriques até D. Sebastião. Porque é
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afinal em 1578, em Alcácer-Quibir, e mais propriamente em 1580, com a
conquista de Portugal por Filipe II na Batalha de Alcântara, que o projecto
português independente acaba, para dar lugar a dependências várias – de
Espanha, no século XVII, de França, no século XVIII, de Inglaterra, no
século XIX, talvez dos Estados Unidos e da Europa no século XX… Ainda
não sabemos o que nos reserva o século XXI quanto a dependências… O
próprio Fernando Pessoa o refere: "Notar-se-á que se considera a História
de Portugal como fechada nas duas primeiras dinastias, dando-se como não
existente a dos Filipes, a dos Braganças e a República. Assim é. Estes três
tempos são o nosso sono; não são a nossa história, senão que representam a
ausência dela".
De que é feita então a identidade portuguesa que Fernando Pessoa
plasmou na "Mensagem"?
O poema, dividido em três partes: "Brasão", "Mar Português" e "O
Encoberto", aponta para um desenvolvimento ternário da História em três
idades, tal como foi expresso pelo monge calabrês Joaquim de Flora, no
século XII: a Idade do Pai, a Idade do Filho e a Idade do Espírito Santo. A
primeira parte da "Mensagem", o "Brasão" neste caso, representa o "Sinal"
– epíteto da "Mensagem" – dado a Portugal pelo Pai – Deus – para que a
Nação existisse. Não importa que esse "Sinal" seja mito, pois do mito que,
por definição, é criação onírica, e que é "nada", se passa à existência de
facto, que é "tudo". Não importa que o milagre de Ourique não tenha
existido, como demonstrou Alexandre Herculano, porque o facto histórico
que o originou resultou na independência do Condado Portucalense e na
posterior afirmação de D. Afonso Henriques como primeiro rei de um
espaço autónomo, Rex Portugalliae.
Heraldicamente, o brasão, através do seu simbolismo, reúne no
pequeno espaço dos seus campos os elementos fundamentais que
caracterizam o seu possuidor. Nesse sentido, é cartão de visita de quem o
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usa. Terá de conter, pois, as marcas que identificam, que definem, e que,
interiorizadas, melhor apresentam quem o detém. É por isso, pois, que na
primeira parte da "Mensagem", "Brasão", estão conjuradas as figuras que,
de algum modo, são fundadoras de cada passo do projecto português e que
Fernando Pessoa distribuiu pelos diversos elementos do Brasão de
Portugal, tal como foi declarado por Afonso Henriques e definitivamente
representado por D. João II, no século XV. Estão assim inscritas as figuras
de Viriato, porque com ele começa a definição do espaço que mais tarde
virá a ser Portugal; do Conde D. Henrique e de D. Teresa, senhores do
Condado que iria autonomizar-se e porque são progenitores daquele que
iria tornar-se o seu primeiro rei. De Afonso Henriques, porque afirmou a
independência do território herdado que inicia e deu origem a Portugal. De
D. Dinis, porque não só foi o que lançou as bases administrativas do espaço
até então conquistado – e recordemos que Portugal é o primeiro país da
Europa que tem as suas actuais fronteiras definitivamente delimitadas há
mais tempo, desde 1297 – mas chamou à maioridade a utilização da língua
portuguesa, que afastava o latim para se tornar autónoma, e, mais do que
tudo isto, participou poeticamente na criação da literatura portuguesa, ao
escrever genuínas Cantigas de Amigo, o género por excelência da forma de
poetar neste lado ocidental da Península Ibérica, no século XIII. De D. João
I e de D. Filipa de Lencastre, porque deram origem à Ínclita Geração, a
mesma que levou Portugal ao mar na primeira metade do século XV e criou
as bases da participação da Nação portuguesa no movimento do
Humanismo europeu, dando "novos mundos ao Mundo", na feliz e
inigualável expressão de Camões.
São estes os fundadores da base em que vai assentar a construção do
território, dentro e fora das fronteiras, por isso mesmo inscreveu-as
Fernando Pessoa no campo dos "Castelos", a pedra sólida dos alicerces da
Nação.
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No campo das "Quinas", que desenham uma cruz, colocou o poeta as
personagens fundadoras da identidade espiritual de Portugal. D. Duarte,
rei-filósofo, que, pela primeira vez, descreveu a Saudade, no "Leal
Conselheiro", em 1437. D. Fernando, o primeiro mártir de uma expansão
que trouxe não poucos sacrificados de uma e de outra parte. D. Pedro, o
Regente de Portugal, que, se pode considerar o primeiro português de
espírito humanista, e que por ter viajado pelas sete partidas do Mundo
acumulou um saber universalista. D. João, Condestável de Portugal, outro
filho de D. João I, o único a contestar a expedição a Tânger, que resultaria
em desastre. E D. Sebastião, a fechar tragicamente o ciclo deste percurso, é
certo, mas que nos aparece como figura fundadora de um mito, o
Sebastianismo, que se tornou recorrente no inconsciente colectivo
português.
A ornamentar o brasão, na "Coroa" e no "Timbre", as figuras
imprescindíveis da História portuguesa que contribuíram para cimentar e
desenvolver o projecto português: Nuno Álvares Pereira, que liderou pela
espada, em Aljubarrota, a primeira afirmação consciente de uma identidade
que se designava Portugal, ao não querer tornar-se parte integrante de
Castela; o Infante D. Henrique, que pela sua teimosia e capacidade
organizativa, iniciou a aventura do mar; D. João II, o maior rei da nossa
história que, pela visão política e diplomática e vontade férrea, cumpriu
bem as palavras da sua divisa: "Pela Lei e pela Grei", e Afonso de
Albuquerque, primeiro vice-rei de um império que, afinal, trazia na sua
grandeza o germe da sua própria destruição. Tudo figuras fundadoras, em
etapas essenciais do devir da História portuguesa e do projecto de
afirmação da Nação.
A segunda parte da "Mensagem" corresponde à idade do Filho. É o
culminar do objectivo traçado, a Missão destinada por Deus a Afonso
Henriques para a Nação portuguesa, que é afinal a substância do milagre de
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Ourique. É este o simbolismo do título desta segunda parte: "Mar
Português". Porque "o esforço é grande e o homem é pequeno", o "mar
com fim será grego ou romano, / o mar sem fim é português", diz o poema
"Padrão". É nesta parte que aparece a figura tutelar do Infante D. Henrique:
"Quem te sagrou, criou-te português", mas é também no poema "O Infante"
que Fernando Pessoa, como em desabafo, deixa antever a realidade que é o
presente, o seu e o nosso: "Senhor, falta cumprir-se Portugal". Por isso, este
momento da "Mensagem" acaba com uma "Prece": "Dá o sopro, a aragem
[…] / com que a chama do esforço se remoça, / E outra vez conquistemos a
distância – / Do mar ou outra, mas que seja nossa".
Mas a mensagem da "Mensagem" é afinal outra. Não a de uma
derrota ou desfalecimento, mas a de esperança, de possibilidade de
redenção que está no "Encoberto" – título da parte III do poema,
correspondendo ao terceiro elemento ternário, à idade do Espírito Santo. A
salvação não é, como possa parecer, a figura de D. Sebastião ou a de
qualquer outra personagem, mais ou menos simbólica, mais ou menos
carismática. Isso mesmo indica Fernando Pessoa no poema "Tormenta":
Somos "Nós", é "Portugal" é o "poder ser", o "desejar poder querer". Por
outras palavras: não é esperar D. Sebastião ou contentar-se com o "fulgor
baço da terra / que é Portugal a entristecer". É, afinal, o contrário disso, é
"viver a verdade / que morreu D. Sebastião" e por esse motivo erguer-se,
ousar e caminhar. "Ser descontente é ser homem".
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cada um no conjunto de todos os outros, melhora a Nação, que, por sua
vez, no contexto de todas as nações, melhorará a Humanidade. 2
A nação é o que quiserem dela os seus filhos, é certo, mas é
independentemente disso, o conjunto sedimentado de factos históricos, da
língua, de vivências, de manifestações artísticas e técnicas e de tradições.
Pela enumeração constata-se desde logo que não temos cumprido bem
alguns destes pressupostos, por isso, não temos igualmente exercido o
nosso dever de filhos desta nação portuguesa.
2 "Ser intensamente patriota é […] primeiro, valorizar em nós o indivíduo que somos, e fazer o possível
por que se valorizem os nossos compatriotas, para que assim a Nação, que é a suma viva dos indivíduos
que a compõem, e não o amontoado de pedras que compõem o seu território, ou a colecção de palavras
separadas ou ligadas de que se forma o seu léxico ou a sua gramática – possa orgulhar-se de nós, que,
porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus pais, porque a vamos criando (…)". In Jacinto do Prado
Coelho, Páginas Íntimas e de auto-interpretação.
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exortação final do poema e, fazendo nossa a voz de Fernando Pessoa,
interiorizemos o desafio: "É a Hora!"
Resta-me desejar que todos os que daqui saírem sintam curiosidade
em ler o grande poema da Modernidade portuguesa que é a "Mensagem".
Muito obrigado.
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