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História da Filosofia

Volume oito
Nicola Abbagnano

Digitalização e arranjos:
Ângelo Miguel Abrantes
(quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME VIII

TRADUÇÃO DE:

ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIo BORGES COELHO

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

TIPOGRAFIA NUNES

R. José Falcão, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 197o

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILoSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à


EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa
X111

O ILUMINISMO ITALIANO

§ 500. O ILUMINISMO EM NÁPOLES

O que caracteriza o Iluminismo italiano, que está estreitamente


ligado ao francês, é a prevalência dos problemas morais,
políticos e jurídicos.

O seu principal contributo reside na obra de César Beccaria, Dos


delitos e das penas, obra que incorpora no domínio do direito
penal os princípios fundamentais da filosofia moral e política do
iluminismo francês. No que se refere à gnoseologia, o

iluminismo italiano visou sobretudo moderar as teses extremistas


do iluminismo francês, optando por um prudente celectismo,
mediante o qual aquelas teses perdem grande parte da sua
virulência e da sua força renovadora. Os dois centros do iluminismo
italiano foram Nápoles e Milão. Em Nápoles, o
espírito do iluminismo encontra a sua primeira realização

na História civil do Reino de Nápoles (1723) de .Pedro Giannone


(1676-1748), obra que pretendia mostrar como o poder eclesiástico
tinha, através de sucessivas usurpações, limitado e enfraquecido o
poder político, e quanto convinha a este confinar o

poder eclesiástico no puro âmbito espiritual. Um dos fins da obra


de Giannone era "o esclarecimento das nossas leis pátrias e das
nossas instituições e

costumes" (História, intr., ed. 1823, 1, p. 213).


Uma figura que pertence mais ao iluminismo francês do que ao
italiano é a do abade napolitano Fernando Galiani (1728-87) que foi
durante dez anos

(1759-69) secretário da Embaixada do Reino de Nápoles em Paris e


dominou os salões da capital francesa com o seu espírito e o seu
brio. Galiani foi especialmente economista. O ensejo do seu tratado
Da moeda (1751) era o de criticar a tese do mercantilismo de que a
riqueza de uma nação consistia na posse de metais preciosos. As
suas

ideias filosóficas, não expostas de forma sistemática, mas lançadas


aqui e ali como ditos de espírito, estão contidas nas Cartas
(escritas em francês) e

são em tudo conformes às ideias dominantes no ambiente francês


em que Galiani viveu. Os filósofos que afirmam que tudo vai bem no
melhor dos mundos, considera-os Galiani verdadeiros ateus que, com
receio de serem queimados, não chegam a concluir o seu silogismo. E
eis aqui, segundo ele, o silogismo: "Se um Deus tivesse criado o
mundo, este seria sem dúvida o melhor de todos os mundos; mas não
é, nem de longe; portanto, Deus não existe". A estes ateus
camuflados cumpre

responder, segundo Galiani, da maneira seguinte: "Não sabeis que


Deus criou este mundo do nada? Pois bem, nós temos portanto Deus
por pai e o

nada por mãe". Decerto que o nosso pai é unia

grandíssima coisa, mas a nossa mãe não vale nada. Temos algo do
pai, mas recebemos também alguma coisa da nossa mãe. O que há de
bom no mundo
vem do pai e o que há de mau da senhora nada, nossa mãe, que não
valia grande coisa (Carta ao

Abade Mayeul, 14 de Dezembro de 1771). Contra os

ateus e os materialistas, aduz o argumento dos dados chumbados.


"Se dez ou doze lances de dados vos fizerem perder seis francos,
credes firmemente que isso é devido a uma manobra hábil, a uma
combinação artificiosa, a uma artimanha bem urdida; mas vende
neste universo um número tão prodigioso de combinações mil e mil
vezes mais difíceis e complicadas, mais elaboradas e úteis, não
supondes, de facto, que os dados da natureza estejam igualmente
chumbados e que haja lá em cima um grande trampolineiro que se
diverte a enganar-vos". Galiani está convencido de que o mundo é
uma máquina que se move e caminha necessariamente e que, por
consequência, nele não há lugar para a liberdade dos homens.
Todavia, o homem julga-se livre e a persuasão da liberdade
constitui a própria essência do homem. Como resolver a
contradição? "Se houvesse um único ser livre no universo, não
poderia haver Deus, não poderia haver laços entre os seres. O
universo desintegrar-se-ia. E se o homem não estivesse íntima e
essencialmente convencido de ser

sempre livre, a moral humana não seria o que é.

A convicção da liberdade é suficiente para estabelecer uma


consciência, um remorso, uma justiça, recompensas e castigos. Ela
basta paira tudo, e eis assim o mundo explicado em duas palavras".
Está demonstrado que nós não somos livres, mas agiremos sempre
como se o fôssemos do mesmo modo que veremos sempre quebrado
um pau submerso na água, conquanto o raciocínio nos diga que o não
está (Carta, a Madame d'Epinay, 23 de Novembro de 177 1).
Do sensualismo francês extraiu o fundamento das suas doutrinas
Antonio Genovesi (1712-69), que foi o primeiro na Europa a
professar na universidade a nova ciência da economia. Leccionou, de
facto, a partir de 1754 a disciplina de lições de comércio na

Universidade de Nápoles. Genovesi considera como princípio motor,


quer dos indivíduos, quer dos corpos políticos, o desejo de evitar a
dor que deriva da necessidade insatisfeita e chama a tal desejo
interesse, considerando-o como o que incita o homem, não só à sua
actividade económica, mas também à criação das artes, das ciências
e a todas as virtudes (Liç. de Comércio, ed. 1778, 1, 57). Genovesi é
também autor de obras filosóficas: Meditações filosóficas sobre a
religião e sobre a moral (1758); Lógica (1766), que é um resumo
italiano de um manual latino de lógica que Genovesi publicara em
1745 e que conheceu um grande êxito na Europa; Ciências
metafísicas (1766); Diceosina, ou seja, doutrina do justo e honesto
(1776). Nas Meditações retoma à sua maneira o procedimento
cartesiano, considerando, porém, que o primeiro princípio não é o
pensa10

mento mas o prazer de existir. "Eu existo, de facto. Este


pensamento e o prazer que implica, enche-me por completo; e, visto
que é belo e grande, de hoje em

diante esforçar-me-ei tanto quanto puder por me deter

nele e fazer, se possível, por que se converta, tanto por reflexão


como por natureza, na substância de todos os meus pensamentos e
dos outros prazeres meus" (Meditações, 1). Deste modo, o prazer
vem a ser para Genovesi o acto originário do ou, o fundamento e a
substância de toda a sua vida. E a própria razão toma-se numa
"faculdade calculadora" de tudo o que existe ou é possível. Esta
orientação, que parece proceder de Helvétius, não impede Genovesi
de defender a tese do espiritualismo tradicional: a espiritualidade e
a imortalidade da alma, o finalismo do mundo físico e a existência
de Deus.

Caetano Filangieri (1752-88) inspirou-se em Montesquieu ao


escrever Ciência da legislação (1781-88), em que se vale da obra do
filósofo francês para extrair dela o que se deve fazer para o
futuro, ou seja, para tirar dela os princípios e as regras de uma
reforma da legislação de todos os países. Da reforma da legislação,
espera Filangieri o progresso do género humano para a felicidade e
a educação do cidadão. <Faremos ver, diz ele no

Plano da obra (ed. Vilari, 1864, p. 55), como uma

sábia legislação servindo-se do grande móbil do coração humano e


dando uma direcção análoga ao

estado presente das coisas, àquela paixão principal da qual todas as


outras dependem, àquela paixão que é ao mesmo tempo o germe
fecundo de tantos bens e de tantos males, de tantas paixões
benéficas

11

de tantas paixões perniciosas, de tantos perigos e

de tantos remédios, servindo-se, dizia eu, do amor próprio, poderá


introduzir a virtude entre as riquezas dos modernos, pelos mesmos
meios com que as

antigas legislações a introduziram entre as legiões dos antigos".


Inspirado por esta confiança optimista na
função formativa e criadora da lei, Filangieri delineia

o seu plano de legislação, em que se deve salientar a

defesa da educação pública, defesa que parte do princípio de que só


ela pode garantir a uniformidade das instituições, das máximas e
dos sentimentos e que por isso só a menor parte possível dos
cidadãos s-- deixa à educação privada. Mas em relação às
ponderadas análises de Montesquieu, o optimismo de Filangieri com
respeito à acção legislativa parece utópico.

Mário Pagano (1748-99), nos Ensaios políticos dos princípios,


progressos e decadência da sociedade (1783-85), retoma a doutrina
de Vico sobre as três idades e sobre os fluxos e refluxos
históricos, dentro do espírito do iluminismo. Mas Pagasio é
completamente alheio à problematicidade da história que domina a
obra de Vico. O fluxo e refluxo das nações é para ele uma ordem
fatal, que se deve mais a causas físicas do que a causas morais.
Pagano considera o mundo da história como um mundo natural, cujas
leis não são diferentes das do mundo físico. "A natureza é uma
contínua e ininterrupta passagem da vida à morte e da morte à vida.
A geração o a destruição, com ritmo veloz, num

perpétuo circuito, sucedem-se sem interrupção. E os

componentes que constituem a grande massa do

12

universo unem-se e dissolvem-se numa perene sucessão; o tudo


perece, tudo se renova, por meio das diversas catástrofes que
corrompem a ordem antiga das coisas e produzem novas formas, que
se assemelham inteiramente às velhas, e assim repetem os mesmos
tempos" (Ensaios, 1, 3). A decadência e a morte das nações é pois
inevitável depois de alcançarem o estádio do máximo florescimento.
O maior triunfo da razão é o princípio do fim Qb., i, 4). O homem
não tem o poder de afastar as catástrofes que ameaçam a
sociedade pela força das coisas. E o motivo é que ele é um ser
sensível e que, por isso, está ligado à natureza e à mercê de todos
os seus movimentos acidentais. "A função natural da razão é a de
dirigir, e não extinguir o sentimento (isto é, a sensibilidade),
purificá-lo, e não

oprimi-lo. O homem vive tanto como sente. E, dado que as sensações


se produzem em nós pela impressão dos objectos exteriores, é o
homem, quando sente assim, um ser passivo e escravo das coisas
externas de que está rodeado; a sua existência é precária e
depende da existência dos objectos exteriores. A cadeia dos
acontecimentos acidentais envolve-o e arrasta-o como o torvelinho
das ondas faz rodopiar os corpos que nelas flutuam" (1b., VI, 1).
Somente pelas suas convicções naturalistas e sensualísticas Pagano
adere à tese de Vico sobre o carácter primitivo da poesia. No seu
Discurso sobre a origem e natureza da poesia, interpreta o
nascimento da poesia a partir das paixões como o

efeito da "impressão produzida na máquina pelo objecto" (Discurso,


2); na máquina, isto é corpo hw

13

'mano. E atribui a causas puramente físicas o ressurgir da poesia na


idade da razão. "E agora que as

nações são cultas e educadas, e a razão acabou com o império da


fantasia, se por uma força de temperamento em ninguém despertar
e ressurgir aquele fantástico furor que experimentaram
naturalmente as primeiras nações, teremos versificadores o não
poetas, cópias e não originais" (lb., 12).

§ 501. O ILUMINISMO EM MILÃO

O outro centro do iluminismo italiano foi Milão, onde uma plêiade de


escritores, se reuniu em torno de um periódico, 11 café, que teve
vida breve e intensa (1764-65). O jornal, concebido segundo o

modelo do Spectador inglês, foi dirigido pelos irmãos Verri, Pedro e


Alexandre, e nele colaborou, entre outros, César Beccaria.
Alexandre Verri, (1741-1816) foi literato e historiador. Pedro Verri
(1728-97) foi filósofo e economista. No seu Discurso sobre a índole
do prazer e da dor (1781), Podro Verri sustenta o princípio de que
todas as sensações, agradáveis ou dolorosas, dependem, não só da
acção imediata dos objectos sobre os órgãos corpóreos, mas

também da esperança e do temor. A demonstração desta tese


começa por uma análise do prazer e da dor moral reportados a um
impulso da alma para o futuro. O prazer do matemático que
descobriu um

teorema deriva, por exemplo, da esperança dos prazeres que


colherá no futuro, da estima e dos benefícios que a sua descoberta
lhe trará. A dor causada por uma desgraça é semelhante ao temor
das

14

dores e das dificuldades futuras. Ora, como a esperança é para o,


homem a probabilidade de viver melhor rio futuro do que no
presente, supõe sempre a carência de um bem e é portanto o
resultado de um efeito, de uma dor, de um mal (Disc. 3). O prazer
moral não é mais do que a rápida cessação da dor e

é tanto mais intenso quanto maior for a dor da privação ou da


necessidade (lb., 4). Verri estende a

sua doutrina também aos prazeres, mostrando que frequentemente


o prazer físico não é mais do que a cessação o de uma privação
natural ou artificial do homem (Ib., 7). À objecção de que a tese se
pode inverter, dado que parece também verosímil que toda a dor
consista na rápida cessação do prazer, Verri responde que uma
semelhante geração recíproca não pode dar-se, porque "o homem
nunca poderia começar a sentir prazer nem dor; de contrário, a
primeira das duas sensações deste género seria a primeira
hipótese, o que é absurdo" (1b.,
6), Verri chega a confirmar a conclusão que Maupertuis (§ 493)
extraíra do seu cálculo, e que é a de que a soma total das dores é
superior à dos prazeres. De facto, a quantidade do prazer nunca
pode ser superior à da dor porque o prazer não é mais do que a
cessação da dor. "Mas todas as dores que não terminam
rapidamente são uma quantidade de mal que na sensibilidade
humana não encontra compensação, e em todos os homens ocorrem
sensações dolorosas que cedem lentamente" (1b., 6). Também os

prazeres que as belas artes proporcionam têm a mesma origem: o


fundamento delas reside naquelas dores que Verri designa por
dores inominadas. A

15

arte nada diz aos homens que teMam. de contentamento, mas, em


contrapartida, fala aos que se deixam dominar pela dor ou pela
tristeza. o magistério da arte consiste sobretudo em "espalhar as
belezas consoladoras da arte de modo que exista um intervalo
suficiente entre, uma e outra para se poder voltar à sensação do
alguma dor inominada, ou em fazer nascer de quando em quando,
propositadamente, sensações dolorosas e em acrescentar-lhes
depois uma ideia risonha, que docemente surpreenda e rapidamente
faça cessar a dor" (1b., 8). A conclusão é que "a dor é o princípio
motor de todo o género humano". E deste pressuposto parte a outra
tese que Verri defende na sua obra Sobre a felicidade. Para o
homem é impossível a felicidade pura e constante, e, ao invés, é
possível a miséria e a infelicidade.
O excesso dos desejos relativamente às nossas capacidades, é a
medida da infelicidade. A ausência dos desejos é mais um indício de
simples vegetar, do que de viver, ao passo que a violência dos
desejos pode ser experimentada por todos e é talvez um estado
duradouro. A sabedoria consiste em proporcionar em todos os
campos os desejos com as possibilidades, e por isso só pode ser
feliz o homem esclarecido e virtuoso.

§ 502. ILUMINISMO ITALIANO: BECCARIA

A obra de César Beccaria. (15 de Março de


1738-28 de Novembro 1794) Dos delitos e das penas (1764) é o
único escrito do iluminismo italiano que teve uma repercussão
europeia. Traduzido para fran16

cês pelo Abade Morellet e publicado em Paris em


1766, traduzido em seguida nas demais línguas europeias, pode
dizer-se que representa o ponto de vista do iluminismo no campo do
direito penal. Os princípios de que a obra parte são os de
Montesquieu. e

de Rousseau. O escopo da vida social é "a máxima felicidade


repartida pelo maior número"; fórmula ulteriormente adoptada por
Bentham. O estado nasce de um contracto e a única autoridade
legitima é a dos magistrados que representam a sociedade unida
pelo contracto (Dos delitos, § 3). As leis são as condições do pacto
originário e as penas são o motivo sensível para reforçar e garantir
a acção das leis. Destes princípios deriva a consequência
fundamental, que inspira todo o ensaio. "As penas que ultrapassam a
necessidade de manter a conservação da saúde pública, são injustas
por sua natureza; e tanto mais justas são as penas quanto mais
sagrado e inviolável é a segurança, e maior a liberdade que o
soberano reserva para os súbditos" Qb., § 2).

Deste ponto de vista nascem os problemas debatidos por Beccaria.


Será a morte verdadeiramente uma pena útil e necessária para a
segurança o a boa ordem da sociedade? A tortura e os tormentos
são justos e atingem o Em que as leis se propõem? As mesmas penas
serão igualmente úteis em todos os tempos? Ora, o fim da pena não
é outro senão o de impedir que o réu cause novos danos aos seus
concidadãos e evitar que outros pratiquem danos iguais. É
necessário, pois, escolher aquelas penas e

o modo de as infligir que, mantendo a proporção com o delito


cometido, exerçam uma impressão mais

17

c6caz e duradoura sobre a alma dos homens e sejam menos


dolorosas para o corpo do réu (lb., § 15). Mas o réu não é tal antes
da sentença do juiz, nem

a sociedade lhe pode tirar a protecção pública antes que se tenha


decidido que ele violou os pactos com os quais; ela lhe foi concedida.
A tortura é portanto, ilegítima: e é também inútil pois é vão supor
que "a dor se torne cadinho da verdade, como se o critério dela
residisse nos músculos e nas fibras de um miserável". A tortura é o
meio seguro de absolver os criminosos robustos e de condenar os
fracos inocentes, é uma questão de temperamento e de cálculo que
varia em cada homem consoante a sua robustez e sensibilidade. E
coloca o inocente em piores condições do que o réu, que, se resiste
à tortura, é declarado inocente, ao passo que ao inocente
reconhecido como tal ninguém lhe pode tirar o mal produzido pela
tortura (lb., § 12). Quanto à pena de morte, Beccaria pergunta-se
que direito é esse que os homens se arrogam, de matar os seus

semelhantes? Tal direito não pode provir do contrato social, porque


é absurdo que os homens tenham neste contrato conferido aos
outros o poder de lhes tirar a própria vida. A pena de morte não é
um

direito, mas "uma guerra da nação com um cidadão". Justificar-se-


ia apenas no caso de ser o verdadeiro e único freio para impedir os
homens de praticarem delitos, mas é precisamente isto que
Beccaria nega. Não é a intensidade da pena que produz o efeito
mais forte sobre a alma humana, mas a extensão dela, porque a
nossa sensibilidade é mais fácil e estavelmente movida por mínimas
e
18

continuadas impressões do que por um forte mas passageiro


impulso. As paixões violentas surpreendem os homens, mas não por
muito tempo; por isso, num

governo livro e tranquilo, as impressões devem ser

mais frequentes do que fortes. "A pena de morte toma-se um


espectáculo para a maioria das pessoas
e um objecto de compaixão e de desdém para alguns; ambos estes
sentimentos dominam mais a alma dos espectadores do que o poderá
fazer o salutar terror que a lei pretendo inspirar. Mas nas penas
moderadas o contínuas, o sentimento dominante é este último,
porque é o único. O limite que o legislador deveria fixar ao rigor das
penas parece consistir no

sentimento de compaixão, quando este começa a

prevalecer sobre qualquer outro na alma dos espectadores de um


suplício, mais feito para eles do que para o réu (lb., § 16). Aquele
que vê perante si o grande número de anos que há-de passar na

escravidão, faz uma comparação útil de tudo isso com a incerteza


do êxito dos seus delitos e com a brevidade do tempo que gozaria
os frutos do seu crime. Não é necessário que a pena seja terrível; é
necessário, isso sim, que ela seja certa e infalível. "A certeza de um
castigo, se bem que moderado, produzirá sempre uma impressão
mais forte do que um outro mais terrível, aliado à esperança da
impunidade" (1b., § 20). Seja como for, a verdadeira medida dos
delitos é o mal que causam à sociedade. Não se deve tomar em
consideração o intuito, que é diferente de indivíduo para indivíduo e
não se presta a entrar nas normas gerais de um código; e tão-pouco
a consideração do pecado. O pecado diz

19

respeito à relação entre o homem e Deus, ao passo que a única base


da justiça humana é a utilidade comum (1b., § 24). A exigência geral
da legislação penal é indicada por Beccaria no fim da obra. "Para que
toda a pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um
cidadão particular, deve ser essencialmente pública, imediata, a
mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcionada aos delitos
e ditada pelas leis" (Ib., § 42).

Em face do escrito agora examinado, as outras obras de Beccaria


têm escasso relevo. Nas Investigações em torno da natureza do
estilo (1770) utiliza pressupostos sensualistas. Distingue as ideias
principais ou necessárias que asseguram a verdade de um juizo, das
ideias acessórias destinadas apenas a aumentar a força e a
impressão do mesmo juizo.

O estilo consiste na escolha e no uso das ideias acessórias. Tal


escolha deve considerar sobretudo o interesse ligado às ideias, isto
é, à sua relação com o prazer e com a dor. Beccaria vale-se aqui dos
elementos da psicologia de Condillac.

§ 503. ILUMINISMO ITALIANO: ROMAGNOSI. GiOIA

A influência de Condillac é também evidente nos escritores do


iluminismo italiano que abordaram o problema gnoseológico. Giovanni
Domenico Romagnosi (1761-1835) foi sobretudo um jurista, que
seguiu as pisadas de Filangieri e de Beccaria. As questões com que
deparou na sua ciência conduziram-no aos problemas gnoseológicos,
que procurou resolver no

20

sentido de um empirismo revisto e corrigido (Que é a mente sã?,


1827; Pontos de vista fundamentais sobre a arte da lógica, 1832).
Romagnosi não considera possível extrair da sensação todas as
faculdades e conhecimentos humanos, como o fez Condillac. Na
sensação não vê mais do que uma
simples modificação passiva, em relação à qual a
percepção Representa já um progresso, porquanto consiste na
apropriação activa de um modo determinado e discernível de sentir
(Vedute, 1. 6). Nas percepções, na memória e bem assim na dúvida,
no juízo e em todos os actos da inteligência actua, segundo
Romagnosi, um poder concreto, simples, uniforme, imutável,
universal, que ele chama de sentido racional o que constitui a
unidade de desenvolvimento do espírito humano desde o sentido e o
instinto até à razão inteiramente desenvolvida ou "razão
dominante". As funções do sentido racional não são criadas
espontaneamente pela alma, mas são sempre estimuladas por uma
intuição externa e a ela associadas. Constituem a reacção que o
nosso eu

pensante opõe à acção das coisas exteriores (Que é a mente sã?, §


10). O sentido lógico é pois um

produto natural e as suas leis são leis naturais, semelhantes às que


determinam a acção de um espelho reflector (1b., § 10). A lei
fundamental da inteligência é a que estabelece a relação entre a
acção do objecto e a reacção analítica do sentido lógico, relação da
qual nasce a percepção do ser e da acção das coisas (b., § 12).

É fácil notar o carácter naturalista e determinista desta concepção


gnoseológica. Aliás, naturalismo e

21

determinismo dominam, também as concepções morais e políticas de


Romagnosi. A sociedade vive e

desenvolve-se segundo leis naturais e através de fases constantes,


precisamente como o indivíduo. A moralidade é o conjunto das
condições necessárias para que o homem viva em sociedade e
persiga de harmonia com a sociedade os seus fins naturais que são a
conservação, a felicidade e o aperfeiçoamento. Conquanto
Romagnosi tenha conhecido (e criticado mal) a doutrina de Kant, a
sua doutrina ainda está ligada à orientação sensualista do
iluminismo francês.

Uma variante análoga do sensualismo de Condillac patenteia-se nas


obras filosóficas (Elementos de filosofia, 1818; Ideologia, 1882) de
Melchiorre Gioia (1767-1828), mais benemérito pelos seus estudos
sobre estatística o pela defesa que fez da utilidade desta ciência
para fins sociais. Gioia combate a tese de que os fenómenos da
consciência dependam apenas da acção dos sentidos. Se assim
fosse, a inteligência deveria ser proporcionada à intensidade das
sensações, ao passo que a experiência nos mostra que esta não
aumenta, mas sim, diminui, a energia das faculdades intelectuais.
Uma força independente dos sentidos é necessária, não só para
decompor, isto é, para considerar separadamente as qualidades dos
corpos e descobrir as suas relações, mas também para decompor,
isto é, para dar lugar a produtos que não existem na natureza. Da
mesma forma que não se pode confundir a madeira com o machado
que a
corta, também não se pode confundir a força
22

intelectual com o material que os sentidos oferecem ao hornem


(Ideologia, ed. 1822, 11, p. 175 sgs.).

Deve recordar-se, uma vez que os seus manuais introduziram nas


escolas italianas a fil, osofia de Locke e de Condillac, o Padre
Francisco Soave, (1743-1816), professor da Universidade de Parma,
quepermaneceu sempre, fiel à filosofia de Condillac, que elo
conheceu durante a estadia do filósofo francês na corte de Parma.

NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 500. Giannone, opere, Milão (Clássicos italianos), 1823.-Nicohni,
Gli scritti e Ia fortuna li P. G., Bari, ID., Le teorie politiche di P. G.,
Nápoles, 1915.

Gãliani, Della moneta, ed. Nicolini, Bari, 1915; Correspondance, ed.


Perey e Maugras, 2 vol., Paris 1881;
11 pen~ro dellIab. G., ant. -a cargo de Nicolini, Bari,
1909.

Genovesi, Sul vero fine delle lettere e delle scienze,


1753; De jure et officiis, 1764 (além das ob. ctt. no texto).

Fil-angieri, Seienza della legislazione, ed. P. VillIari,


2 vol., Florença, 1864. - S. COTTA, G. F. e il problema della legge,
Turim, 1954.

Pagano, Saggi politici, reimp., Calpolago, 1837; ed. Colletti, Wonha,


1936.

§ 501. Pietro Verri, Op. filos, e di econ. politica,


4 vol., Milão, 1818; Opere varie, ao cuidado de N. VaJeri, vol. I,
Florença, 1947. - OTTOLINI, P. V. e suoi tempi, Palermo, 1921; N.
VALERI, P. V., Milão, 1937.

§ 502. Beccaria, Opere, 2 vol,. Milão (Clássicos ital,ianos), 1821;


Seritii e lettere inedite, Milão, 1910; Opere seelte, ed. Mondolfo,
Wonha, 1924.

DE RuGGIERO, Il pensiero político meridionale nei sec. XVIII e


XIX, Bari, 1922.

23
§ 503. Romagnosi, Opere, ed. Marzucchi, 19 vGI., Florença, 1832-
39; ed. De Giorgi, 8 vol. Milão, 1841-52. -A. NORSA, II pens. filos,
di G. D. R., Milão, 1930; CABOARA, La ftl. del diritto di G. D. R.
Città di Castello,
1930; SOLARI, in "Riv. di Filos". 1932.

Gioia, Del merito e delle ricompenze, 1818; Esercizio logico sugli


errori di ideologia e di zoologia, 1823; Filosofia della statistica,
1822.

Soave, Elementi di filos.; Istruzioni di logica, metalisica ed etica,


Milão, 1831.

G. CAPONE BRAGA; La fil. franc. e it. del 700, cit..

24

XIV

O ILUMINISMO ALEMÃO

§ 504. ILUMINISMO ALEMÃO: WOLFF

o iluminismo alemão deve a sua originalidade, relativamente ao


inglês e ao francês, mais do que a novos problemas ou temas
especulativos, à forma lógica com que apresenta e trata tais temas
e problemas. O ideal de uma razão que tem o direito de atacar, com
as suas dúvidas e os seus problemas, o mundo inteiro da realidade, é
transformado pelo iluminismo alemão num método de análise
racional, a um tempo cauteloso e decidido, que avança demonstrando
a legitimidade de cada passo e a possibilidade intrínseca dos
conceitos de que se serve, o seu fundamento (Grund). É este o
método da fundamentação que devia ser característico da filosofia
alemã posterior e que alcançou o seu grande triunfo na obra de
Kant. O fundador deste método
25

foi Wolff que, sob este aspecto, é o máximo representante do


Iluminismo alemão. As obras de Wolff, tão escrupulosas e pedantes
na sua construção sistemática, contrastam de maneira estranha
com o carácter inspirado, genial e divertido dos escritos dos
maiores iluministas ingleses e franceses. Mas a exigência iluminista
concretiza-se e incorpora-se precisamente na forma dessas obras,
pois se trata do objectivo de uma razão que pretende justificar-se
por si e reencontrar em si própria, isto é, no próprio procedimento
analítico, o fundamento da sua validez.

Christian Wolff nasceu em Breslau a 24 de Janeiro de 1679.


Nomeado professor em Halle em 1706, foi destituído em 1723,pelo
rei Frederico Guilherme 1 a pedido dos seus colegas pietistas,
Francke e Lange.
O pietismo era uma corrente protestante, fundada em

fins de 1600 por Ph. J. Spencer (1635-1705), que insistia no


carácter prático e místico do cristianismo e combatia as tendências
intelectualistas e teológicas.
O que escandalizou especialmente os colegas de Wolff foi o seu
Discurso sobre a filosofia prática dos Chineses, na qual, à maneira
dos iluministas franceses, punha Confucio entre os profetas, ao
lado de Cristo. Subido ao trono Frederico H, Wolff foi
restabelecido na sua cátedra de Halle (1740), onde ensinou até à
sua morte (1754).

A obra de Wolff exerceu sobre toda a cultura alemã uma influência


extraordinária. Num primeiro período, escreveu em alemão;
posteriormente, em
latim, pois queria falar como "preceptor de todo o

género humano". Na realidade, a sua eficácia mais durável foi a que


demonstrou no domínio da
26

linguagem filosófica. Grande parte da terminologia filosófica, dos


séculos XVIII e XIX e da que ainda hoje está em uso sofreu a
influência das definições e das distinções wolfianas.

As obras alemãs de Wolff são as seguintes: Pensamentos racionais


sobre as forças do entendimento humano (1712); Pensamentos
racionais sobre Deus, o mundo e a alma dos homens (1719);
Pensamentos racionais sobre a acção humana (1720); Pensamentos
racionais sobre a vida social dos homens (1721); Pensamentos
racionais sobre as operações da natureZa1723); Pensamentos
racionais sobre a finalidade das coisas naturais (1724);
Pensamentos racionais sobre as partes dos animais, dos animais e
das plantas (1725). As suas obras latinas são: Philosophia rationalis
sive Logica (1728); Philosophia prima sive Ontologia (1729);
Cosmologia generalis (1731); Psychologia empirica (1723);
Psychologia racionalis (1734); Theologia naturalis (1736-37);
Philosophia practica universalis (1738-39); Jus naturae (1740-48);
lus gentium (1749); Philosophia moralis (1750-53).

O objectivo final da filosofia é, segundo Wolff, iluminar o espírito


humano de modo a tornar possível ao homem o uso da actividade
intelectual na qual consiste a sua felicidade. A filosofia tem,
portanto, uma finalidade prática, que é a felicidade humana; mas só
se pode atingir esta finalidade através de um

conhecimento claro e distinto. Tal objectivo não poderá ser atingido


se não existir a "liberdade filosófica" que consiste na possibilidade
de manifestar publicamente o que se pensa sobre as questões
filosóficas (Lógica, § 151). Sem liberdade filosófica,

27

não é possível o progresso do saber, já que então "cada um é


obrigado a defender como verdadeiras as opiniões comummente
transmitidas, mesmo se lhes parecem falsas" (1b., § 169). Wolff
aceita e perfilha, a exigência iluminista da liberdade e interpreta-a
como libertação da tradição. A filosofia é "a ciência das coisas
possíveis enquanto tais" assim como das "razões pelas quais as
coisas possíveis se realizam", entendendo-se por "possível" o que
não implica contradição. As regras do método filosófico devem pois
ser idênticas, segundo Wolff, às do método matemático. "No
método filosófico, diz Wolff, não há necessidade de fazer uso de
termos que não se tenham tornado claros através de uma definição
exacta, nem se pode admitir como verdadeiro algo que não tenha
sido suficientemente demonstrado; nas proposições, cumpro
determinar com igual cuidado o sujeito e o predicado e tudo deve
ser ordenado de modo a que sejam premissas aquelas coisas em
virtude das quais as seguintes são compreendidas e justificadas"
(lb., § 139). Wolff divide a filosofia em conformidade com as
actividades fundamentais do espírito humano e, uma vez que tais
actividades são substancialmente duas, o conhecer e o querer,
assim os dois ramos fundamentais da filosofia são a filosofia
teorética ou metafísica e a filosofia prática. Ambas pressupõem a
lógica como sua propedêutica. A metafísica divide-se, por sua vez,
nos seguintes ramos: ontologia, que concerne a todos os objectos
em geral, enquanto existem; psicologia, que tem por objecto a alma,
cosmologia, que tem por objecto o

28
mundo e teologia racional, que tem por objecto a

existência e os atributos de Deus.

Na lógica, Wolff considera como princípio supremo o princípio de


contradição, que não é apenas uma lei do pensamento mas também
de todo o

objecto possível. Em conformidade com o princípio de contradição,


os conceitos podem ser utilizados só nos limites do que contêm e os
juízos só são verdadeiros na medida em que fazem a análise dos
seus sujeitos. Wolff não exclui no entanto a experiência, que nas
ciências naturais se deve aliar ao raciocínio e que mesmo nas
ciências racionais deve ser utilizada para formar as definições
empíricas das coisas. Contudo, sobre tais definições podem-se
fundamentar apenas demonstrações prováveis, não necessárias; e
tais demonstrações assumem na obra de Wolff uma grande
importância. A par das proposições necessárias, cujo contrário é
impossível, Wolff coloca as proposições contingentes (as verdades
de facto de Leibniz) cuja negação não implica contradição.

A ontologia, ou filosofia prima, é a ciência do ser em geral, isto é,


do ente enquanto é. O seu

objecto é o de demonstrar as determinações que pertencem a


todos os entes, seja absolutamente, seja sob determinadas
condições (Ontologia, § 8). Baseia-se em dois princípios
fundamentais que são o

princípio de contradição e o princípio de razão suficiente: por razão


suficiente entende-se "aquilo que nos faz compreender a razão por
que algo acontece" (1b., § 56). Com algumas modificações que a
actualizam, encontra lugar no tratado de Wolff toda

29

a metafisica arístotélico-escolástica, que ele de facto declara


querer resgatar do desprezo que se lhe votou depois de Descartes.
Isto quer dizer que os conceitos; centrais da ontologia são para ele
os de substância e de causa. Todavia, pode notar-se a tentativa de
apoiá-los numa certa base empírica. Assim Wolff afirma que as
determinações de uma coisa que não resultam de outra e não
derivam uma da outra constituem a essência da coisa mesma (1b.,
§§ 143,
144). A substância é o sujeito, duradouro e modificável, dos
atributos essenciais e dos modos variáveis de tais atributos (lb., §
770). Toda a substância é dotada de uma força que produz as
mudanças dela: mudanças que são as suas acções e têm o seu
fundamento na essência da substância (1b., § 776).

Na cosmologia, Wolff considera o mundo como um relógio ou


máquina em que nada sucede por acaso e que por isso depende de
uma ordem necessária. Dado que esta ordem necessária foi
produzida por Deus e é, portanto, perfeita, é impossível que Deus
mesmo intervenha para a suspender ou mudar, assim o milagre é
posto de parte.

Wolff divide a psicologia em empírica e racional. A primeira


considera a alma tal como ela se manifesta no corpo e emprega o
método experimental das ciências naturais. A segunda considera a
alma humana em geral, elimina, segundo o procedimento cartesiano
do cogito, a dúvida sobre a existência da alma mesma e estuda as
duas faculdades fundamentais, o conhecer e o agir. Wolff exclui a
redução da substância corporal à substância espiritual, operada por
Leibniz mediante o conceito de mónada. A alma

30

não está desde o princípio unida ao corpo, mas foi. lhe agregada de
fora, ou seja, por Deus. Sobre as relações entre alma e corpo,
Wolff admite a doutrina da harmonia preestabelecida, mas torna-a
independente da vontade de Deus admitindo que cada alma vê o
mundo apenas dentro dos limites dos seus órgãos corporais e
segundo as mutações que se verificam na sua sensibilidade.

Na teologia, que Wolff chama natural (ou racional, contrapondo-a à


fundada sobre a revelação sobrenatural, Wolff dá o máximo valor
ao argumento cosmológico da existência de Deus, aceita o
ontológico, e exclui o teológico. Na realidade, a

ordem do mundo é para ele a ordem de uma máquina e a finalidade


das coisas não é intrínseca às coisas mesmas, mas sim extrínseca e
devida à acção de Deus. Wolff remonta aos atributos da essência
divina mediante uma reflexão sobre a alma humana. E quanto aos
problemas da teodiceia, serve-se sistematicamente das soluções de
Leibniz.

Na filosofia prática mantém-se a divisão aristotélica de ética,


economia e política. A sua ética, completamente diversa da de
Leibniz, é deduzida do seu racionalismo. As normas da ética teriam
valor mesmo que Deus não existisse, porque o bem é bem por si
mesmo, e não pelo querer de Deus. Tais normas deduzem-se do Em
mesmo do homem, que é a perfeição, e reduzem-se a uma única
máxima: "Faz o que contribui para a tua perfeição, a da tua
condição e do teu próximo, e não faças o contrário". Para a
perfeição do homem contribui tudo o que é conforme à sua
natureza, e por isso também o
31

prazer que Wolff define como a percepção de uma real ou suposta


perfeição. O conceito da perfeição funda-se no pressuposto da
possibilidade do progresso do homem individual e da sociedade:
progresso que Wolff de facto considera necessário e que se
realizará à medida que a sociedade se organizar de modo a

tornar possível que cada um dos seus membros trabalhe para o


aperfeiçoamento dos outros. . O sistema de Wolff costuma ser
designado como leibniziano-wolffiano. Na realidade, apresenta
características, bastante distintas do de Leibniz. Em primeiro
lugar, nega o conceito de mónada, como substância espiritual que
constitui tanto a matéria como o espírito; deste modo, abandona-se
o conceito dominante de Leibniz, o de uma ordem universal e livre,
fundada na 'escolha do melhor. A ordem do mundo é para Wolff a
de uma máquina, sendo por isso necessária e não admitindo
liberdade de escolha. Daí deriva ainda uma terceira diferença que é
a negação da finalidade interna das coisas: estas são, decerto,
úteis, porque se prestam a ser utilizadas para o aperfeiçoamento do
homem, mas não estão intrinsecamente constituídas para tal fim.
Neste ponto está bastante mais próximo de um Diderot ou de um
Voltaire do que de um Leibmiz. Mas também se afasta , de Leibniz
pela renúncia em estabelecer um acordo entre a filosofia e a
religião revelada, acordo que Leibniz procurou por todos os meios
realizar, conformemente ao seu princípio de harmonia universal. No
sistema de Wolff só existem dois pontos verdadeiramente
leibnizianos: 1.o a doutrina da harmonia universal, que, no entanto,
se limita à

32
WOLFF

relação entre alma e corpo e é interpretada naturalisticamente; 2.a


as justificações da teodiceia. O espírito do iluminismo prevalece na
doutrina de Wolff sobre a inspiração leibniziana.

§ 505. PRECURSORES DO ILUMINISMO ALEMÃO

Podem considerar-se precursores do Iluminismo alguns pensadores


contemporâneos de Leibniz que preanunciam alguns dos temas desse
movimento Assim o holandês Walther de Tschirnhaus (1651 _1708),
que foi matemático e físico, além de autor de um livro de lógica
intitulado Medicina mentis sive artis inveniendi praecepta generalia
(1687). Este livro pretende ser uma espécie de introdução à
investigação científica e prescreve as regras que ela deve seguir. A
origem de todos os conhecimentos é a experiência, mas a
experiência entendida no sentido característico, como consciência
interior. Esta revela-nos quatro factos fundamentais que podem
servir para a descoberta de todo o saber: 1.* Somos conscientes de
nós mesmos como de uma realidade distinta, este, facto, que nos
conduz ao conceito do espírito, é o fundamento de todo o
conhecimento.
2.' Temos consciência de que somos movidos por algumas coisas que
nos interessam e por outras que não nos interessam. Deste facto
deduzimos os conceitos de vontade, conhecimento, bem e mal, e,
por. consciência de poder compreender algumas coisas e,. por
consequência, o fundamento da ética. 3.O Temos,

33

consciência de poder compreender algumas coisas t

não poder compreender outras. Mediante este facto alcançamos o


conceito de entendimento, a distinção entre o verdadeiro e o falso,
e, portanto, o fundamento das ciências racionais. 4.' Sabemos que,
através dos sentidos, a imaginação e o sentimento formam uma
imagem dos objectos externos. Neste facto @c fundam o conceito
dos corpos e as ciências naturais. Tschirnhaus está convencido de
que estes factos da experiência interior, se forem adoptados como
princípios gerais de dedução e desenvolvidos sistematicamente,
podem conduzir à aquisição de um

método útil à verdade em todas as ciências. Por outras palavras,


partilha o ideal de uma ciência universal, tal como o entendia
Leibniz, com o qual manteve relações pessoais.

No campo da filosofia do direito é notável a

obra de Samuel Pufendorf (1632-94), De iure naturae et gentium


libri octo (1672), que é a justificação do absolutismo esclarecido. O
direito natural nasce, segundo Pufendorf, em primeiro lugar do
amor-próprio que compele o homem à sua conservação e ao seu bem-
estar; e, segundo lugar, do estado de indigência a que a natureza
reduz o homem. Uma vez que o homem é por natureza um ser
racional, o direito natural é a resposta que a razão humana dá ao
problema posto ao homem pelo amor-próprio e

pela inteligência: e o seu princípio pode ser formulado da seguinte


maneira. "Cada qual, na medida das suas possibilidades, deve
promover e manter com os seus semelhantes um estado pacífico de
socialismo,

34

conforme em geral à índole e finalidade do género humano (De iure,


H, 3, 10). Consequentemente, devem considerar-se impostas pelo
direito natural todas as acções necessárias para promover tal
sociabilidade e proibidas as que a estorvam ou a dissolvam. Pela
necessidade da sociabilidade é o homem conduzido a estabelecer
convenções o pactos de que nascem em primeiro, lugar a
propriedade e o

Estado e, em seguida, os sucessivos desenvolvimentos e as


sucessivas determinações destas duas instituições fundamentais.

Nas ideias de Pufendorf se inspira outro jusnaturalista, Christian


Thomas (Thomas ius) (1655-1728), autor dos Fundamenta iuris
naturae et gentium ex sensu communí deducta (1705). Nesta obra
Thomasius vê os fundamentos da vida moral e social na própria
natureza humana e, precisamente, nas suas

três tendências fundamentais; a de viver o maior número de anos o


do modo mais feliz possível, a de evitar a morte o a dor, e a
tendência à propriedade e ao domínio. Sobre estas três tendências
se fundam respectivamente o direito, a política e a ética. O direito,
fundado na primeira tendência, visa à conservação de uma ordem
pacífica entre os homem. A política, fundada na segunda tendência,
visa a promover esta ordem pacífica por meio de acções que visem
esse fim. A ética, fundada na terceira tendência, visa à aquisição da
paz interior dos indivíduos. Em Thomasius patenteiam-se já as
tendências iluministas. Ele afirma resolutamente que a filosofia se
funda na razão e tem como escopo Somente o

35

bem-estar terreno dos homens, enquanto a teologia, que se funda


na revelação, visa ao bem-estar celeste. Ademais, vê-se claramente
no seu pensamento a independência da esfera do direito em relação
à esfera teológica.
§ 506. O ILUMINISMO WOLFFIANO

Depois de Wolf, os problemas filosóficos foram tratados na


Alemanha de uma maneira mais ou menos conforme com as soluções
que este filósofo lhe dera, mas sempre conformemente ao método
que elo empregara. A filosofia wolffiana dominou durante largo
tempo nas universidades germânicas; mas não muitos dos seus
representantes conservaram um autêntico interesse histórico.
Entre os menos servis adeptos de Wolff conta-se Martin Knutzen
(1713-51) que foi professor em Conisberga e mestre de Kant. É
autor de um Systema causarum efficientium, no qual substitui a
doutrina do influxo físico entre os corpos pela da harmonia
preestabelecida, clarificando e levando ao seu termo uma tendência
que era já evidente no sistema de Wolff.

Entre os adversários de Wolff, o mais notável é Christian August


Crusius (1715-75). No seu Esquema das verdades de razões
necessárias (1745) Crusius combate o optimismo e o determinismo.
Nega que o mundo seja o melhor de todos os mundos possíveis e que
nele domine uma ordem necessária (como queria Wolff) ou uma
harmonia preestabelecida (como queria Leibniz). Crusius critica
também, noutro 36

escrito, o princípio de razão suficiente, ao qual contrapõe como lei


fundamental do pensamento que o que não pode ser pensado é falso
e o que não pode ser pensado como falso é verdadeiro.

Maior relevo tem a personalidade de João Henrique Lambert (1728-


77), que manteve com Kant uma importante correspondência e que,
além de filósofo, foi matemático e astrónomo. A sua primeira obra
filosófica é o Novo órgão (1764), dividido em quatro partes. A
primeira, Dianoiologia, estuda as leis formais do pensamento; a
segunda, Aletiologia, estuda os elementos simples do conhecimento;
a terceira, Semiótica, aborda as relações das expressões
linguísticas com o pensamento; e a quarta, Fenomenologia, as fontes
dos erros. Enquanto a dianoiologia reproduz substancialmente a
lógica formal de Wolff, a aletiologia é a parte mais original da obra
de Lambert. Esta parte é uma espécie de análise dos conceitos, que
tem por fim chegar aos conceitos mais simples e indefiníveis. Os
conceitos simples são por natureza não contraditórios, porquanto
carecem de multiplicidade interna. A sua possibilidade consiste,
portanto, na sua imediata "pensabilidade". Só são conhecidos
através da experiência, mas são independentes dela porque a sua
possibilidade não é empírica, e neste sentido são a priori. Aos
conceitos simples pertencem: solidez, existência, duração,
extensão, força, consciência, vontade, mobilidade, unidade, e bem
assim as qualidades sensíveis, luzes, cores, sons, ete. O problema
que nasce do reconhecimento dos conceitos simples é o da sua
possível combinação. Assim como a geometria, combinando

37

os pontos, as linhas, as figuras, constitui todo o seu sistema,


também deve ser possível construir, mediante a combinação dos
conceitos simples, todo e qualquer sistema de conhecimento.
Bastará encontrar os princípios e os postulados que exprimem
(como acontece na geometria) as relações existentes entre os
elementos simples. O conjunto destes postulados constituiria o que
Lambert chama o "reino da verdade" a que pertenceriam a
aritmética, a geometria, a cronometría, a foronomia (doutrina das
leis do movimento), e todas as ciências possíveis. A Semiótica,
terceira parte do Novo órgão, é a investigação das condições que
tornam possível exprimir por palavras e sinais o reino da verdade.

A outra obra de Lambert, Arquitectónica ou teoria dos elementos


simples e primitivos no conhecimento filosófico e matemático
(1771), apresenta um

problema que foi na mesma altura tratado por Kant: o da passagem


do mundo do possível ao mundo real, do que é simplesmente
pensável, enquanto isento de contradição, ao que existe. Lambert
observa que se o problema da lógica é o de distinguir o verdadeiro
do falso, o problema da metafisica. é o de distinguir a verdade do
sonho. Ora, o que é pensável, não existe necessariamente. A
metafisica deve juntar à demonstração da pensabilidade, a
demonstração da existência real, sem a qual se reduz a um sonho
(Arquit., § 43). Ora, os elementos objectivos do saber só podem ser
procurados, segundo Lambert, "nos sólidos e nas forças" pois só
eles constituem "algo categoricamente [real" e só eles, portanto,
podem constituir a base de um juízo sobre a existência

38

(1b., § 297). Porém, as forças não se deixam alcançar e aprisionar


pela pura lógica, mas tão-só pela sensibilidade (1b., § 374), de
maneira que só a experiência pode conferir o carácter de (realidade
aos nossos conhecimentos. Ora, a experiência dá-nos apenas
confirmações parciais dos sistemas cognitivos que constituem o
reino da verdade. Isto não implica a

garantia de uma correspondência constante entre este reino e a


realidade mesma. Tal garantia, segundo Lambert, só Deus a pode
dar. "0 reino da verdade lógica, sem a verdade metafísica que se
radica nas

coisas mesmas, seria um puro sonho, e sem a existência de um


suppositum intelligens, não só seria um s,3nho, como não existiria de
facto. Assim se chega ao princípio de que há uma verdade
necessária, eterna e imutável, do qual se infere que deve haver um
terno e imutável suppositum intelligens e que o objecto desta
verdade, isto é, o sólido e a força, têm uma necessária possibilidade
de existir" (1b., § 29). Deus é, assim, a garantia de toda a verdade:
só ele garante a relação entre o mundo lógico e o

mundo real, e, por consequência, a objectividade real do


pensamento.

Apesar da garantia metafísica a que Lambert recorre, a sua


doutrina é um claro apelo à experiência como fundamento de todo o
conhecimento válido. E igualmente apelam para a experiência as
investigações psicológicas de João Nicolau Tetens (1736-1807). A
obra principal de Tetens intitula-se Investigação filosófica sobre a
natureza humana e o seu desenvolvimento (1776-77), e é dominada
pela necessidade de conciliar o ponto de vista do empirismo

39

inglês, que reduzira a vida psíquica ao conjunto dos elementos


empíricos, com o ponto de vista de Leibniz que insistira no seu
carácter activo e dinâmico. Esta preocupação condu-lo bastante
próximo da solução que Kant dará ao problema: o reconhecimento de
funções a priori que dominam e formam a matéria sensível. Com
efeito, Tetens considera as representações originárias como a
matéria das representações derivadas. A alma tem o poder de
escolhê-las, de as dividir e separar umas das outras para depois de
novo misturar, punir e compor os fragmentos e as partes assim
obtidas. Esta capacidade activa revela-se sobretudo no poder
criativo da poesia, que é semelhante à força criadora da natureza
corpórea que, embora não crie novos elementos, produz sempre
novos corpos mediante a mistura das partículas elementares da
matéria mesma (Philow. Vers., 11,
1, 24). As análises empíricas daqueles que Tetens chama "novos
investigadores", como Locke e Condillac, Bonnet e Hume, não podem
explicar as funções do espírito, aquelas que dão origem, por
exemplo, à poesia e à geometria, nas quais há algo que transcende o
puro dado da experiência. Os princípios da ciência natural, como o
da inércia, da igualdade entre acção e reacção, e todos os outros,
têm uma certeza que não procede da observação dos factos
empíricos dos quais foram extraídos. "Existem sem dúvida
sensações que proporcionam a descoberta de tais princípios, mas
estes só se alcançam através de um raciocínio, de uma actividade
autónoma do entendimento, pela qual foi produzida cada (relação de
ideias... Estes pensamentos universais são pensamen40

tos verdadeiros, anteriores a toda a experiência. Não os


apreendemos através da abstracção nem é possível que um
exercício repetido amiúde haja ocasionado tais conexões de ideias"
(1b., 11, 1, p. 320 sgs.). Os empiristas ingleses e franceses
consideraram sobretudo os produtos mais simples do espírito;
Tetens considera, pelo contrário, os mais elevados. A geometria, a
óptica, a astronomia, estas obras do espírito humano, estas
indubitáveis provas da sua grandeza, são conhecimentos sólidos e
reais. Com que regra fundamental construiu a razão humana estes
prodigiosos edifícios? Onde pode encontrar-se o terreno o como
podem sair de simples experiências, as ideias e os princípios
fundamentais que constituem os fundamentos indestrutíveis de
obras tão altas? É precisamente aqui que se deve demonstrar na
sua máxima energia a força do pensamento (Ib., 11, 1, p. 427 sgs.).
O problema é aqui equacionado nos mesmos

termos em que será retomado por Kant na Crítica da razão pura.


Tetens conduziu-o até ao ponto em que era possível no plano da
pura análise empirista, no qual se movia. Kant, retomando-o, levá4o-
á ao plano da análise transcendental. Mas já na análise de Tetens
começam a delinear-se "o encontro e os Emites do entendimento
humano". Poderá ser o entendimento, humano a norma da realidade
em geral? "Poderemos porventura afirmar que outras Mações
universais objectivas não são pensáveis por outros espíritos, dos
quais não temos ideia alguma como

não a temos de um sexto sentido e da quarta dimensão?" (1b., 11, 1,


p. 328 sgs.). A pergunta de Tetens implica já uma resposta
negativa; e desta

41

resposta negativa parte Kant para estabelecer a


sua distinção entre fenómeno e númeno.

§ 507. ILUMINISMO ALEMÃO: BAUMGARTEN

O mais notável dos seguidores de Wolff foi Alexander Gottfried


Baumgarten (1714-62), autor de uma Metaphysica (1739) que
compendia. em 1.000 parágrafos a filosofia wolffiana e foi adoptado
por Kant como manual para as suas lições universitárias. Mas a sua
fama é devida sobretudo à Aesthetica (1750-58), que o converteu
no fundador da estética germânica e num dos mais eminentes
representantes da estética do século XVIII. O próprio termo de
estética foi introduzido por Baumgarten.

A metafísica é definida por Baumgarten como a "ciência das


qualidades das coisas, cognoscíveis sem

a fé". Antepõe à metafísica a teoria do conhecimento que ele foi o


primeiro a designar pelo termo de gnoseologia. Esta divide-se em
duas partes fundamentais: a estética, que tem por objecto o
conhecimento sensível, e a lógica, que trata do conhecimento
intelectual. A originalidade de Baumgarten reside no relevo que ele
deu ao conhecimento sensível, o qual não é por ele considerado
Somente como grau preparatório e subordinado do conhecimento
intelectual, mas também, e sobretudo, como dotado de um valor
intrínseco, diverso e independente do do conhecimento lógico. Este
valor intrínseco é o valor poético. Os resultados fundamentais da
estética de Baumgarten são substancialmente dois: ].' O
reconhecimento do

42

valor autónomo da poesia e, em geral, da actividade estética, isto é,


de um valor que não se reduz à verdade que é própria do
conhecimento lógico. 2.' O reconhecimento do valor de uma atitude
ou de uma actividade humana que era considerada inferior e,
portanto, a possibilidade de uma mais completa valoração do homem
na sua totalidade. Foi devido a este segundo ponto que Baumgarten
se tomou num dos mais notáveis representantes do espírito do
Iluminismo. A estética é definida por Baumgarten como

a "ciência do conhecimento sensível" e é também considerada como


"teoria das artes liberais, gnoseologia inferior, arte de bem pensar,
arte do análogo da razão, Aest., § 1). O fim da estética é "a
perfeição do conhecimento sensível enquanto tal" e esta perfeição
é a beleza (Ib., § 14). Por isso não pertencem ao domínio da
estética, quer aquelas perfeições do conhecimento sensível que
estão tão ocultas que permanecem sempre obscuras para nós, quer
as que não podemos conhecer senão por meio do entendimento. O
domínio da estética tem um limite inferior representado pelo
conhecimento sensível obscuro e um limite superior representado
pelo conhecimento lógico distinto; a ele pertencem apenas as

representações claras mas confusas. A beleza, como perfeição do


conhecimento sensível, é universal, mas de uma universalidade
diversa do conhecimento lógico, porque abstrai da ordem e dos
sinais e realiza uma forma de unificação puramente fenoménica. A
beleza das coisas e dos pensamentos é distinta da beleza da
consciência e da beleza dos objectos e da matéria. As coisas feias
podem ser pensadas

43

de uma maneira bela e as coisas belas podem ser pensadas de uma


maneira feia (1b., § 18). Baumgarten crê que a facúndia, a grandeza,
a verdade, a clareza, a certeza e, numa palavra, a vida do
conhecimento, podem contribuir para formar a beleza desde que se
reunam numa única percepção fenoménica e sejam, por assim dizer,
presentes e vivas no seu conjunto (1b., § 22). Neste sentido, o
conhecimento estético é um "análogo da razão; assim, não devem
ser-lhe necessariamente estranhos os caracteres que são próprios
do conhecimento racional; mas, para constituir uma obra de beleza,
estes caracteres devem estar presentes em sua vida total e serem,
precisamente na sua totalidade, intuídos como um fenómeno.
Requer-se para isso uma disposição natural, com que se nasce, e que
só pelo exercício se pode desenvolver e manter, disposição que
Baumgarten chama engenho beloconatural (ingetdum venustum
connatum, § 29). Requer-se outrossim, para se obter um feliz
carácter estético, o ímpeto estético, isto é, a inspiração ou o
entusiasmo (1b., § 78); e, além disso, a disciplina da investigação e
do estudo (Ib., § 97). Estas determinações esclarecem * que
Baumgarten pretende dizer quando define * beleza como o fim do
conhecimento sensível. Enquanto no domínio da investigação
científica o elemento sensível é o ensejo ou o meio para atingir o
conceito, na estética o elemento sensível é ele mesmo o fim da
investigação que tende a individuá-lo e a aperfeiçoá-lo no seu puro
valor fenoménico. O principio de que a beleza é determinada pela
atitude mediante a qual a aparência

44

se converte no verdadeiro fim de si própria, iria inspirar e dirigir a


Crítica do Juízo de Kant.

Mas ao mesmo tempo este princípio permite conferir,


conformemente ao espírito do iluminismo,

uma nova dignidade a aspectos da vida humana que, na época


precedente, estavam condenados a

uma irremediável inferioridade. Alguns críticos da época, e outros


mais recentes, tinham chegado a acusar Baumgarten de ter
relegado a faculdade do belo para o domínio das faculdades
inferiores, pelo que quase não valia a pena desejá-la; e um
historiador da estética alemã, Lotze, afirmou que "a estética alemã
começa com o manifesto desprezo pela sua própria matéria". Na
realidade, porém, Baumgarten respondeu antecipadamente a tais
objecções. No prefácio do seu primeiro ensaio, Meditações
filosóficas sobre argumentos concernentes à poesia (1735),
defendera a dignidade e o valor das suas investigações sobre um
tema "por muitos considerado ligeiro e muito pouco próprio do
engenho de um filósofo". Mas nos "Prolegómenos" da Estética a sua
defesa converte-se na defesa de uma parte ou

de um aspecto fundamental do homem ao afirmar decididamente


que "o filósofo é um homem entre os homens e não pode crer
verdadeiramente que uma parte tão grande do conhecimento
humano lhe seja estranha" (1b., § 6). Ã objecção de que o
conhecimento distinto (isto é, racional) é superior ao estético,
responde que " num espírito finito isso é verdadeiro apenas nas
coisas de maior importância (lb., § 8); e à observação de que as
faculdades inferiores devem ser antes dominadas que estimuladas e
45

fortalecidas, contrapõe ele que "se requer domínio sobre as


faculdades, mas não a tirania" (Ib., § 12). Desta maneira, a defesa
da estética como ciência autónoma coincide, na obra de
Baumgarten, com a defesa da dignidade e do valor de uma atitude
humana fundamental.

§ 508. ILUMINISMO ALEMÃO: O ILUMINISMO RELIGIOSO

O carácter peculiar do Iluminismo alemão, conforme se apresenta


em Wolff e nos filósofos wolffianos (incluído Baumgarten), para. os
quais a razão se identifica com o método analítico da
fundamentação, é explicado algumas vezes como resultante do
carácter alemão. Esta é uma explicação digna da metafísica
escolástica, porquanto recorre a uma qualidade oculta. Ademais, é
uma explicação falsa no terreno dos factos, porque o iluminismo
alemão encontrou também expressão numa literatura ágil e popular,
semelhante à francesa. E esta literatura não tem menos valor do
que a outra, dado que entre os seus cultores figura Lessing.

Esta segunda corrente do iluminismo alemão discutiu principalmente


o problema religioso e, tal corno as expressões análogas do
iluminismo inglês e francês, está dominada pelo deísmo, que
encontrou alguns dos seus defensores entre os próprios pietistas.
O primeiro defensor declarado do deísmo foi Hermann Samuel
Reimarus (1694-1678), autor de um Tratado das principais
verdades da religião natural (1754), cuja tese fundamental é a de
que

46
o único milagre de Deus é a criação. São impossíveis ulteriores
milagres porque seriam correcções ou

mutações de uma obra que, por ter saído das mãos de Deus, deve
considerar-se perfeita. Deus não

pode querer senão a imutável conservação do mundo na sua


totalidade. Se os milagres são impossíveis, também é impossível uma
revelação sobrenatural que seria ela mesma um milagre. E conquanto
a religião não deva ser negada, deve fundar-se unicamente no
conhecimento natural. A religião natural deve cortar as pontes com
a religião revelada porque a verdade não deve contemporizar com o
erro e a verdade está só do lado da religião natural. Na sua Defesa
ou apologia de um

racional adorador de Deus e noutros escritos e fragmentos


publicados postumamente, Reimarus extraji e defende todas as
consequências do deísmo com um vigor que nada fica a dever aos
seus colegas ingleses e franceses e ainda com maior rigor lógico do
que eles. Afirma explicitamente a falsidade de toda a revelação,
incluída a do Velho e do Novo Testamento. "Só a religião natural é
verdadeira, ora, a religião bíblica está em contradição com a

religião natural; portanto, é falsa". Com este simples silogismo


Reimarus rejeita em bloco to-do o ensino da tradição. "Só o livro da
natureza, criação de Deus, é o espelho no qual todos os homens,
cultos ou incultos, bárbaros ou gregos, judeus ou

cristãos, de todos os lugares e de todos os tempos, podem


reconhecer-se a si mesmos".

Os temas filosóficos e religiosos do iluminismo foram expostos e


defendidos de uma maneira simples
47

e popular por Moisés Mendelssohn (1729-86), que foi amigo pessoal


de Lessing e manteve correspondê ncia com Kant. Os seus escritos
principais são: Cartas sobre as sensações (1755); Considerações
sobre, a origem e relações das belas artes e das ciências (1757);
Tratado sobre a evidência das ciências metafísicas (1764); Fédon
'ou sobre a imortalidade da alma (1767); Jerusalém ou sobre o
poder religioso e o judaísmo (1783); Aurora ou sobre a existência
de Deus (1785). O pensamento de Mendelssohn reúne'
eclèticamente a gnoseologia empirista de Locke, o ideal ético de
perfeição de Wolff e o panteísmo de Espinosa. Assim como
Reimarus condena em bloco toda a revelação, também
Mendelssohn condena em bloco todas as igrejas e todo o poder
eclesiástico. A religiosidade existe, tal como a moral, nos
sentimentos e pensamentos íntimos do homem, mas os pensamentos
e sentimentos íntimos não se deixam coagir por forma alguma de
poder jurídico. Toda a organização jurídica supõe uma imposição; e
a religião escapa por natureza a qualquer imposição. A tese principal
da obra Jerusalém ou sobre o poder religioso e o judaísmo, é a de
que sobre os fundamentos da moral e da religião não se pode erguer
nenhuma forma de direito eclesiástico e que um tal direito existe
apenas em detrimento da, religião. Daí que o estado deva defender
a mais absoluta, liberdade de consciência, quer dizer, é preciso que
a igreja e a religião percam todo o poder político e sejam
completamente separadas do estado. Mendelssohn é também
contrário ao ideal da unificação religiosa propagado por Leibniz, já
que a

48

LESSING
unificação religiosa supõe um símbolo ou uma fórmula a que se
reconheça validez jurídica e que por isso se impõe com a força do
poder político. Ela conduziria à limitação ou à negação da liberdade
de consciência. Mendelssohn vê realizado o seu ideal de religião
natural na religião de Israel; nesta não há nenhum direito
eclesiástico, nenhum credo obrigatório nem nenhuma revelação
divina das crenças fundamentais, as quais pelo contrário assentam
no conhecimento natural. O único objectivo da revelação judaica foi
o de dar uma legislação prática e normas de vida.

No Fédon, Mendelssohn procura actualizar o diálogo platónico,


desfiando a trama das demonstrações em favor da imortalidade que
se encontram nessa obra e acrescentando-lhe uma sua; a alma tende
por si ao aperfeiçoamento indefinido; Deus teve portanto de criá-la
imortal, pois, de contrário, tal tendência, por ele próprio criada, não
chegaria a realizar-se. Mas se Mendelssohn admite o progresso do
homem para a perfeição, recusa-se a admitir o progresso de todo o
género humano, em que o seu amigo Lessing insistia. "0 progresso,
diz ele em Jerusalém, é só para os homens individuais. Que também
o todo, a humanidade inteira deva no curso dos tempos progredir e
aperfeiçoar-se, não me parece que tenha sido esse o escopo
daprovidência divina". Em Aurora, defende o panteísmo espinosano,
considerando-o conciliável com a religião e a moral. Nas Cartas
sobre as sensações e nas Considerações sobre as belas artes,
aceita a dou49

de Bau~en e considera a beleza como


~manifestação confusa" ou "representação sensível Perfeita".

§ 509. ILUMINISMO ALEMÃO: LESSING

A mais genial figura do Iluminismo alemão é Gottfreid Efraim.


Lessing (22 de Janeiro de 1729
- 15 de Fevereiro de 1781). Lessing representou poeticamente nos
seus dramas o ideal de vida do iluminismo; estudou a natureza da
poesia e da arte, especialmente a poesia e a arte clássica
(Laocoonte,
1766; Dramaturgia de Hamburgo, 1767-69); debateu amplamente o
problema religioso numa série de escritos breves e fragmentários,
mas extremamente eficazes, o último e mais importante dos quais é
A educação do género humano (1780). O seu pensamento, que a
princípio girava em tomo das ideias wolfianas e do deísmo, orientou-
se, numa segunda fase, através da leitura de Shaftesbury, para
Espinosa. Jacobi, nas suas Cartas sobre a doutrina de Espinosa a
Moisés Mendelssohn (1785), referiu, depois da morte de Lessing, as
palavras que, segundo consta, pronunciou pouco antes de morrer

e que são provavelmente autênticas: "Os conceitos ortodoxos da


divindade já não são para mim; não consigo gostar deles. En kai Pan!
Nada mais sei."
O Uno4odo, a imanência de Deus no mundo como o espírito da sua
harmonia, da sua unidade-tal foi a última convicção de Lessing. Mas
foi uma
convicção que para ele não se restringe, como Espinosa, só ao mundo
natural: estende-se ao mundo

50

da história, como o demonstra o seu escrito sobre a educação do


género humano.

Este escrito marca uma fase extraordinariamente significativa da


elaboração que o conceito de história sofreu no iluminismo. A ela
chegou Lessing após longas investigações, cujas primeiras fontes se
podem reencontrar em Wolff. O conceito de Wolff de que toda a
actividade humana é dirigida para a perfeição, permite ver em
todos os aspectos do homem um aperfeiçoamento incessante que
lhes dá um novo significado. E assim Lessing, num

escrito de 1778 (Eine Duplik), atribui o valor do homem, mais do que


à verdade alcançada, ao esforço paira alcançá-la, esforço que põe
em movimento todas as suas forças e revela toda a perfeição de
que é capaz. E nesta ocasião faz a célebre afirmação: "Se Deus
tivesse na sua mão direita toda a verdade e na esquerda apenas a
tendência para a

verdade com a condição de errar eternamente perdido e me


dissesse: - Escolhe -, eu precipitar-me-ia com humildade para a sua
mão esquerda e

diria: Senhor, escolhi; a pura verdade é só para ti". Em que consiste


propriamente o valor desta tendência eterna, que é o quinhão de
cada homem e

a lei da história, foi o problema que ocupou longamente Lessing e


que foi debatido em todos os seus

escritos teológicos. Leibniz distingue as verdades de razão,


universais e necessárias, das verdades de facto, particulares e
contingentes. Lessing parte precisamente desta distinção para se
perguntar a qual das duas espécies de verdade pertencem as
verdades religiosas. Estas assentam sempre em factos
particulares como o milagre e a revelação; como podem tais factos
particulares constituir o fundamento de verdades eternas e
universais, como são as que a

religião ensina? "Todos nós cremos, diz Lessing (Ueber den Beweis
des Geistes und Kraft, Werke, ed. Matthias, H, p. 139), que tenha
existido um Alexandre que em breve tempo conquistou toda a

Ásia. Mas quem arriscaria nesta crença algo de grande e capital


importância, cuja perda não pudesse ser reparada? Quem abjuraria
para sempre, para seguir tal crença, todo o conhecimento que a
contradissesse? Eu não, decerto." Os milagres do cristianismo
ocorridos há muitos séculos, são paira nós simples notícias que nada
têm de miraculoso; mas ainda que admitíssemos como verdadeiras
tais notícias, será que delas deriva a verdade eterna do
cristianismo? Que relação tem a nossa incapacidade de rebater
qualquer objecção fundada no testemunho bíblico com a obrigação
de crer nalguma coisa a que a razão repugna. Mesmo se se admite
que Cristo tenha ressuscitado, dever-se-á por isso admitir que o
Cristo ressuscitado seja filho de Deus? Lessing considera
impossível "passar de uma verdade histórica para uma classe
totalmente diferente de verdades e pretender que eu modifique
por este preço todos os meus conceitos metafísicos e morais."
Constitui de algum modo uma resposta a estas dúvidas e
interrogações o escrito intitulado Educação do género humano.
O conceito fundamental desta obra é que a revelação é educação.
Com efeito, na educação, cada homem aprende dos outros o que a
sua razão

52

ainda não é capaz de entender. O que ele aprende não é todavia


contrário à razão, só que não pode ser captado e entendido
plenamente pela sua razão ainda débil e pueril. Ora, a história da
humanidade tem um desenvolvimento idêntico ao do indivíduo. A
humanidade foi educada através da revelação, a qual lhe comunica
aquelas verdades que ela ainda não é capaz de entender, enquanto
não se torne capaz de as alcançar e possuir de maneira autónoma,
Deste ponto de vista, a própria revelação historiciza-se, já que não
incide num ponto único da história mas acompanha todo o curso
dela, anunciando e antecipando os desenvolvimentos autónomos da
razão. Assim como a natureza é uma contínua criação, assim
também a religião é uma contínua revelação. Toda a religião positiva
é um grau desta revelação, que compreende em si mesma todas as
religiões e as unifica no curso da sua história progressiva. A
coincidência total da revelação com a

razão, da religião positiva com a religião natural, é o último termo a


que a humanidade é destinada pela divina providência. Dado que a
religião cristã é a mais elevada religião positiva, os seus dogmas - a
encarnação, a trindade, a redenção- transformar-se-ão finalmente
em verdades de razão; e a

"razão do cristianismo" dilucidar-se-á por último volvendo-se "o


cristianismo da razão". ,Esta doutrina de Lessing que esclarece em
sentido religioso e especulativo a ideia da história como

53
imagem progressiva, que o iluminismo elaborou, iria ter a mais ampla
ressonância no período romântico. No domínio da estética, Lessing
permanece substancialmente fiel à concepção aristotélica, cujas
regras considera tão infalíveis como os elementos de Euclides
(Hamburgische Dramartugie). No Laocoonte propõe-se pôr a claro a
diferença entre pintura e

poesia. A primeira emprega formas e cores no

espaço e pode exprimir apenas objectos que coexistem ou cujas


partes coexistam. A poesia usa

sons articulados no tempo e dessa maneira exprime objectos


sucessivos ou cujas partes são sucessivas. Ora, os objectos que
coexistem ou cujas partes são sucessivas chamam-se acções: os
corpos e as suas

qualidades visíveis são, portanto, os objectos da pintura, enquanto


as acções são os objectos próprios da poesia. Mas as regras
fundamentais da poesia e da pintura são idênticas porque ambas são
artes imitativas. "A pintura nas suas composições coexistentes
pode utilizar apenas um único momento da acção e deve por isso
escolher o mais significativo, pelo qual se torna mais compreensível
o que o antecede e o que se lhe segue. De igual modo a poesia nas
suas imitações sucessivas pode utilizar apenas uma única
propriedade dos corpos e deve por isso escolher a que suscite a
imagem mais sensível do corpo segundo o ponto de vista por que o
considera. Daqui se tira a regra da unidade dos adjectivos
pictóricos e da economia na representação dos objectos corpóreos"
(Laoc., ap., 4). A divisão entre poesia

54

e pintura não é todavia absoluta. A pintura pode representar


também movimentos indicando-os mediante corpos; e a poesia pode
representar também corpos indicando-os mediante movimentos. A
regra aristotélica da unidade domina a estética de Lessing.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 504. Os escritos alemães de Wolff tiveram várias edições, além


da primeira, cuja data vem indicada no texto. As obras latinas
(títulos e datas indicados no texto) constituem um "corpus" de 23
vol., in-4.1, Francofort, Leipzig, 17.36. Nova edição fotocopiada,
Hildesheim, 1962, sgs.-M. CAmpo, C. W. e il
razionalismo pre-critico, Milão, 1939, com bibl.; F. BARONE, Logica
formale e logica trascendentale, I, Turim,
1957, pp. 83-119.

K. FiSCHER, Geschichte der neuern PhiZosiphie, III, Leibniz, 4.1


ed., Heidelberg, 1902, p. 627 %gs.

Sobre o Iluminismo alemão: E. ZELLER, Geschichte de-r deutschen


Philos. seit Leibniz, 2.1 ed. Münehen,
1875; Cassirer, Das ErkenntnissprobTem, cit., II, Berlim, 1922.

§ 505. Sobre Tschirnhaus: G. RADETTI, Cartesianismo e


spinozismo nel pensiero di E. W, v. T., Roma,
1939.

Sobre Pufendorf: P. MEYER, S. P., Grinuna, 1895; E. WOLFF,


Grosse Rechtsdenker der deutschen Geistesgeschichte, Tübingen,
1939.

Sobre Thomasius A. NICOLADONI, C. T., Berlini,


1888.

§ 506. Knutzen, Dissertatio metaphysica de aeternitate mundi


imposstbili, Kõnigsberg, 1733; Commen5,5

tatio Philosophka de commercio mentis e corporis, Kõnigsberg,


1735; COmmentaU0 phi;osQVhica de hun~ae mentis índividua
natura sive immate@ialitate, Kõnigsberg, 1741, Elementa
philosophiae rationaZis seu logicae cum generalis tUm sPecia7is
mathematica methodo demonstrata.

56
XV

KANT

§ 510. KANT: A VIDA

A orientação crítica que O empirismo inglês havia iniciado,


reconhecendo e assinalando à razão os limites do mundo humano, e
que o iluminismo havia feito sua, torna-se na obra de Kant uma
viragem decisiva da história da filosofia. A construção de uma
filosofia essencialmente crítica, na qual a razão humana, levada
ante o tribunal de si própria, delimita de modo autónomo os seus
confins e as suas possibilidades efectivas, tal é o objectivo próprio
de Kant. Este objectivo é por isso o de um racionalismo que se
propõe, em primeiro lugar, a elaboração do próprio conceito de
razão. Kant identifica este racionalismo com o iluminismo; e na
realidade o conceito da razão que ele alcança está na linha daquela
elaboração que começara com Hobbes e

57

que o iluminismo aceitara de Locke: isto é, na linha

que vê na razão um órgão autónomo e eficaz para guia da conduta


humana no mundo mas não uma actividade infinita e omnipotente que
não tenha limites nem condições.

Manuel Kant nasceu, de família originária da Escócia, em


Kõnigsberg, a 12 de Abril de 1724. Foi educado no espírito religioso
do pietismo, no

Collegium Fridericianum, do qual era director Francisco Alberto


Schultz, a mais notável personalidade do pietismo naquele período.
Ao sair do colégio (1740), Kant estudou filosofia, matemática e
teologia na Universidade de Kõnigsberg, onde teve como mestre
Martin KnutZen. que o encaminhou para os estudos de matemática,
de filosofia e da física newtoniana. Depois dos estudos
universitários, foi perceptor nalgumas casas patrícias. Em 1755,
com a dissertação Principiorum primorum cogníltionis tnetaphysicae
nova dilucidatio obteve a docência livre na Universidade de
Kõnigsberg e durante
quinze anos desenvolveu na Uníversidade os seus cursos livres sobre
várias disciplinas. Em 1766 tornou-se bibliotecário de
Schlõssbibliothek de Kõnigsberg; e só em 1770 foi nomeado
professor ordinário de lógica e metafísica naquela Universidade.

Kant exerceu este cargo até à sua morte, cumprindo com grande
escrúpulo todos os seus deveres 'académicos, mesmo quando devido
à debilidade senil se lhe tornaram extremamente penosos. Herder,
que foi seu aluno nos anos 1762-1774, deixou-nos dele esta imagem
(Briefe zur Mefõrderung 'der Htímatútãt, 49): "Tive a felicidade
de conhecer um
58

filósofo que foi meu mestre. Nos anos juvenis, tinha a alegre
vivacidade de um jovem e esta creio eu que nunca o abandonou nem
mesmo na mais avançada velhice. A sua fronte aberta, feita para o
pensamento, ora a sede de uma imperturbável serenidade e alegria;
o discurso mais rico de pensamento fluia dos seus lábios; tinha
sempre pronta a ironia, a argúcia e o humorismo e a sua lição
erudita oferecia o andamento mais divertido. Com o mesmo espírito
com que examinava Leibniz, Wolff, Baumgarten, Crusius, Hume e
seguia as leis naturais descobertas por Newton, por Kepler e pelos
físicos, acolhia também os escritos que então a-pareceram de
Rousseau, o seu Emílio e a sua Heloísa, como qualquer outra
descoberta natural que viesse a conhecer: valorizava tudo e
reconduzia tudo a um conhecimento sem preconceitos da natureza e
ao valor moral dos homens. A história dos homens, dos povos e da
natureza, a doutrina da natureza, a matemática e a experiência
eram as fontes que davam vida à sua lição e à sua conversação.
Nada que fosse digno de ser conhecido lhe era indiferente;
nenhuma cabala, nenhuma seita, nenhum preconceito, nenhum nome
soberbo, tinha para ele o menor apreço frente ao incremento e ao
esclarecimento da verdade. Encorajava e obrigava docemente a
pensar por si; o despotismo era estranho ao seu espírito. Este
homem, que nomeio com a máxima gratidão e

veneração, é Manuel Kant: a sua imagem está sempre diante dos


meus olhos."

A vida de Kant carece de acontecimentos dramáticos e de paixões,


com poucos afectos e amizades
59

inteiramente concentrada num esforço contínuo de pensamento.


Todavia Kant não foi alheio aos acontecimentos políticos do seu
tempo. Simpatizou com os americanos na sua guerra da
independência e com os franceses na sua revolução que considerava
encaminhada para a realização do ideal da liberdade política. O seu
ideal político, tal qual o delineou na obra Pela Paz Perpétua (1795),
era uma constituição republicana " fundada, em primeiro lugar, no
princípio de liberdade dos membros de uma sociedade, como
homens; em segundo lugar, sobre o princípio de independência de
todos, como súbditos; em terceiro lugar, sobre a lei da igualdade
como cidadãos."

O único episódio notável da sua vida foi o conflito em que se


encontrou com o governo prussiano depois da publicação da segunda
edição (1794) da Religião nos Limites da Razão. O rei Frederico
Guilherme 11, sucessor de Frederico o Grande, restringira em 1788
a liberdade de imprensa, submetendo a censura prévia as
publicações de carácter religioso. Apesar de a obra de Kant ter
sido vista pela censura, a 14 de Outubro de 1794 o filósofo recebia
uma carta do rei assinada pelo ministro WõlIner na qual se afirmava
que as ideias contidas naquele escrito estavam em contradição com
pontos fundamentais da Bíblia e do cristianismo e se proibia a Kant
ensiná-las ulteriormente sob pena de graves sanções. Na sua
resposta, Kant, embora rejeitando a acusação, prometia ater-se à
proibição "como súbdito de Sua Majestade": frase com a qual
entendia limitar a sua promessa à duração da vida do rei.

60

E de facto, com a subida ao trono de Frederico Guilherme HI


(1797) e a demissão do ministro Wõllner, a liberdade de imprensa
foi restaurada e

Kant podia, no Conflito das Faculdades (1798), reivindicar a


liberdade de pensamento e de palavra contra as arbitrariedades do
despotismo, mesmo a

respeito da religião. Todavia, não leccionou mais cursos sobre


filosofia da religião.

Nos últimos anos Kant caiu numa debilidade senil que o privou
gradualmente de todas as suas faculdades. Depois de 1798 não pôde
mais continuar os seus cursos universitários. Nos últimos meses
perdia a memória e a palavra. E assim este homem que vivera para o
pensamento, morreu mumificado a 12 de Fevereiro de 1804.

§ 511. KANT: OS ESCRITOS


DO PRIMEIRO PERIODO

Na actividade literária de Kant podem distinguir-se três períodos.


No primeiro, que vai até
1760, prevalece o interesse pelas ciências naturais. No segundo
período, que vai até, 1781 (ano em que, foi publicada a Crítica da
Razão Pura), prevalece o interesse filosófico e determina-se a
orientação para o empirismo inglês e o critiCismo. O terceiro
período, de 1781 em diante, é' o da filosofia transcendental.

O primeiro período começa com um escrito que Kant compôs quando


era ainda estudante e publicou em 1746, Pensamentos sobre o
Verdadeiro Valor

61

das Forças Vivas. Seguidamente, publicou uma Investigação sobre a


Questão da Causa da Variação da Terra no seu Movimento em torno
do Eixo (1754) e um outro em torno da questão Se a Terra
envelhece (1754). De 1755 é a obra principal deste período História
Natural Universal e Teoria dos Céus. O escrito, que apareceu
anónimo, descreve a formação de todo o sistema cósmico a partir
de uma nebulosa primitiva em conformidade com as leis da física
newtoniana. Divide-se em três partes: na primeira descreve-se a
formação das estrelas fixas e explica-se a multiplicidade dos
sistemas estelares. Na segunda, descreve-se o estado primitivo da
natureza, a formação dos corpos celestes, a causa dos seus
movimentos e das suas relações sistemáticas, tanto no que se
refere à constituição dos planetas como

no que se refere a todo o universo. Na terceira parte estudam-se


as analogias dos planetas para fazer um
confronto entre os habitantes dos diferentes planetas. A hipótese
desenvolve-se de modo puramente mecânico: a matéria primitiva
tem já em si mesma a lei que deve conduzi-la à organização dos
mundos e

revela portanto uma certa ordem que permite reconhecer a marca


do seu criador. -0 escrito de Kant foi pouco conhecido. Em 1761
Lambert, nas

suas Cartas Cosmológicas, formulava uma doutrina análoga; e em


1796 Laplace, na Exposição do Sistema do Mundo, chegava a uma
hipótese semelhante à kantiana relativamente à formação do
sistema solar. Estas analogias explicam-se observando que a
hipótese fora sugerida, a Kant como aos outros, pela história
Natural de Buffon.

62

Em 1755 Kant publicava outra investigação física, De Igne; e no


mesmo ano a dissertação para a
docência livre Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova
dilucidatio, na qual se reconhece e se reduz também a este último o
princípio da razão suficiente que Kant com Crusius chama princípio
de razão determinante.

Em 1756 apareceram: três escritos de Kant sobre os Terramotos,


um sobre a Teoria dos Ventos e a Monadologia Física. Neste último,
em lugar das mónadas leibnizianas, Kant fala em mônadas físicas,
corpos simples que ocupam uma quantidade mínima de espaço. O
espaço de mónada é defendido pela sua esfera de actividade que
impede as mônadas que a rodeiam de aproximar-se mais (Prop. 6). A
impenetrabilidade dos corpos é defendida pela força de atracção e
repulsão (Ib., 10).
Em 1757, Kant publicava o Projecto de uni

Colégio de Geografia Física com outras observações sobre os


ventos.

Em 1759, imprimia um ensaio sobre Movimento e Repouso e o


escrito sobre o 0~ismo. Neste discute a questão que Voltaire havia
tratado no

Poema sobre o Terramoto de Lisboa, mas resolve-a a favor do


optimismo radical. Pretende-se colocar-se no ponto de vista de
quem considera o mundo na sua absoluta totalidade e, precisamente
deste ponto de vista, afirma que Deus não teria podido escolher
outro melhor. O pressuposto de uma visão total e exaustiva de todo
o universo é tal que se explica que Kant tenha repudiado
seguidamente o, escrito

63

(como testemunha o seu contemporâneo Borowski, Leben KantS, p.


58), o qual termina com uma espécie de canto lírico de exaltação do
mundo e dos homens.

§ 512. KANT: OS ESCRITOS DO SEGUNDO PERÍODO

Neste período que assinala a preponderância decisiva no


pensamento de Kant dos interesses filosóficos, começam a
delinear-se temas e movimentos que confluirão no criticismo. Num
grupo de quatro escritos compostos entre 1762-1764, Kant chega a
conclusões que lhe servirão como ponto de partida e de referência
dos seus escritos críticos. No escrito A Falsa Subtileza das quatro
Figuras Silogísticas (1726), critica o valor da lógica aristotélica-
escolástica, comparando-a com um colosso "que tem a cabeça nas
nuvens da antiguidade e cujos pés são de argila". A lógica deveria
ter como fim não complicar as coisas, mas aclará-las; não descobri-
las, mas expô-las claramente.

No único Argumento Possível para uma Demonstração da Existência


de Deus (1763), Kant chama à metafísica " um abismo sem fundo",
um "oceano tenebroso sem margem e sem faróis"; e diz que há
ocasiões em que se atreve a explicar tudo e a demonstrar tudo; e
outras, pelo contrário, só com temor e desconfiança se aventura em
semelhantes empresas. "0 escrito parte da distinção clara da
existência dos outros predicados ou determinações das coisas. Os
predicados ou determinações são
64

posições relativas de um quid, isto é caracteres de uma


coisa; a existência é a posição absoluta da coisa em
si própria. Por isso no existente não há mais qualidades ou
caracteres que no simples possível; aquilo que há a mais é a posição
absoluta. O princípio de contradição é a condição formal da
possibilidade;

mas a possibilidade intrínseca das coisas supõe sempre uma


existência qualquer porque, se não existisse nenhuma de facto,
nada seria pensável e possível (1, § 2). Desta, consideração tira
Kant a sua demonstração da existência de Deus que é uma reedição
do velho argumento a contigentia mundi. Todas as

outras demonstrações são reduzidas por Kant a

esta, inclusive a prova ontológica de Descartes.

Numa Investigação sobre o Conceito das Grandezas Negativas


(1763), na qual Kant procura utilizar na filosofia os conceitos e os
processos da matemática, reforça-se a distinção entre o domínio do
pensamento lógico e o da realidade a propósito da diferença que há
entre a contraposição lógica e a

contraposição real. As Observações sobre o Sentimento do Belo e


do Sublime (1764) procuram distinguir do ponto de vista psicológico
o sublime do

belo, na medida em que o primeiro comove e

exalta e o segundo atrai e arrebata. A influência de Shaftesbury é


evidente no escrito em que se estabelece como fundamento da
moral "o sentimento da beleza e da dignidade da natureza humana".

Na primavera de 1764 apareceu a investigação sobre a Clareza dos


Princípios da Teologia Natural e da Moral em resposta ao tema de
um concurso

aberto pela Academia de Berlim: "Se as verdades

65

metafísicas podem ter a mesma evidência que as das matemáticas,


e qual é a natureza da sua certeza", A metafisica é definida no
escrito como "nada mais que uma filosofia sobre os primeiros
fundamentos do nosso conhecimento". Kant é um decidido defensor
da aplicação do método matemático à filosofia; mas vê também as
diferenças que existem entre uma e outra disciplina. As
matemáticas dão definições, sintéticas, a filosofia analíticas; a
matemática considera
O Universal em concreto, a filosofia em abstracto. Na matemática
existem poucos conceitos não expressos e princípios não
demonstrados, na filosofia existem muitos. O objecto das
matemáticas é fácil e simples, o da filosofia é difícil e complexo. "A
metafísica é sem dúvida o mais difícil de todos os conhecimentos
humanos; por isso ela não foi ainda escrita". Contudo, a certeza da
metafísica deve ser da mesma natureza da das matemáticas; e a
filosofia pode realizar esta certeza com o mesmo procedimento,
isto é com a análise da experiência o com a redução dos fenómenos
a regras e a leis. Só que, enquanto a matemática parte das
definições, a filosofia chega ao fim quando alcançou o
esclarecimento dos dados sensíveis. Por outras palavras, a filosofia
deve fazer seu, segundo Kant, o método que Newton empregou nas
ciências naturais. Deste método, o próprio Kant deu uma amostra na
última parte da obra, destinada a ilustrar os fundamentos da
teologia natural e da moral. Dado que a existência é um conceito
empírico, deve existir alguma coisa sem a qual nada é possível e
nada pode ser pensado: isto é um ser necessário. Pelo que respeita à
moral, detém-se a

66

considerar sobretudo o conceito de obrigação. Este conceito não


lhe parece provado pela doutrina de Wolff que estabelece como fim
da acção moral a

perfeição. O bem identifica-se com a necessidade moral, por isso o


conhecimento nada diz sobre a sua natureza que é, em
contrapartida, revelada, pelo simples "sentimento moral". Kant
alude explicitamente às análises de Hutcheson; e assim o escrito
demonstra uma nova orientação do seu pensamento que se dirige
para as análises do empirismo inglês.

Esta orientação é ainda mais clara na Notícia


sobre a Orientação das suas Lições, de 1765. É necessário não já
aprender à filosofia, mas aprender a filosofar: o método do ensino
filosófico, deve ser

o da investigação. As indagações de Shaftesbury, Hutcheson e


Hume, ainda que incompletas e defeituosas, mostram na
realidade o verdadeiro método que torna possível aproximar-se da
natureza dos homens e descobrir, não Somente o que são, mas o

que devem ser. -0 afastamento do dogmatismo da escola wolfiana é


neste ponto decisivo; e coincide com a adesão ao espírito de
investigação e ao empirismo dos filósofos ingleses.

O documento mais significativo deste afastamento é o escrito de


1765, Sonhos de um Visionário Esclarecidos com os Sonhos da
Metafísica. As razões que moldaram este escrito foram as visões
místicas e espiritístas do sueco Manuel Swedenborg (1688-1772); e
é uma sátira burlesca destas visões e das

doutrinas que lhos servem de, fundamento. A metafísica de Wolff e


de Crusius é comparada às visões fantásticas de Swodenborg
porque também aquele

67

1 se encerra no seu próprio mundo, que exclui o

acordo com os demais homens. "Frente aos arquitectos dos


diferentes mundos ideais que se movem

no ar, dos quais cada um ocupa tranquilamente o seu, com exclusão


dos outros, situando-se um deles na ordem das coisas que Wolff
construiu com poucos materiais de experiência mas com muitos
conceitos sub-reptícios, e o outro, que Crusius produziu do nada
com a força mágica de algumas palavras como "pensável" e "
impensável", nós, ante o contraditório das suas visões,
aguardaremos pacientemente até que estes senhores hajam saído
do seu

sonho" (1, 3). Frente à inutilidade deste sonhar acordado, Kant


considera que a metafísica deve em primeiro lugar considerar as
próprias forças e por isso "conhecer se o objectivo está em
proporção com aquilo que se pode saber e que relação tem esta
questão com os conceitos da experiência, sobre os

quais devem apoiar-se todos os nossos juízos". A metafísica é a


ciência dos limites da razão humana; para ela, como para um
pequeno país, importa mais conhecer bem e manter as suas próprias
possessões que ir às cegas em busca de conquistas (H, 2). Os
problemas que a metafisica. deve tratar são os que preocupam o
homem e que portanto, se encerram

nos confins da experiência. É vão crer que a sabedoria e a vida


moral dependem de certas metafísicas. Não pode dizer-se honesto
aquele que se abandona aos vícios se não for ameaçado com um pena
futura. É portanto mais conforme com a natureza humana fundar a
espera do mundo futuro no sentimento de

68

numa alma bem nascida, que fundar, pelo contrário, o seu bem obrar
sobre a esperança no outro mundo. Na sua simplicidade, a fé moral
é a única que se

conforma com o homem em qualquer condição (H, 3). Nesta obra


existem já os fundamentos da orientação crítica.
No breve ensaio Sobre o Primeiro Fundamento da Distinção das
Regiões do Espaço (1768), Kant faz ver como as posições recíprocas
das partes da matéria supõem já as determinações espaciais o que,
por conseguinte, o conceito do espaço é algo originário, se bem que
não seja puramente ideal, mas tenha sempre em si uma realidade
qualquer. Estas são as

considerações que levam Kant a formular a doutrina da Dissertação


de 1770. Do ano 1769, que ocorre entro este escrito e a
Dissertação, o próprio Kant disse: "0 ano de 69 trouxe-me uma
grande luz".

Efectivamente, a dissertação & mundi sensibilis atque intelligíbilis


forma et principUs, que Kant apresentou para a nomeação como
professor titular de lógica e metafisica, em 1770, assinala a solução
crítica, do problema do espaço e, do tempo. Kant começa por
estabelecer a distinção entre conhecimento sensível e
conhecimento intelectual. A primeira, que é devida à receptividade
(ou passividade) do sujeito, tem como objecto o fenómeno, isto é a
coisa tal como aparece na sua relação com sujeito. A segunda, que é
uma faculdade do sujeito, tem como objecto as coisas tais como
são, na sua natureza inteligível, isto é como númeno (§ 3). No
conhecimento sensível deve distinguir-se a matéria da forma. A
matéria é a sensação, que é uma

69

modificação do órgão do sentido, e por isso testemunha. a presença


do objecto pelo qual é causada. A fornia é a lei, independentemente
da sensibilidade, que ordena a matéria sensível. O conhecimento
sensível, anterior ao uso do entendimento lógico, chama-se
aparência; e o conhecimento reflexivo que nasce
da comparação, feita pelo entendimento, de múltiplas aparências,
chama-se experiência. Da aparência à experiência vai-se, portanto,
através da reflexão que se serve do entendimento. Os objectos da
experiência são os fenómenos (§ 5). A forma, isto é a

lei; que contêm o fundamento do nexo universal do mundo sensível,


é constituída pelo espaço e pelo tempo. Tempo e espaço não
derivam da sensibilidade que os pressupõe e não são tão-pouco
conceitos gerais e comuns que tenham as coisas singulares sob si.
São, pois, intuições, mas intuições que precedem todo o
conhecimento sensível e são independentes dele, portanto puras (§
14, 3; § 15, c). Por isso não são realidades objectivas, mas
unicamente condições subjectivas e necessárias à mente humana
para coordenar por si, em virtude de uma lei, todos os dados
sensíveis. Com efeito, o tempo torna possível intuir a sucessão e a
contemporaneidade e coordenar, segundo estes dois modos---
todos os objectos sensíveis. O espaço permite intuir os

fenómenos num nexo universal, isto é, como partes de um todo


cujas leis e princípios são os da geometria. - Estes esclarecimentos
sobre o conhecimento sensível permaneçam quase imutáveis na
Crítica da Razão Pura Quanto ao conhecimento intelectual, Kant
distingue nele um uso real e um

70

uso lógico. O uso real é aquele pelo qual os conceitos das coisas e
das suas relações são dados; o uso lógico é aquele pelo qual os
conceitos dados são subordinados uns aos outros e unificados entre
si segundo o princípio de contradição (§ 5). Kant insiste no facto de
que o uso lógico do entendimento não elimina o carácter sensível
dos conhecimentos que é devido à sua origem. Mesmo as leis mais
gerais são sensíveis e os princípios da geometria não saem dos
limites da sensibilidade. Pelo contrário, na metafísica, não se
encontram princípios empíricos, os seus princípios são inerentes à
própria natureza do entendimento puro, porquanto não são inatos,'
mas abstraídos das leis inerentes à mente e, por isso, adquiridos (§
8). O conhecimento intelectual não dispõe de uma intuição
apropriada pela qual a mente possa ver os seus objectos
imediatamente, isto é, singularmente. Este é unicamente um
conhecimento simbólico e obtém-se por meio do raciocínio, isto é
por meio dos conceitos gerais. "0 conceito inteligível, enquanto tal,
carece de todos os dados da intuição humana. Com efeito, a intuição
da nossa mente é sempre passiva; e por isso é possível Somente
enquanto algo pode excitar os nossos

sentidos. A intuição divina, em contrapartida, que é o princípio dos


objectos, em vez de ser causada por eles, é independente dos
mesmos, é o arquétipo dos objectos e é, por isso, perfeitamente
intelectual> (§ 10)_ Pelo que respeita aos princípios a priori do
conhecimento intelectual, Kant repete substancialmente, nesta
dissertação, quanto tinha dito já na

única demonstração. Uma totalidade de substân71

cias unidas entre si pela relação de causa e efeito é uma totalidade


de substâncias contingentes porque o que é necessário não pode
depender de nada. E uma totalidade de substâncias contingentes
deve a sua unidade à dependência comum de um único ente
necessário (§ 20). Todavia, também nesta parte ainda dogmática do
seu tratado, Kant introduz uma exigência critica. Na metafisica, a
diferença de todas as outras ciências, o método não pode ser
fornecido pelo uso, mas deve ser determinado independentemente e
antes do próprio uso. Este método deve assumir como sua regra
fundamental esta: os princípios do conhecimento sensível não devem
transpor os seus limites e invadir o campo dos conceitos
intelectuais (§ 24).'Ura conceito sensível é a condição sem a qual
não é possível o conhecimento sensível do próprio conceito. Não
pode por isso estender-se para qualificar ou determinar uma
realidade não sensível. Assim não se pode dizer, por exemplo: "Tudo
aquilo que existe, está em algum lugar", porque o conceito de lugar é
conceito sensível que condiciona o conhecimento" sensível, não o
conhecimento intelectual que é mais extenso. Pode-se dizer em
contrapartida: "Tudo o que está era algum lugar existe", porque o
conceito de existência é um conceito intelectivo que condiciona
quer o conhecimento sensível quer o intelectual. Conformemente a
este princípio, Kant aplica-se na última parte (a V) da Dissertação a
esclarecer algumas falácias que nascem

precisamente da extensão dos conceitos sensíveis para lá do seu


campo. Mas imediatamente este princípio, que deveria servir-lhe
para dar ao conheci72

mento intelectual liberdade de movimento frente ao conhecimento


sensível, é usado por ele como princípio limitativo do próprio
conhecimento intelectual. Diz ele: "Tudo aquilo que não pode ser
conhecido por intuição não pode ser pensado absolutamente,
portanto é impossível. E dado que não podemos, com nenhum
esforço da mente nem mesmo com a

imaginação, alcançar outra intuição senão aquela que se tem segundo


a forma do espaço e do tempo, resulta que consideramos impossível
toda a intuição que não esteja ligada a' estas regras (exceptuando
aquela intuição pura e intelectual que não está submetida à lei do
tempo, como é a intuição divina, a que Platão chama ideia) e, por
isso, submetemos todos os possíveis aos axiomas sensíveis do
espaço o do tempo" (§ 25). Assim a preocupação de - salvar de
qualquer modo a metafísica dogmática leva Kant a formular o
próprio princípio que na Crítica da Razão Pura devia servir-lhe para
destruir toda a

metafísica dogmática.

§ 513. KANT: OS ESCRITOS DO PERIODO CRITICO

Nos dez anos que se seguiram à publicação da Dissertação, Kant


andou lenta e intensamente elaborando a sua filosofia crítica.
Neste tempo publicou muito poucas coisas e nada que dissesse
respeito aos

temas da sua meditação: uma recensão de uma obra de anatomia,


(1711), um artigo sobre raças

73

humanas (1775), dois artigos pedagógicos sobre o


"Philant.hropin" de Basodow (1777); nada mais.

A Crítica da Razão Pura apareceu em 1781. Nesta obra Kant (como


ele próprio escrevia a Moisés Mendelssohn a 16 de Agosto) levou a
cabo "o fruto de uma meditação de doze anos em quatro ou cinco
meses, quase em voo, pondo assim a
máxima atenção no conteúdo mas com pouco cuidado na forma em
tudo quanto é necessário para ser facilmente compreendido pelo
leitor". As cartas a
Marco Herz dão algumas notícias sobre a génese e os progressos da
obra.

A 7 de Junho de 1771 escrevia Kant: "Estou agora a trabalhar numa


obra a qual, sob o título de Os Limites da Sensibilidade e da Razão,
não só deve tratar dos conceitos e das leis fundamentais que
concernem ao mundo sensível, mas deve ser também um esboço do
que constitui a natureza da doutrina do gosto, da metafísica e da
moral. "0 tema fundamental das três Críticas estava assim já claro
na mente de Kant, mas este tema devia depois cindir-se e articular-
se no decurso do trabalho. Numa carta de 21 de Fevereiro de 1772,
Kant aponta o

título definitivo da sua obra. "Estou agora em condições de propor


uma Crítica da Razão Pura que trata da natureza do conhecimento
quer teorética quer prática, enquanto puramente intelectual. Da
primeira parte que trata primeiramente das fontes da metafísica,
do seu método e dos seus limites, e depois dos princípios puros da
moralidade, publicarei aquilo que se refere ao primeiro argumento
em cerca de três meses." A doutrina do gosto está já separada

74

na mente de Kant da metafísica e da moral que, no entanto, se


mantinham ainda unidas. Todavia, Kant só cumpre a sua promessa
cerca de nove anos depois. Cartas sucessivas a Herz justificam os
seus

atrasos com a dificuldade e a novidade do argumento e a


necessidade de alcançar, antes de completar urna parte da sua
obra, uma visão de conjunto de todo o sistema de que faz parte. E
assim só no dia 1.* de Maio de 1781 Kant podia anunciar ao amigo a
próxima publicação da Crítica da Razão pura que de facto apareceu
naquele ano.

A segunda edição surgiu em 1787 e contém importantes


modificações e adições com respeito à primeira, sobretudo no que
se refere à parte central e mais difícil da obra, a dedução
transcendental. As diferenças entre as duas edições e a
preferência outorgada à primeira por estudiosos e historiadores (a
começar por Schopenhauer) é um dos motivos da diversidade das
interpretações que têm sido dadas ao kantismo. Por outra parte, o
próprio valor das diferenças está sujeito a discussão,

A Crítica da Razão Pura abre a série das grandes obras de Kant. Em


1783 saíam os Prolegómenos para toda a Metafísica Futura que se
apresenta como Ciência, exposição mais breve e em forma popular
da mesma doutrina da Crítica. Seguiram-se: Fundamentação da
Metafisica dos Costumes (1785); Crítica do Juízo (1790); A Religião
dentro dos Limites da Simples Razão (1793); A Metafísica dos
Costumes (1797) que contém, na primeira parte, os "Fundamentos
Metafísicos da Doutrina do Direito"; e na segunda parte os
"Fundamentos Metafísicos da

75

Doutrina da Virtude"; Antropologia do Ponto de Vista Pragmático


(1798). No prefácio desta última obra, Kant distingue a antropologia
pragmática da fisiológica: esta última destina-se a determinar qual
é a natureza do homem enquanto a antropologia pragmática estuda
o homem tal como ele mesmo se faz em virtude da sua vontade
livre.

Nos mesmos anos em que apareciam as suas

obras fundamentais, Kant publicava artigos, opúsculos, recensões


críticas e esclarecimentos do seu pensamento em pontos
particulares.

Em 1782 publicava uma breve Notícia da edição de J. Bernoulli do


Epistolário de Lambert; e uma
Notícia para os Médicos que trata da epidemia da gripe.

Em 1783 publicava uma Recensão da obra de SchuIz, Para a


Doutrina Moral. Em 1784 publicava dois ensaios: Ideias para uma

História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita; e Resposta à


Pergunta: que é o Iluminismo?

Em 1785 apareceram: uma Recensão do escrito de Herder, Ideias


sobre a Filosofia da História para a Humanidade; e três breves
ensaios: sobre Vulcões da Lua; sobre a Ilegitimidade da Falsificação
de Imprensa; Caracteres do Conceito de uma

Raça Humana.

Em 1786 publicava Kant um ensaio Conjectura sobre o Começo da


História Humana; uma recensão da obra de Hufeland, Princípios do
Direito Natural; um outro ensaio intitulado: Que significa orientar-
se no Pensar? com que intervém na polémica sobre o panteísmo
entre Jacobi e Mendelssohn;

76

algumas Observações sobre o escrito de Jakob, Exame da Aurora


de Mendelssohn; e uma obra mais importante, Princípios
Metafísicos da Ciência Natural.

Em 1788 apareceu o artigo Sobre o uso dos Princípios Teológicos na


Filosofia e um breve ensaio sobre um escrito de A. H. Urich,
Eleuteriologia. Pertence provàvelmente ao mesmo ano o discurso De
medicina corporis quae philosophorum est.

Em 1790 apareceu o pequeno escrito Sobre o


Fanatismo,- um opúsculo Sobre uma Descoberta segundo a qual toda
a Nova Crítica da Razão deve ser feita através de uma Velha e não
Necessária Crítica,- um artigo de resposta e, de recensão a três
escritos de Kãstner.

É de 1791 um artigo Sobre a Falta de Toda a Investigação


Filosófica em Teodiceia. Aos anos
1788-91 pertencem também sete pequenos escritos comunicados
por Kant ao Prof. Kiesewetter (1.', Resposta à pergunta: é uma
experiência que pensamos?; 2.', Sobre o milagre; 3.', Refutação do
idealismo problemático; 4.', Sobre a Providência particular; 5.',
Sobre a oração; 6.O, sobre o momento da velocidade no instante
inicial da queda; 7.O, Sobre o significado formal e material de
algumas palavras).

Em 1793 Kant escreveu e deixou incompleta uma


resposta ao tema do concurso da Academia de Berlim: "Quais são os
progressos reais que a metafisica fez desde o tempo de Leibniz e
Wolff?" (publicada por F. T. Rink em 1804). E publicou um artigo
sobre o dito comum Aquilo que vale em Teoria não vale na Prátíca.

77

Em 1794 publicou dois artigos Sob a Influência da Lua sobre o


Clima; O fim de todas as Coisas.

Em 1795 apareceu o escrito Para a Paz Perpétua que exprime o


pensamento político de Kant. E no mesmo ano foram publicadas
algumas observações em apêndice ao escrito de Soemmering, Sobre
o
órgão da Alma.

Em 1796 Kant publicava alguns artigos polémicos: Sobre o tom


nobre da Filosofia, recentemente exaltado, no qual a propósito de
um escrito de J. G. Schlosser critica o apelo para a intuição
intelectual e para o sentimento místico; um artigo de resposta às
críticas de J. A. H. Reimarus contra as
afirmações matemáticas contidas no escrito precedente:
Composição de uma Polémica Matemática Fundada num
Malentendido, e um artigo de réplica à resposta de SchIosser,
Anúncio da Próxima Conclusão de um Tratado para a Paz Perpétua
em Filosofia.

Em 1797 apareceu um artigo dirigido contra uma afirmação de


Benjamim Constant: Sobre o Presumível Direito de Mentir por Amor
dos Homens.

Em 1798 Kant escrevia um artigo Sobre o Poder do Sentimento, que


voltou a publicar no mesmo ano, formando a terceira parte do
Conflito das Faculdades. Ao mesmo ano pertencem também duas
cartas Sobre a Impressão de Livros, dirigidas contra as críticas
que F. Nicolai dirigira contra a sua filosofia.

Em 1799, em resposta à afirmação contida numa


recensão da Doutrina da Ciência de Fichte, Kant publicava um
Esclarecimento no qual definia a
78

doutrina de Fichte como "um sistema absolutamente insustentável".

Em 1800, no Prefácio a um escrito de R. B. Jachmann, polemizava de


novo contra a mística que pretende valer como experiência supra-
sensível.

A estes escritos é necessário acrescentar aqueles que nos últimos


anos da vida de Kant foram publicados. pelos seus discípulos. Assim
publicaram-se: por J. B. Jãsche a Lógica, manual para lições (1800);
por F. T. Rink, a Geografia Física (1802), lições dadas por Kant
sobro este ponto; pelo mesmo Rink, a Pedagogia, também recolhida
das lições de Kant.

Depois da morte do filósofo, foram publicadas as suas lições sobre


a Doutrina Filosófica da Religião (1817) e sobre Metafísica (1821).
A obra em
que Kant se ocupava nos últimos anos da sua vida e que ficará
fragmentária nos seus manuscritos (Opus postumum) foi publicada
parcialmente por Reicke em 1882, por Krause, em 1888 com o título
Passo dos princípios Metafisicos da Ciência da Natureza à Física,
por Adickes em 1920; e finalmente, em forma completa e nos três
últimos volumes da grande edição das obras de Kant da Academia
de Berlim (1936, 1938, 1955). Esta ediçã o contém também o
Epistolário do filósofo.

§ 514. KANT: A FILOSOFIA CRITICA

A simples enumeração dos escritos de Kant mostra como a


orientação crítica da sua filosofia se vinha determinando através da
influência, cada vez

79

mais decisiva, do empirismo inglês. Contudo, esta influência


integrava-se na orientação que constituiu a estrutura fundamental
da filosofia kantiana, orientação que é a do iluminismo wolfiano.
Vimos já (§ 504) como o ideal racionalista do iluminismo se
concretiza, na obra de Wolff e dos seus numerosos seguidores
alemães, no método da razão fundamentadora, a qual procede
mostrando a cada passo o fundamento dos seus conceitos na sua
possibilidade. A coincidência de fundamento e possibilidade é a
característica deste método, o qual portanto dá como fundado (isto
é justificado) um conceito quando se possa demonstrar a
possibilidade desse conceito, isto é, a falta de contradições
internas. No ideal deste método incorporava-se sem dúvida a
filosofia leibniziana que procurara elaborar o princípio de uma razão
problemática, oposta à razão geométrica ou necessária dos
cartesianos e de Espinosa; mas incorporava-se e vivia
principalmente a

exigência iluminística de limitar e individualizar em cada campo as


possibilidades autênticas do homem. Kant manteve-se sempre fiel a
este princípio e a este método.

Que Kant se tenha servido constantemente para

as suas lições da Metafísica de Baumgarten é coisa que só para


fazer espírito se pode explicar como explicava Schopenhauer: pela
exigência de ter separada e distinta a sua obra de filósofo da sua
actividade docente, para evitar que esta última contaminasse a
primeira. Na realidade a metafisica de Baumgarten, que tem a
honra de ser um dos mais lúcidos e concisos exemplos do método da
80

fundamentação, realizava uma exigência que Kant considerava


essencial na filosofia, isto é a de que deve buscar o fundamento dos
seus objectos (quaisquer que sejam) na sua possibilidade. Todavia, o
que faltava neste método, Kant viu-o rapidamente: a

possibilidade não pode ser compreendida no aspecto puramente


lógico-formal, como simples ausência de contradição. Já no único
Argumento Possível para a Existência de Deus (1763), ele
reconhece claramente que uma possibilidade não é tal em virtude da
simples, ausência de contradição. "Toda a possibilidade cai, diz ele
(1, § 2), não só quando há uma contradição intrínseca, que é o
aspecto lógico da impossibilidade, mas também quando não há um

material, um dado que se possa pensar." E acrescentava: "Que


exista uma possibilidade e, contudo, não haja nada real, é
contraditório, dado que se

não existe nada não é dado nada que seja pensável, e existe
contradição se todavia se pretende que qualquer coisa é possível."
Aquilo que é possível deve conter, para ser verdadeiramente
possível, além da pura formalidade lógica da não-
contraditoriedade, uma existência, uma realidade, um dado; e a
existência, a realidade, o dado, nunca se reduzem a simples
predicados lógicos. São estas as proposições base da filosofia
crítica kantiana. Kant, no escrito citado, dirigia-as a um objectivo
tradicional, o da demonstração da existência de Deus, mas

já naquele escrito têm uma importância superior ao fim para que


servem. Nos escritos posteriores o problema do real, do dado, a que
a filosofia deve referir-se, é ulteriormente debatido e
81

esclarecido. A analogia que Kant estabelece, na Investigação dos


Princípios da Teologia Natural e da Moral (1764), entre a filosofia e
a ciência natural de Newton, leva-o a ver precisamente na
experiência, à qual se dirige a ciência, a realidade de que a filosofia
deve partir. O apreço positivo que no mesmo escrito e no de 1765,
Notícia sobre a Orientação das suas lições, dedica ao empirismo
inglês, demonstra como se vai reforçando nele a orientação para
considerar a experiência como o aspecto real de toda a
possibilidade fundamentadora. As primeiras conclusões desta
orientação são tratadas nos Sonhos de um Visionário (1765). O
método da razão fundamentadora não pode ser empregado no vazio
e
no abstracto, mas unicamente no terreno sólido da experiência. A
metafísica não aparece já a Kant, como a Wolff e a Baumgarten,
como "a ciência de todos os objectos possíveis enquanto possíveis",
mas

antes como "a ciência dos limites da razão humana", pois que ela
deve determinar em primeiro lugar o

Emite intrínseco do possível que é a experiência. "Não tenho aqui


determinado exactamente esses Emites, dizia ele (11, § 2), mas
indiquei-os quanto basta para que o leitor reflectindo verifique que
pode dispensar-se de todas as investigações inúteis em

torno de cada questão cujos dados se deveriam encontrar num


mundo distinto do que ele sente". E reconhecia o mérito da
sabedoria "no escolher, entre os inumeráveis problemas que se
apresentam, aqueles cujas soluções preocupam o homem" (H, § 3).

82

Kant aceitava assim plenamente o ponto de vista inglês, ponto de


vista que se pode exprimir em que Locke tinha feito prevalecer no
empirismo duas proposições fundamentais: LO, A razão não pode ir
mais além dos limites da experiência.
2.*, A experiência é o mundo do homem, o mundo daqueles
problemas que "preocupam" o homem. Mas este ponto de vista
articulava-o e fundia-o ao mesmo tempo com o método do iluminismo
wolfiano: a razão deve fundamentar, precisamente nestes limites, a
capacidade e os poderes do homem. Com o enxerto e a fusão destas
duas exigências nascia a filosofia crítica de Kant.

§ 515. KANT: A ANÁLISE TRANSCENDENTAL


Esta análise encontrava-se assim frente ao problema da natureza e
da extensão dos limites da razão humana. Donde pode vir a
indicação desses limites? Qual é a sua extensão efectiva? São tais
estes limites que podem assegurar o valor do conhecimento e, em
geral, de qualquer atitude humana que os reconheça
explicitamente?

São estas as perguntas em torno das quais se afadiga a meditação


de Kant a partir da Dissertação de 1770. Já nesta é evidente a
resposta de Kant à terceira daquelas perguntas: o reconhecimento
dos limites que a actividade humana encontra em qualquer campo
não tira valor a essa actividade, mas é antes a única garantia
possível da sua validade. Noutros termos, uma "ciência dos limites
da razão

83

humana" não é apenas a certificação ou a verificação de tais limites,


mas também e sobretudo a justificação, precisamente em virtude
destes limites e sobre o seu fundamento, dos poderes dá razão. É
este o aspecto fundamental da filosofia critica de Kant, aspecto
pelo qual ela foi compreendida e praticada pelo seu autor como
análise transcendental. Acerca da primeira questão, um ponto ficou
sempre firme na obra de Kant: os limites da razão humana. só-
podem ser determinados pela própria razão. Estes limites não lhe
podem ser impostos de nenhuma maneira de fora porque a
actividade da razão é autónoma e não pode assumir do exterior a
direcção e guia do seu procedimento. Por isso Kant devia combater
como fez incansavelmente, não só nas suas obras principais, mas

também nos escritos menores - toda a tentativa para assinalar


limites à razão em nome da fé ou de uma experiência mística ou
supra-sensível qualquer. Elo foi sempre- o adversário resoluto de
toda espécie de fideísmo, misticismo e transcendentalismo: os
limites da razão são para ele os limites do homem; e querê-los
atravessar em nome de uma coisa superior à razão, significa apenas
aventurar-se em sonhos arbitrários e fantásticos.

Não obstante, sobre o modo pelo qual a razão possa assinalar os


seus próprios limites e erigir-se em juiz de si própria, Kant esteve
evidentemente longo tempo indeciso. A Dissertação apresenta
sobre este problema uma solução diferente da que foi dada na
Crítica da Razão Pura. Na carta a Lara84

bert (2 de Setembro de 1770), com a qual acompanhava o envio da


Dissertação, Kant previa a necessidade de uma ciência especial,
puramente negativa, dita Fenomenologia Geral que deveria
determinar * valor e os limites da sensibilidade para evitar toda *
confusão entre os objectos de própria sensibilidade e os do
entendimento. E na realidade, na Dissertação, Kant serviu-se da
distinção nítida entre, mundo sensível e mundo inteligível com o fim
explícito de assinalar os limites da sensibilidade mas com o
resultado involuntário (que se toma depois voluntário e explícito na
Crítica) de estabelecer também limites à razão. O resultado
principal da Dissertação é, por um lado, a delimitação exacta da
extensão do conhecimento sensível, o qual vem a

compreender em si também a geometria que, embora derivada do


uso lógico do entendimento, diz sempre, respeito aos fenómenos,
isto é, aos objectos da sensibilidade; e pelo outro, é a contraposição
nítida entre o conhecimento intelectual próprio do homem e uma
intuição intelectual, como seria a de Deus, criadora dos próprios
objectos. Kant diz efectivamente (§ 10): "Toda a nossa intuição é
limitada originariamente a uma certa forma, a única sob a qual a
mente pode ver alguma coisa imediatamente, isto é singularmente, e
não apenas conceber discursivamente por meio dos conceitos gerais.
Mas este princípio formal da nossa intuição (espaço e tempo) é a
condição pela qual qualquer coisa pode ser objecto dos nossos
sentidos, mas, como condição do conhecimento sensível, não pode
servir de intermediário

85

para a intuição intelectual. Além disso, toda a matéria do nosso


conhecimento é dada unicamente pelos sentidos mas o númeno como
tal não é concebível por meio de representações obtidas dos
sentidos; de maneira que o conceito inteligível, enquanto tal, é
privado de todos os dados, da intuição humana. A intuição da nossa
mente é sempre passiva; e por isso só é possível enquanto qualquer
coisa pode excitar os nossos sentidos. Pelo contrário, a intuição
divina, que é o princípio dos objectos e não deriva deles o seu
principio, é independente e arquétipo e é por isso inteiramente
intelectual." Estes pensamentos que retomam em forma quase
idêntica ao longo de toda a Crítica da Razão Pura constituem a
directriz que inspirou o desenvolvimento ulterior da obra de Kant.
Todavia, na Dissertação, o fim que Kant se propõe explicitamente é
o de fazer que a certeza dos limites da sensibilidade sirvam não só
para garantir o valor da própria sensibilidade, mas também e
principalmente para garantir a liberdade do conhecimento
intelectual frente à sensibilidade. Neste escrito Kant realizou pela
primeira vez a análise transcendental do mundo sensível, mas não
ainda a do mundo intelectual que permanece ligado no seu
pensamento à metafísica dogmática e aos seus processos. Se se
examinam, porém, os princípios que estabelece, na quarta parte do
escrito, em tomo do método da metafísica vê-se imediatamente
que estes princípios implicam também uma limitação essencial das
possibilidades desta ciência. Com efeito, Kant' consegue admitir
86

como regra que tudo aquilo que não pode ser conhecido pela intuição
não pode ser pensado absolutamente, e, portanto, é impossível" (§
2'@). E este, será depois o princípio da crítica de toda a
metafísica, instaurada na Crítica da Razão Pura.

Esta obra assinala a decisão de Kant de estender a análise


transcendental a todo o domínio das possibilidades humanas, a
começar pelo conhecimento racional. Kant convenceu-se, nos dez
anos que decorrem entre a Dissertação e a Crítica, que não só para
a

sensibilidade, mas também para o conhecimento racional, para a


vida moral, para o gosto, vale o princípio da filosofia transcendental
de que toda a faculdade ou atitude do homem pode encontrar a
garantia da sua validade, o seu fundamento, unicamente no
reconhecimento explícito dos seus próprios limites.
O reconhecimento e a aceitação do limite torna-se em qualquer
campo a norma que dá validade e fundamento às faculdades
humanas. A impossibilidade do conhecimento em transcender os
limites da experiência torna-se agora base da validade efectiva do
conhecimento; a impossibilidade da actividade prática de alcançar a
santidade (como identidade perfeita da vontade e da lei) torna-se a
norma da moralidade que é própria do homem; a impossibilidade de
subordinar a natureza ao homem torna-se a base do juizo estético e
teleológico. Kant renunciou neste ponto a

toda a vida de evasão dos limites do homem. Como ele próprio


reconhece, deve esta renúncia a Hume que o despertou do seu sono
dogmático, mas ao mesmo tempo afastou-se também de toda a
87
possibilidade de cepticismo. O reconhecimento dos limites não é
para ele, como para Hume, a renúncia a fundamentar a validade do
conhecimento e, em geral, das manifestações do homem, mas antes
a exigência de fundamentar o seu valor nos próprios limites.

o Podemos recapitular do seguinte modo o caminho seguido por Kant


até alcançar completamente o ponto de vista transcendental da
@sua filosofia. Nos estudos juvenis da filosofia natural, Kant foi-se
familiarizando com a filosofia naturalística do iluminismo inspirada
por Newton. Esta filosofia, com o seu

ideal de 'uma descrição dos fenómenos e com a

renúncia a admitir causas e forças que transcenderiam tal


descrição, levantou-lhe a exigência de uma metafísica que se
constituísse como base dos próprios critérios limitativos. Tal
metafisica poderia, sem embargo, valer-se .do método da razão
fundamentadora que dominava o ambiente filosófico em que Kant
se formara. As considerações dos empiristas ingleses, para as quais
se orienta devido a essa exigência, puseram ante os seus olhos pela
primeira vez essa
metafísica como ciência limitativa e negativa, portanto, como uma
autocrítica da razão. Este ponto de vista é já alcançado nos
escritos publicados entre
1726 e 1765. Sucessivamente, e pela primeira vez na Dissertação
(1770), o ponto de vista crítico esclarece-se como ponto de vista
transcendental, limitadamente ao conhecimento sensível: a validade
deste conhecimento é fundamentada nos seus próprios limites.
Depois de 1781, o ponto de vista transcendental é alargado a todo o
mundo do homem.

88
§ 516. KANT: A CRITICA DA RAZÃO PURA

A conclusão das análises de Hume é a de que o homem não pode


alcançar, nem mesmo nos limites da experiência, a estabilidade e a
segurança de um

saber autêntico. O saber humano é, no máximo, um saber provável -


mas mesmo este saber provável vem a faltar quando ó homem
transpõe os limites da experiência e se aventura pelos caminhos da
metafísica. Estas duas conclusões do cepticismo de Hume são
rebatidas por Kant. Em primeiro lugar, segundo Kant, existe um
saber autêntico e é a nova ciência matemática da natureza. Em
segundo lugar, embora a metafísica seja quimérica, o esforço do
homem para a metafísica é real; e se é real, deve ser de algum modo
explicado. A própria metafísica, mesmo na sua vã pretensão de
conhecimento, levanta um problema que é resolvido procurando na
constituição do homem o móbil último da sua tendência para
transcender a experiência. A indagação crítica que nega a
possibilidade de resolver certos problemas não pode descuidar a
explicação da génese destes problemas e a sua raiz no homem. Ela
institui o tribunal que garante a razão nas suas pretensões
legítimas e condena aquelas que não têm fundamento na base do
limite que é intrínseco à própria razão como lei imutável. Tal
tribunal é a Crítica da Razão Pura, isto é uma auto-crítica da razão
em geral a respeito de todos os conhecimentos a que pode aspirar
independentemente da experiência. A tal crítica cabe decidir sobre
a possibilidade ou impossibilidade da metafísica como também
sobre as suas

89

fontes, sobre a sua extensão e sobre os seus limites (K. r. V., pref.
A XI). Que haja conhecimentos independentes da experiência é um
facto, segundo Kant. Todo o conhecimento universal e necessário é
independente da experiência, dado que a experiência, como Hume e
Leibniz haviam reconhecido em pontos de vista opostos, não pode
dar valor universal e necessário aos conhecimentos que derivam
dela. Mas o conhecimento "independente da experiência" não
significa conhecimento "que precede a experiência". Todo o nosso
conhecimento começa com a experiência, mas

pode acontecer que não derive todo da experiência e que seja um


composto das impressões que derivam da experiência e daquilo que
lhe acrescenta a nossa

faculdade de conhecer, por ela estimulada: Em tal caso, é


necessário distinguir no conhecimento uma matéria, constituída
pelas impressões sensíveis, e uma

forma, constituída pela ordem e unidade que a nossa

faculdade cognoscitiva dá a tal matéria. A matemática e a física


pura (os princípios da física newtoniana) contêm indubitavelmente
verdades universais e necessárias, portanto independentes da
experiência. Efectivamente contêm juízos sintéticos a

priori: sintéticos no sentido do que neles o predicado acrescenta


algo de novo ao sujeito (o que não acontece nos juízos analíticos); a
prior!: porque têm uma

validade necessária que a experiência não pode dar Ora o primeiro


problema de uma crítica da razão pura é ver como são possíveis os
juízos sintéticos a priori
- o que equivale ao problema de saber como é possível uma
matemática e uma física pura. A crítica da
1 90

razão pura deve alcançar e realizar a possibilidade fundamentadora


da ciência, do autêntico saber humano. É evidente que esta
possibilidade não pode ser reconhecida na matéria do
conhecimento, constituída pela multiplicidade desordenada e
amorfa das impressões sensíveis. Deve ser, pois, recomendada na
forma do conhecimento, isto é nos elementos ou funções a priori
que dão ordem e unidade a essas impressões.

O primeiro objectivo da crítica da razão será o de descobrir,


isolando-os, quais os elementos formais do conhecimento que Kant
chama puros e a

priori, no sentido de que estão privados de qualquer referência à


experiência e não independentes dela. @@Deste modo, a
investigação da razão, embora mantendo-se rigorosamente nos
limites da experiência, estará em grau de justificar a própria
experiência na sua totalidade, portanto também os conhecimentos
universais e necessários que se encontram no seu âmbito. O segundo
objectivo da crítica da razão pura será o de determinar o uso
possível dos elementos a priori do conhecimento, isto é o método do
próprio conhecimento. Assim a crítica da razão pura dívidir-se-á em
duas partes principais (que são de facto as duas partes da obra
homónima de Kant): a doutrina dos elementos e a doutrina do
método. E dado que. se chama transcendental todo o conhecimento
enquanto concerne, "não já os objectos, mas o nosso modo de
conhecê-los enquanto deve ser possível a priori", assim haverá uma
doutrina transcendental dos elementos e uma doutrina
transcendental do método. E chamar-se-ão transcendentais
também
91

as ulteriores divisões destas duas divisões fundamentais.

Ora o primeiro resultado que nasce do conceito do conhecimento


humano como composição ou síntese de dois elementos, um formal
ou a priori, o

outro material ou empírico, que é o objecto do próprio


conhecimento, não é o ser em si, mas o fenómeno. Para o homem
conhecer não significa criar: o entendimento humano não produz,
conhecendo-a, a realidade que é seu objecto. Neste sentido, não é
um entendimento intuitivo como é talvez o entendimento divino
para. o qual o acto de conhecer é um acto criativo.- O entendimento
humano não intui, mas pensa; não cria, mas unifica; deve ser-lhe
dado, portanto, por outra fonte o objecto do pensar, o múltiplo a
unificar. Esta fonte é a sensibilidade. Mas a própria sensibilidade é
substancialmente passividade; aquilo que ela possui recebe-o, e não
pode recebê-lo senão nos modos que lhe são próprios. Tudo isto
significa que o objecto do conhecimento humano não é a coisa em si,
mas aquilo que da coisa pode aparecer ao homem: o fenómeno.
Significa também que o conhecimento humano, enquanto é sempre e
apenas conhecimento de fenómenos, é sempre e apenas experiência.
Mas o fenómeno não é aparência ilusória; é um objecto e um um
objecto real apenas na relação com o sujeito cognoscente, *isto é
como o homem (K. r. V., § 8, B 60, A 43). A investigação crítica é
investigação transcendental enquanto versa sobre a possibilidade
condicionante de todo o conhecimento autêntico e, portanto, sob as
formas a priori da experiência. Estas formas são,

92

por um lado, sensíveis (intuições puras, espaço e


tempo), pelo outro, intelectuais (conceitos puros, categorias). A
experiência é a totalidade concreta do conhecimento: ela é
constituída não apenas pela sensibilidade mas também pelo
entendimento e é condicionada igualmente pelas formas de uma e
outra.

Desta maneira, Kant efectuou a sua revolução copernicana. @Como


Copérnico, que não podendo explicar os movimentos celestes com a
suposição de que todo o exército dos astros gira em redor do
espectador, o conseguiu explicar melhor supondo que o observador
gira sobre si mesmo, do mesmo

modo, Kant, em vez de admitir que a experiência humana se modela


sobre os objectos, em cujo caso a sua validade seria impossível,
supõe que os próprios objectos enquanto fenómenos se modelam
sobre as condições transcendentais da experiência.

§ 517. KANT: AS FORMAS DA SENSIBILIDADE

Na Crítica da Razão Pura, a Estética Transcendental é dedicada à


determinação dos elementos a priori da sensibilidade, a Analítica
Transcendental (primeira parte da Lógica Transcendental que
compreende também a Dialéctica Transcendental) é dedicada à
determinação dos elementos a priori do entendimento e à sua
justificação.

As formas a priori da sensibilidade ou intuições puras são o espaço


e o tempo, os quais não são, portanto, nem conceitos, nem
qualidades das coisas, mas

condições da nossa intuição delas. Nós não podemos perceber nada


se não no espaço e no tempo: todas
93

as coisas que percebemos existem, portanto, no espaço e no tempo,


se bem que estes sejam puros elementos subjectivos do conhecer
sensível. No espaço, é fundamentada a validade da geometria, a qual
pode determinar as propriedades espaciais de todos os

objectos possíveis da experiência, precisamente porque não se


fundamenta na consideração de alguns desses objectos, mas no da
forma universal que os

condiciona. O tempo é, depois, a forma do sentido interno, isto é a


ordem da sucessão na qual nós percebemos os nossos estados
internos e, portanto, nós próprios e, através dos estados internos,
as coisas no espaço.

Por isso, espaço e tempo não são nem conceitos empíricos, isto é
retirados da experiência externa ou

interna (como sustentava Locke, por exemplo); nem

conceitos discursivos, isto é universais, das relações das coisas


entre si (como sustentava Leibniz, por 1 exemplo); mas
"representações, necessárias a priori" que estão no fundamento de
todas as intuições, Como tais são "subjectivos"; e, em tal sentido,
Kant afirma a sua idealidade transcendental isto é não dizem
respeito às coisas tais como são em si

próprias. São todavia reais de uma realidade empírica no sentido de


que pertencem efectivamente às coisas tais como são percebidas
por nós. As coisas percebidas são por isso enquanto tais já
constituídas no espaço e no tempo e os seus caracteres espaciais e
temporais são nelas impressos pela forma subjectiva que a sua
percepção consente.

Esta doutrina limita, segundo Kant, de modo radical a pretensão do


conhecimento sensível. "Toda

94

a nossa intuição, diz ele, não é mais que a representação de um


fenómeno; as coisas que nós intuimos não são em si próprias como
nós as intuimos nem as relações entre elas são em si próprias tais
como

nos aparecem; e se tirássemos do centro o nosso sujeito ou mesmo


só a constituição subjectiva da sensibilidade em geral, toda a
constituição, todas as relações dos objectos no espaço e no tempo,
bem corno o espaço e o tempo desapareceriam porque como
fenómenos não podem existir em si próprios mas apenas em nós" (K.
r. V., § 8). Quando Kant diz "em nós" não entende, todavia, os
homens: pode acontecer, afirma ele, que cada ser pensante finito se
encontre em idênticas condições do homem. Mas também neste
caso a intuição sensível, como intuição derivada, não diria nada
sobre as coisas em si próprias, dado que sobre estas só poderia
dizer qualquer coisa a intuição originária, isto é não sensível mas
intelectual, de um Ser do qual as coisas dependeriam quanto à sua
própria existência (1b., B 72).

§ 518. KANT: AS CATEGORIAS E A lógica FORMAL

Todavia, o nosso conhecimento não se fixa na sensibilidade que é


passividade ou receptividade. É também pensamento, isto é
actividade ou espontaneidade. "Todas as intuições, enquanto
sensíveis, repousam sobre as afecções; e também os conceitos
sobre as funções", diz Kant (K. r. V., B 93). Mas nem tal
espontaneidade é criadora, no sentido de pro. duzir os objectos; é,
pelo contrário, discursiva, no

95

sentido de acontecer por meio de conceitos. Ora a

actividade discursiva é aquela por meio da qual se

julga: assim a actividade fundamental do entendimento, enquanto


faculdade dos conceitos, é juízo, Pensar significa julgar. Portanto,
se se querem isolar as condições formais que presidem à actividade
intelectual, deve-se considerar os próprios produtos desta
actividade, isto é os juízos, mas prescindindo de todo o seu
conteúdo particular e considerando-os na sua forma simples, como
faz precisamente a lógica. Reconhecidas assim as classes dos
juízos, pode-se fazer corresponder a cada uma delas uma
determinada função intelectual que será a categoria. Kant dá assim
as seguintes tábuas dos juízos e das categorias:

TÁBUAS DOS JUIZOS

Quantidade

Qualidade

Relação

Modalidade

Particular Singular Universal


Afirmativo Negativo Infinito

Categórico Hipotético Dísjuntivo

Problemático Assertórico Apodictico

TÁBUA DAS CATEGORIAS

Quantidade

Qualidade

Relação

Modalidade

Multiplicidade

Realidade

Substancialidade e inerência

Possibilidade e impossibilidade

Unidade

Negação

Causalidade e dependência

Existência e não Existência


Totalidade

Limitação

Comunidade ou reciprocidade de acção

Necessidade e causalidade

96

O uso da palavra "juizo" para significar aquilo que na lógica


tradicional, a que Kant faz referência, se chamava "proposição",
indica que Kant toma em

consideração não a fórmula linguística em que um juizo se exprime,


mas, segundo a orientação que a lógica de Port Royal (§ 416) havia
feito prevalecer, o acto mental que consiste no unir entre si duas
representações. Além disso, Kant afasta-se da lógica tradicional em
alguns pontos da sua classificação. Insere entre os juízos de
quantidade um "juízo singular que, para a lógica tradicional, era
idêntico ao universal (de facto, para ela "o homem é mortal"
significa "todos os homens são mortais"). Distingue o juízo infinito,
por exemplo, "a alma é não-mortal" do juízo afirmativo. Insere nos
juízos de relação, que são as proposições hipotéticas da tradição
estóica, o "juizo categórico" que é o oposto do hipotético; e entre
as proposições modais o "juizo assertórico" que era
tradicionalmente contraposto a este. Todavia, com estas
modificações, Kant aceitou substancialmente a tradição da lógica
formal e aceitou-a porque considerou que a lógica geral pura (isto é
não aplicada), dado que abstrai todo o conteúdo de conhecimento e
toda a consideração psicológica, tem apenas como objecto princípios
a priori * é, portanto, um cânon do entendimento e da razão *
respeito de qualquer uso, tanto empírico como transcendental (K. r.
V., B 78). No curso de Lógica (que foi publicado por um aluno), Kant
afirma que a lógica tem como objecto as regras necessárias do
entendimento, isto é aquelas sem as quais a própria função do
entendimento não seria possível: não as

97

acidentais que dependem de um determinado objecto de


conhecimento e são, por isso, tantas quantos são os objectos. "A
ciência destas regras universais e

necessárias, diz elo, é, portanto, simplesmente a

ciência da forma da nossa consciência intelectual ou do nosso


pensamento. Podemos fazer uma ideia da possibilidade de uma tal
ciência do mesmo modo que fazemos a ideia de uma gramática geral
que não contenha senão a forma simples da linguagem em geral e
não as palavras que pertencem à matéria da linguagem> (Logik, A 3-
4).

Desta maneira Kant pressupunha a validade da lógica formal como


ciência a priori das funções do entendimento nas suas regras
essenciais de funcionamento. Mas negava que tal ciência
constituísse um

órgão de conhecimento, isto é um instrumento para produzir


conhecimento autêntico. Esta pretensão é antes reconhecida por
ele como o fundamento da dialéctica, isto é do uso impróprio ou
arbitrário do conhecimento a priori e, portanto, como arte
puramente sofística. Da lógica geral, distingue a lógica
transcendental. Esta última refere-se apenas a objectos, a priori,
enquanto a primeira pode referir-se indistintamente a qualquer tipo
de conhecimento; e, mais especificamente, propõe-se como seu
problema específico o da validade de tal conhecimento: o problema
fundamental da Oltica. A parte da lógica transcendental destinada
a este objectivo é aquele que Kant chamou "dedução
transcendental": e nela vê Kant "o mais difícil problema da Crítica"
(K. r. V., pref. A XVI).

98

§ 519. KANT: A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL

A dedução transcendental não foi "um problema difícil" apenas para


Kant: foi-o e é ainda para os

historiadores e os expositores do seu pensamento dado que a sua


interpretação comanda toda a interpretação da filosofia kantiana.
A maior dificuldade deriva do facto de que, a partir de Fichte, o
idealismo clássico alemão adoptou o termo "dedução" para indicar
uma exigência que é bastante mais genérica e geral do que aquela
que Kant compreendia com o mesmo termo -, isto é a exigência de
que "todo o demonstrável deve ser demonstrado, todas as
proposições devem ser deduzidas, através do primeiro e supremo
princípio fundamental" (FICHTE, WissenschaftsIehre, 1794, § 7);
ou que todas as

determinações do pensamento são para mostrar na

sua necessidade, são essencialmente para deduzir" (HEGEL, Ene., §


42). Este sentido genérico ou generalizado do termo, que pode
encontrar a sua aplicação apenas no âmbito do idealismo segundo o
qual tudo deriva do Eu ou da razão e, por isso, tudo pode ser
deduzido de um ou de outra, é completamente estranho à filosofia
de Kant na medida em que é estranha a este tipo de idealismo. Kant
afirma explicitamente assumir o termo no significado jurídico,
segundo o qual significa a demonstração da legitimidade da
pretensão que se avança e respeita por isso ao quid júris não ao quid
facti de uma
questão. Noutros termos, provar que a pessoa X está na posse do
objecto y não é uma dedução; mas é

99

uma dedução demonstrar que x tem sobre o objecto y um direito de


propriedade.
Kant ateve-se sempre a este significado restrito e específico da
palavra "dedução", embora com algumas oscilações terminológicas.
Uma destas oscilações está na contraposição da dedução empírica
que consistiria em mostrar o modo como um conceito é adquirido
por meio da experiência ou da reflexão e diria respeito, portanto, o
facto de posse, à dedução transcendental: contraposição que está
no § 13 da Crítica da Razão Pura. Mas pouco mais adiante, no mesmo
parágrafo, a propósito de Locke, Kant observa que, nesse caso, para
falar com propriedade, não se pode usar o termo "dedução" porque
se trata apenas de uma questão de facto. Por outra banda, Kant
recorreu ao termo "dedução" todas as

vezes que se tratava de justificar a legitimidade do uso de certos


conceitos. Assim formulou a exigência de uma "dedução" da lei
moral como "justificação da validade objectiva e universal da lei",
embora admitindo que, neste caso, ela não é possível (Crit. R.
Prática, § 3, nota 2); formulou a exigência da dedução dos
princípios da faculdade do juizo como demonstração da sua
"necessidade lógica objectiva" (Crit. do Juízo, § 31 e Intr. § V);
falou da dedução da divisão de um sistema" como "prova do seu
acabamento e da sua continuidade" (Metaf, dos Costumes, 1, lntr., §
II, nota). Noutros termos, a exigência da dedução apresenta-se na
obra de Kant, sempre que se trata de justificar a validade de uma
pretensão qualquer: a referência objectiva das categorias, o valor
universal e necessário da lei moral, a validade

100

objectiva do juizo do gosto, o acabamento e continuidade de uma


classificação sistemática. Em todos estes casos, não se trata de
deduzir (isto é de fazer derivar logicamente) qualquer coisa de um
princípio primeiro, absoluto e incondicionado, segundo a exigência
indicada por Fichte e acolhida pelo idealismo romântico, mas de
encontrar o fundamento de uma

pretensão, isto é a condição ou o conjunto das condições que tomam


possível qualquer coisa; ou mais brevemente, a possibilidade real ou
transcendental de qualquer coisa, enquanto distinta da sua simples
possibilidade formal ou lógica. Deste ponto de vista, a dedução, no
único, significado legítimo do termo, é sempre dedução
transcendental, isto é detem-Linação do fundamento e da
possibilidade validificante. E não se pode chamar dedução a
descoberta, a descrição e a classificação dos objectos a deduzir
porquanto tais operações podem às vezes, segundo Kant, chamarem-
se "demonstrações". Efectivamente, Kant não chamou dedução à
formulação da tábua das categorias que ele considera consignada à
reflexão sobre a experiência científica e cuja demonstração
completa foi para elo obtida mediante considerações de lógica
formal. Nem chamou dedução a

descoberta da lei moral que, para ele, é um factum da razão; ou das


formas do juizo do gosto descobertas mediante a reflexão sobre a
actividade sentimental do homem. Pelo contrário, compreende como
dedução a demonstração da validade das formas cognoscitivas, da
lei moral e do juizo estético teleológico, demonstração alcançada
mercê da de101
monstração do seu fundamento, isto é das suas condições de
possibilidade.

Em segundo lugar, é claro que não há uma

única dedução transcendental: isto é, não há um único processo


dedutivo que constitua, no seu conjunto, o sistema inteiro da
filosofia. Pelo contrário, existem tantas deduções quantos são os
campos a que pertencem os objectivos a deduzir e tais deduções
são autónomas umas em relação às outras. Em qualquer campo, como
no da moral, também se apresenta a exigência da dedução, mas não
pode ser satisfeita.

Em terceiro lugar e consequentemente, o princípio da dedução, isto


é o fundamento, não é único ou absoluto, mas deve ser formulado,
em cada campo, de modo específico, ou seja em conformidade com a
estrutura do campo e das pretensões que nele se

apresentam. Não existindo um único fundamento, não surge tão-


pouco a questão de qual seja o fundamento: se é Deus ou a
natureza, o sujeito ou o objecto, o eu ou a razão etc.
Efectivamente, a dedução transcendental não põe à cabeça um
princípio absoluto e incondicionado deste género, mas apenas a
possibilidade validificante da pretensão que se apresenta num
território qualquer do saber humano: possibilidade que adquire
caracteres reais ou transcendentais, segundo a natureza e os
caracteres do próprio território. Prescindindo destes caracteres,
isto é na sua natureza pura e simples de fundamento em geral, o
próprio fundamento não é mais que a possibilidade de ordens várias
de condicionamento e reconduz por isso à categoria do possível que
Kant
102

pretendeu esclarecer nos seus escritos pré-críticos. Portanto, o


processo da dedução não põe à cabeça uma necessidade
incondicionada em que se reflicta a necessidade incondicionada do
seu princípio (como no caso da dedução idealística), mas uma
necessidade condicionada no sentido de que os objectos da dedução
(categorias, leis, juízos) são esclarecidos necessariamente por si e
na medida em que são relacionáveis com a possibilidade que está no
seu fundamento. O resultado mais importante da dedução é por
isso, em última análise, o de limitar e regular o uso dos conceitos de
que são possíveis usos diversos: ou seja determinar, entre os vários
usos possíveis, aquele realmente possível no sentido de que
assegura a eficácia e a validade do conceito.

§ 520. KANT: A DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DAS


CATEGORIAS

A dedução transcendental das categorias, isto é dos conceitos


puros do entendimento, não é, como se viu, a ú nica dedução
transcendental, mas é a primeira em que Kant defronta - e a mais
difícil e em torno da qual trabalhou mais longamente. A segunda
edição da Crítica da Razão Pura (1787) contém uma reelaboração
radical da exposição kantiana deste ponto. Dado que esta exposição
é, pelo menos relativamente, a mais clara e completa, em

todo o caso aquela na qual o próprio Kant considera mais


autenticamente expresso o seu pensamento. não há motivo para
descurá-la a favor daquela con103

tida na primeira edição. A preferência atribuída a

esta última, sobretudo pelos idealistas ou pelos críticos idealistas


de Kant, explica-se facilmente considerando que, pela sua
ambiguidade, ela se presta a ser interpretada mais facilmente como
dedução idealística.

Kant começa por observar que o problema da dedução não se


apresenta em relação às formas da sensibilidade espaço e tempo.
Estas não são susceptíveis de usos diferentes, mas de um único uso
que é o válido. Efectivamente, um objecto não pode aparecer ao
homem, isto é ser percebido por ele senão através destas formas.
A sua referência necessária aos objectos de experiência está assim
garantida: um objecto que não é dado no espaço e no tempo não é
um objecto para o homem porque não é intuído. O problema da
dedução subsiste, pelo contrário, para aquilo que respeita às formas
do entendimento porque os usos possíveis destas formas sã o
diferentes e a dedução deve determinar qual é o válido. As
categorias do entendimento, por exemplo a causalidade, poderiam
também não condi- cionar os objectos da experiência e, por outro
lado, podem ser usadas também em relação aos objectos que não
fazem parte da experiência (por exemplo, Deus ou as coisas em si).
A dedução transcendental deve mostrar-se, e quando estes
objectos se referem à experiência, deve pôr a claro a legitimidade
e os limites da s a pretensão e as regras do seu uso legítimo.

Ora, para fazer isto, Kant começa por distinguir a conexão


necessária, isto é objectiva, dos objectos

104

de experiência, da ligação subjectiva que pode existir entre as


percepções daqueles objectos. Que duas percepções estejam de
qualquer modo ligadas, por exemplo, sejam dadas no mesmo espaço
ou também contemporaneamente ou sucessivamente no tempo, não
implica de modo nenhum que os fenómenos correspondentes devam
ter entre si uma relação necessária. Esta relação necessária é,
todavia, segundo Kant, a "forma lógica de todos os juízos". Por
exemplo, o juízo "o corpo é pesado" não significa que "todas as
vezes que levo um corpo, sinta uma impressão de peso". O juízo
exprime uma relação objectiva, independente da minha percepção,
entre o corpo e o peso. Portanto, Kant considera inadequada a
definição (introduzida pela Lógica de Port Royal) do juízo como
relação entre duas representações. Esta relação seria puramente
subjectiva na

medida em que a unidade própria do juízo, expressa pela cópula "é",


é uma unidade objectiva, inerente aos próprios objectos de que se
trata (ou seja, no

exemplo citado, ao corpo e ao peso) (K. r. V., § 19). Toda a


experiência (e Kant tem em mente principalmente a experiência
científica) é constituída por relações objectivas desta natureza.
Ora, segundo Kant, estas relações têm o seu fundamento no eu

penso ou "unidade sintética originária da apercepção". Kant afirma:


O "eu penso" deve poder acompanhar todas as minhas
representações, de outro modo seria necessário imaginar alguma
coisa que não poderia ser pensada; e, em tal caso, a representação
ou seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria" (lb. § 16).
Isto quer dizer que, se existe uma

105

síntese objectiva, como é a do juizo, deve existir uma possibilidade


de síntese, ou seja uma função unificante; e o "eu penso", que é
esta função, deve poder acompanhar todas as representações a
unificar. O deve poder acompanhar (muss begleiten kõnnen)
exprime uma possibilidade, ou antes a possibilidade fundamental da
unificação. O deve refere-se ao modo por que se estabelece ou se
reconhece tal possibilidade: ela deve existir, se existe (como existe
no juízo) a unidade objectiva das representações. Como
possibilidade de síntese, o eu penso pode juntar as representações
numa unidade que é a estrutura objectiva da experiência; e não só
da experiência externa. isto é. dos fenómenos naturais, mas
também da experiência interna, ou seja, desse fenómeno que é o

eu para si mesmo na consciência. A síntese do eu

penso é, portanto, "o princípio supremo de todo o

conhecimento humano" (1b., § 16): expressão que se deve entender,


não no sentido de que ela seja o

único princípio de que a consciência humana, na sua totalidade, se


pode deduzir, mas sim no sentido de que constitui a condi4o ou a
possibilidade de validez objectiva de todo o conhecimento.

De facto, a primeira característica do "eu penso" ou, como também


Kant diz, da "unidade da apercepção", é que ela é uma unidade
objectiva: por outros termos, não é mais do que a possibilidade da
experiência como unidade. Nas notas fragmentárias em que Kant
consignou as meditações fatigantes dos seus últimos anos e que
deveriam explicar a passagem dos princípios transcendentais à
física e constituir ao mesmo tempo a última exposição da sua

106

doutrina filosófica, Kant insiste continuamente no carácter


objectivo da apercepção transcendental. A experiência, como
unidade necessária dos fenómenos, contrapõe-se continuamente,
nestas notas, ao conjunto das representações que podem ter entre
si formas de unidade casuais e variáveis. A subjectividade
transcendental, o "eu penso", não é mais do que a pura possibilidade
da experiência (Opus Postumum, IX, 2. p. 280, 308, 418, 438, 469,
etc.). Mas este mesmo aspecto da unidade transcendental em que
Kant insistia nos últimos anos da sua vida, encontra-se já
suficientemente elucidado na exposição da primeira e da segunda
edição da Crítica da Razão Pura. Pode-se exprimir sucintamente
este aspecto da dedução transcendental dizendo que o "eu penso",
como acto originário do entendimento, é a possibilidade de
experiência como conexão necessária entre os fenómenos.

Sobre a natureza subjectiva do "eu penso", há, pelo contrário, uma


diferença substancial entre a exposição da primeira e da segunda
edição da Crítica. Na primeira edição, a apercepção pura é definida
como o eu estável e permanente que constitui o correlato de todas
as vossas representações, com respeito à simples possibilidade de
ter consciência delas"; de modo que "todo o conhecimento pertence
a uma apercepção pura e omnicompreensiva, assim como

toda a intuição sensível, enquanto representação, pertence a uma


intuição pura interna, isto é, ao tempo" (K r. V., A 123-124). Na
segunda edição, ao invés, o carácter subjectivo da unidade
transcendental é definido sobretudo em relação à sua pura
forma107

lidade, mediante o contraste, que se repete frequentemente (1b.,


§§ 16, 17, 21), com o carácter intuitivo de uma problemática
inteligência divina. Ora, o eu estável e permanente, de que falava a
primeira edição, é uma realidade e, precisamente, uma realidade
psicológica; o eu formal da segunda edição não é mais do que uma
possibilidade, a possibilidade originária da unificação da
experiência. Esta possibilidade de unificação pressupõe o múltiplo
da experiência, que por isso deve ser dado, de maneira que esta
pode agir e concretizar-se apenas nas modalidades particulares que
o múltiplo põe à sua disposição. Com isto define a condição, não de,
todo o entendimento possível, mas de um entendimento finito, isto
é, humano. "Este principio, diz Kant (1b., § 17) não é um principio
para qualquer entendimento possível em geral, mas apenas para
aquele por cuja apercepção pura na representação eu sou não se dá
nenhuma multiplicidade. Ao invés, o entendimento por cuja
autoconsciência fosse dado ao

mesmo tempo o múltiplo da intuição, um entendimento para cuja


representação já existissem ao mesmo

tempo os objectos dessa representação, não teria necessidade de


um particular acto de síntese do múltiplo na unidade da consciência,
do qual pelo contrário, tem necessidade o entendimento humano,
que apenas pensa e não intui. Mas este acto é, inevitavelmente, o
primeiro princípio do entendimento humano, de modo que ele não
pode sequer fazer a mínima ideia de outro entendimento possível
que o intua por si mesmo ou possua uma intuição sensível mas de
natureza diferente daquela que cons108

titui fundamento do espaço e do tempo". Nestas considerações,


frequentemente repetidas, Kant insiste no carácter finito do
entendimento humano e do acto originário em que ele se exprime.
No parágrafo 25 encontram-se esclarecimentos conclusivos sobre
este acto originário.

Kant explica no parágrafo precedente o paradoxo (de que não


existe vestígios na primeira edição) que consiste em o homem se
conhecer não como é em si mesmo mas como aparece a si mesmo.
Conhece-se a si mesmo, isto é, tal como conhece todos os outros
objectos, como um simples fenómeno. O paradoxo é inevitável, dada
a natureza puramente formal do "eu penso", o qual, por si mesmo,
não faz conhecer nada como tão-pouco o poderá fazer uma pura
categoria que prescinda de toda a intuição sensível. Para se
conhecer a si mesmo, portanto, o homem tem necessidade não só do
"eu. penso", que é a possibilidade deste e de qualquer outro
conhecimento, mas também da multiplicidade sensível que lhe é
fornecida através da forma pura do sentido interno, o

tempo. Conhece-se apenas como determinado pela multiplicidade do


sentido interno, numa palavra como fenómeno. Posto isto, Kant
acrescenta (§ 25): "Na síntese transcendental do múltiplo das
representações em geral, e, portanto, na unidade sintética
originária da apercepção, eu tenho consciência de mim mesmo, não
como eu apareço a mim mesmo, nem como sou em mim mesmo, mas
apenas de que eu sou. Esta representação é um pensar, não um
intuir. Ora, dado que para o conhecimento de nós mesmos se requer,
além da operação do pensamento

109

que reduza a multiplicidade de toda a possível intuição à unidade da


apercepção, também um determinado modo de intuição através do
qual o múltiplo seja dado, assim a minha própria existência não é
uma aparição (o muito menos uma aparência). Mas a determinação
da minha existência só pode efectuar-se segundo a forma do
sentido interno, nesse modo particular em que o múltiplo, que eu
unifico, pode ser dado na intuição interna; e é por isso que eu não
adquiro um conhecimento de mim tal qual sou, mas apenas como
apareço a mim mesmo. A consciência de si mesmo está, portanto,
muito longe de ser um conhecimento de si mesmo, não obstante
todas as categorias que constituem o pensamento de um objecto em
geral mediante a unificação do múltiplo numa apercepção". A
consequência disto é que, no acto da apercepção, "eu existo como
inteligência que é consciente apenas da sua capacidade de
unificação". E, numa nota, Kant reforça de modo explícito e
definitivo o último significado do "eu penso". "0 eu penso, diz Kant
exprimo o acto de determinar a minha existência (Dasein). A
existência é já dada por ele, mas o modo por que eu a devo
determinar, isto é, pôr em mim o múltiplo que lhe pertence, ainda
não está dado. Para isso, é necessária uma auto-intuição que tem
por fundamento uma dada forma a priori, isto é, o tempo, que é
sensível e

pertence à receptividade do determinável. Ora, se

eu não tenho também outra auto-intuição, que dê em mim o que é


determinante e da qual eu tenha consciência só enquanto
espontaneidade, de modo que este elemento determinante se dê
antes do acto

lio

de determinar, tal como o tempo existe antes do determinável, eu


não posso determinar a minha existência como a de um ser
espontâneo; porém, ponho-me apenas como espontaneidade do meu
pensamento, isto é, do determinar, e a minha existência permanece
sempre determinável. apenas de maneira sensível, isto é, como
existência de um fenómeno. Esta espontaneidade faz, todavia, que
eu me chame inteligência". A preocupação dominante de Kant nestes
textos que representam a formulação mais clara que ele logrou
fazer sobre a natureza do "eu penso" é a de salvaguardar o
carácter finito, isto é, não criativo, da actividade intelectual do
homem. O eu penso é o acto

da autodeterminação existencial do homem como ser

pensante e finito. Esta autodeterminação é apenas a


possibilidade de determinar uma multiplicidade dada e é por isso
activa e concreta só no acto de aplicar-se a tal multiplicidade (que é
a da intuição interna) e unificá-la de algum modo. Por isso,
considerada em si mesma, no seu aspecto Somente subjectivo, esta
possibilidade não é senão a consciência de uma espontaneidade (da
capacidade de determinar) que tem o nome de inteligência.

Revela-se aqui o significado daquela possibilidade condicionante e


fundamental que a investigação crítica de Kant, aprofundando e
desenvolvendo a tendência do iluminismo europeu, pretende pôr a
claro.
O "princípio supremo de todo o conhecimento humano", a
possibilidade última da experiência humana, é uma possibilidade a
um tempo subjectiva e objectiva; dado que é ao mesmo tempo a
possibilidade que o homem tem de se determinar como
determinante

111

em relação a um material determinável em geral, e a

possibilidade que este material tem de se determinar em


conformidade com a capacidade determinante do homem. O homem
é inteligência (espontaneidade) em

virtude da mesma possibilidade pela qual os fenómenos constituem


uma totalidade organizada (experiência). Com o reconhecimento
desta possibilidade, Kant fundava o valor do conhecimento humano
precisamente sobre a natureza finita do homem, isto é, sobre o
carácter não criativo da sua actividade cognitiva. De facto, em
virtude da sua natureza finita, o homem é, subjectivamente, uma
pura possibilidade de unificação, que só se torna concreta e activa
perante uma multiplicidade sensível que lhe seja dada; mas, por
outro lado, este ser-lhe dado da multiplicidade sensível não é mais
do que a possibilidade de ele mesmo se organizar em unidade.

A doutrina de Kant exclui assim toda a possibilidade de interpretar


o "eu penso" ou apercepção transcendental como uma
autoconsciência criadora, no sentido que se tornará próprio do
idealismo pós-kantiano de Fichte em diante. Não é por acaso que a
segunda edição da Crítica, que apresenta a exacta elucidação
transcendental do "eu penso", além dos apoios psicológicos ("o eu
estável e permanente") que ainda se imiscuíam na primeira edição,
contém também, entre os seus mais significativos aditamentos, uma
"Refutação do idealismo" que é um corolário directo da dedução
transcendental. A refutação de Kant é dirigida quer contra o
idealismo problemático de Descartes que só declara indubitável o
eu
existo, quer contra o idealismo dogmático de Ber112

keley, que reduz as coisas no espaço a simples ideias.


O teor desta refutação, o princípio a que obedece, é pelo próprio
Kant posto a claro numa nota ao prefácio da segunda edição da
Crítica (K. r. V., B 274 sgs.). "Se à consciência intelectual da minha
existência na representação eu existo, que acompanha todos os
meus juízos e as operações do meu intelecto, pudesse aliar uma
determinação da minha existência através de uma intuição
intelectual, a

esta pertenceria necessariamente a consciência de uma relação com


qualquer coisa fora de mim. Mas, conquanto essa consciência
intelectual preceda verdadeiramente a intuição interna, a única na
qual se

pode determinar a minha existência, é sensível e


está ligada à condição do tempo; e esta determinação, e com ela a
própria experiência interna, depende de qualquer coisa de imutável
que não está em mim e, por consequência, depende de alguma coisa
fora de mim com que devo considerar-me em relação. De sorte que
a realidade do sentido externo está necessariamente ligada à do
sentido interno pela possibilidade de uma experiência em geral: o
que quer dizer que eu sou consciente de que existem coisas fora de
mim e que estão em relação com os meus sentidos, com a mesma
certeza com que sou consciente de que eu próprio existo
determinado no tempo". Por outros termos, se o "eu. penso" fosse o
acto de uma autoconsciência criadora, não teria nada fora de si e
não haveria coisas que lhe fossem exteriores. Dado que, pelo
contrário, é o acto existencial de um entendimento finito, implica
sempre uma relação com qualquer coisa fora de si; e a realidade
feno113

ménica das coisas externas é tão certa como a realidade da


consciência e do próprio "eu penso". Assim se delineia a
característica essencial do ser pensante finito: a sua relação com o
exterior. A possibilidade originária que constitui este ser, leva-o
para além de si, para a exterioridade fenoménica, da qual o

torna dependente: esta dependência é a sensibilidade.

Mas a dependência é de algum modo recíproca: a possibilidade


originária transcendental é sempre simultaneamente a possibilidade
da espontaneidade subjectiva (,inteligência) e da organização
objectiva dos fenómenos (natureza). A dedução transcendental
permite a Kant justificar a ordem necessária dos fenómenos
naturais, Esta ordem é condicionada pela síntese originária do
entendimento (eu penso) e pelas categorias em que esta síntese se
determina o articula. De facto, como simples representações, os
fenómenos não podem sujeitar-se a outra lei que .não seja a que
lhes prescreve a faculdade unificadora. Por isso, a natureza em
geral, como ordem necessária dos fenómenos (natura formaliter
spectata) é condicionada pelo eu penso e pelas categorias. e
modela-se por elas em vez de constituir o seu modelo. O "eu penso"
o as categorias não podem todavia revelar senão o que é a natureza
em geral, como regularidade dos fenómenos em geral, como
regularidade dos fenómenos no espaço e no tempo. As leis
particulares, nas quais esta regularidade se exprime, não podem ser
deduzidas das categorias, mas devem ser extraídas da experiência.
Esta não é senão a própria natureza no seu aspecto subjectivo,
devendo-se entender por natureza a totalidade organizada dos
fe114

nómenos e por experiência esses fenómenos mesmos tal como


aparecem ao homem.

A dedução transcendental elimina assim a dúvida de Hume sobre a


validez das proposições extraídas da experiência. Hume
considerava possível que a experiência de um momento ao outro
desmentisse aquelas verdades de facto, que ela mesma sugere. Kant
julga que tal possibilidade não existe. A experiência, condicionada
como é pelas categorias do intelecto o pela apercepção
transcendental, não pode desmentir aquelas verdades que se
fundam precisamente nestes factores condicionantes. As leis da
natureza são assim garantidas na sua validez. A experiência que as
revela nunca poderá desmenti-las, já que elas se fundam nas
condições que tornam possível toda a experiência.

§ 521. KANT: A Analítica DOS PRINCIPIOS

Determinadas as categorias que presidem à constituição da


experiência e justificadas tais categorias pela dedução
transcendental, Kant passa a determinar "o cânone do seu uso
objectivamente válido", isto é, as regras segundo as quais devem
aplicar-se aos casos particulares. Esta é a tarefa da Analítica dos
princípios ou Doutrina transcendental do juízo. Esta última
expressão exprime o facto de que o uso das categorias é
precisamente o juízo. A analítica transcendental compreende o
esquematismo, dos conceitos puros e o sistema dos princípios do
entendimento puro.

115

A doutrina. do esquematismo responde à necessidade de encontrar


um termo médio entre as categorias e as intuições empíricas.
Categorias e intuições são entro si heterogéneas; e é precisamente
esta heterogeneidade que faz nascer o problema da possibilidade
da aplicação das categorias às intuições. Ora, segundo Kant, o
termo intermédio, que é homogéneo por um lado à categoria, por
outro, à intuição empírica ou fenómeno, é o esquema
transcendental; e o modo como o entendimento se comporta com os
esquemas é o esquematismo do entendimento puro. O esquema é um
produto da imaginação, mas não é uma linguagem porque contém já
em si algo do conceito puro. É definido como "o procedimento geral
pelo qual a imaginação fornece a um conceito a sua imagem" (K. r. V.,
B 179). Ao passo que a imagem é um produto da imaginação, o
esquema é a pura possibilidade da imagem: por isso, esta só é
reduzida ao conceito através do esquema, mas em si mesma nunca
coincide perfeitamente com ele. Kant. enumera os esquemas em
relação com cada categoria. Assim o esquema das categorias de
quantidade é o número, o das categorias de qualidade é a coisa, o
das categorias de relação é a permanência ou a sucessão ou a
simultaneidade; o das categorias de modalidade é a existência no
tempo e precisamente num tempo qualquer (possibilidade), num
tempo determinado (realidade) e em todos os tempos
(necessidade). Em geral, os esquemas não são senão determinações
a priori do tempo segundo regras; e estas regras referem-se ou à
série do tempo (esquema de quantidade) ou ao seu conteúdo
(esquema de quali116

dade) ou à sua ordem (esquema de relação) ou, enfim, ao conjunto


do tempo (esquema da modalidade).

Reconhecido assim o esquematismo como a condição geral do uso


das categorias, Kant passa a determinar os juízos a que este uso dá
lugar. Evidentemente, não se trata aqui de juízos analíticos, cuja
verdade é suficientemente garantida pelo princípio de contradição,
mas de juízos sintéticos, a que é indispensável uma referência à
experiência. O conhecimento humano, de facto, no que tem de
positivo e construtivo, não se estende para lá da experiência,
porque é sempre conhecimento de fenómenos. Porém, a experiência
não é apenas o limite do conhecimento, mas também o fundamento
do seu valor. Um conhecimento que não se refira a uma experiência
possível não é conhecimento, mas sim pensamento vazio que nada
conhece, simples jogo de representações. Por outro lado, sobre o
fundamento da possibilidade da experiência, o conhecimento
adquire a sua plena validez, porquanto as condições, que tomam
possível a experiência, tornam também possível o objecto da
experiência, o fenómeno. Ora a experiência não é um simples
agregado de percepções, mas sim a conexão necessária entre os
fenómenos. A possibilidade da experiência reside, pois, nas regras
fundamentais desta conexão, que Kant chama de princípios do
entendimento puro. A função de tais princípios consiste
essencialmente em eliminar o carácter subjectivo da percepção dos
fenómenos, reduzindo a

percepção à conexão necessária que é própria da experiência


objectivamente válida. Estes princípios substituem os simples
liames das percepções no

117

tempo pelas relações necessárias que conglobam a experiência num


todo coerente.

Kant, como de ordinário, recorre à sua tábua das categorias para


dar a série sistemática dos princípios do entendimento puro, os
quais, em última análise, não são outros senão os pressupostos
fundamentais da ciência newtoniana.

Os axiomas da intuição (correspondentes às categorias da


quantidade) transformam o facto subjectivo de podermos perceber
a quantidade espacial ou temporal (por exemplo, uma linha ou
duração) percebendo apenas as partes sucessivas, no princípio
objectivamente válido segundo o qual toda a quantidade é composta
de partes; e assim justificam a aplicação da matemática ao domínio
inteiro da experiência.

As antecipações da percepção (correspondentes às categorias da


qualidade) transformam a intensidade subjectiva da percepção num
grau da qualidade objectiva e garantem assim a continuidade dos
fenómenos (porquanto todo o fenómeno pode ter infinitos graus).

As analogias da experiência (correspondentes às categorias da


relação) permitem reconhecer por sob a mutabilidade das
percepções um substracto permanente que é a substância dos
fenómenos; substituem a simples sucessão temporal das percepções
pela relação necessária de causalidade entre os fenómenos, a qual
explica e fundamenta aquela sucessão; e permitem justificar
objectivamente, mediante a relação da acção recíproca, a
simultaneidade dos fenómenos, a qual não pode aparecer nas
percepções que são sempre sucessivas. São precisamente estas
três ana118

logias da experiência que constituem a natureza, a qual é a própria


conexão objectiva entre os fenómenos.

os postulados do pensamento empírico em geral esclarecem,


finalmente, os conceitos de possibilidade, de realidade e de
necessidade das coisas, dando a tais conceitos o seu valor
objectivo.

Os princípios do entendimento puro garantem a validez objectiva da


experiência, subtraindo-a à sua objectividade da percepção.
Constituem a natureza mesma. A percepção que se lhes furta é um
puro jogo da imaginação e não tem outra realidade objectiva senão
a de um sonho. Estes problemas da analítica transcendental são o
tema constante das últimas meditações de Kant recolhidas no Opus
postumum. Nestas meditações, bastante pouco concludentes, pois
Kant continuamente lhes interrompe o

fio, e continuamente o retoma do princípio, na incapacidade de o


desenvolver e de o conduzir até ao fundo, o velho filósofo
propunha-se aplicar os princípios transcendentais da ciência da
natureza à física e, por conseguinte, justificar em particular as
bases da física de Newton: um tempo absoluto que flui
uniformemente sem relação com nada de exterior; um espaço
absoluto também, não relativo a qualquer coisa de exterior, mas
permanente e imóvel, uma

matéria única e uniforme, animada por uma força única e simples na


variedade das suas manifestações.
O princípio de que Kant pretendia valer-se nesta espécie de
dedução da física newtoniana é o da possibilidade da experiência
como sistema total dos fenómenos. Assim, da unidade da
experiência, de119

Ouzia a unidade a matéria, que é objecto da física. Assim, como há


uma única experiência de modo quando se fala de diversas
experiências se alude na realidade a grupos de percepções, assim há
um

único objecto da experiência, que é a matéria; e quando se fala de


diversas matérias, alude-se na realidade às substâncias (Stoffen)
diversas que constituem os elementos da matéria (Op. post., VIII,
1, p. 235-538, etc.). Estas meditações de Kant são importantes
porque revelam a exigência que sempre dominou a sua investigação
crítico-transcendental: a de justificar a possibilidade, e portanto o
valor, do saber positivo do homem (que para ele se identifica com a
ciência newtoniana) precisamente sobre o fundamento dos limites
de tal saber, isto é, no âmbito das possibilidades que constituem o
entendimento finito do homem.

§ 522. KANT: O NúMENO

Juntamente com a dedução transcendental e estreitamente


vinculada a ela, a doutrina do númeno constitui o fundamento da
filosofia kantiana. Não é por acaso que também neste ponto Kant
hesitou muito antes de chegar à expressão definitiva do seu

pensamento, e também sobre este ponto são particularmente


significativas as diferenças entre a exposição da primeira edição e
a da segunda edição da Crítica. A distinção entre fenómeno e
númeno é introduzida na Dissertação (1770) como distinção entre
mundo sensível e mundo inteligível. "0 que é pensado de um modo
sensível, dizia então Kant (Dissert., § 4) é a representação das
coisas tal como aparecem,
120

o que é pensado intelectualmente é a representação das coisas,


como são". A esta distinção que Kant atribuía à metafísica
tradicional, a Crítica da Razão Pura dá um significado inteiramente
novo. Esta obra havia já reconhecido e estabelecido solidamente
que o conhecimento humano está encerrado dentro dos limites da
experiência e que a experiência não se

refere a outra realidade que não seja o fenómeno. Este princípio


exclui que as categorias tenham (segundo a terminologia de Kant um
uso transcendental, pelo qual se referem às coisas em geral e em si
mesmas, e implica que o seu uso possível é o empírico, pelo qual se
referem só aos fenómenos, isto é, aos objectos de urna experiência
possível. Mas este pressuposto, que fica definitivamente
estabelecido para Kant a partir de 1781, dá origem a um duplo
problema. Em primeiro lugar, ao de explicar a

ilusão pela qual se propende a estender as categorias para lá dos


limites da experiência possível, isto é, às coisas em si mesmas; o em
segundo lugar, ao de explicar a função do númeno relativamente à
própria experiência, isto é, ao conhecimento humano.

Sobre o primeiro problema, a atitude de Kant é clara e definida


desde o princípio. Tal ilusão nasce do facto de as formas a priori do
entendimento não dependerem da sensibilidade, e isto fá-las
parecer aplacáveis mesmo para além da sensibilidade, como

se o pensamento pudesse atingir o ser em si. Na realidade, as


formas do entendimento são apenas a faculdade lógica de unificar o
múltiplo da sensibilidade e, onde tal multiplicidade falte, a função
delas torna-se impossível. Já na primeira edição
121

Kant distinguia claramente a possibilidade transcendental ou real,


constitutiva do conhecer autêntico, da possibilidade lógica de um
conhecimento puramente fictício. "0 jogo de prestígio pelo qual a
possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz a si mesmo)
se substitui à possibilidade transcendental das coisas (pela qual ao
conceito corresponde um objecto) pode iludir e satisfazer apenas
os inexperientes" (A 244). E uma nota de segunda edição
acrescenta: "Todos estes conceitos [as categorias] não podem ser
justificados nem, portanto--- demonstrados na sua real
possibilidade, quando se abstraia de toda a intuição sensível, a única
que possuímos" (B 303).

Todavia, o númeno não é apenas uma ilusão Reconhecer como


fenómenos os objectos da experiência significa implicitamente
contrapor-lhe. objectos não-fenómenos. Estes objectos são, pois,
possíveis. Mas sobre o significado da sua possibilidade e, por
conseguinte, sobre a função que tal possibilidade exerce nas
relações do conhecimento humano, as ideias de Kant só lentamente
se foram aclarando.

Numa primeira fase (1.a edição da Crítica e

Prolegómenos) Kant não atinge plenamente o significado da sua


própria distinção entre possibilidade lógica e possibilidade
transcendental. O númeno, embora tenha sido reconhecido como
uma simples possibilidade lógica, é chamado a exercer uma função
positiva no conhecimento e tratado como uma realidade, embora
desconhecida. "Todas as nossas representações, dizia Kant na
primeira edição da Crítica (A 251), são na realidade referidas pelo
entendimento a um dado objecto, e, visto que os
122

fenómenos, não são senão representações, o entendimento refere-


os a algo que seja objecto da intuição sensível; mas este algo,
enquanto tal, não é mais do que objecto transcendental. Este
significa um algo =x, de que nada sabemos e de que (pela presente
constituição do nosso entendimento) nada podemos absolutamente
saber, mas que pode servir apenas como correlato da unidade da
apercepção, com vista àquela unidade do múltiplo na intuição
sensível por meio da qual o entendimento unifica o múltiplo no
conceito de um objecto". Aqui, o númeno é um x, uma realidade
desconhecida, é certo, mas em todo o caso uma realidade, que serve
de correlato àquele "eu estável e duradouro" de que falava a

dedução transcendental da primeira edição. A esta realidade


desconhecida, que é o númeno, se atribui nos Prolegómenos (1, obs.
2 a) a função de influir sobre a sensibilidade e de ser o substracto
dos corpos materiais empiricamente percebidos. "Eu admito, diz
aqui Kant, refutando o idealismo de Berlçeley, que fora de nós
existam corpos, isto é, coisas que, conquanto nos sejam
completamente desconhecidas quanto ao que são em si mesmas,
conhecemos por meio das representações que o seu influxo sobre
* nossa sensibilidade nos fornece e às quais damos
* denominação de corpo; tal palavra significa, portanto, apenas o
fenómeno daquele objecto que nos

é desconhecido mas que nem por isso é menos

real." O númeno seria, deste ponto de vista, a substancia dos corpos


materiais enquanto fenómenos. o conceito do númeno é aqui
apresentado como
resultado do processo que induz a considerar sub123

jectivas algumas qualidades dos corpos; até certo ponto, a própria


intuição de corpo se torna subjectiva, mas permanece a realidade
desconhecida, o x que está por detrás dessa intuição e que não é
semelhante a ela, como não é semelhante a sensação do vermelho à
propriedade do cinábrio que a produz.

É evidente que nestas considerações o númeno não é apenas, como


Kant todavia reconhecera explicitamente na primeira edição da
Crítica, uma possibilidade lógica, mas uma realidade, isto é uma
possi-bilidade transcendental, de que Kant se serve positivamente
para explicar a constituição e a origem do conhecimento. Esta
incongruência é eliminada na segunda edição da Crítica. Aqui, assim
como se eliminam os passos que fazem da apercepção
transcendental uma realidade psicológica, ou seja, um "eu estável e
duradouro", são também eliminadas as passagens que respeitam à
função positiva do númeno na constituição e na origem do
conhecimento humano e é desenvolvido coerentemente o conceito
do númeno como pura possibilidade negativa e limitativa. Esclarece-
se então explicitamente que, em sentido positivo, o númeno não é
mais do que o objecto de uma intuição não-sensível, isto é, de uma
intuição intelectual que não é a

nossa e "da qual não podemos compreender sequer a possibilidade"


(K. r. V., B 309). Em sentido positivo, o númeno é, portanto, pelo
menos para o homem, impossível, e qualquer uso do conceito dele
está fora de discussão. A conclusão é que "aquilo que chamamos
númeno deve entender-se apenas em

sentido negativo,>, como aquilo que não é objecto

124
da nossa intuição sensível. Neste sentido negativo, assume um novo
relevo a função que já se atribuía ao númeno na primeira edição da
Crítica: a de conceito Emite. "Enfim, diz Kant (13 311), nem

sequer é possível reconhecer a possibilidade de tais númenos, e o


território para lá da esfera dos fenómenos é (para nós) vazio; isto
é, possuímos um entendimento que se estende para lá dessa esfera
problematicamente, mas não temos nenhuma intuição pela qual nos
possam ser dados objectos para lá do campo da sensibilidade nem o
entendimento possa ser usado em relação a eles de modo assertivo.
O conceito de númeno é, pois, apenas um conceito limite
(Grenzbegriff) para circunscrever as pretensões da sensibilidade e,
por isso, de uso puramente negativo. Todavia, não é um conceito
forjado arbitrariamente, uma vez que se liga à limitação da
sensibilidade, sem no entanto estabelecer nada de positivo fora do
domínio dela".

Aqui o número já não é mais que um x, uma realidade desconhecida


mas positiva, capaz de exercer

uma função positiva com respeito ao conhecimento humano. É a pura


possibilidade negativa e limitativa conexa aos limites deste
conhecimento enquanto é sempre experiência. Que o conhecimento
humano seja conhecimento de fenómenos, e não de númenos, não
significa que os númenos estejam atrás dele como aquilo que o
suscita, o sustém e o justifica, mas Somente que não é
conhecimento divino, que não cria realidade, mas se move no âmbito
de possibilidades determinadas, empiricamente dadas, e que fora
de tais possibilidades nada existe. Kant

125
foi-se libertando assim, lenta e exaustivamente, de todos os
resíduos ingenuamente realisticos do seu criticismo. A edição de
1787 marca verdadeiramente a sua vitória definitiva neste ponto.
Mas a vitória sobre o realismo não significou, para Kant, idealismo.
A dissolução do númeno como realidade positiva, a qual se foi
operando gradualmente no seu pensamento, não implica de modo
algum que ele tenha reduzido toda a realidade ao sujeito. O sujeito
é para ele a inteligência Enita, isto é, o homem, cujo acto de
autodeterminação existencial (o eu

penso) é ao mesmo tempo uma relação possível com

a realidade objectiva da experiência. O ensinamento, que se extrai


da dedução transcendental e da doutrina do númeno, na forma
definitiva que estes fundamentos assumiram na segunda edição da
Crítica, é que o acto originário constitutivo da subjectividade
pensante do homem é ao mesmo tempo o acto instaurador de uma
relação bem fundada entre o homem e a realidade objectiva do
mundo da experiência. A subjectividade humana revela-se assim
como uma relação com o objecto: com um objecto que não é uma
realidade desconhecida, mas sim a empírica multiplicidade do mundo
em que o homem vive.

É significativo que os pensamentos dispersos do Opus postumum


não modifiquem o ponto de vista que Kant defende na segunda
edição da Crítica, antes aduzam alguns esclarecimentos notáveis a
esse

respeito. De facto, aí é amiúde referido (Op. post. ed. cit., 11, p. 20,
27, 33, etc.) o conceito da coisa em si como correlato da unidade
originária do

126
entendimento, e, portanto, como um x que não é uni objecto
particular, mas o puro princípio do conhecimento sintético a priori.
Esta ora a doutrina da primeira edição da Crítica. Mas esta doutrina
está entretecida e misturada com a afirmação, que se repete
continuamente (Ib., p. 4, 25, 31, 32, etc.), de que a coisa em si é
"um puro pensamento sem realidade" (Gedankending ohne
Wirklichkeit), um

ens rationis. E esta afirmação é defendida no sentido de que a coisa


em si representa o aspecto negativo do objecto da intuição
empírica, aquilo a que Kant chama (1b., p. 24) o negativo sintético da
intuição a priori. A coisa em si não é um objecto diverso do objecto
sensível mas apenas no ponto de vista negativo pelo qual tal objecto
pode ser considerado" (Ib., p. 42). De modo que a distinção entre
fenómeno e coisa em si não é uma distinção entre objectos, mas
entre as relações existentes entre o sujeito e o objectivo
fenoménico. O objecto fenoménico é tal em virtude da relação
positiva que ele tem com o sujeito a que aparece, relação pela qual
elo é uma intuição e precisamente uma intuição empírica. Mas tem
também com o sujeito uma
relação negativa (não é coisa em si) e precisamente em virtude
desta relação negativa pode ser considerado como fenómeno e por
isso submetido à unidade da apercepção e das categorias (Ib., p. 44,
412). Kant afirma que somente: esta relação negativa toma possível
a filosofia transcendental: afirmação que exprime por outras
palavras aquela que aparece continuamente na Crítica, e é que, se os
objectos do conhecimento fossem coisas em si, seria

127

impossível aplicar-lhes as funções subjectivas do conhecer e tais


funções não teriam significado. É, portanto, evidente que a doutrina
em que Kant insiste ao longo das páginas do Opus postumuni, a

da coisa em si como ens rationis e relação negativa do sujeito com o


objecto empírico, não é mais do que uma reafirmação da coisa em si
como conceito-limite que torna possível o conhecimento empírico do
homem o a filosofia transcendental que analisa as condições desse
conhecimento.

§ 523. KANT: A DIALÉCTICA TRANSCENDENTAL

Com as duas secções da Analítica transcendental (Analítica dos


conceitos e Analítica dos princípios) se conclui a parte positiva da
Lógica transcendental. A segunda parte desta lógica, a Dialéctica
transcendental, é negativa: tende a mostrar a impossibilidade
daqueles conceitos que a razão humana é levada a formular,
prescindindo da experiência, mediante o uso transcendente das
categorias. A dialéctica transcendental é, portanto, a crítica da
dialéctica, isto é, da lógica assumida como órgão de conhecimento.
Kant diz a este propósito: "Por muito que varie o significado que os
antigos deram ao nome de ciência ou arte dialéctica, pode-se
todavia inferir do sentido em que o empregaram que a dialéctica,
para eles, não é mais do que a lógica da aparência. foi a arte
sofística de dar à própria ignorância, e até às voluntárias ilusões, a
aparência

128

- 11 -- ¥

KANT

da verdade imitando o método da fundamentação que a lógica em


geral prescreve, e servindo-se da sua tópica para colorir todos os
raciocínios ocos. Agora podemos fazer uma advertência segura e

úlil: a lógica geral, considerada como órgão, é sempre lógica da


aparência, isto é, dialéctica" (K. r. V., B 87). Isto acontece porque a
lógica por si só, ou seja, sem a ajuda da experiência, não pode
produzir conhecimentos: e produz apenas noções aparentes ou
fictícias que se substituem aos conhecimentos. A dialéctica
transcendental, todavia, não se ocupa da crítica de todas estas
noções, mas apenas das que nascem de uma "ilusão natural e
inevitável da razão humana" e que, por consequência, persistem
mesmo depois de se ter provado o seu carácter ilusório. Kant
identifica estas noções com as de alma, de mundo e de Deus que
eram o objecto da metafísica tradicional. A dialéctica
transcendental é, substancialmente, a crítica desta metafísica.

A crítica de Kant é, no entanto, dirigida à forma que aquelas noções


assumiram na metafísica especial de Wolff, que ele considerava a
mais ordenada o rigorosa exposição de tais noções. Mas importa
notar que Wolff distinguira da metafísica especial, que compreende
a psicologia, a cosmologia e a teolologia, uma metafísica geral ou
ontologia, que Kant nunca põe em causa. É que ele considera que os

resultados fundamentais da ontologia de Wolff podem ser


fundamentalmente aceites por aquela "metafísica crítica" ou
"científica" que, segundo Kant, coincide com a crítica da razão pura
(1b., B 870) e que, num escrito de 1793, em que versou

129

um tema proposto pela Academia de Berlim (Quais Não os


progressos reais que a metafísica fez desde o tempo de Leibniz e
Wolff?, A 156), denominou pelo próprio nome de ontologia.
Como se disse, as noções fictícias da metafísica são produzidas pelo
uso natural, mas não disciplinado, da razão. Ora, assim como o acto
do entendimento é o juizo, assim a actividade da razão é o
silogismo; e do mesmo modo que Kant extraíra das diferentes
classes de juízo as categorias do entendimento, assim extraiu das
diferentes classes de silogismo os conceitos da razão. Ora, o
silogismo pode ser categórico, hipotético e disjuntivo (segundo a
classificação aristotélica e estóica que a lógica escolástica
adoptou). Os conceitos da razão fundados sobre esta divisão
contêm, portanto, em primeiro lugar, a ideia do sujeito completo
(substancial), que é a da alma; em segundo lugar, a ideia da série
completa das condições, que é a do mundo; em terceiro lugar, a
ideia de um conjunto perfeito de todos os conceitos possíveis, que é
a de Deus. Cada uma destas ideias representa à sua maneira a
totalidade absoluta da experiência, mas uma vez que a totalidade da
experiência nunca é uma experiência, nenhuma delas tem valor
objectivo, e precisamente por isso é ideia, e não realidade. A ideia
da alma representa a totalidade da experiência em relação ao
sujeito; a ideia do mundo representa esta totalidade em relação aos
objectos fenoménicos; e a ideia de Deus representa-a em relação a
todo o objecto possível, fenoménico ou não A crítica destas três
ideias é ao mesmo tempo a crítica das três disciplinas que

130

constituíam a metafísica especial de Wolff, ou seja, da psicologia


racional, da cosmologia racional e da teologia racional.

Kant considera que o fundamento da psicologia racional e, portanto,


do conceito de alma em que ela assenta, é um simples paralogismo,
isto é, um

raciocínio falso. Este raciocínio consiste em aplicar ao eu penso a


categoria da substância e, consequentemente, em transformar este
acto originário do entendimento numa substância simples, imaterial
e

incorruptível e por isso também espiritual e imortal. Mas a


categoria de substância, como todas as demais categorias, só se
pode aplicar a objectos empíricos, e o eu penso não é um objecto
empírico mas apenas, como se viu, a função lógica do sujeito
pensante em relação a um múltiplo empírico determinável. A
aplicação da categoria de substância não pode por isso usar-se com
respeito ao "eu penso": assim, todas as dificuldades da psicologia
racional provêm de um silogismo falso, porquanto se toma a palavra
"sujeito" em dois sentidos diferentes. E, de facto, o eu que pensa é,
desde logo, sujeito, mais

não é substância, quer dizer, ser subsistente por si. É, sem dúvida,
um eu singular, uma vez que não pode ser resolvido numa pluralidade
de sujeitos, mas nem por isso é substância simples, já que a

simplicidade não pode predicar-se senão de substâncias empíricas.


Isto garante a identidade do eu como função sintética, mas tal
identidade nada diz sobre a entidade do eu fenoménico que é o
único que é objecto de conhecimento. Enfim, o eu penso estabelece
a distinção entre si e as coisas exteriores;

131

mas nada diz acerca da possibilidade de poder subsistir sem tais


coisas. Confundindo estas duas afirmações, a psicologia racional
manifesta o seu

carácter ilusório e falaz.


A ideia de mundo como totalidade absoluta de todos os fenómenos,
que é o objecto da cosmologia racional, revela a sua ilegitimidade ao
motivar afirmações antitéticas que se apresentam revestidas de
igual verosimilhança. Tais afirmações são as antinomias da razão
pura, verdadeiros conflitos da razão consigo mesma, dos quais ela
não pode salvar-se senão abandonando o princípio de que nascem, a
própria ideia de mundo. Desta ideia (que nada tem a ver com
natureza, que é a conexão causal dos fenómenos) nascem de facto
quatro antinomias. A primeira é a que existe entre finitude e

infinitude do mundo com respeito ao espaço e ao tempo; com efeito,


pode sustentar-se seja que o

mundo tenha tido um início no tempo e tenha um limito no espaço,


seja que não tem nem um nem

outro e seja infinito. A segunda antinomia nasce da consideração da


divisibilidade do mundo: pode sustentar-se seja que a divisibilidade
se interrompe num certo limite e que, por isso, o mundo é composto
de partes simples, seja que a divisibilidade pode ser levada até ao
infinito e que, portanto, nele nada existe de simples, isto é, de
indivisível. A terceira antinomia diz respeito à relação entre
causalidade e liberdade: pode admitir-se uma causalidade livre além
da causalidade da natureza ou negar qualquer causalidade livre. A
quarta antinomia concerne à dependência do mundo para com um ser

132

necessário: pode admitir-se que exista um ser

necessário como causa do mundo, ou pode negar-se tal ser. Entro a


tese e a antítese destas antinomias é impossível decidir, porque
ambas podem ser demonstradas. O defeito reside na própria ideia
do mundo, a qual, estando para lá de toda a experiência possível, não
pode fornecer nenhum critério para se decidir por uma ou por outra
das teses opostas. As antinomias demonstram portanto a
ilegitimidade da ideia de mundo. Tal legitimidade resulta evidente
se se observa que as teses das ditas antinomias apresentam um
conceito demasiado pequeno para o entendimento e as antíteses um
conceito demasiado grande para o próprio intelecto. Assim, se o
mundo teve um princípio, regredindo empiricamente na série dos
tempos, seria preciso chegar a

um ponto em que este regresso terminasse; e este é um conceito do


mundo demasiado pequeno para o entendimento. Se, ao invés, o
mundo não teve um princípio na série dos tempos já não @
pio, o regresso pode esgotar a eternidade; e este é um conceito
demasiado grande para o entendimento. O mesmo se pode dizer da
finitude e da infinitude espacial, da divisibilidade, etc. Em qualquer
caso se chega a

um conceito de mundo que, ou reduz a limites apertados a


possibilidade do homem de avançar de um

termo a outro na série dos eventos, ou estendo estes limites a tal


ponto que torna insignificante esta mesma possibilidade.

A terceira ideia da razão pura, a de Deus, é denominada por Kant o


ideal da razão pura. Com efeito, é o conjunto e todas as
@@s@b_iIQWèS' isto

133

é, o ser determinado por, pelo menos, um dos possíveis predicados


opostos das coisas. Este ideal é o modelo das coisas que, como
cópias imperfeitas daquele, dele extraem a matéria da sua
possibilidade. Por isso se chama o Ser originário; e chama-se Ser
supremo enquanto não tem nenhum ser sobre si e Ser dos seres
enquanto qualquer outro ser é condicionado por ele. Estas
determinações, no

entanto, são puramente conceptuais e nada dizem sobre a essência


real do ser de que se trata. Kant analisa a este propósito as provas
aduzidas sobre a existência de Deus, e redu-las a três: a prova
físico-teológica, a prova cosmológica e a prova ontológica. Começa a
sua análise por esta última, a

qual pretende deduzir a existência de Deus do conceito de Deus


como ser perfeitíssimo. Esta prova, segundo Kant, é contraditória
ou impossível: é contraditória se se crê que no conceito está já
implícita a sua existência, porque nesse caso já não se trata do
simples conceito; e é impossível se não a considerarmos implícita
porque nesse caso a existência deverá ser acrescentada ao,
conceito sinteticamente, isto é, por via da experiência, ao passo que
Deus está para lá de toda a experiência possível. A prova
cosmológica que passa da contingência do mundo à necessidade do
ser supremo funda-se na prova ontológica, já que o ser necessário é
precisamente o ser cujo conceito implica a sua existência, de modo
que a demonstração da necessidade de Deus pressupõe a prova
ontológica. Quanto à prova físico-teológica que remonta da ordem
do mundo ao

seu ordenador, essa, segundo Kant, não conclui,

.134

porque não é dado ao homem estabelecer uma relação entre a


ordem do mundo e o grau de perfei. ção divina que deveria explicar
tal ordem. Também esta prova implica um salto, em que só a pode
ajudar a prova cosmológica e a prova ontológica, de modo que sofre
o mesmo triste destino que estas duas. Esta crítica basta, segundo
Kant, para tirar todo o fundamento não só ao teísmo, que admite um
Deus vivo, cujos atributos podem ser

determinados por uma teologia natural, mas também ao simples


deísmo, que admite apenas um ser originário ou uma causa suprema,
furtando-se a determiná-lo ulteriormente.

4, Todavia, as ideias da razão pura, ainda que negadas no seu valor


objectivo, na sua realidade, apresentam-se incessantemente como
problemas. Reconhecida a ilusão a que o homem está sujeito no uso
dialéctico da razão, cumpre remontar à raiz de tal ilusão que se
radica na própria natureza do homem e dar a esta raiz um uso
positivo e construtivo ao serviço do próprio conhecimento empírico.
Por outros termos, negada a solução dogmática do problema
metafísico, cumpre propor uma solução crítica, para que o problema
mantenha e

preserve a sua problematicidade. De que maneira? A tal pergunta


responde o uso regulador das ideias transcendentais. Es titutivo,
pois não servem para conhecer nenhum objecto possível; mas podem
e devem ter um uso regulador, orientando a busca intelectual para
aquela unidade total que representam. Toda a ideia é, para a razão,
uma regra que a induz a dar ao

135

seu campo de investigação, que é a experiência, não só a máxima


extensão, mas também a máxima unidade sistemática. Assim, a ideia
psicológica leva a procurar os nexos entre todos os fenómenos do
sentido interno e a descobrir neles uma cada vez maior unidade
como se eles fossem manifestações de uma única substância
simples. A ideia cosmológica leva a passar incessantemente de um
fenómeno natural a outro, do efeito à causa e à causa dessa causa e
assim por diante até ao infinito, precisamente como se a totalidade
dos fenómenos constituísse um único mundo. A ideia teológica,
enfim, acrescenta à experiência um ideal de perfeita organização
sistemática, que ela nunca atingirá, mas

que perseguirá sempre, precisamente como se tudo dependesse de


um único criador. As ideias, deixando de valer dogmaticamente
como realidade, valerão neste caso problematicamente, como
condições que levam o homem a empenhar-se na investigação
natural e o solicitam de acontecimento em acontecimento, de causa
em causa, na tentativa incessante de estender o mais possível o
domínio da sua própria existência e de dar a este domínio a máxima
unidade. No entanto tratar-se-á sempre de uma

unidade problemática, que se' apresentará como

um problema nos problemas concretos da investigação científica,


mas que nunca poderá ser substituída por uma realidade ou um
objecto e afirmada como tal. A única via para garantir à unidade
total da experiência o seu carácter problemático e para evitar que
ela pretenda erigir-se numa reali136

dade ilusória, é considerála. segundo Kant, corno

o guia e a regra da investigação que se move nos limites mesmos da


experiência.

§ 524. KANT: A DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO

A Estética e a Lógica transcendental (nas suas


duas partes de Analítica e Dialéctica) constituem no seu conjunto a
Doutrina transcendental dos elementos, a qual é, segundo a imagem
de Kant, o

cálculo e a determinação dos materiais que constituem o edifício do


conhecimento humano. A Doutrina transcendental do método deve,
ao invés, dar os planos deste edifício, planos que devem estar em
relação com as possibilidades e os limites do material a utilizar.
Kant define a doutrina transcendental do método como "a
demonstração das condições formais de um sistema completo dia
razão pura". E nela trata da disciplina, do cânone, da arquitectónica
e da história da razão pura. Na realidade, esta última parte da obra
de Kant já havia sido quase toda exposta no curso do estudo dos
elementos, de modo que ela assume o simples relevo de uma
recapitulação ou repetição, do ponto de vista das aplicações
práticas, da primeira parte da Crítica.

Na Disciplina da razão pura, Kant preocupa-se em primeiro lugar em


estabelecer a diferença entre filosofia e matemática. A filosofia,
diz, é conhecimento racional mediante conceitos, ao passo que

137

a matemática é um conhecimento racional mediante construção de


conceitos. Para construir um conceito é necessária uma intuição não
empírica, e esta é a intuição do espaço-tempo de que o matemático
se vale nas suas construções. A filosofia, que não tem à sua
disposição nenhuma intuição pura adequada aos seus conceitos, não
procede por construção mas por análise. O seu método deve por
isso diferenciar-se do da matemática. Não pode partir de
definições, como o faz a matemática, mas sim da experiência, com a
condição de demonstrar por fim a
legitimidade desta; não conhece os axiomas, de que a matemática
extrai os seus fundamentos, não tem sequer verdadeiras
demonstrações, porque não atinge nunca a certeza apodíctica. O
conhecimento filosófico pode, é certo, denominar-se um sistema,
mas somente como sistema de investigação e busca daquela unidade
a que só a experiência pode fornecer a matéria. Tudo isto concerne
ao uso positivo da razão. Quanto ao seu uso negativo, isto é,
polémico, para a defesa das proposições contra as negações
dogmáticas, Kant considera que a razão deve evitar igualmente o
dogmatismo e o cepticismo e assumir em todos os casos uma atitude
critica.
O dogmatismo é o primeiro passo na razão pura; o

cepticismo é o segundo. A crítica é o passo definitivo com o qual se


assinalam precisamente os limites do poder e da capacidade da
razão e sobre estes limites se estabelecem firmemente esse poder
e capacidade. A disciplina da razão compreende também as suas
hipóteses e as suas demonstrações. Os conceitos da razão são,
como se viu, apenas

138

princípios reguladores, isto é, ficções heurísticas, de que o


entendimento se serve para estender e organizar a investigação
empírica. Não podem converter-se em hipóteses que expliquem os
factos empíricos ou as coisas naturais, porque isso constituiria, na
realidade, unia renúncia a toda a explicação e

um pretexto da razão preguiçosa para desistir da investigação. Em


geral, toda a hipótese pode ser formulada apenas à base da
experiência possível e, por conseguinte, não pode conter "outras
coisas ou princípios fora daqueles que segundo as já conhecidas leis
dos fenómenos estão em relação com os fenómenos dados" (K. r. V.,
B. 801). Ademais, uma

hipótese deve bastar para determinar a priori as próprias


consequências sem hipóteses subsidiárias (1b., B 802). E nenhuma
destas condições é satisfeita por uma <hipótese transcendental" em
que para a explicação das coisas naturais se empregasse uma
simples ideia da razão. Na demonstração, finalmente, a primeira
regra é examinar os princípios de que se pretende partir; a
segunda, a de servir-se de uma única demonstração, e a terceira a
de servir-se de demonstrações ostensivas ou directas, não
indirectas ou apagógicas, isto é, que remontam da verdade das
consequências à verdade das premissas.

O Cânone da razão pura é entendido por Kant como o complexo dos


princípios a priori que devem regular o uso das faculdades
cognitivas. Este cânone deve orientar a razão ao seu último fim que
é o conhecimento dos três objectos fundamentais da vida moral: a
liberdade do querer, a imortalidade da alma e a existência de Deus.
Kant antecipa aqui os

139

fundamentos da doutrina que desenvolverá na Crítica da razão


prática. O cânone serve também para distinguir a opinião, a fé e a
ciência. Uma crença válida para todos os que são providos de razão
chama-se convicção; uma crença que tem por fundamento a
natureza particular do sujeito chama-se persuasão. A persuasão
tem apenas uma validez privada e, por conseguinte, incomunicável,
porque é uma atitude subjectiva. Assim, a opinião é uma crença
insuficiente tanto subjectivamente quanto objectivamente, quer
dizer, não é nem convicção nem persuasão. Uma crença considerada
subjectivamente suficiente mas objectivamente insuficiente,
chama-se fé. Enfim, a crença suficiente tanto subjectivamente
como objectivamente, diz-se ciência. A suficiência subjectiva é a
convicção, a objectiva é a certeza. A fé refere-se à direcção
imprimida ao homem por uma certa ideia e à influência subjectiva
que esta ideia exerce sobre os actos da razão. Kant emprega este
conceito de fé na Razão prática.

A Arquitectónica da razão pura é a arte do sistema, entendendo


por sistema a unidade de múltiplos conhecimentos englobados numa
única ideia. Como sistema, a filosofia é apenas um ideal, nunca uma
realidade. Não se pode aprender a filosofia, mas pode-se aprender
a filosofar, isto é, a exercer a razão a aplicar-se à consideração e à
crítica dos seus próprios princípios. Mas o conceito escolástico da
filosofia como sistema pressupõe o conceito cósmico da filosofia
como ciência da relação de todo o

conhecimento com o fim essencial da razão humana e, neste


sentido, o filósofo não é um simples racio140

cinador (como são os outros homens de ciência) mas o <legislador da


razão humana". Como legislação da razão humana, a filosofia tem
dois objectos, a natureza e a liberdade: a filosofia da natureza
dirige-se àquilo que existe, a dos costumes àquilo que deve ser.
Estas duas partes correspondem

ao uso especulativo e ao uso prático da razão pura e constituem, no


seu conjunto, a metafísica. A primeira parte da metafísica. da
natureza é a filosofia transcendental que estuda o entendimento e
a razão nos seus conceitos e princípios enquanto se referem a
objectos em geral, mas sem considerar quais são os objectos dados;
uma segunda parte estuda a natureza, isto é, precisamente, o
conjunto dos objectos dados.

Na História da razão pura Kant esboça uma


espécie de classificação das doutrinas filosóficas, distinguindo-as
no que respeita ao objecto em sensualistas, como as de Epicuro, e
intelectualistas, como as de Platão; no que respeita às origens do
conhecimento, em empíricas, como as de Aristóteles e de Locke, e
neologísticas (inatistas) como as de Platão e Leibniz; no que
respeita ao método, em naturalistas (ou dogmáticas), cépticas, e
científicas (isto é, críticas).

§ 525. KANT: ANALITICA DA RAZÃO PRÁTICA: MORALIDADE E


SANTIDADE

A doutrina moral de Kant parece à primeira vista que elimina todos


os limites que a razão encon141

tra no seu uso teorético e que, portanto, abre ao homem as portas


proibidas do númeno. A razão prática confere realidade objectiva
às ideias transcendentes que a razão teórica devia considerar
apenas como problemas. O homem como sujeito da v 'da moral
coloca-se no domínio do númeno; e a ,

consciência que teorèticamente o referia só a si mesmo apenas


como fenómeno, põe-no aqui em presença da sua essência numénica.
O homem liberta-se, em virtude dia lei moral, do determinismo
causal a que está sujeito como ente que vive na natureza e se
considera positivamente livre, isto é, capaz de iniciar uma nova
série causal, independente da causalidade da natureza. As ideias de
alma e de Deus deixam de ser "transcendentes e reguladoras" para
se tornarem "imanentes: e ~ti"vas" do objecto da razão prática, o
sumo bem. Parece, por isso, que a vida moral abole um por um os
limites que a vida teórica impõe ao homem e dos quais extrai todos
os valores possíveis.
Mas, por outro lado, este contraste entre a

Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática esfuma-se ou


assume outro significado quando se confrontam os ternas
fundamentais das duas obras. Apercebemo-nos então da unidade
fundamental da sua inspiração. Na Razão pura o tema dominante é
constituído pela polémica contra a arrogância da razão que
pretende ultrapassar os limites humanos. Na Razão prática o tema
dominante é o da polémica contra o fanatismo moral como veleidade
de transgredir os limites da conduta humana. A Razão pura opõe o
conhecimento humano, fundado na intuição

142

sensível dos fenómenos a um conhecimento problemático divino


fundado na intuição intelectual da coisa em si. A Razão prática opõe
a moralidade humana, que é o respeito da lei moral, à santidade
divina, que é a conformidade perfeita da vontade com a lei. Enfim, a
Razão pura apresenta o númeno como sendo a condição do agir do
homem na investigação empírica; a Razão prática apresenta o

númeno como condição do empreendimento moral.

O conceito kantiano da vida moral do homem funda-se na tese da


natureza finita do homem, isto é, na falta de um acordo necessário
entro vontade e razão. Se a vontade do homem estivesse já em si
mesma necessariamente de acordo com a lei da razão, tal lei não
valeria para ele como um mandamento e não lhe imporia a constrição
do dever. A acção executar-se-ia infalivelmente em conformidade
com a razão. Mas a lei da razão é um imperativo e obriga o homem
ao dever. Portanto, o próprio princípio da moral implica um limite
prático, constituído pelos impulsos sensíveis, o por isso a finitude
de quem deve realizá-la. "Para um ser, diz Kant (K. p. V., V, A 37, p.
20), para quem o motivo determinante da vontade é Somente a
razão, a regra da razão é um imperativo, isto é, uma regra que é
caracterizada por um dever ser que exprime a necessidade
objectiva da acção e significa que, se a razão determinasse
inteiramente a vontade, a acção efectuar-se-ia infalivelmente
segundo esta regra". A moralidade, por outros termos, não é a
racionalidade necessária de um ser infinito que se identifica com a
razão, mas sim a racionalidade possível

143

de um ser que tanto pode assumir, como não assumir, a razão como
guia da sua conduta.

Estes fundamentos são a base de toda a doutrina moral de Kant.


Por eles, a moralidade está tão afastada da pura sensibilidade como
da racionalidade absoluta. Se o homem fosse apenas sensibilidade,
as suas acções seriam determinadas pelos impulsos sensíveis. Se
fosse só racionalidade, seriam determinadas pela razão. Mas o
homem é ao mesmo tempo sensibilidade e razão, tanto pode seguir o

impulso como pode seguir a razão: nesta possibilidade de escolha


consiste a liberdade que dele faz uni ser moral. Para viver
moralmente, o homem deve transcender a sensibilidade. Isto
implica não só que ele se subtrai aos impulsos sensíveis, mas
também que evita assumir como regra de acção qualquer objecto de
desejo. Como ser racional mas finito, o homem deseja a felicidade:
mas precisamente, enquanto objecto de desejo, a felicidade não
pode ser o fundamento de um imperativo moral.
O desejo não é um imperativo; tudo o que é objecto de desejo pode
dar lugar a máximas subjectivas, privadas de validez necessária, a
imperativos hipotéticos, que ordenam alguma coisa em vista de um
fim, não a uma lei objectivamente necessária, isto é que valha para
todos os seres racionais finitos. Os imperativos hipotéticos são os
de qualquer técnica ou mesmo os da prudência, que indicam os meios
para se ser feliz. A lei moral é, ao invés, um imperativo categórico
que não tem em vista nenhum objecto, nenhum escopo determinado,
mas apenas a conformidade da acção à lei. DevWo a esta. exclu144

são de qualquer objecto do desejo, isto é, de qualquer escopo


particular, o imperativo categórico é puramente formal. Constitui,
como lei, a própria exigência de uma lei: obriga a vontade não a
acções particulares, mas a toda a acção que esteja conforme com a
lei da razão. A lei moral não pode mandar outra coisa senão
proceder de acordo com

uma máxima que possa valer para todos. E, de facto, uma máxima
que não possa valer para todos, destrói-se a si mesma e introduz a
cisão e o conflito entre os seres racionais. A fórmula do imperativo
categórico é então a seguinte: "Age de modo a que a máxima da tua
vontade possa sempre valer como principio de uma legislação
universal". Esta fórmula é a lei moral; vale para todos os seres

racionais, quer sejam finitos ou infinitos; mas Somente para os


homens é um imperativo porque no homem não se pode supor uma
vontade santa, isto é, uma vontade que não seja capaz de uma

máxima contrária à lei moral. Para os seres finitos, a lei moral é,


pois, um imperativo e obriga categoricamente, porque a lei é
incondicionada. A relação de uma vontade fiai@a com esta lei é uma
relação de dependência que se exprime numa obrigação, isto é, em
obrigar a uma acção conforme à lei. Esta acção denomina-se dever;
e a lei moral é assim a origem e o fundamento do dever no homem.

A lei moral não procede do exterior. É um facto da razão pura no


sentido do que "somos consequentes dela a priori e que é
apodicticamente certa, mesmo se se supõe que na experiência não
se pode encontrar nenhum exemplo da sua exacta observân145

cia" (K. p. V. § 7; A 56). Sendo um facto, exclui a dedução, que,


como se disse (§ 519), não se

aplica à questão de facto. Ã Crítica da razão prática não se


apresenta por isso, como na Crítica da razão pura, o problema da
dedução transcendental sob a forma de uma demonstração da
validez da lei moral; esta validez faz parte do facto racional em
que a lei moral consiste. Mas uma dedução transcendental
apresenta-se igualmente no âmbito da Crítica da razão prática num
sentido que Kant denomina de paradoxal: a saber, no sentido de que
"o próprio princípio moral serve de princípio na dedução de uma
faculdade imprescrutável, que nenhuma experiência pode provar
mas que a razão especulativa deve admitir como possível, ou seja, a
faculdade da liberdade" (lb., A 56). Assim, na medida em que a lei
moral, como facto da razão, não tem necessidade de nenhum
fundamento que a justifique, demonstra que a liberdade é não só
possível mas real nos seres que reconhecem a lei como obrigatória.
A dedução transcendental, no domínio moral, assume, portanto, a
forma da dedução da liberdade à base da presença, no homem, da
lei moral como facto de razão. Tu deves, portanto podes, é a
fórmula que, segundo Kant, resume a

dedução transcendental no domínio moral.

A lei moral permite estabelecer quer a liberdade negativa do


homem, isto é, a sua dependência para com a natureza, quer a sua
liberdade positiva, ou seja, a sua legislação autónoma. No entanto,
tem um carácter puramente formal, visto que, na realidade, apenas
prescreve a renúncia por parte do
146

homem aos impulsos da sensibilidade e o seu determinar-se em


virtude da pura universalidade da razão.

o carácter formal da lei, a qual não obriga senão à conformidade


com a lei, tem sido frequentemente considerado uma abstracção e
valeu à doutrina moral de Kant a censura de negar a humanidade da
vida moral. Na realidade, esse carácter deriva precisamente da
consideração de que a vida moral é vida essencialmente humana e,
portanto, supõe a presença da sensibilidade e o perigo, para o
homem, de se abandonar aos seus impulsos. Precisamente por isso
Kant afirmou a necessidade de subtrair a lei moral a todo o
conteúdo e de a reconhecer na sua forma. Um ser cujos desejos
tivessem já a validez objectiva da lei, que não pudesse desejar
senão aquilo que a razão impõe, não teria ideia do carácter formal
da lei moral, e nem sequer da própria lei como imperativo. Mas, dado
que o homem é não só razão, mas também sensibilidade, a sua vida
moral é, em primeiro lugar, o

abandono da sensibilidade como motivo de acção e o decidir-se em


conformidade com a pura forma da lei.

Isso explica a função essencial que o carácter formal da lei exerce


em toda a doutrina moral de Kant. Kant serve-se dele em primeiro
lugar para a crítica de todas as doutrinas morais que se

fundam no princípio material, isto é, que deduzem a lei moral de


qualquer objecto do desejo. Kant estabelece a seguinte tábua dos

147

MOTIVOS MATERIAIS DETERMINANTES DA VIDA MORAL


(dada a sua complexidade, deverá ser compulsada pelo livro)
Subjectivos

OBJECTIVOS

Externos

Internos

Internos

Externos

da edudo governo

do sentido sentide perfeida vontade

cação

civil

mento

mento

ção (wolff

de Deus

(Mandepolítico

moral
e os estói(Crusius e

ville)

(Epicuro)

(Hutebecos)

os demais

son) 1

teólogos)

Os motivos subjectivos, quer exteriores quer internos, são todos


empíricos e não podem, por isso servir de fundamento a uma
obrigação moral incondicional. Tal obrigação seria de facto
condicionada por circunstâncias externas (de educação ou de
governo) ou então por um sentimento e não se justificaria na sua
validez universal. Tais motivos subjectivos poderiam, quando muito,
explicar efectivamente a presença da moralidade em certos homens
ou grupo de homens, mas não justificaria o carácter absolutamente
obrigatório da lei moral. Que a educação ou o governo ou um
sentimento meu qualquer me determinem a agir de um modo
determinado, isso nada me diz ainda acerca do valor deste modo de
agir, isto é, sobre a minha obrigação real para com ele. Mas o
mesmo se pode dizer também dos movimentos objectivos. A
perfeição ou a vontade de Deus só podem tomar-se como motivos
de acção se as considerarmos como factores ou elementos da nossa
felicidade. Dependem, portanto, do desejo da

148
felicidade e não justificam a validez de uma lei que obriga
incondicionalmente.

Em segundo lugar, o formalismo da lei moral permite a Kant


estabelecer o princípio de que "o conceito do bem e do mal não deve
ser determinado antes da lei moral, mas apenas depois dela e
mediante ela". O homem é um ser dotado de necessidades enquanto
faz parte do mundo sensível e a sua razão tem também o encargo,
que não pode recusar, de converter-se em instrumento de tais
necessidades e, por consequência, de contribuir para a satisfação
destas e para a sua felicidade. Mas a razão não é apenas unia
maneira particular de que a natureza se serve para orientar o
homem para o mesmo fim para que encaminhou os animais, isto é , o
bem-esW, .
O homem pode e deve servir-se da razão para um

fim superior e, por conseguinte, considera o que é bem em si


mesmo, e não apenas relativamente às suas necessidades; neste
caso, a razão é usada para um juizo que, do ponto de vista sensível,
é absolutamente desinteressado, e que é o único juizo
verdadeiramente moral. Neste juizo sobre o bem e sobre o mal em
si, a razão determina a vontade imediatamente, isto é, não em vista
dos objectos do desejo, e a vontade converte-se em razão pura
prática. A vontade, cuja máxima está conforme com a lei moral, é
portanto boa absolutamente, a todos os respeitos, e é condição
suprema de todo o bem É evidente, de facto, que todos os outros
bens, até mesmo a habilidade ou o engenho humano, podem ser

mal usados, e por isso não são bens em sentido absoluto; a vontade
boa é, ao invés, bem em sentido

149
absoluto e é a única coisa incondicionalmente boa. Mas para ser tal,
não basta que se conforme com

a lei, é necessário ainda que actue unicamente em vista da lei. Se a


acção escolhida pela vontade, embora se conforme com a lei moral,
não se executa em vista da lei mas por um outro fim sugerido pelo
modo ou pela esperança, não é uma acção moral porque não é uma
acção determinada imediatamente pela lei moral Isto leva a
considerar os móbeis da acção moral.

Kant distingue a este propósito a legalidade da moralidade: a


legalidade é a conformidade com a

lei de uma acção que todavia se faz por um outro

motivo de natureza sensível, por exemplo, a fim de evitar um dano


ou obter uma vantagem. <A moralidade é, pelo contrário, a
conformidade imediata da vontade com a lei, sem o concurso dos
impulsos sensíveis. Ora, dado que o conjunto dos impulsos, cuja
satisfação constitui a felicidade, é o amor de si (ou egoísmo), a
acção que realiza a moralidade e, por conseguinte, a liberdade, é a
eliminação do egoísmo e, em primeiro lugar, da presunção que
antepõe o eu e os seus impulsos à lei moral. Mas a acção negativa da
liberdade sobre o sentimento é também um sentimento, o único
sentimento moral: o respeito. E o respeito não é apenas o móbil da
moralidade, mas toda a moralidade considerada subjectivamente, já
que só abatendo toda a pretensão do amor de si se confere
autoridade à lei e se lhe permite adquirir predomínio sobre o
homem. Kant insiste no facto de que a moralidade como respeito é
uma condição própria do homem como ser racional

150
finito. "0 respeito é uma acção sobre o sentimento, logo sobre a
sensibilidade, de um ser racional: supõe, portanto, esta
sensibilidade e, juntamente com ela, a finitude dos seres a quem a
lei moral impõe respeito. A um ser supremo ou, pelo =nos livre de
toda a sensibilidade e ao qual por isso a sensibilidade não possa ser
um obstáculo para a razão prática, não se pode atribuir respeito
pela lei" (K. p. V., A, 134-35).

Do conceito de móbil deriva o de interesse moral, que não é mais do


que a representação do móbil da vontade mediante a razão. No
conceito de interesse se funda, ademais, o de máxima. E estes três
conceitos, o de móbil, o de interesse e o de máxima, só podem ser
aplicados aos seres finitos. "Supõem, de facto, uma limitação na
natureza de um ser, no qual a natureza subjectiva do seu livre-
arbítrio não está em si mesma de acordo com a lei objectiva de uma
razão prática; supõem a necessidade de serem de algum modo
estimulados à actividade porque um obstáculo interno se lhes opõe.
Por isso não se podem aplicar à vontade divina" (K. p. V., A 142).

Estes esclarecimentos fundamentais permitem entender o


significado da afirmação kantiana da natureza numénica da vida
moral. A vida moral é a constituição de uma natureza supra-sensível
na qual a legislação moral sobreleva a legislação natural. A natureza
sensível dos seres racionais é a sua existência sob leis
condicionadas empiricamente: por isso, esta natureza é, para a
razão, heteronomia. A natureza supra-sensível é autonomia porque
está

151

sob o domínio da pura razão. Ao passo que a


natureza sensível é uma natureza a que a vontade racional está
submetida, a natureza supra-sensível está submetida à vontade
porque tem o seu fundamento na razão prática. A natureza supra-
sensível é, portanto, o produto da vontade livre, ou seja, da vontade
conforme com a lei, e sob este aspecto a fórmula do imperativo
categórico pode-se também exprimir assim: "Age como se a
máxima da tua acção se devesse tornar, por tua vontade, lei
universal da natureza &. (Grund1. Zur Met. der Sitten, A 82-83).
Das duas expressões do imperativo categórico, a primeira ("Age de
modo a que a máxima da tua vontade possa sempre valer de
lei universal", e esta última, dão a forma do próprio imperativo, A
matéria deste imperativo, quer dizer, o

fim, é dada pela subjectividade dos próprios seres racionais. @,,


De facto, o imperativo categórico implica o reconhecimento dos
outros sujeitos morais para as quais a lei deve poder valer,
e, portanto, inclui, o respeito pela sua dignidade. De sorte que o
imperativo categórico pode também. assumir esta segunda forma:
"Procede de modo a

tratar a humanidade, na tua pessoa como na dos outros, sempre


como fim, nunca como simples meio". Esta segunda fórmula supõe
que a universalidade da lei moral é o acordo sobre um determinado
objecto, nem a uniformidade da acção dos vários sujeitos, mas
apenas o reconhecimento da dignidade humana das demais pessoas
como da própria. Tal reconhecimento faz com que todos os homens
como sujeitos morais constituam um reino dos fim, isto é,

152

uma "união !sistemática de seres racionais", da qual todo o membro


é legislador e súbdito. Neste reino, nenhum ser racional finito pode
aspirar ao lugar de soberano, porque nenhum é perfeitamente
independente, sem necessidade, e cujo poder não seja limitado. Mas
todos participam nele, mediante o a~ da liberdade que os constitui
em pessoas. Todavia, dado que cada membro do reino dos fins é não
só súbdito mas também legislador, o imperativo categórico pode
exprimir-se por esta terceira fórmula: "Age de modo a que a
vontade possa considerar-se a si mesma, mediante a sua máxima,
como legisladora universal" (lb., A 84), que é a fórmula que exprime
da maneira mais completa a autonomia do homem como sujeito
moral.

As três fórmulas do imperativo categórico mostram como a


actividade moral do homem tende à realização de um mundo que não
é o da natureza em~ e das suas leis necessárias. Todavia, este
mundo não pode realizar-se se se opuser à natureza sensível e às
leis que a regem: a sua própria possibilidade não tem outro
horizonte nem outra via para se afirmar senão a própria natureza
-sensível. Aqui está a raiz da exigência paradoxal de que o homem
como sujeito da liberdade valha como númeno. A moralidade supõe o
encontro de duas causalidades independentes, a da li@bertação e a
do niccanisino natural; e este encontro verífica-se no homem. O
homem deve ser, por um lado, relativamente à liberdade, um ser em
si, por outro, relativamente ànecessidade , natural, um fenómeno (K.
p. V., A 6 e nota). Mas afirmando-se como númeno, o homem não

153

anula a sua natureza sensível. A sua numenalidade mobiliza a sua


fenomenalidade; o mundo supra-sensível que estabelece no acto da
sua liberdade, é a forma da própria natureza sensível. A causalidade
livre, que dá lugar à natureza supra-sensível é, decerto,
espontaneidade, mas não é criação. A numenalidade do sujeito moral
não significa o abandono da sensibilidade nem a ruptura de todos os
laços com o mundo sensível. o homem, como sujeito moral, não se
identifica. com a razão, a moralidade nunca é conformidade
completa da vontade com a lei, nunca é santidade.

A oposição entre moralidade e santidade é o tema dominante da


Crítica da razão pura e o fundamento da sua última parte, a
"Doutrina do método". A santidade exclui a possibilidade de se
subtrair à lei e torna inútil o imperativo e a coacção do dever. Mas a
moralidade é uma obrigação e implica uma violência feita aos
impulsos. Dever e obrigação são os únicos nomes apropriados à
relação do homem com a lei moral. "Nós somos, decerto, membros
legisladores de um reino moral tornado possível pela liberdade e
representado pela razão prática como objecto de respeito; mas
somos os súbditos, não o soberano desse reino, e assim o
desconhecer a nossa condição inferior de criaturas, o recusar
presunçosamente a autoridade da lei, é já uma infidelidade ao
espírito da lei, mesmo quando se lhe observe a letra" (K. p. V. A
147). A santidade é, pois, reservada a Deus e é reconhecida,
juntamente com a

beatitude e a sabedoria, uma das propriedades que só lhe


pertencem a Ele, porque supõem a ausência

154

de limites ( Ib., A 237, no-ta). Mas nem o homem nem nenhuma


criatura racional pode atribuir-se a santidade senão por uma
presunção ilusória.

Tal presunção é o fundamento do fanatismo moral. Este pretende


cumprir a lei de bom grado, em virtude de uma inclinação natural, e
assim substitui a

virtude, que é a intenção moral em luta com o mundo, pela santidade


de uma suposta pureza' de intenções absoluta. O fanatismo moral
incita os homens às acções mais nobres, mais sublimes, mais
magnânimas, apresentando-as como puramente meritórias; e assim
substitui o respeito por um móbil patológico,, porque se funda no
amor de si e determina uma maneira de pensar leviana, superficial e

fantástica, pela qual o orgulho de uma bondade espontânea, que não


necessita nem de esporas nem de freio, aniquila a humildade da
simples submissão ao dever (K. p. V., A 151-52). O preceito cristão
que manda amar Deus e o próximo pretende, ao

invés, subtrair este amor à inclinação natural; e assim garante a


pureza da moralidade e a sua proporção aos limites dos seres
finitos; submete o homem à disciplina de um dever que não o deixa
vangloriar-se de perfeições morais imaginárias e lhe impôs os
limites da humildade, isto é, da sinceridade consigo mesmo (lb., A
152). consequentemente , o método da razão prática, isto é, a via
para assegurar ao imperativo moral a máxima eficácia sobre o
homem, visa fundamentalmente à destruição do fanatismo moral.
Deve promover, a "representação clara e severa do dever, mais
conforme com a imperfeição humana e

o Progresso do bem".

155

§ 526. KANT: DIALÉCTICA DA RAZÃO PRÁTICA: POSTULADOS


E FÉ MORAL

A acção moral do homem tem como objectivo ou

termo final o sumo bem. O sumo bem para o homem, que é um ser
finito, consiste, não só na virtude, mas também, na união da virtude
e da felicidade. A virtude é, de facto, o bem supremo, quer dizer, a
condição de tudo o que é desejável; mas

não é o bem completo e perfeito para seres racionais finitos, que


têm também necessidade de felicidade. "Ter necessidade da
felicidade e ser digno dela, e

todavia não participar dela, não é compatível com o querer perfeito


de um ser racional que tivesse ao

mesmo tempo a omnipotência: somente, procuramos figurar um tal


sem. Mas virtude e felicidade não estão por si mesmas unidas. O
esforço em ser-se

virtuoso e a busca da felicidade são duas acções diferentes: uma


não implica a outra. A identidade entre virtude e felicidade foi
admitida pelos epicúreos e pelos estóicos, pois, que os primeiros
consideram implícita a virtude na busca da felicidade e os segundos
consideram a felicidade implícita na consciência da virtude. Mas, na
realidade, virtude e felicidade constituem uma antinomia, e a
condição que toma possível a primeira (o respeito pela lei moral) não
@influi sobre a segunda, nem a condição que torna possível esta (o
adequar-se às leis e ao mecanismo causal do mundo sensível) torna
possível a

virtude. De certo modo, a felicidade deve ser uma consequência da


virtude, não no sentido de que esta pode produzir a felicidade
segundo o mecanismo das

156

leis naturais, mas no sentido de que torna o homem digno dela e por
isso justifica a esperança de a obter. Contudo, para ser
propriamente digno da felw-1lade o homem deve,poider promover
até ao infinito o seu aperfeiçoamento moral. Só a santidade, isto é,
a conformidade completa da vontade à lei, torna o

homem digno da felicidade e constitui a condição do sumo bem, isto


é, da união perfeita da virtude com a felicidade. Mas, diz Kant (K. p.
V. 2 220), a

santidade é uma perfeição de que nenhum ser racional do mundo


sensível é capaz em momento algum da sua existência. Só se pode
alcançar tal perfeição mediante um progresso até ao infinito desde
os graus inferiores até aos graus superiores da perfeição moral.
Mas este progresso até ao infinito ,só é possível se se admitir a
imortalidade da alma; a imortalidade é, portanto, um postulado da
razão prática, isto é, "uma. proposição teórica, mas como

tal indemonstrável, enquanto está indissoluvelmente ,unida a uma lei


prática que vale incondicionalmente a priori". Ademais, dado que a
união da virtude com a felicidade não se verifica segundo as leis do
mundo sensível, só pode ser o fruto de uma vontade santa e
omnipotente, isto é de Deus. De sorte que, assim como a realização
da primeira condição do sumo bom, isto é, da virtude, implica a
imortalidade da alma, assim a realização do segundo elemento do
sumo bem, isto é, da felicidade proporcionada à moralidade, implica
a existência de Deus. Kant nota que não é um dever crer na
existência de Deus, mas apenas uma necessidade; e que nem sequer
a existência de Deus é necessária para o dever, uma

157

vez que este se funda na autoridade da razão. O postulado, como


necessidade da razão prática, é antes urna fé, e precisamente uma
fé racional porque é sugerido por aquele conceito do sumo bem a
que o homem tende como ser racional finito.

Os postulados da razão prática permitem reconhecer com


segaridade o que à razão especulativa parecia simplesmente
problemático: a realidade da alma como substância indestrutível, a
do mundo como domínio da liberdade humana, e a de Deus como
garante da ordem moral. O que ora transcendente para a razão
especulativa, torna-se inwnente para a razão prática. Todavia, esta
extensão da razão pura ao plano prático não implica uma

similar extensão do conhecimento teórico. Admitir os postulados


não significa conhecer os objectos nuMÉnicos a que se referem.
"Com tais conceitos, diz Kant (K. p. V., A 240), nós não conhecemos
nem a natureza da nossa alma, nem o mundo inteligível, nem o ser
supremo, no que em si mesmos são, mas conglobamos apenas os
conceitos destas coisas no conceito prático do sumo bem como
objecto da nossa vontade completamente a priori, com a razão pura,
e também fizemos isto apenas mediante a lei moral e só,
relativamente a ela, em vista do objecto a que ela se refere".

Chegámos aqui, certamente, a um ponto crucial da filosofia de Kant,


um ponto que parece encerrar

uma dificuldade insuperável. Por que é que o homem


- pode-se perguntar - uma vez certo, embora só no plano prático, da
realidade supra-sensível, não pode fazer valer tal certeza também
no domínio teórico? Se,

158

como diz Kant, esta certeza nada nos diz acerca do modo por
que os seus objectos são possíveis, acerca do modo, por exemplo,
como se pode representar positivamente a acção causal da vontade
livre, diz-nos todavia, dos objectos numénicos, que existem, e
existem absolutamente. Assim, o limite da experiência é superado e
o homem adquire uma certeza positiva para lá da experiência e
parece ilegítimo encerrar o conhecimento nestes limites. O
"primado da razão prática parece contrastar de modo evidente com
a limitação do conhecimento humano dentro das possibilidades,
empíricas, que é o grande ensinamento da Crítica da razão pura4,
Não é de admirar, deste ponto de vista, que os intérpretes e
seguidores de Kant que tomaram à letra a doutrina do primado da
razão prática, nunca tenham tomado à letra as limitações que Kant
lhe impôs, proibindo qualquer uso teórico da mesma e recusando-se
a considerá-la, sob qualquer ponto de vista, como uma extensão do
conhecimento. Todavia, as afirmações de Kant são tão instantes e
repetidas a

este propósito que fazem supor que os motivos que as sugeriram


deviam decerto parecer-lhe decisivos; e decisivos são na realidade,
com respeito aos pressupostos fundamentais da filosofia de Kant. O
postulado é, na sua expressão, "uma proposição teórica"; mas, não é
um acto teórico da razão, isto é, um acto que, do ponto de vista
teórico, tenha qualquer validade. Kant adverte que, mesmo depois
de a razão haver dado um grande passo, admitindo a realidade dos
objectos numénícos, não lhe resta, com respeito a tais objectos,
senão uma tarefa negativa, isto é,

159

o impedir, por um lado, o antropomorfismo, que é a origem da


superstição, ou seja, da extensão aparente daqueles conceitos
mediante uma pretensa experiência, e, por outro lado, o fanatismo
que promete tal extensão mediante uma intuição supra-sensível ou
um sentimento do mesmo género (K. p. V., A 244-45).+A realidade é
atribuída às ideias numénicas unicamente "no que respeita ao
exercício da lei moral",4Ib., A 248). Não é possível fazer nenhum
uso delas para os fins de uma teologia naitura,1 ou

da física. O postulado nada mais é do que uma

necessidade do ser moral finito; e a palavra "necessidade" revela o


carácter prático do mesmo.*4W-ma necessidade da razão pura
,prática tem como fundamento o dever de fazer de algo (do sumo
bem) o objecto da minha vontade, para o promover com todas as
minhas forças: mas neste caso eu devo supor a possibilidade dele e,
portanto, também as

suas condições, isto é, Deus, a liberdade e a imortalidade, porque


não as posso demonstrar mediante a minha razão especulativa,
conquanto nem sequer as possa refutar., A 256). E tal necessidade
não implica nenhuma certeza mas apenas uma fé problemática que é
a única adequada à condição do homem. No parágrafo final da
Dialéctica da razão prática, intitulado "Da @proposição sabiamente
conveniente das faculdades de conhecer do homem com respeito à
sua determinação prática", parágrafo muitas vezes esquecido para a
elucidação deste ponto de vista da doutrina kantiana, Kant mostra
como qualquer certeza que o homem possa ter da realidade supra-
sensível destruiria a vida moral do ho160

mem. Neste caso, de facto, "Deus e a eternidade, perante os nossos


' olhos (já que o que podemos demonstrar perfeitamente equivale
certamente ao que podemos descobrir mediante a vista). A
transgressão da lei seria certamente impedida, tudo quanto se

manda-se seria cumprido; mas como a intenção, que origina as


acções, não nos pode ser imposta por um mandamento e o aguilhão
da actividade seria aqui sempre imediato e exterior, a razão nunca
teria necessidade de esforçar-se e de reunir as forças às
inclinações mediante a viva representação da dignidade da lei, assim
a maior parte das acções conformes à lei seriam feitas por temor,
apenas umas tantas por esperança e nenhuma pelo dever; de modo
que o valor moral das acções, o único de que depende o valor da
pessoa e do mundo aos

olhos da sabedoria suprema, não existiria para nada. A conduta do


homem (desde que a sua natureza permanecesse como é),
transformar-se-ia num puro mecanismo, no qual, como no teatro de
fantoches, todos gesticulariam sem que as figuras tivessem vida.
Ora, as coisas passam-se de uma maneira muito diferente: apesar
de todo o esforço da nossa

razão, temos uma visão do mundo obscura e duvidosa, e aquele que


rege o mundo deixa-nos apenas conjecturar, e não ver nem
demonstrar claramente, a sua existência e a sua majestade; a lei
moral, sem nada de certo nos prometer e sem nos ameaçar, exige
de nós o respeito desinteressado; e só quando este respeito se
torna activo e dominante, só então, e só graças a ele, se, pode
lançar um olhar, e, mesmo assim, com vista dé bil, ao reino do supra-
sensível.

161

Deste modo pode ter lugar uma intenção verdadeiramente moral e


consagrada imediatamente à lei, e a criatura racional pode tornar-
se digna de participar no sumo bem, que é adequado ao valor moral
da sua pessoa e não apenas as das suas acções" (1b., A
265-266). Estas palavras de Kant que lembram as

de Pascal sobre o "Deus, que se esconde" (§ 425) esclarecem com


exactidão o alcance do chamado primado da Razão prática.
Convertem os postulados da razão prática no analogon exacto das
ideias da razão pura; assim como estas últimas são simplesmente as
condições da investigação científica que em virtude delas pode
progredir em extensão e em

unidade até ao infinito, assim os postulados são as condições do


empenho moral do homem e do seu indefinido aperfeiçoamento. E
como condições do empenho moral, os postulados devem ter o
mesmo

carácter que as ideias da razão pura: devem valer


problematicamente, quer dizer não podem dar uma

certeza inabalável que seja directamente contrária à condição do


homem e que tornaria impossível à própria vida moral. O postulado
não autoriza a dizer eu existo mas apenas eu quero. "0 homem justo
pode dizer: eu quero que haja um Deus; que a minha existência
neste mundo, mesmo para lá da conexão natural, seja também uma
existência num mundo puro do entendimento e, enfim, que a minha
duração não tenha fim; eu insisto nisto e não deixo roubarem-me
esta fé, sendo este o único caso em que o meu

interesse, já que nada posso descurar, determina inevitavelmente o


meu juizo, sem ligar a sofismas,

162

mes~ que não seja capaz de os deixar ou de lhes contrapor outros


mais especiosos" (lb., A 258).

§ 527. KANT: O MUNDO DO DIREITO E DA HISTÓRIA

Vimos que a simples conformidade de uma acção com a lei constitui


a legalidade, ao passo que na moralidade a acção é feita unicamente
pelo respeito da lei À legalidade falta, pois, para ser moralidade, a
intenção moral: ela é compatível também com a conformidade à lei
por uma razão diferente do simples respeito da lei, isto é, por uma
inclinação natural de temor ou de esperança. O direito funde-se no
conceito da legalidade.

Kant expõe a doutrina do direito na primeira parte da Metafísica


dos costumes (1797), cuja segunda parte é a "Doutrina da virtude",
isto é, uma análise dos deveres do homem para consigo mesmo e

para com os outros, assim como uma "metodologia moral" que


comprende uma "didáctica moral" e

uma "Ascética moral". A segunda parte da Metafísica dos costumes


é uma minuciosa causística da vida moral, construída de harmonia
com as doutrinas éticas de Kant, e oferece pouco interesse. A
doutrina do direito apresenta, ao invés, aspectos notáveis que
vamos examinar. Por legislação jurídica entende Kant a legislação
que admite como motivo da acção um impulso diferente, da ideia de
dever. Os deveres impostos pela legislação jurídica são, portanto,
deveres exteriores, porquanto ela não exige que a

163

ideia interna do dever seja por si mesma um motivo determinante


da vontade do agente. Ao passo que a legislação ética é a que não
pode ser externa, a

legislação jurídica é a que pode ser também externa e por isso se


serve de uma imposição não puramente moral, mas de facto, e actua
como força obrigatória. O direito trata da relação externa de urna

pessoa para com outra, enquanto as suas acções ,podem, de facto,


exercer influências umas sobre as outras. É o conjunto das
condições pelas quais a

vontade de um concorda com a vontade do outro, segundo uma lei de


liberdade; e a fórmula desta lei é a seguinte: "Age eternamente, de
modo que o livre uso do teu arbítrio possa harmonizar-se com a

liberdade de todos os outros, segundo uma lei universal".

Todavia, esta lei, não espera obter a sua realização mediante a boa
vontade dos indivíduos particulares; implica a possibilidade de uma
imposição exterior que intervém para impedir, ou pelo menos anular,
o efeito de possíveis violações. Kant divide o direito em direito
inato, dado a todos pela natureza, independentemente de qualquer
acto jurídico, e em direito adquirido, que nasce apenas de um acto
jurídico. O único direito inato é a liberdade, a liberdade de todos os
outros. O direito adquirido é, pois, o direito privado, que define a
legitimidade e os limites da posse das coisas exteriores, ou direito
público, que trata da vida social dos indivíduos numa comunidade
juridicamente ordenada. Esta comunidade é o estado. Kant
distingue, tal como Montesquieu, três poderes do estado: o
legislativo,

164

O executivo e o judicial, e atribui, tal como Rousseau, o poder


legislativo à vontade colectiva do povo. Este poder deve de facto
ser tal que não possa praticar injustiças contra ninguém; e esta
garantia só se obtém se cada um decidir o mesmo para todos e
todos para cada um, mas só mediante a vontade colectiva do povo.
Kant, no entanto, nega a legitimidade da rebelião do povo contra o
soberano legítimo e condena as revoluções inglesa e francesa que
processaram e executaram os seus soberanos.
É notável que Kant tenha extraído dos seus conceitos morais uma
justificação da pena jurídica que se afasta muito da dos juristas do
iluminismo. A punição jurídica (diferente do castigo natural do vício
que se pune a si mesmo) deve aplicar-se aoréu, não como um meio
para obter um bem, seja em proveito do criminoso, seja em proveito
da sociedade civil, mas unicamente porque cometeu um delito. De
facto, o homem nunca é um meio mas sempre um fim; não pode ser,
portanto, ser utilizado como exemplo pelos outros, mas deve ser
considerado merecedor de punição antes ainda que se possa pensar
em extrair de tal punição qualquer utilidade para ele próprio e para
os seus concidadãos. Kant chega a dizer que, mesmo que a
sociedade civil se

dissolvesse com o consenso de todos os seus membros (no caso, por


exemplo, de o povo de uma ilha decidir separar-se e dispersar-se
pelo mundo), o

último assassino que se encontrasse preso deveria antes ser


justiçado; e isto a fim de que o sangue derramado não recaia sobre
o povo que não aplicou

165

o castigo o que poderia então ser considerado cúmplice desta


violação pública da justiça.

Na última secção da doutrina do direito, Kant considera a


possibilidade de um direito cosmopolíta, fundado na ideia racional
de uma perpétua associação pacífica de todos os povos da terra.
Kant observa que não se trata de ver se tal fim pode ser alguma vez
atingido praticamente, mas antes de dar-se conta do seu carácter
moralmente obrigatório. A razão moralmente prática, diz, opõe em
nós o seu veto irrevogável: não deve haver guerra nem entre os
indivíduos nem entre os estados. Não se trata, pois, de ver se a paz
perpétua é real ou algo sem sentido; em qualquer caso, devemos agir
como se

ela fosse possível (o que talvez não seja) e estabelecer as


instituições que pareçam mais aptas a alcançá-la. Pois, ainda que
isto não passasse de um desejo Piedoso, nunca nos enganaríamos
impondo-nos a máxima de tender à sua realização a todo o custo,
porque se trata de um dever. A este dever obedecera Kant,
indubitavelmente, alguns anos antes (1795) ao escrever o seu
projecto Para a paz perpétua, no qual reconhecia as condições da
paz na constituição republicana dos estados particulares, na
federação dos estados e, finalmente, no direito cosmopolita, isto é,
no direito de um estrangeiro a não ser tratado por inimigo no
território de outro estado. Mas, acima de tudo, via a maior garantia
da paz no
respeito por parte dos governantes das máximas dos filósofos
(segundo o ideal platón3co) e no acordo entre política e moral,
efectuado mediante a máxima "a honestidade é melhor do que toda
a política".

166

O ideal racional de uma economia pacífica de todos os povos da


terra é, segundo Kant, o único fio condutor que pode e deve
orientar o homem através das vicissitudes da sua 1iistór@a. Kant
não considera que a história. dos homens se desenvolva segundo um
plano preordenado e infalível como a vida das abelhas ou dos
castores. Nu-ma recensão (1785) sobre o escrito de Horder, Ideias
sobre a filosofia da história dá humanidade, Kant nega a
possibilidade de descobrir na história uma ordem harmónica e
progressiva, um desenvolvimento natural e contínuo de todas as
potências do espírito. O plano da história humana não é uma
realidade, mas antes um ideal orientador em que os homens devem
inspirar as suas acções e que o filósofo pode apenas aclarar na sua
possibilidade, mostrando-a conforme ao destino natural dos
homens. Tal é precisamente o intuito de Kant nas Ideias para uma
história universal do ponto de vista cosmopolita (11784). Aqui
propõe-se Kant ver se o livre jogo das acções humanas torna
possível, no decurso da história, um plano determinado, embora não
necessário, que sirva de escopo final do desenvolvimento histórico
da humanidade. Começa por observar que todas as tendências
naturais dos seres criados tendem a desenvolver-se completamente
em conformidade, com o seu corpo. Um órgão, por exemplo, que não
deva ser

usado, uma ordenação que não atinja a sua finalidade, são contrárias
à ordenação teleológica da natureza. Ora, a tendência natural do
homem é a de alcançar a felicidade ou a perfeição através do uso

da razão, isto é, através da liberdade: e o homem

167

só pode alcançá-las verdadeiramente numa sociedade política


universal, na qual a liberdade de cada um não encontre outro limite
senão a liberdade dos outros.
O plano natural da história humana não pode ser, portanto, senão a
realização de uma sociedade política, universal que compreenda sob
uma mesma legislação os estados diversos e garanta assim o
desenvolvimento completo de todas as capacidades humanas. A
natureza, para atingir os seus fins, vale-se do antagonismo que
existe em todos os homens entre a sua tendência para a
sociabilidade e a tendência para o isolamento, antagonismo que, sem
que os homens o pretendam, os impele à actividade e
ao trabalho e, por consequência, ao empenho de todas as suas
forças. "As árvores num bosque - diz Kant a este propósito -
procuram tirar umas às outras o ar e a luz e por isso crescem belas
e direitas, ao passo que em liberdade e afastadas umas das outras
estendem os seus ramos para todos os lados e crescem enroscadas
e retorcidas. Da mesma maneira, a civilização e a arte, que são os
ornamentos da humanidade, e a ordem social evoluída, são fruto da
insociabilidade que por si mesma é compelida a disciplinar-se e a
desenvolver plenamente, através da arte, o germe da natuireza".
Estas considerações exprimem de maneira característica o
procedimento fundamental de Kant. Precisamente no limite que a
tendência para a sociabilidade encontra na tendência oposta, Kant
vê a garantia de todo o possível progresso da mesma sociabilidade
e, assim, de um

caminho da história humana para uma organização política universal


em que se garante a cada indivíduo

168

a máxima liberdade compatível com igual liberdade dos outros. É de


notar que se trata de um progresso possível, não necessário e
infalível. Por isso, o único uso que se pode fazer deste plano é que o
seu

conceito torne possível uma investigação filosófica que tenha por


fim mostrar como a história universal deve dirigir-se para a
unificação política do género humano.

§ 528. KANT: O Juízo ESTÉTICO

Assim como a Crítica da razão pura analisa as


condições do conhecimento teórico e a Crítica da razão prática a da
conduta social, assim a Crítica do juízo analisa as condições da vida
sentimental. Com a terceira obra de Kant faz o seu ingresso na
filosofia esta nova categoria espiritual que era desconhecida na
divisão tradicional das faculdades da alma, fundada na distinção
entre faculdade teórica e faculdade prática. Os pressupostos
históricos desta inserção são as análises dos empiristas ingleses, e
especialmente de Schaftesbury e de Hume, bem como dos
moralistas franceses e especialmente de Rousseau. Kant afirma:
"Todos os poderes ou faculdades da alma podem reduzir-se a três,
os quais não podem ser ulteriormente reduzidos a um princípio
comum:

o poder cognitivo, o sentimento do prazer ou da dor

e o poder de desejar (K. d. U., Int., § 111). Kant caracteriza o


sentimento como o aspecto irredutivelmente subjectivo de toda a
representação, e à análise dos sentimentos e das paixões dedicou
depois inúmeras páginas na sua Antropologia pragmática.

169

Na Crítica do Juízo o seu primeiro escopo é o de determinar a


natureza do critério ou do cânone dos juizos fundados no
sentimento, isto é, no gosto.

Kant chama reflexivo ao juizo próprio da faculdade do sentimento.


O homem que deve realizar a sua liberdade na natureza e sem se
opor ao mecanismo dela, tem necessidade de que a própria natureza
esteja de acordo com a sua liberdade e de algum modo a torne
possível com as suas próprias leis. Mas o acordo entre a natureza e
a liberdade, que é, além disso, a exigência e o princípio fundamental
da vida moral, não resulta de um juizo objectivo porque as
exigências da vida moral não constituem os objectos naturais que
estão condicionados apenas pelas categorias do entendimento. Pode
resultar, de uma reflexão sobre os objectos naturais que são já,
como tais, determinados pelos princípios do entendimento. O juizo
do sentimento não determina, como o do entendimento, a
constituição dos objectos fenoménicos mas reflecte sobre estes
objectos já constituídos para descobrir o seu acordo com as
exigências da vida moral. Kant chama determinante ao juizo do
entendimento, e reflexivo ao

juizo do sentimento. Ora, tal acordo pode ser

apreendido imediatamente sem o trâmite de um conceito, e então é


um juizo estético; pode ser pensado, mediante o conceito de fim, e
então o juizo é teleológico. O juizo estético e o juizo teleológico são
as

duas formas, uma subjectiva, a outra objectiva, em que se realiza o


juizo reflexivo: a primeira tem por objecto o prazer do belo e a
faculdade com que se

julga tal prazer, isto é, o gosto. A segunda tem

ZD

170

por objecto a finalidade da natureza, que exprime o acordo desta


com as exigências da liberdade, isto é, da vida moral do homem.

O juizo reflexivo não tem valor cognitivo porque contém apenas os


princípios do sentimento de prazer e de desprazer,
independentemente dos conceitos e das sensações que determinam.
a faculdade de desejar; também nada tem em comum com a razão, a
qual determina o homem (mediante o imperativo categórico)
independentemente de qualquer prazer. É evidente que a faculdade
do juizo pode ser própria apenas de um ser finito como é o homem.
Radica-se, de facto, na necessidade de harmonizar o acordo da
natureza com as exigências da liberdade; e esta necessidade deriva
da impossibilidade, em que a subjectividade humana se encontra, de
constituir a natureza até ao ponto de a tornar dócil e pronta às
necessidades fundamentais. Evidentemente, se o

conhecimento pudesse criar ou constituir as coisas com v3sta, a


essa liberdade que é própria do homem, as coisas estariam
constitutivamente dispostas a dirigir-se para a liberdade como seu
escopo final, e

o acordo entre natureza e liberdade seria objectivo, isto é,


intrínseco e essencial às coisas mesmas: mas neste caso, o juizo
reflexivo, que funda apenas subjectivamente o acordo, seria inútil.
O homem não teria necessidade de sentir ou de figurar
subjectivamente "mediante o conceito de fim" a conformidade das
coisas com as próprias necessidades, se conhecesse esta
conformidade como lei objectiva da natureza. O limite do
conhecimento, devido ao qual este não é criação mas síntese da
multiplicidade, impede

171

que entre na constituição dos seus objectos tudo quanto se refere


à estrutura moral do homem. E então a conformidade entre os
objectos com tal estrutura é apenas uma necessidade do homem,
necessidade que é satisfeita, é certo, pela função reflexiva do juízo
mas apenas subjectivamente e não dá lugar ao conhecimento. A
Crítica do juízo é, por consequência, desprovida daquele aspecto
polémico que domina a

Critica da razão pura e a Crítica da razão prática, ambas dirigidas


contra a arrogância teórica e o fanatismo moral. No âmbito do seu
objecto nem sequer é possível a ilusória veleidade de transpor os
limites do homem; e este objecto funda-se inteiramente em tais
limites.

O juizo estético, como imediata apreensão da conformidade da


natureza com a liberdade, é o prazer do belo. Este prazer é
puramente subjectivo: não dá qualquer conhecimento, nem claro
nem confuso, do objecto que o provoca. Ao mesmo tempo, carece de
interesse porque não está ligado à realidade do objecto, mas apenas
à representação dele.
O prazer sensível é interessado porque é a satisfação de um desejo
ou de uma necessidade, tornada possível pela realidade do objecto a
que o desejo ou a necessidade se refere. Mas no prazer estético a
realidade do objecto é indiferente, porque o que satisfaz é a

pura representação do objecto mesmo. Ora, o órgão para julgar os


objectos do sentimento é o gosto.
O gosto é, portanto, a faculdade de julgar um objecto ou uma
representação mediante um prazer ou um desprazer isento de
interesse; e o objecto de, um prazer semelhante diz-se belo. A
natureza subjec172

tiva do sentimento do belo não exclui a sua universalidade; só que


esta universalidade não consiste na

validez objectiva própria do conhecimento intelectual, mas na


comunicabilidade, isto é, na possibilidade de ser partilhado por
todos os homens. Kant define o belo como sendo "o que, agrada
universalmente sem

ZD

conceito" (K. d. U., § 9). E distingue a beleza livre (por exemplo das
flores) que não pressupõe nenhum conceito, e a beleza aderente
(por exemplo, a de um homem ou de uma igreja), que pressupõe o
conceito daquilo que a coisa deve ser, isto é, da sua perfeição.
Evidentemente, a beleza aderente não é um puro juizo de gosto,
precisamente porque supõe o conceito do fim a que a coisa julgada
deve adequar-se; mas é um conceito de gosto aplicado, e complicado
com critérios intelectuais. Neste sentido, diz que "a beleza é a
forma da finalidade de um objecto na

medida em que é nele precedida sem a representação de uma


finalidade" (1b., § 17). O juizo do gosto, sendo puramente
subjectivo, não tem a necessidade do juizo intelectual, sobre o qual
todos estão de acordo, Se se quer admitir a sua necessidade é
necessário admitir que existe um senso comum, em virtude do qual
todos devem estar de acordo sobre o juizo de gosto. Mas este
senso comum é uma pura norma ideal, que não pode ter a pretensão
de determinar de facto o acordo universal. Kant exprime a
necessidade subjectiva do juizo de gosto dizendo que "o belo é o
que é reconhecido sem conceito como objecto de um

prazer necessário" (1b., § 18).

O sentimento estético como sentimento do belo tem, como se viu, a


sua raiz na impotência do ho173

mem como sujei-to moral, perante a natureza; o homem transforma


esta impotência, aceitando-a como tal, numa faculdade positiva: a
que garante subjectivamente o acordo entre a natureza e a
liberdade e a apreensão imediata da finalidade danatureza. Este
carácter do sentimento estético rei ainda mais clara-mente no
sentimento do sublime. Este sentimento é suscitado ou pela
grandeza desmesurada da natureza (sublime matemático) ou pela
sua desmesurada potência (sublime dinâmico). A grandeza
desmesurada da natureza determina no homem a consciência da sua
insuficiência para apreciá-la mediante os sentidos e, por
consequência, um sentimento de pena. Mas o reconhecimento desta
insuficiência, conformando-se com as ideias da razão, que
estabelecem precisamente o limite da sensibilidade, transforma a
pena no prazer do sentimento do sublime. "A qualidade ido
sentimento do sublime, diz Kant (K. d. U., § 27) é a de ser, em
relação a um objecto, um sentimento de pena, que é representado,
ao mesmo tempo como final; isto é possível, porque a nossa própria
impotência revela a consciência de um poder ilimitado do próprio
sujeito, e o sentimento pode julgar esteticamente esta última só
por meio da primeira".

Do mesmo modo, perante o desmesurado poder da natureza, o


homem sente o seu poder reduzido a uma pequenez insignificante e
é tomado de temor. Mas ao reconhecer a impossibilidade de resistir
ao poder da natureza e a própria debilidade, descobre a sua
superioridade e a independência do seu

destino em relação a esse poder desmesurado, dado que, ainda que


tivesse de sucumbir, o seu valor pró174

priamente humano permaneceria intacto (K. d. U., § 28). O


sentimento do sublime dinâmico transforma em poder humano, em
superioridade de valor moral humano, a inferioridade física em que
o homem se sente perante a natureza. O sublime, em geral, é
definido por Kant como "um objecto da natureza cuja
representação leva a pensar a inacessibilidade da natureza como
representação de ideias" (1b., 28, Observação).

A Crítica do juízo adopta o procedimento e as

divisões da Crítica da razão pura: contém, portanto, uma Analítica e


uma Dialéctica do juizo estético, e uma Analítica do juízo
teleológico. A analítica do juízo estético contém também uma
Dedução dos juízos estéticos, dedução que no entanto se refere
apenas aos juízos do belo porque a dedução sobre os juizos do
sublime está já implícita, segundo Kant, na exposição do princípio
que os rege. Com efeito, tais juízos, referem-se, não aos objectos
mas às suas relações de proporção ou de desproporção com as

nossas faculdades cognitivas; de sorte que a referência ao objecto,


que a dedução deveria justificar, está já justificada pelo facto de
que o objecto, como pura relação das faculdades cognitivas, é
interior a

estas últimas. O juizo do belo, pelo contrário, refere-se aos


objectos externos e por isso necessita de dedução. Esta dedução
deve ter em conta o significado particular que a universalidade e a
necessidade têm nos juizos de gosto, os quais são universais só no

sentido de poderem ser comunicados aos outros e necessários só


como fundamento de um sentido comum a todos os outros homens.
Assim, Kant

175

estabelece que o juízo do gosto pode pretender legitimamente à


universalidade porque se funda nas condições subjectivas da
possibilidade de um conhecimento em geral e a proporção destas
faculdades cognitivas, que o gosto requer, também a requer a
inteligência comum, a qual se pode supor em toda a gente.
"Precisamente por isso aquele que julga em matéria de gosto
(sempre que tenha uma justa consciência do seu juízo e não
confunda a matéria com a forma, a atracção com a beleza) pode
exigir de todos os outros a finalidade subjectiva, ou seja, o prazer
que nasce do objecto, e consMerar o seu sentimento como
universalmente comunicável, sem a intervenção de conceitos" (K. d.
U., § 39). Quanto ao senso comum, que é o fundamento da
necessidade dos juízos de gosto, deve entender-se por tal "a ideia
de um senso comunicável, isto é, de uma faculdade de julgar que na
sua reflexão consMera a priori o modo de representação de todos
os demais, a fim de manter o juízo nos limites da razão humana e

evitar a ilusão de considerar como objectivas as

condições subjectivas e particulares que possam facilmente ser


confundidas com as objectivas (1b., § 40). Kant, estabelece a este
propósito, três máximas que valem para o senso comum estético
como para senso comum em geral, ou seja, para o

uso racional e fundamentado das faculdades humanas. A primeira


máxima é a de pensar por si e evitar a passividade da razão. A
passividade da razão leva à heteronimia da razão, ou seja, ao
preconceito; e o

pior de todos os preconceitos é a superstição que con176

siste em supor que a natureza não está submetida às regras


necessárias do entendimento. A libertação da superstição, e, em
geral, dos preconceitos, é o iluminismo; e assim o próprio Kant vê na
sua obra crítica uma expressão e uma exigência próprias do
ilumi*nismo. A segunda máxima é a de pensar pondo-se no lugar dos
outros e alargar o modo de pensar do homem elevando-o acima das
suas condições particulares de juizo. A terceira máxima é a de
pensar de modo a estar sempre de acordo consigo mesmo; esta é a
máxima da coerência.

A doutrina do juízo estético só se refere verdadeira à beleza


natural. Mas Kant identifica a beleza artística com a natural, e
chama arte bela a uma arte que tem a aparência da natureza.
"Perante um

produto da arte bela - diz (K. d. U., § 45), é necessária ter


consciência de que se trata de arte e não de natureza; mas a
finalidade da sua forma deve apresentar-se livre de toda e qualquer
imposição de regras arbitrárias, precisamente como se fosse um
produto da natureza. A natureza é bela quando tem a aparência da
arte, e, por sua vez, a arte não pode ser considerada bela senão
quando a consideramos como natureza, embora sendo cônscios de
que é arte. O mediador entre o belo natural e o belo artístico é o
género na medida em que é a disposição inata (ingenium) por meio da
qual a natureza fornece a regra da arte. Para julgar os objectos é
necessário o gosto; mas para a produção de tais objectos é
necessário o génio. Este é constituído, segundo Kant, pela união
(numa determinada rela177

Ção) entre a imaginação e o entendimento; união na qual o


entendimento, como princípio do gosto, intervém para disciplinar a
liberdade sem freio da imaginação. Da imaginação procede a riqueza
e a espiritualidade da produção artística; do entendimento ou do
gosto derivam a ordem e a disciplina desta. As artes belas exigem,
pois, imaginação, entendimento, espírito e gosto (1b., § 50).

A Dialéctica do juizo estético tropeça na antinomia segundo a qual,


por um lado, se afirma que o juizo de gosto se funda nos conceitos
enquanto não pode ser provado mediante demonstrações e, por
outro, se diz que deve fundar-se nos conceitos, pois, de contrário,
não poderia obter a necessária aprovação dos outros. A antinomia
resolve-se facilmente observando que, se o juizo de gosto não se
funda nos conceitos na medida em que não é um juizo de
conhecimento, se funda no entanto na faculdade do juízo que é
comum a todos os homens, e na medida em que constitui o acordo
das representações sensíveis com um fim implícito desta faculdade.
Kant põe a claro a este propósito a idealidade do finalismo que se
revela na beleza, tal como pôs em relevo na Crítica da razão pura a
idealidade (a fenomenalidade) dos objectos dos sentidos. Assim
como esta última torna possível que eles sejam determinados pelas
formas a priori da sensibilidade e do entendimento, assim a
primeira torna possível a validez do juizo de gosto, que pode
pretender à universalidade, ainda quando não se funde nos
conceitos.

178

§ 529. KANT: O Juízo TELEOLóGICO

o acordo entre a natureza e a liberdade, além de ser percebido


imediatamente no juízo estético, pode também ser pensado
mediante o conceito de fim. Em virtude deste conceito, o escopo da
natureza vem a ser o de tornar possível a liberdade como vida do
sujeito, ou soja, do homem: esta consideração forma o juízo
teleológico. Ora, o juízo teleológico é, como o estético, um juízo
reflexivo: não determina a constituição dos objectos mas prescreve
apenas uma regra para a consideração subjectiva dos mesmos. Não
se pode descobrir e estabelecer dogmaticamente a finalidade da
natureza; não só não se pode decidir se as coisas naturais exigem
ou não, para a sua produção, uma causalidade inteligente, como tão-
pouco se pode pôr o
problema de tal causalidade porque a realidade objectiva do
conceito de fim não é demonstrável (K. d. U., § 74). Todavia, o
homem deve admitir que, segundo a natureza particular da sua
faculdade cognitiva, não pode conceber a possibilidade das coisas
naturais, e especialmente dos seres vivos, se não admitirmos uma
causa que actue segundo fins e, por isso, um ser com inteligência.
Desta maneira, toma-se legítimo como juízo, reflexivo o que é
ilegítimo como juízo intelectual, pois que, enquanto para o juizo
intelectual a finalidade deveria ser determinante e constituir a
ordem objectiva da natureza, para o juízo reflexivo, é uma simples
ideia que é destituída de realidade e vale apenas como

179

norma de reflexão, a qual permanece todavia aberta à explicação


mecânica da natureza e não saí do mundo sensível (1b., § 71). Com o
juízo intelectual o homem afirmaria o finalismo como sendo próprio
do objecto e seria obrigado a demonstrar a realidade objectiva do
conceito de fim. Mediante o juizo teleológico não faz mais do que
determinar o emprego das próprias faculdades cognitivas,
conformemente à sua natureza e às cond."- s essenciais do seu
alcance e dos seus limites (1b., § 75).

O juízo teleológico não constitui de modo algum um preconceito e


um limite para a investigação do mecanismo natural. Não pretendo
substituir esta indagação, mas tão-somente suprir à sua deficiência
com uma investigação diferente, que não proceda segundo leis
mecânicas, mas segundo o conceito de fim (K. d. U., § 68). Mas esta
pesquisa não permite afirmar verdadeiramente seja o que for em
sentido objectivo e teórico. Nem mesmo a teleologia mais perfeita
poderia demonstrar que existe um ser inteligente , causa da
natureza. Se se quisesse exprimir de modo objectivo dogmático o
juízo teleológico, dever-se-ia dizer: "Há um Deus, mas a nós,
homens, só nos é permitido empregar esta fórmula limitada: não
podemos pensar e compreEnder a finalidade que deve estabelecer-
se como fundamento da possibilidade intrínseca de muitas coisas
naturais sem a fígurarmos e sem figurar o mundo em geral, como o
produto de uma causa inteligente (Deus)". (1b., § 75). Esta
expressão satisfaz perfeItamente as exigências especulativas e
práticas da razão do ponTo de vista

180

humano e pouco importa que não seja possível demonstrar a sua


validade para seres superiores, ou

seja, de um ponto de vista objectivo (Ib).

Tudo isto demonstra que a consMeração finalístich é própria


unicamente do homem, isto é, de um ser

pensante finito. Uma faculdade de intuição perfeitamente


espontânea (criadora), como poderia ser a de um entendimento
divino, não veria nada que fosse causalidade mecânica, mesmo onde
(como nos organismos vá vos) o entendimento humano sente a
necessidade de recorrer à causalidade inteligente do fim. Um
entendimento intuitivo determinaria necessariamente as coisas até
nas suas últimas particularidades e assim as subordinaria a si
mesmo na sua constituição intrínseca. O entendimento humano, que
procede discursivamente, não determina a constituição das coisas
particulares mas só as condições gerais de qualquer objecto: a sua
conformidade com as coisas particulares é, por isso, não necessária,
mas contingente, e enquanto tal representável como um fim (K. d.
U., § 77).

Disse-se já que a consideração finalística deve coexistir com a


explicação mecânica dos fenómenos da natureza. Devemos procurar
explicar mecanicamente o que consideramos um fim da natureza
(por exemplo, um ser vivo); mas não poderemos prescindir da
consideração teleológica porque "não há nenhuma razão humana (e
nem mesmo nenhuma razão superior à nossa em grau, mas
semelhante em qualidade) que possa esperar compreender por
causas mecânicas a produção, quer de um

181

solo, quer de uma erva" (K. d. U., § 77). A explicação mecânica e a


consideração teleológica, na medida em que se opõem, são entre si
complementares. A consideração teleológica não pode servir de
explicação da natureza". Mesmo que se admitisse que um supremo
arquitecto teria criado instantaneamente as formas da natureza,
tais como existiram sempre, ou predeterminado as que no curso

da natureza se realizam continuamente segundo o

mesmo modelo, o nosso conhecimento da natureza não progrediria


de modo algum, porquanto nós não conhecemos de facto o modo de
agir daquele ser

nem as suas ideias, as quais devem conter os princípios da


possibilidade das coisas naturais e não poderíamos por isso explicar
por elas a priori a natureza em toda a sua amplitude" (1b., § 78). E
se se

quisesse passar das coisas particulares aos seus fins e

tomar estes como princípios de explicação, obter-se-ia apenas uma


explicação tautológica e verbal e o homem desvanecer-se-ia no
transcendente, onde só pode fantasiar poeticamente mas não
elaborar uma

explicação qualquer (1b.). Por outro lado, querer a

todo o custo uma explicação mecânica completa e

excluir inteiramente o princípio teleológico, significa abandonar a


razão a divagações tão quiméricas como

as que surgem nas tentativas de explicação teleológica.


O valor de tal explicação é o de um princípio heurístico para a busca
de leis particulares da natureza. Resta, pois, o dever de explicar
mecanicamente, tanto quanto as nossas faculdades o permitem,
todos os produtos e acontecimentos da natureza, mesmo os

182

que revelem a maior finalidade, sem que, no entanto, este dever


exclua (dada a deficiência daquela explicação) a consideração
teleológica (1b., § 78).

Na Metodologia do juizo teleológico, Kant determina o uso que se


pode fazer de tais juizos relativamente àquela fé racional que já a
Crítica da razão pura esclarecera do ponto de vista prático. Começa
por observar que a teleologia como ciência não pertence nem à
teleologia nem à ciência da natureza, mas sim à crítica, e à crítica
de uma faculdade particular do conhecer, isto é, à crítica do juizo.
Com efeito, ela não é doutrina positiva, mas antes ciência de limites
( K. d. U., § 79). Contudo, permite reconhecer no homem o escopo
final da criação: sem o homem, isto é, sem um ser racional, a criação
inteira seria um deserto inútil (1b., § 86). Mas o

homem é o fim da criação como ser moral, de modo que a


consideração teleológica serve para demonstrar que para o homem a
consecução dos fins, que ele se propõe como sujeito moral não é
impossível, dado que tais fins são os mesmos que os da natureza em
que vive. Neste sentido, a teleologia torna possível uma prova moral
da existência de Deus. A moralidade é, sem dúvida, possível mesmo

sem a fé na existência de Deus, porque é fundada unicamente na


razão, mas esta fé garante também a

possibilidade da sua realização no mundo (1b., § 9). Não obstante,


insiste, a este respeito, sobre a impossibilidade de utilizar
teorèticamente, isto é, como um saber objectivo, o resultado da
consideração teleológica.

183

§ 530. KANT: A NATUREZA DO HOMEM E O MAL RADICAL

A análise crítica de Kant reconheceu em todos os campos os limites


do homem e fundou precisamente sobre estes limites as efectivas
possibilidades humanas. Assim, o limite do conhecimento,
restringido aos fenómenos, garante a validez do saber
O

intelectual e científico; o limite da vontade, que não atinge nunca a


santidade do perfeito acordo com a

razão, constitui o carácter imperativo da lei moral * faz da


moralidade o respeito da lei mesma; enfim, * limite da
espontaneidade subjectiva do homem, que não chega a determinar a
constituição intrínseca das coisas, torna possível a vida do
sentimento e garante a validade do juizo estético e teleológico.
Ora, o
próprio problema do Ilimite constitutivo da natureza humana é
abordado por Kant na sua última obra fundamental, A religião nos
limites da pura razão (1793), obra que resume e conclui a longa
investigação de Kant e lança por isso a luz mais viva sobre os
interesses que constantemente a dominaram.

Em primeiro lugar, em que sentido se pode falar de uma natureza do


homem? Não se pode decerto entender por este termo o contrário
da liberdade, isto é, um impulso necessário, como seria, por
exemplo, um impulso natural; quer dizer, neste caso, a

natureza humana não poderia receber a qualificação de boa ou má


em sentido moral, porque tal qualificação só pertence propriamente
a um acú0 livre o responsável. Por natureza do homem deve, pois,
entender-se apenas "o princípio subjectivo do uso da

184

liberdade" e tal princípio deve ser, por sua vez, entendido como um
acto de liberdade. Se o não fosse, o uso da liberdade seria
determinado e a própria liberdade seria impossível (Die Religion, B
7). Neste princípio deve, portanto, radicar-se a possibilidade do mal
e a inclinação do homem para o

mal. Ora, se tal princípio é um acto de liberdade, esta inclinação não


é uma disposição física, que não poderia imputar-se ao homem, nem
uma tendência necessária qualquer. Portanto, não pode ser senão
uma máxima contrária à lei moral, máxima aceite pela liberdade
mesma e, portanto, de per si continente. ,C

A afirmação "o homem é mau" significa apenas que o homem tem


consciência da lei moral e, não obstante, adoptou a máxima de por
vezes, se afastar, dela. A afirmação o homem é mau por natureza"
significa que o que se disse vale para toda a espécie humana, o que
não quer dizer que se trate de uma qualidade que possa ser
deduzida do conceito da espécie humana (ou de homem, em geral),
já que seria neste caso necessária, mas só que o homem, tal como se
oonhece por experiência, não pode ser

julgado diferentemente e, por isso, pode supor uma tendência para


o mal em todos os homens e mesmo no melhor dos homens. Dado que
tal tendência para o mal é moralmente má e, portanto, livre e
responsável, enquanto consiste apenas em

máximas de livre arbítrio, pode por isso ser chamada um mal radical
e i~o na natureza humana, ma@J de que, todavia, o próprio homem é
a causa

(1b., B. 72). O mal radical não pode ser destruído

185

pelas forças humanas porque a destruição deveria ser obra das


boas máximas, o que é impossível se o princípio subjectivo supremo
de todas as máximas estiver corrompido; mas deve ser vencido, a
fim de que o homem seja verdadeiramente livre nas suas

acções. O mal radical é devido à fragilidade da natureza humana que


não é bastante forte para pôr em prática a lei moral; à impureza
que impede de separar uns dos outros os motivos das acções e

de agir só por respeito à lei; e, enfim, à corrupção pela qual o


homem se determina por máximas que subordinam o móbil moral a
outros móbiles. O mal radical não se encontra, portanto, como se
crê comummente, na sensibilidade do homem e nas inclinações
naturais que nela se fundam. O homem não é responsável pelo facto
de haver uma sensibilidade e

de existirem inclinações sensíveis, ao passo que é responsável pela


sua inclinação para o mal. Com efeito, esta inclinação é um acto livre
que se lhe deve imputar como um pecado de que é culpado,
conquanto tenha raízes profundas na própria liberdade, graças à
qual ela deve ser reconhecida como naturalmente intrínseca ao
homem. O mal radical nem sequer é uma perversão da razão, como
legisladora moral. Tal perversão suporia que a razão poderia, ela
própria, destruir em si a autoridade da lei e renegar a obrigação
que procede desta, mas isto é impossível. Como princípio do mal
moral, a sensibilidade é suficiente, uma vez que, eliminando-se o
móbil da liberdade, reduzir-se-ia o homem à pura a ~dade. A razão
perversa, ou seja, liberta comPletarnente da lei, é, ao invés,
excessiva, porque

186

erigiria em motivo de acção a oposição à lei moral e reduziria o


homem a uma vontade diabólica. Ora, o homem, diz Kant (1b., B 332)
não é nem besta nem diabo.

Dado que está radicado na própria natureza do homem, o mal não


pode ser eliminado. Pouco importa que o homem tenha adoptado uma
intenção boa e se lhe mantenha fiel; ele começou pelo mal e este é
um débito que não lhe é possível liquidar. Mesmo supondo que, após
a sua conversão, não contraia novas dívidas, isto não o autoriza a
crer que se encontre livre da dívida antiga. Tão-pouco pode com o
seu bom comportamento adquirir uma reserva, fazendo mais do que
é obrigado a fazer de cada vez, já que o seu estrito dever é fazer
sempre tudo quanto pode fazer. Além disso, trata-se de um débito
que não pode ser resgatado por outro, de uma dívida intransferível,
que é a mais pessoal de todas as obrigações; o homem contraiu-a
com o pecado e mais ninguém, a não ser ele próprio, pode carregar
com o peso dela. Por isso, o resgate total da dívida originária não
pode seu senão um acto de graça, que não é devido ao homem, mas

lhe é concedido mercê de um salvador: o Verbo, o filho de Deus, no


qual se personifica a ideia da humanidade na sua perfeição moral. À
ideia do Filho de Deus como personificação da humanidade perfeita
se opõe a ideia do diabo, que é a representação popular do mal
radical. O sentido desta representação é o de que a única salvação
para os homens consiste em aceitar intimamente os verdadeiros
princípios morais; e que a esta aceitação se opõe não a

187

sensibilidade, que tão frequentemente se condena, mas uma certa


perversidade, que é, em si mesma culpada, e pode também chamar-
se falsidade (o engano do demónio com o qual entrou o mal no
mundo), perversidade inerente a todo o homem e que só pode ser
vencida com a ideia do bem moral na sua perfeita pureza. A
confiança nesta vitória, diz Kant, não pode ser suprida
supersticiosamente por expiações que não provenham de uma
mutação interior; ou fanaticamente por iluminações interiores,
puramente passivas, que afastam (em vez de aproximarem) do bem
fundado na actividade pessoal (Die Religíon, B 116). E também é
inútil a crença nos milagres. O homem pode de bom grado admitir
que influências celestes colaborem com ele na sua obra de
aperfeiçoamento moral; mas, uma vez que não é capaz de as
distinguir das naturais nem de as atrair sobre si, nunca pode
comprovar um milagre e deve por isso limitar-se a comportar-se
como se toda a

conversão e todo o melhoramento dependessem apenas dos seus


esforços (1b., B. 121).

Quanto à origem última do mal radical, Kant considera que é


incompreensível. Uma vez que é imputável ao homem enquanto
princípio fundamental de todas as máximas, deveria ser, por sua
vez, o resultado da adopção @de uma máxima má; mas assim vemo-
nos evidentemente lançados num processo até ao infinito, de
máxima em máxima, não se podendo encontrar um princípio de
determinação do livre arbítrio que não seja uma máxima. Com o
reconhecimento desta impenetrabílidade termina a

análise kantiana da natureza humana originária.

188

§ 531. KANT: RELIGIÃO, RAZÃO, LIBERDADE

Os conceitos fundamentais de uma religião considerada nos limites


da razão derivam todos do princípio do mal radical, enquanto
constitutivo da natureza humana. Na verdade, tais conceitos não
exprimem senão as condições que tomam possível ao homem
combater com êxito o princípio do mal que nele existe.

Se o homem se encontra na perigosa condição de ser exposto


continuamente às agressões do princípio do mal e de dever
salvaguardar a sua liberdade perante os contínuos ataques daquele
deve-o a uma culpa própria; deve, por isso, nos limites do possível,
empregar a força de que dispõe para sair de tal situação. Ora, uma
vez que o homem sofre ,os mais perigosos assaltos do mal na vida
social (Kant aqui faz sua a análise de Rousseau), o triunfo do bem só
é possível numa sociedade governada pelas leis da virtude e que
tenha por fim estas mesmas
leis. Evidentemente, esta não é uma sociedade jurídico-civil mas
uma sociedade ético-civil, ou melhor, uma república moral. A
república moral - simples ideia de uma sociedade que compreenda
todos os

homens justos - é uma igreja que, enquanto não é objecto de


experiência possível, se chama igreja invisível. A igreja visível é a
união efectiva dos homens num todo que concorda com este ideal
(Die Religion, B 142). A igreja invisível é universal porque se funda
na fé religiosa pura, que é uma pura fé racional e por isso pode
comunicar-se a todos com força persuasiva. Não tem necessidade
de revelação.

189

Mas a debilidade particular da natureza humana impede de fundar


uma igreja visível unicamente sobre a fé racional. Os homens não se
persuadem facilmente de que esforçar-se por viver moralmente é a

única coisa que Deus lhes pede para os considerar como súbditos do
seu reino. Só sabem conceber

a sua obrigação sob a forma de um culto que é necessário prestar a


Deus; culto em que não se trata do valor moral das acções, mas
antes do seu cumprimento ao serviço de Deus e para que Deus as

aceite, mesmo que se tratem de acções moralmente indiferentes.


Torna-se assim necessário admitir que Deus estabeleceu outras
leis, além das puramente morais que ressoam claramente no coração
do homem; e uma vez que tais leis não podem ser conhecidas pela
pura razão, requer-se uma revelação que, enquanto feita a alguém
privadamente ou anunciada publicamente para ser difundida por
tradição, é sempre uma crença histórica e não uma pura crença
racional. A fé revelada pressupõe, no entanto, a fé racional pura e
deve fundar-se nesta. "A fé eclesiástica, diz Kant (1b., B 174), como
fé histórica, começa por causa da fé na revelação, mas, uma vez que
esta é apenas o veículo da fé religiosa pura (que é o verdadeiro fim)
é necessário que aquilo que nesta última, como crença prática, é a
condição (ou seja, a máxima da acção) constitua o ponto de partida
e que a máxima da ciência ou da crença especulativa actue apenas
como confirmação e coroamento dela". Por outros termos, o critério

e o guia de toda a religião histórica é a fé racional pura, ou seja, o


agir moral nas suas condições. Só

190

esta se deve considerar a religião natural (Ib., B 23 7). Ademais, só


esta é uma fé livremente adoptada por todos (fides elicita), ao
passo que a religião revelada implica uma fé comandada (fides
imperata) (Ib., B
248). Quem admite apenas a religião natural é um

racionalista. Mas o racionalista deve, em virtude do seu próprio


nome, encerrar-se nos limites das possibilidades humanas. Deve por
isso evitar o naturalismo que exclui em absoluto a realidade do
supra-sensível e não contestar dogmaticamente a possibilidade
intrínseca de qualquer revelação (racionalismo puro) (1b., B 230-31).

Consequentemente, Kant afirma que considerar a

fé regulamentada (que em todos os casos se restringe a um povo só


e não pode valer como religião universal) essencial a todos os cultos
divinos e dela fazer a condição suprema da benignidade de Deus
para com o homem é urna loucura religiosa que dá lugar a um falso
culto, isto é, a uma maneira de adorar a divindade directamente,
contrária ao verdadeiro culto divino. Exceptuando um bom
comportamento, tudo o que os homens julgam dever fazer para
merecerem a benevolência de Deus é pura ilusão religiosa e falso
culto (Die Religion, B 255). A ilusão de poder, com actos de culto,
contribuir para uma justificação de si perante Deus é a superstição
religiosa. A ilusão de poder atingir tal objectivo com a aspiração a
um pretenso comércio com Deus, é a fantasmagoria religiosa. Kant
não exclui nem

condena as práticas do culto, mas tais práticas nunca devem tomar


o lugar do verdadeiro culto, que é a

conduta moral. "0 verdadeiro iluminismo, diz Kant

191

(,b., B 276), está nesta distinção; o culto de Deus torna-se graças a


ele um culto divino e, portanto, um culto moral. Se, em lugar da
liberdade dos filhos de Deus, se impõe ao homem o jugo de uma lei
positiva e a obrigação absoluta de crer em coisas que só podem ser
conhecidas historicamente e que, por conseguinte, não podem
convencer a todos, cria-se um jugo que para o homem consciencioso
é ainda mais pesado do que todo o fardo das práticas piedosas com
que se sobrecarrega". A conclusão da análise kantiana da religião é
uma confirmação dos resultados da Crítica da razão pura e da
Crítica da razão prática. Não se pode conceber outra forma de fé
que não seja a fé racional, a fé prática, que reconhece a
possibilidade do supra-sensível unicamente enquanto tal
possibilidade reforça a acção moral do homem. Transformar esta
possibilidade numa afirmação dogmática significa tornar impossível
ao homem, não só a sua vida teorética e moral, mas a própria
religião, que se converte em superstição.

Neste empenho em manter ao mesmo tempo os limites da razão e a


autonomia dos seus poderes, consiste o que Kant chamava o seu
racionalismo. Os escritos dos seus últimos anos são, na sua maioria,
dirigidos contra as tentativas de evasão que escritores e filósofos
contemporâneos vinham efectuando para fugir aos limites da razão
e para alcançar um domínio em que fosse possível conhecer com

exactidão o que a razão não pode atingir. O domínio a que


habitualmente recorriam era o da fé ou da intuição mística; contra
tal recurso escreveu Kant. Que significa orientar-se no pensar,
(1786), Sobre o

192

fanatismo, (1790), Sobre o tom nobre da filosofia, (1795), e o


prefácio ao escrito de Jachmann, (1800).
O mais importante destes escritos é Orientar-se no

pensamento, com o qual Kant, intervindo na polémica entre


Mendelssohn e Jacobi, reivindica uma vez mais para a razão o papel
de guia único do homem na filosofia e na vida. Mendelssohn e Jacobi
haviam travado polémica um com o outro, mas estavam de acordo,
como veremos (§ 535), em atribuir à fé o que é negado à razão, ou
seja, a capacidade de um contacto directo, e absolutamente certo,
com a realidade e sobretudo com a realidade suprema: com

Deus. Ora, segundo Kant, mesmo que houvesse um

órgão como o que Mendelssom e Jacobi denominavam de fé, tal


órgão seria incapaz de provar a
existência de um Ser cuja grandeza não é comparável com a de
nenhuma experiência ou intuição humana; e esse órgão poderia
apenas servir de estímulo à razão para ver se pode chegar a provar
a existência de um ser dessa espécie. Em última análise, porque só a
razão permanece o árbitro da noção de Deus e da convicção da sua
existência (Wass heisst: Sich im denken orientieren?, A 320-21).
Em qualquer caso, segundo Kant, subtrair-se à razão significa cair
no fanatismo e o fanatismo é a negação da liberdade. É bem certo
que a liberdade, se limitada à esfera interna da consciência, não é
coercível por meios externos. Mas também é verdade que tal
liberdade interior é pouco ou nada se se tira aos homens a de
comunicarem abertamente entre si os seus pensamentos. Uma
doutrina que faz apelo a uma

revelação interior tende a tornar inútil e a negar esta

193

Uberdade e tende, antes, a provocar uma inquisição nas


consciências que impeça à razão de se afastar da pretensa verdade
revelada. Kant termina o seu escrito com um apelo patético, que é,
por assim dizer, o resumo da sua filosofia: "Amigos da humanidade
e do que há de mais santo para ela, aceitai também o que vos
parecer mais digno de fé após um exame atento e sincero, quer se
trate de factos, quer se trate de princípios racionais, mas não
recuseis à razão o que a torna o bem mais alto sobre a terra: o
privilégio de ser a última pedra de toque da verdade" (lb., A 329).

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 510. Sobre a vida de Kant a obra fundamental continua a ser a do


seu contemporâneo L. E. BOROWSKI, Dar8telIung der Lebm und
Charakter I. K. s, Conisbeorga, 1804. Além desta: F. W. SCHUBERT,
I. K. s. Biographie na ed. de Rosenkranz das obras de Kant, XI, 2.
Leipzig, 1842: e todas as monografias citadas mais adiante.

§ 511-513. As primeiras edições completas dos ~tos de Kan@t


foram as de G. Haitenstein, 10 vol., Leipzig, 1838-39; e de K.
Rosenkranz e F. W. Schubert, em 12 vol., Le@pzig, 1838-42. Entre
as numerosas edições sucessivas, é notãv& a de E. Cassirer, 10 vol.,
Berlim, 1912,22, a que se seguiu outro volume. o 11.1 CASSIRER,
Kants leben und L-ehre. Mas a mais completa edição crítica é a
publicada pela Academia das Ciêncías de Berlim, que compreende os
seguintes volumes: vol. 1, Vorkritische Schriften (1747-56), 1910;
vol II, Vorkritische Schriften (1757-77), 1912; vol Ul@ Kritik der
"n--r Vernunft (2.@ ed., 1787), 1911; vol. rV, Kri194

tik der reinen Vernunft (1.1 ed., 1781), Prolegomena, GrundlL--gun


zur Metaphysik der Sitten, Metaphysi&che Anfangsgründe des
Natu~senschaft, 1911, voL V, Kritik der pTaktischen Vernunft
(1788), Kritik der Urteilskraft (1790), 1913; vol. VI, Die ReUgion
inuerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft (179,3), Die
Metaphysik, der Sitten, (1797), 1915; vol. VII, Der Streit der
P4kultãten (1798), Anthropologie in pragnwtischer Hinsicht (1798),
1917; vol. VIII, AbhandIungen nach 1781, 1923; vol. IX, Logik,
Physische Geographie und Pãdagogik, 1923; vol. X, Briefwechsel
(1747-88), 1922; vol. XI, Briefwechsel, (1789-194), 1922; vol. XIII,
Briefwechsel (1795-1803), 1922; vod. XIII, Brie-fwechseZ,
Anmerkungen und Register, 1922; voL XIV, Handscriftlicher
Nachlass I, Math~tik, Physik und Chem@e, Physische Geographie,
1911, vod,. XV, Handschriftlicher Nachlass 11, AntropoZogie, 1913;
vol. XVI, Handschriftlicher Nachlass III, Logik, 1924; vol. XVII,
Handschriftlicher Nachl"s IV, Metaphysik,
1926; vol XVIII, Handschriftlicher Nachl"s V, Metaphysik, 1928;
vol. XIX, Handschriftlicher NachIass VI,
1M4; voll. XX, Handschrftlieher Nachkss, VII, 193,5, vol. XX1,
Handschriftlicehr NwhIass VIII, Opus postumum, 1936;
HandschriftUcher NachIass IX, Opus postumum, 11, 1938; vol.
XXIII, Vorbereiten und Nachtrãge, 1955.

Nas citações do texto referem~ as pá~ destas edições; as letras A


e B referem-se respectivaniente à 1.1 e à 2.1 ed. dos ~tos de Kant.

§ 514. Bibliografias: E. ADICHES; Bibliography of writings by and


on K. which have appeared in Germany up to the end of 1877, in
"Philoisophical P,eview", 1893-94, ed. em vol. Boston, 1896;
Supplments in <Ph2o~cal Peview", 1895-96; UMERWEG, GrUndriss
der Gesch. der Phil, 111, 12.1 ed., ao cuidado de M. Frischeison-
Kbhler e W. Moog, Berlim, 1924, p.
709-49; desde 1896 os "Kantstudien" fundados por

195

Vaihinger têm dado notícias, cilticas de toda a literatura kantiam.

MonografiaS principais: C. CANTONI, K., 3 vol. ~ 1833; F.


PAULSEN, K., 8cin Leben und 8eine Lehre, Estugarda, 1898; T.
RUYSSEN, K, Paris, 1909; CANTECOR, K., Paris, 1909; B. BAUCH,
E., Leipzig, 1911; A. D. LINDSY, The Phil. of. K., London, 1913; 3. B.
BAUCH, K., Leipzig, 1911; A. D. LiNDSAY, The Phil. of K., London,
1913; J. WARD, A Study of K., Cambridge, 1922; P. LAMANNA, K.
Milão, 1925; E. ADICKES, H. aIs Naturforscher, 2 vol., Berlim,
1924-25; BouTROUX, La phil. de K., Paris, 1926; L. GOLDMANN,
Mensch, Gemeinschaft und Welt in der Phil. I. K. s, Zurique, 1945;
A BANFI, La filosofia critica di K., Milão, 1955.

Entre monografias inspiradas no pensamento hegeliano: K.


FISCHER, I. K. und seine Lehre, Heidelberga, 1860, que no entanto
conserva o seu valor como exposição de conjunto da obra de Kant;
E. CAIRD; The Critical Phil. of X., Londres, 1889.

Monografias inspiradas no neocriti~o: H. COHEN, K. s Theorie der


Erfahrung, Berlim, 1871; B. 'CAS:S@RER; E. s Leben und Lehre,
Berlim, 1918.

A monografia de P. CARABELLEsE, La fil. di K. Morença, parte do


ponto de vista do ontologismo rosminiano; e a de A. RENDA; Il
criticismo, fondamenti etico-religiosi, Palermo, 1927, tende a pôra
claro a inspiração ético-religiosa da filosofia teorética de Kant.
O importante comentário de HANS VAIHINGER; Kommentar zur
Kritik der reinen Vernunft, 2 vol., Estugarda, 1881-92, parte do
ponto de vista de um relativismo pragmatista (filosofia do como se).

§ 515. Sobre o período precrítico: B. ERDMANN, Die


Entwicklungsperioden von K.s theoretischer Phil., introdução à sua
ed. das K.s Reflexionen zur Kritik der reinen Vern., Leipzig, 1884; E.
ADICKW, Die bewegenden Krafte in K.s Entwick1. und die beiden
Pole seines Systems, in "Kanstudien", I;A- Guzzo, K. pre196

-critico;Turim, 1924; M. CAMPO, La genesi del critieis~ kantiano,


1953.

Sobre a Opus Postumum: E. ADICKE.9; K.s. Opus Post. dargestellt


und beurteilt, Berlim, 1920; N. KEMP SMITH, A Cammentary to K.&
Critique of Pure Reason, Londres, 1918; V. MATHIEu, La filosofia
trascendental e o "Opus postumum" di K., Turim, 1958.

§ 516. Sobre a Crítica da razão pura: H. VAIHINGER, Koinmentar


zur K. d. r. V., cit.; Th. GREEN, Lectures on the Philos. of K., in
Works, Londres% 1893; H. HOFFDING, in "Archiv fur Gesebichte
der Philw.", VII, 1894; E. BOUTROUX, ia "Revue de Cours et
Conférences>, Julho, 1896; C. CANTOSI, in "P.iv~ Filos.", 1901; F.
Tocoo, Studi Kant~ ' PalerMO, 1910; H. COHEN, Kommentar
zur 1. K.s Kritik d. r. V., Leipzig, 1907; E. CASSIRER, Eant und dio
moderne Mathematik, in "Ka71 tudien", XIr, 1907; H. CORNELIUS,
Kommentar zur K. d. r. V., Erlangee,
1926.

Sobro as duas edições da Crítim: B. ERDMANN, Kant Kritizismus in


der er8ten und der zweiten Auflage der K. d. r. V., Leipzíg, 1878; E
DICHKES, Ueber die Abfassungzeit der K. d. r. V., in "Kanstudien",
1895.

§ 518. Sobre a lógica: C. LuGARINI; La logica trascendentale di K.,


Iffilão, 1950; F. BARONE, Lógica formate e logica transcendentale
Deduktion de Kategorien, HaJ@e, 1902; BIRDEN; Kants
transzendentale Deduktio,n, Beillím, 1913; 1-1. S. VLEESCHAUWER,
La déduction transcendentale dans Voeuvre de K., Paris,
1934; P. CHIODi, La deduzione nelllopera di K., Turim,
1960.

§ 522. Sobre a c~ em si: W. WINDELBAND, in


"Viert&jahrwchriften fur wissensschafUische Philosophie), 1, 1877;
J. G. SCHURMAN, in " Archiv für Geschichte der Philos.", 32, 1910.

§ 523. Sobre a dialéctica transeendentaâ: F. EVELLIN, La raison


pure et les antinomies, Paris,
1907.

197

525. Sobre a filosofia moral: A. CRESSON, La morale de Kant,


Paris, 1897; V. BRUNSCHVIGG, in "Revue de M~. et de Morale>,
1907; A. M.ESsER, Hommentar zur E.s ethischen und
relígionsphisolopischen, Hauptschriften, Leipzig, 1929; O Estrada,
La etica formal y los vaiores, La Plata, 1938.

§ 527. Sobre a doutrina do direito e da Iústória: E. SYDOM, Der


Gendanke des Ideal-Beichs in der Idealist. Philos. von Kant bis
Hegel, Leipzig, 1914; W. METUGER, GeseIsschaft, Recht und Staat
in der Etnik des deuschen Idealismus, Heidielberga, 1917; K.
BORRIEs, Kant aIs Politiker, Leipzig, 1928.

§ 528. Sobre o juizo CStétiCO: H. COHEN, K.S. Regründun der


Aesthetik, Berlim, 1889; V. BASCI-1, Essai critique sur
1'esthétique de Kant, Paris,, 1897; ROSENTHAL, in "Kantstudien"
20, 1915; M. SouRiAu, Le jugen^t réfléchi@ssant dans Ia phil". crit.
de Kant, Paris, 1926.

§ 529. Sobre o juizo tCl~ógiCO: A. PPANNKUCHE in


"Kant;studicai", 5, 1901; E. -UNGERR; in "Abhandlungen zur
theoretische Biólogie" , 14, 1922.

§ 530. Sobre -a doutrina da religião: E. TROELSCH, in


"Kantstudien", 9, 1904; C. SENTROUL, La phil. real de K., Bruxelas,
1912; C. J. WEBB, Kant's Philosophy of Religion, ~ord, 1926; W.
REINIIARD; Ueber das Verhdltnis von Sittlichkeit und Religion bei
K., Bern, 1927.

198

SEXTA PARTE

A FILOSOFIA DO ROMANTISMO

A POLÉMICA SOBRE O KANTISMO

§ 532. POLÉMICA SOBRE O KANTISMO: REINHOLD


A doutrina de Kant é a grande protagonista da filosofia de
oitocentos. Ela veio abrir uma nova problemática que será
susceptível de desenvolvimento nas mais diversas direcções. No
âmbito desta mesma problemática, surgiram doutrinas
diferenciadas e até mesmo opostas. Verificaram-se afastamentos,
desvios e regressos e isto, com a pretensão, frequente de se

conseguir um retomo ao "verdadeiro" espírito do kantismo e de se


avançar nas suas linhas fundamentais.

Na Alemanha, a filosofia de Kant aparece como conclusão definitiva


de uma crise secular do pensamento humano e como início de uma
nova época

201

na qual a filosofia alemã iria assumir a função de guia de todo o


pensamento europeu. Reinhold levou o criticismo às consequências
últimas do processo de libertação da razão, iniciado com o
Renascimento e continuado com a Reforma protestante e defendia
substancialmente a sua identificação com o

cristianismo, com o protestantismo e com o iluminísmo (Briefe uber


die kantische Philosophie, 1, p.
150 e segs.). Esta atitude foi aceite por grande parte da filosofia
alemã do século XVIII e deu origem a uma tradição historiográfica
que só nos últimos tempos começou a ser posta em dúvida. O
romantismo fez sua essa atitude, deu-lhe um âmbito maior,
insistindo sobretudo na nova importância histórica que o kantismo
conferia à nação alemã. Hõlderlin podia afirmar: "Kant é o Moisés
da nossa Nação, porque do estado de abandono em que havia caído
no Egipto, a conduz pelo deserto árido e solitário da sua
especulação até receber na Montanha Sagrada a

lei eficaz e revivificante" (Carta ao irmão, de 1 de Janeiro de


1799).

Karl Leonhard Reinhold (nascido em Viena em 1758 e falecido em


Kiel em 1823) veio dar grande impulso à difusão do criticismo na
Alemanha, ao mesmo tempo que lançava bases para o

estabelecimento de uma interpretação que deveria influenciar


fortemente a história posterior. Foi professor em Jena e começou
a fazer desta cidade o centro dos estudos kantianos, a que mais
tarde vieram beber as doutrinas de Fichte, Schelling, Hegel, Fries,
Herbart. Reinhold é mais do que o simples autor das Cartas sobre a
filosofia kantiana, aparecidas

202

entre 1786 e 1787 numa revista e mais tarde ampliadas e


reelaboradas em dois volumes (1790-92). Foi também autor de uma
vasta obra intitulada Nova teoria da faculdade representativa
humana (1789).

Segundo Reinhold, a filosofia de Kant assinala a passagem do


progresso para a ciência ao progresso na ciência (Briefe, cit., 11, p.
117-18); por outras palavras, assinala o ponto em que a filosofia se

transforma definitivamente em ciência para além da qual, portanto,


todo o progresso ulterior já não poderá já conduzir a uma outra
filosofia, mas a um simples desenvolvimento implícito no próprio
kantismo. E isto acontece porque Kant baseou a filosofia num
princípio único, e sobre um princípio único apenas se pode erguer um
sistema único. Esse princípio único é a consciência. Na Nova Teoria
da faculdade representativa humana, Reinhold identifica a
consciência com a faculdade representativa, por conseguinte, com a
representação: assim o princípio único e fundamental da filosofia
como ciência surge expresso do modo seguinte: "A representação é
na

consciência distinta do representante e do representado e referida


a ambos". Deste princípio Reinhold procura extrair toda a "filosofia
dos elementos", que é, no fim de contas, a análise da consciência. O
representante e e representado são o sujeito

e o objecto da consciência; sem objecto e sujeito não existe


representação, eles constituem portanto, as condições intrínsecas
da própria representação. A parte que na representação se refere
ao objecto é a matéria da representação, a que se refere ao

203

sujeito é a fornia da representação. A forma é produzida pelo


sujeito, pela sua espontaneidade; a matéria é dada através da
receptividade do próprio sujeito. Esta receptividade não é mais que
a capacidade de ter impressões sensíveis que se aparecem
referidas ao sujeito se chamam sensações, mas se

aparecem referidas ao objecto se chamam intuições. A primeira e


essencial condição do conhecimento é, portanto, a intuição. Só em
virtude do material por ela fornecido, pode a representação ser
referida a qualquer coisa que não seja representação, a um

objecto independente de toda a representação. Este objecto é a


coisa em si. Sem a coisa em si, deixa de existir a primeira e
fundamental condição da imediata representação de um objecto.
Por outro lado, a coisa em si é irrepresentável, por conseguinte,
incognoscível: uma vez que não existe representação sem uma forma
subjectiva, tudo o que é exterior e independente das formas
subjectivas não pode ser

representado. Como é possível então falar-se na coisa em si e


introduzi-la como elemento da investigação filosófica? Reinhold
responde: a coisa em si é representável, não como coisa ou objecto,
mas como puro conceito (Theorie, 11, § 17).

Com esta redução da coisa em si a um simples conceito, Reinhold


eliminou (sem querer) um dos pilares do criticismo e abriu caminho a
uma interpretação idealista. A dependência desta interpretação da
primeira edição da Crítica, na qual a distinção entre representação
e fenómeno tinha sido insuficientemente estabeleci, aparece
evidente. O objecto do conhecimento reduzido a um "representado"
que

204

existe na consciência aparece, a partir da Reinhold como um dos


pontos menos discutidos na interpretação do kantismo: um ponto, no
entanto que permanece estranho ao pensamento de Kant, tal como

este nos surge do conjunto da sua obra. Através do Enesidemo a


interpretação de Reinhold passou a ser geralmente aceite pelo
ambiente filosófico do tempo e a ela se referem, positiva ou
polemicamente, Fichte, Maimon, Schelling, Hegel e Schopenhauer.

§ 533. Prenúncio DO IDEALISMO

Em 1792 surgia uma obra anónima chamada Enesidemo ou sobre os


fundamentos da filosofia elementar ensinada em Jena pelo prof.
Reinhold,
com um defesa do cepticismo contra a arrogância da Crítica da
razão. O autor da obra era, como mais tarde se veio a saber,
GottIob Emst Schulze (1761-1833), professor da Universidade de
Helmstãdt e de Gottingen. O cepticismo de Schulze não é
dogmático mas metodológico porque assume como "lei eterna e
imutável do uso da nossa razão, não aceitar por verdade nada sem
razão suficiente e levar a cabo todos os passos da especulação em
conformidade com este critério". Schulze opõe-se às teses
fundamentais do kantismo (tal como

haviam sido interpretadas por Reinhold) baseando-se numa


orientação radicalmente empirista. O que ele reprovava em Kant era
precisamente o não ter permanecido fiel ao espírito do empirismo e
ter-se servido do mesmo raciocínio ontológico dos escolás205

ticos que Kant pretende ter refutado a propósito da existência de


Deus. Kant, segundo Schulze, pro _ cedeu da forma seguinte: o
conhecimento pode ser

pensado apenas como juízo a priori, daí a existência de um tal juízo;


a necessidade e a universalidade devem ser pensadas como sinais
das formas do conhecimento, daí a existência de tais sinais; a
universalidade e a necessidade não podem pensar-se com outro
fundamento que o da razão pura, daí ser

esta o fundamento do conhecimento. Este procedimento é, segundo


Schulze, idêntico ao dos escolásticos: pois se uma coisa deve ser
pensada assim e não de outro modo, ela é assim e não de outro
modo. Kant caiu assim numa gritante contradição. Com efeito, a
valer o processo ontológico (o que deve ser pensado ser) as coisas
em si são cognoscíveis. Mas Kant demonstra que não são
cognoscíveis. Ora a sua teoria do conhecimento baseia-se no
pressuposto do qual se infere a cognoscibilidade da coisa em si. Por
conseguinte, a incognoscibilidade da coisa em si surge demonstrada
através de um princípio sobre que se baseia a cognoscibilidade da
coisa em si. É sobre esta contradição que gira toda a crítica
kantiana e a ela vem Schulze contrapor o cepticismo de Hume, ou
seja, a impossibilidade de se explicar, seja de que forma for, o
carácter objectivo do conhecimento.

Esta crítica afastava-se, evidentemente, do essencial da doutrina


de Kant, mas abordava um conceito o da coisa em si, que iria
polarizar à sua volta os posteriores desenvolvimentos críticos do
kantismo. Sobre esse desenvolvimento, teve enorme influência

206

a obra de Salomon Maimon (1753-1800), um judeu polaco de vida


aventurosa, narrada por ele próprio numa Autobiografia. Os seus
principais trabalhos são: Investigação sobre a filosofia
transcendental (1709); Dicionário filosófico (1791); Incursões no
campo da filosofia (1793); Investigação sobre unia nova lógica ou
teoria do pensamento (1794); Investigação crítica sobre o espírito
humano (1797). Maimon cedo chega à conclusão a que
inevitavelmente levava a interpretação, dada ao kantismo por
Reínhold: a impossibilidade da coisa em si. Segundo a doutrina Kant-
Reinhold, tudo o que é representável de um objecto, está contido na
consciência; mas a coisa em si está e deve estar fora da consciência
e independente dela: portanto, é uma coisa não representável nem
pensável, uma não-coisa. O conceito de coisa em si é, segundo
Maimon, o fundamento da metafísica dogmática, só existe na
medida em que ela existe. É semelhante aos números imaginários da
matemática; aqueles números que não são nem positivos nem
negativos, como os radicais quadrados dos números negativos.
Assim como a Vida é uma grandeza impossível, também a coisa em si
é conceito impossível, um nada (Kritische Untersuchungen, p. 158).
Com esta negação da coisa em si, está dado o passo decisivo para o
idealismo. Com efeito, Maímon afirma explicitamente que todos os
princípios do conhecimento se devem buscar no interior da
consciência, até mesmo o elemento objectivo (ou matéria) do
próprio conhecimento. O que é objectivo, o que é dado na
consciência, não pode ter uma causa externa à consciência, pois
fora da

207

consciência nada existe. Mas também não pode ser um puro produto
da consciência, porque desse modo não teria as características do
dado, que jamais é produzido pela própria consciência. Todo o
conhecimento objectivo é uma consciência determinada, mas na sua
base existe uma "consciência indeterminada" que procura
determinar-se num conhecimento, objectivo, tal como o X
matemático ao assumir os valores particulares de a, b, c, etc. O
dado é, por conseguinte, o que não é resolúvel às puras leis do
pensamento e que o pensamento considera como algo de estranho, a
si, mas algo que procura continuamente limitar e assumir de forma a
poder gradualmente anular-lhe o carácter irracional. "0 dado,
afirma Maimon (Transcendentaphil., p. 419 e segs.) é apenas aquilo
em cuja representação se conhece não só a causa mas também a
essência real; o que vale dizer que é aquilo de que temos apenas uma
consciência incompleta. Mas esta consciência incompleta pode ser
pensada por uma consciência determinada como um nada absoluto
apenas através de uma

série infinita de graus; já que o puro dado (o que está presente sem
qualquer consciência de força representativa) é pura ideia do limite
desta série (tal como uma raiz irracional) de que nos podemos
aproximar mas que nunca conseguimos atingir. O conhecimento dado
é um conhecimento incompleto; o conhecimento completo jamais
pode ser dado, é apenas produzido e a sua produção acontece
segundo as leis universais do conhecimento. E isso é possível quando
podemos produzir na consciência um objecto real de conhecimento.
Uma tal produção será uma

208

actividade da consciência ou um acto do pensamento a que Maimon


chama "o pensamento real".
O pensamento real é o único conhecimento completo. Tal
conhecimento supõe portanto um múltiplo (o dado) que não é senão
um determinável, e que, no acto do pensamento real, surge
determinado e

reduzido à unidade de uma síntese. O pensamento real age, por


conseguinte, através do princípio da determinabilidade: o que dá
origem ao objecto do conhecimento através da síntese perfeita do
múltiplo determinável. O espaço e o tempo são as condições da
determinação; e uma vez que a faculdade da consciência em reter
objectos dados é a sensibilidade, o espaço e o tempo são as formas
da sensibilidade e, por conseguinte, as condições de todo o
pensamento real. - A característica principal desta doutrina de
Maimon é que, para ela, o objecto não é o antecedente do
conhecimento mas antes o consequente, na medida em que é o
termo final do acto criador do pensamento. O próprio objecto da
intuição sensível não é pressuposto do pensamento, pressupõe-no,
uma

vez que é um produto do próprio pensamento. Maimon admite, por


outros termos, a faculdade da intuição intelectual (produtora ou
criadora) que Kant, de forma tenaz, sempre excluíra como sendo
superior e estranha às faculdades humanas. Deste modo se abre a
via ao idealismo; e nesta via se coloca decididamente Beck.

Jakob Sigismund Beck (6 de Agosto de 1761


- 29 de Agosto de 1840) tinha sido aluno de Kant em Künisgsberg e
foi professor em Rostock. Os seus principais trabalhos são:
Compêndio expli209

cativo dos textos críticos do Professor Kant, por sugestão do


próprio (1793-96), cujo terceiro volume,

o mais importante, tem o título O único ponto de vista possível pelo


qual a filosofia crítica pode ser

julgada (1796); Esboço de filosofia crítica (1796); Comentário à


metafísica dos costumes de Kant (1798).
O ponto de partida de Beck é a interpretação de Reinhold. O
problema que Beck levanta surge, com efeito, da interpretação do
kantismo em termos de representação: como pode ser entendida a
relação entre a representação e o objecto. Esta relação só é
possível, segundo Beck, se o objecto é ele próprio uma
representação. E, como tal, deve existir um acordo entre a
representação e o objecto de forma a que uma se refira ao outro
como a imagem ao original; o próprio objecto deve ser
representação originária, um produto do representar, isto é, um

representar originário. Por conseguinte, o único ponto de vista pelo


qual a filosofia crítica deve ser julgada é aquele a que BecIç chama
o ponto de vista transcendental, o ponto de vista de quem considera
a pura actividade do representar, que produz originariamente o
objecto. A pura actividade do representar é identificada por Beck
com a kantiana unidade transcendental da percepção, ou seja, do
que eu penso. Beck afirma assim, por sua conta, o ponto de vista de
Fichte, de que o seu transcendental produz, mediante a sua pura
actividade, a totalidade do saber.
O eu produz, através de um acto de síntese, essa conexão originária
do múltiplo que é o objecto ou a representação originária; e num
segundo momento reconhece nesse objecto a sua representação.
Este

210 N

acto posterior é, segundo a expressão de Beck, o

reconhecimento da representação, ou seja, o reconhecimento de


que há um objecto sob o conceito que o exprime ou que existe a
representação de um

objecto através de um conceito. Esta representação surge criada


por dois actos que constituem a actividade originária do intelecto: o
primeiro é a síntese originária efectuada através das categorias; o
segundo é o reconhecimento originário efectuado através do
esquematismo das categorias (Einzig m<5glicher Standpunkt, 11, §
3. Beck percorreu deste modo uma
larga tirada do caminho que, contemporâneamente, era percorrido
também por Fichte. A interpretação do kantismo iniciada por
Reinhold encontra neste último o seu desfecho lógico e conclusivo.

§ 534. POLÉMICA SOBRE O KANTISMO: A FILOSOFIA DA FÉ

A filosofia de Kant era racionalista e iluminista. Fazia da razão o


único guia possível do homem em

todos os campos da sua actividade; mas ao mesmo tempo impunha à


razão limites precisos e em tais ,limites baseava a legitimidade das
suas pretensões.
O racionalismo kantiano foi outro aspecto que levantou polémicas na
Alemanha nos últimos anos do século XVIIII.

As exigências a que se referiam estas polémicas foram em geral as


da fé e da tradição religiosa. A filosofia kantiana parecia muda ou
hostil perante tais exigências, uma vez que era uma filosofia da
razão: à razão se contrapõe então, como órgão de

211

conhecimento, a fé, a intuição mística, o sentimento, ou em geral,


qualquer faculdade postulada ad hoc e que se julgue capaz de
actuar para lá dos limites da razão, na direcção dessa realidade
superior que parece ser o objecto específico da experiência mística
ou em geral da razão. Esta polémica obtém as suas armas
conceptuais especialmente em Hume e em Shaftesbury; mas
atribui-lhes um alcance que estava muito além da esfera de
experiência a que estes dois filósofos se haviam limitado, já que vê
neles os

instrumentos de uma revelação sobrenatural ou divina.

A filosofia da fé, dentro deste desígnio, inicia-se com a obra de um


conterrâneo de Kant, Joham George Hamann. (1730-88), um
funcionário de alfândega que manteve relações de amizade com

Kant, Herder e Jacobi e foi chamado o "mago do Norte". Hamman


desencadeia as suas invectivas contra as pretensões da razão. "0
que é a celebrada razão com a sua universalidade, infalibilidade,
exaltação, certeza e evidência? Um ens rationis, um ídolo, ao qual a
superstição impudente e irracional assinala atributos divinos". Não
é a razão mas a fé que constitui o homem na sua totalidade.
Hamman, ao dizer isto, pensava em Hume que tinha reconhecido na
crença a única base da consciência. Mas a crença de Hume é uma
crença empírica que tem por objecto as coisas e as suas relações
causais. A crença de Hamman, ao invés, é uma fé mística, uma
experiência misteriosa na qual têm lugar não apenas os factos
naturais e os testemunhos dos sentidos como também os factos
históricos, os testemunhos da tra212

dição, e os factos divinos testemunhados pela revelação. A fé de


Hamman é a revelação imediata da natureza e de Deus. E Hamman
não faz nenhuma divisão ou distinção entre o que é sensível e o que
é religioso, entre o que é humano e o que é divino. Tal como Bruno,
reconhece na coincidentia oppositorum o mais alto princípio do
saber. No homem coincidem todos os princípios opostos do mundo;
e, por mais que busque com a filosofia entender e abarcar a sua
unidade, jamais conseguirá compreendê-la através de conceitos ou
alcançá-la através da razão. Só a fé poderá revelar-lha, na medida
em que ela é uma relação entre o homem e o Deus; uma relação que
não tem :a mediação dos conceitos, porque se trata de uma relação
individualizada e singular e em razão da qual eu, na minha
individualidade, me encontro perante o meu Deus. Compreende-se
como Hamman pretendia rejeitar em bloco as análises kantianas que
procuram introduzir distinções sobre distinções onde ele não via
mais que a

continuidade de uma vida ou de uma experiência vivida que concilia


os extremos opostos. Na Metacrítica do purismo da razão
(publicada postumamente em 1788), Hamman censurava Kant por
ter separado a razão da sensibilidade. A própria existência da
linguagem desmente a doutrina de Kant: na linguagem a razão
encontra, na verdade, a sua existência sensível. Hamman entende a
linguagem não como
uma simples articulação de sons mas como revelação da própria
realidade, uma revelação da natureza e de Deus. A linguagem é o
Logos, o Verbum: a razão como auto-revelação do ser. Linguagem e

213

razão são assim identificadas e ambas se identificam com a fé.


Hamman vê na I-Estória, como na Natureza, a incessante revelação
de Deus e nos ventos e nas personalidades da História, como nos
factos da Natureza, outros tantos símbolos e manifestações de um
desígnio providencial.

Podemos encontrar em Hamman motivos que também se encontram


em Kierkgaard (excepto o panteísmo romântico): a fé como
totalidade da existência individual, a sua irredutibilidade à razão, o
cristianismo como loucura e escândalo para a razão. Para ele, como
viria a ser para Kierkgaard, a religião apoia-se na nossa existência
total, independentemente das forças do conhecimento.

Sobre a mesma linha se move o pensamento de Johann Gottfried


Herder (25 de Agosto de 1744

18 de Dezembro de 1803) que foi aluno de Kant e amigo de Hamman.


Herder censurava a

ICant (Metacrítica à crítica da razão pura, 1799) o dualismo de


matéria e forma, de natureza e liberdade; e a este dualismo
contrapunha a essencial unidade do espírito e da natureza que ele
descobre na obra de Espinosa (a quem dedicou um diálogo intitulado
Deus). Tal como Hamman, Herder sustenta que é impossível explicar
a actividade racional do homem prescindindo da linguagem: nela, ele
descobre a origem da própria natureza humana, na

medida em que surge de uma livre e desinteressada consideração


das coisas. Mas enquanto para Hamman a linguagem é a própria
razão, ou seja, o ser que se revela, para Herder ela é um
instrumento indispensável, mas que não deixa de ser um
instrumento

214

da razão. O homem, privado como está do instinto, que é o guia


seguro dos animais, supre a sua inferioridade através de uma força
positiva da alma que é sagacidade ou reflexão (Besonnheit); e o livre
uso da razão leva à invenção da linguagem. A linguagem é, portanto,
"um órgão natural do intelecto", o sinal exterior distintivo do
género humano, tal como a

razão é o sinal interior do mesmo (Werke, V, p. 47).

Mas a mais notável manifestação filosófica do fantástico espírito


de Herder é o seu conceito de cristianismo como a religião da
humanidade, e da história humana como um desenvolvimento
progressivo no sentido da total realização da própria humanidade.
Na sua obra, Ideias para uma filosofia da história da Humanidade
(1784-91), Herder afirma o princípio de que na história, como na
natureza, todo o desenvolvimento está submetido a determinadas
condições naturais e a leis mutáveis. A natureza é um todo vivo, que
se desenvolve segundo um plano total de organização progressiva.
Nela agem e lutam forças diferentes e opostas, O homem, como
todos os outros animais, é um seu produto: mas o homem está no
cume da organização, porque com ele nasce

a actividade racional, e, por conseguinte, a arte e a


linguagem que conduzem à humanidade e à religião. A história
humana não faz mais que seguir a própria lei ido desenvolvimento da
natureza que provém do mundo inorgânico e orgânico até ao homem
para levar finalmente o homem à sua verdadeira essência. Natureza
e história actuam ambas no sentido de educarem o homem para a
humanidade. E essa

educação é fruto não da razão, mas da religião que

215

ligada à história humana desde os primórdios e

revela ao homem o que há de divino na natureza.

A este conceito de um progresso contínuo e

necessário do género humano na sua história, Herder é levado. por.


analogia entre o mundo da natureza e o mundo da história, analogia
baseada na profunda unidade destes dois mundos que são ambos
criação e manifestação de Deus. Deus, que ordenou da forma mais
sábia o mundo da natureza, garantindo de maneira infalível a sua
conservação e desenvolvimento, poderia permitir que a história do
género humano se desenvolvesse sem um plano qualquer,
independente da sua sabedoria e da sua bondade? A esta pergunta
deve responder a filosofia da história, a que deve demonstrar que o
género humano não é um rebanho sem pastor e que para ele valem
as

próprias leis que determinam a organização progressiva do mundo


natural. "Tal como existe um Deus na natureza, existe também um
Deus na história; o homem faz parte da natureza e deve seguir,
mesmo nas suas intemperanças e paixões mais selvagens, as leis que
não são menos belas e excelentes do que aquelas que regulam todos
os céus e corpos terrestres". É fácil distinguir nestas palavras o
reflexo do panteísmo de Shaftesbury, O fim das leis da história é o
de conduzirem o homem à sua própria humanidade. "Se
considerarmos a humanidade, tal como a conhecemos através das
leis que nela existem, não poderemos imaginar nada de mais elevado
que a humanidade existente nos homens; pois mesmo quando
pensamos em anjos ou deuses, pensamo-los como homens ideais ou
superiores. Com este objectivo

216

foram dados aos homens sentidos e impulsos mais refinados, a


razão e a liberdade, uma saúde delicada e durável, a linguagem, a
arte e a religião. Em todas as condições e em todas as sociedades, o
homem não pode ter outra coisa em vista que não seja a construção
da humanidade, tal como em si próprio ele a pensa". No seu esforço
de investigar a ordem e as leis do mundo da história, a especulação
de Herder faz lembrar a de Vico. Mas para Vico não existe um
progresso contínuo e inevitável do género humano, comparável ao
curso fatal da natureza. Para Vico, a história é verdadeiramente
feita pelos homens e conserva todo o carácter problemático que
deriva da liberdade das acções humanas. A ordem providencial da
história é para o filósofo italiano uma ordem transcendente a que a
história temporal pode mais ou menos adequar-se, sem jamais
coincidir. Herder, pelo contrário, considera a história como um
plano divino e necessário no seu inevitável progresso. A sua filosofia
da história é, por conseguinte, a extensão ao mundo histórico
do,panteísmo de Sohaftesbury e prenuncia o conceito da história
próprio do idealismo romântico.
§ 535. FILOSOFIA DA FÉ: JACOBI

A filosofia da fé, tal como tinha sido desenvolvida por Hamman e


Herder, levava a uma conclusão panteísta: parecia até tornar
impossível qualquer distinção entre natureza e Deus e fazer sua a
tese

217

clássica do panteísmo, distinguir em Bruno. Espinosa, a filosofia da


fé de Jacob@ pelo contrário dentro de um rigoroso teismo: retira
Deus da natureza de forma tão decidida como os outros o tinham
unido a ela.

Friedrich Heirich Jacobi, nasceu em Dusseldórfia a


25 de Janeiro de 1743 e morreu a 10 de março de
1819. Os seus trabalhos compreendem dois romances filosóficos,
Epistolário de Allwill e Woldemar, as Cartas sobre a doutrina de
Espinosa a Moisés Mendelssohn (1785) e nas quais Jacobi descreve
os colóquios que teve com Lessing a 7 e 8 de Julho de
1780, em que Lessing manifestava a sua adesão ao espinosismo;
David Hume e a fé (1787) na qual Jacobi se pronuncia também
sobre o kantismo; Cartas a Fichte (1709); Tratado sobre o
propósito do criticismo em conferir a razão ao intelecto (1802); J
As coisas divinas (1811), contra Schelling, que Jacobi
censurava por usar uma linguagem cristã num sentido panteísta.

O objectivo da especulação de Jacobi é o de defender a validade da


fé como sentimento do incondicionado, ou seja, de Deus. Rejeita a
especulação "desinteressada"; pretende defender não a verdade,
mas "uma determinada verdade". "Quero tornar claro, através do
entendimento, uma única coisa, afirma - Cartas sobre Espinosa,
trad. ital., p. 4), a

minha devoção natural a um Deus incógnito". Mas a razão não serve


este objectivo. Jacobi levanta a pergunta crucial: É o homem quem
possui a razão ou é a razão que possui o homem? Para ele não existe

218

dúvidas: a razão é um instrumento, não é a própria existência


humana. Esta última resulta de duas representações originárias: a
do incondicionado, que é a de Deus, e a do condicionado, que é a de
nós próprios. Mas esta última pressupõe a primeira. Temos portanto
uma certeza do incondicionado bastante maior do que a que temos
do condicionado, ou seja, da nossa própria existência. Mas esta
certeza não nos é dada pela razão e não se baseia nas provas ou nas
demonstrações que a mesma nos

possa fornecer. É uma certeza da fé. Para demonstrar a existência


de uma divindade criadora, a razão já não pode ligar-se nem nunca
poderá ligar-se a

uma filosofia que se arrogue de tal. Descartes pretendeu


demonstrar a existência de um criador do mundo; mas, na realidade,
só conseguiu demonstrar a unidade de todas as coisas, a totalidade
do mundo. Espinosa tornou claro o significado implícito da
demonstração cartesiana na expressão por ele utilizada "Deus sive
Natura". E o que vale para a filosofia de Espinosa vale para qualquer
sistema que faça apelo à razão para compreender Deus: inclusive o
de Leibniz. O próprio Lessing., o representante máximo do
iluminismo, é uma prova desta mesma tese:
Jaoobi vale-se dos colóquios que teve com ele para afirmar que
Lessing era conscientemente adepto da doutrina de Espinosa e que
a fórmula em que acreditava era En kai Pan, o Todo-Uno, o Deus-
Natureza. Este é o argumento da polémica entre Jacobi e
Mendelssohn sobre o espinosismo de Lessing, polémica em que
intervém igualmente Herder com a sua obra, Deus. A doutrina de
Espinosa representa para

219

Jacobi a essência de todas as doutrinas racionalistas, já que todas


as doutrinas deste género, quando coerentemente desenvolvidas, se
identificam com o espinosismo. E o espinosismo é ateísmo, na
medida em que o ateísmo não é mais que a identificação de Deus
com o mundo, do incondicionado com o condicionado.

Cortar as ligações com o ateísmo significa cortar as ligações com o


racionalismo e fazer apelo à fé. Só a fé torna certa a existência de
nós próprios, das outras coisas e de Deus: "Todos nós nascemos na
fé, afirma Jacobi (Cartas sobre Espinosa, trad. ital. p. 123), e na fé
devemos permanecer, tal como nascemos na sociedade e na
sociedade devemos permanecer". Mas a fé significa revelação.
"Afirmamos com

absoluta convicção que as coisas existem realmente fora de nós. E


eu pergunto: em que se baseia esta nossa convicção? Em verdade,
apenas numa revelação a que verdadeiramente podemos chamar
milagrosa" (Hume, uber den Glauben, em Werke, H, p. 165 e
sgs.). Jacobí mostra-se portanto de acordo, tal como
Hamman, com Hume, ao afirmar que o conhecimento sensível não é
outra coisa senão a fé. Mas além disso, para ele, é a fé na
revelação, assumindo portanto um significado religioso. Uma
existência que se revela pressupõe uma existência que revela, uma
força criadora que só pode ser causa de toda a existência, isto é.
Deus. A nossa fé sensível é necessariamente uma fé na revelação e
esta é necessariamente a fé em Deus, é portanto unia religião (1b.,
p. 274, 284 e sgs.). Esta fé é natural, não arbitrária; trata-se de
uma

220

lei escrita no coração dos homens e que os homens seguem mesmo


quando a negam.

Ao negar a possibilidade de qualquer demonstração da existência de


Deus e ao considerar Deus como objecto de fé, Jacobi concorda
evidentemente com Kant. Mas Kant fala de uma fé racional,
problemática, fechada nos limites das possibilidades humanas,
enquanto que Jacobi vê na fé uma revelação efectiva entre o
homem e o mundo supra-sensível. Se o homem não tivesse a
percepção originária do supra-sensível, não seria possível nem a
religião nem

a liberdade e o homem seria um animal como todos os outros, uma


coisa entre as outras coisas. Mas se não existisse nem religião, nem
liberdade, nem fé em Deus, nem consciência de si, como poderia o

próprio homem existir com uma existência de tal modo mutilada?

Jacobi segue, na sua especulação, um processo característico: por


um lado, afirma a coerência e a força dos sistemas racionalistas,
defendendo-se contra os seus adversários (com efeito assim
procedera em relação a Espinosa, a Kant e também a Fichte), por
outro lado pretende demonstrar como os mesmos se debatem com a
impossibilidade de explicar a
existência e todos pressupõem a fé. A fé incondicionada e original
num ordenamento do mundo paternal e amorável: tal é, para Jacobi,
o único dado seguro de que o homem deve partir. "Assim sinto,
afirma, e não posso sentir de outra maneira; se os sistemas de
filosofia tivessem razão, o meu sentimento seria impossível".

221

A filosofia da fé constitui uma primeira tentativa para se fugir aos


limites que Kant tinha assinalado às possibilidades humanas,
tentativa que faz apelo a uma relação directa com o supra-sensível.
Contra esta tentativa reagiu o próprio Kant na sua

obra O que significa orientar-se no pensar (1786), e, ao intervir na


polémica Mendelssohn-Jacobi-Herder, replicou enèrgicamente que
a fé não pode basear-se senão num postulado da razão prática e que
a mesma não envolve uma certeza teorética, mas apenas uma
verosimilhança que basta a todas as exigências da conduta moral.

§ 536. O "STURM UND DRANG". SCHILLER. GOETHE

A filosofia da fé pode considerar-se, na sua complexidade, como


expressão filosófica do movimento literário-políteo que se chamou
STURM UND DRANG (título de um drama de Maximiliano Minger,
escrito em 1776), ou seja, "tempestade é ímpeto". A razão que
sofre a crítica desta filosofia é a razão finita, a razão cujos limites
e competência haviam sido determinados por Kant; à qual contrapõe
a fé como órgão capaz de alcançar o que àquele é inacessível.

Nos ideais do Sturm und Drang comungaram, na sua juventude,


Schiller e Goethe. Todavia, o conhecimento da filosofia kantiana
tem neles uma influência positiva, encaminhando-os para o
reconhecimento da função da razão e ainda para a com222

preensão e esclarecimento daquilo que a razão não abarca, a vida, o


sentimento, a arte e a natureza.

A actividade filosófica do poeta Friedrich Schiller (10 de


Novembro de 1759 - 9 de Maio de 1805) inicia-se com a denominada
Teosofia de Julius, incluída nas Cartas filosóficas de 1786. Podemos
encontrar nesta obra os temas neoplatónicos caros aos

poetas e aos filósofos do Sturm und Drang. O universo é a


manifestação ou revelação de Deus, o

"hieroglifo de Deus", e a única diferença entre Deus e a natureza é


que Deus é a perfeição indivisa, enquanto que a natureza é uma
perfeição dividida. "A natureza é um Deus dividido ao infinito", diz
Schiller (Werke, X, p. 190). Em 1787, Schiller entra em contacto
com as obras de Kant. e especialmente com a Crítica do juízo. Neste
período, Schiller dedicava-se a pesquisas de natureza estética que
vieram a dar frutos nos seus escritos Sobre o fundamento do
prazer produzido pelos objectos trágicos (1791), Sobre a arte
trágica (1792), Sobre o sublime (1793). Mas os primeiros frutos
amadurecidos da filosofia de Schiller são o inteligente ensaio Sobre
a graça e a dignidade (1793), no qual a crença na unidade harmónica
entre a natureza e o espírito leva Schiller a modificar
substancialmente o ponto de vista kantiano que tinha contraposto
a razão ao instinto. Afirma Schiller: "Não tenho um bom
conceito do homem que se fia tão pouco na voz do instinto que a
obriga a calar todas as vezes perante a lei moral; mas respeito e
estimo aquele que se abandona com

uma certa confiança ao instinto, sem recear que este o amesquinhe:


porque assim parece demonstrar que

223

nele os dois princípios se encontram já em harmonia,,, o que é sinal


de uma humanidade completa e perfeita" (Werke, XI, p. 202). O
homem no qual se realiza a harmonia da razão com o instinto e que,
por esse motivo, age moralmente por instinto é uma 11 alma
bela, cu tural é a graça, ou seja;

ja expressão na a beleza em movimento.

Numa nota à segunda edição da Religião nos limites da razão (13 10-
11), Kant, respondendo às observações de Schiller, afirmava que se
é impossível que a graça surja acompanhada do conceito de dever,
em virtude da dignidade deste últim03 não é impossível todavia que
aquela surja acompanhada da virtude, ou seja: da intenção de
cumprir fielmente o dever. A graça, segundo Kant, pode ser uma das
felizes consequências da virtude que transmite sobretudo a
força da razão e acaba até por arrastar no seu jogo a própria.
imaginação.

- 1.O tema da unidade entre a natureza e o espírito encontra. a sua


melhor expressa wo na obra-prima filosófica, de Schiller, as
Cartas sobre a educação ,estética (1793-95). Nesta obra, Schiller
começa por discernir , no homem uma dualidade que aparece
conciliada: a do homem físico que vive sob o domínio das
necessidades e se descobre em virtude da sua existência na
sociedade dos homens, e o homem moral,, que afirma a sua
liberdade. Mas o homem físico é real, enquanto que o homem moral
é apenas problemático. A razão tende a suprimir a natureza

no homem e a furtá-la aos vínculos sociais existentes para lhes,


fornecer aquilo que ele poderia e deveria possuir, mas não pode
substituir completamente a

GOETHE

224

sua realidade física e social. Schiller ilustra os vá. rios aspectos


deste contraste. A razão exige a unidade, a natureza exige a
variedade; e o homem é chamado a obedecer a ambas as leis, uma
sugerida pela consciência e a outra pelo sentimento (Cartas,
4). No homem, o eu é imutável e permanente, mas os estados
singulares sofrem mutações. O eu é fruto da liberdade, os estados
singulares são produto da acção das coisas exteriores. Por isso
existem no homem duas tendências que constituem as duas leis
fundamentais da sua dupla natureza racional e sensível. A primeira
exige a absoluta realidade.- o homem deve tomar sensível tudo o
que é pura forma e manifestar exteriormente todas as suas
atitudes. A segunda exige a absoluta formalidade: o homem deve
extirpar tudo o que nele existe de exterior e

criar a harmonia entre os seus sentimentos (1b., 11). Estas duas


tendências são também chamadas por Schiller instintos: o instinto
sensível deriva do seu ser físico e liga o homem à matéria e ao
tempo, o instinto da forma aparece no homem por virtude da sua
existência racional e procura torná-lo livre. Se o homem sacrifica o
instinto racional ao sensível, deixará de ser um eu, permanecendo
disperso na matéria e no tempo; se sacrifica o instinto sensível ao
formal será uma pura forma sem realidade, ou seja: uni puro nada
(lb., 13). Deve portanto conciliar os dois instintos de modo a um
limitar o outro e dar lugar ao instinto do jogo que levará a forma à
matéria e a realidade à pura forma rwiOnal (1b.,
14). Se o objecto do instinto sensível é a vida no sentido mais lato e
o objecto do instinto formal é a

225

forma, o objecto do instinto do jogo será a forma viva ou seja: a


beleza (lb., 15). Por meio da beleza, o homem sensível é guiado para
a forma e para o pensamento, o homem espiritual é reconduzido à
matéria e restituído ao mundo dos sentidos. A presença dos dois
instintos é condição fundamental da liberdade. Enquanto o homem
se mantiver submetido ao instinto sensível que é o primeiro a surgir,
não existe liberdade; só quando o outro instinto se afirma, ambos
acabam por perder a sua força constritiva e a posição entre ambos
dará origem à liberdade (1b.,
19). Para Schiller a liberdade não é como para Kant o produto da
pura razão; é antes um estado de indeterminação no qual o homem
não se sente constrangido nem física nem moralmente, se bera que
possa ser actuante num modo como no outro. Ora se o estado de
determinação sensível se chama físico e o de determinação racional,
moral, o estado de determinabilidade real e activa deve chamar-se
estético (lb., 20). O estado estético é um estado de pura
problematicidade, no qual o homem pode ser tudo o que quiser,
embora nada sendo de determinado. Neste sentido se afirma que a
beleza não oferece qualquer resultado, seja moral seja intelectual;
no

entanto, só através dela o homem aufere a possibilidade de fazer


de si aquilo que quiser; a liberdade de ser aquilo que deve ser.
Neste sentido a beleza é uma segunda criação do homem (1b., 21). O
estado estético é o ponto zero do homem físico e do homem moral,
mas é ao mesmo tempo a possibilidade, a unidade e a harmonia de
ambos. Com ele, o poder da sensação surge vencido e o homem
físico aparece
226

de tal modo notabilizado que o espiritual pode facilmente


desenvolver-se nele segundo, a lei da liberdade. A passagem do
estado estético ao lógico ou moral, a passagem à verdade ou ao
dever é infinitamente mais fácil do que a passagem do estado físico
ao estado estético (lb., 23).

No estado estético o homem separa-se do mundo com o qual se


encontrava confundido durante o estado físico; e assim o mundo
começa a existir para ele como objecto; objecto que, enquanto belo,
faz ao mesmo tempo parte da sua subjectividade, sendo portanto
simultaneamente um estado e um acto seus (lb., 25).

Noutro ensaio fundamental, Sobre a poesia ingénua e


sentimental(1795-96), Schifier interpretava a

educação progressiva do género humano através da poesia como


reconquista de uma perfeição perdida.
O ensaio esboça uma história da humanidade concebida como
passagem de uma unidade harmónica e originária entre o ideal e o
real para uma cisão entre estes dois aspectos e por fim a uma
reconquista da unidade. A poesia ingénua é aquela em

que a unidade entre o real e o ideal é imediatamente apreendida e


vivida; a poesia sentimental é a busca

ou a reconquista dessa unidade. O poeta ingénuo não tem


necessidade de ideal, imita a natureza real e com esta imitação
encontra a sua perfeição; o poeta sentimental procura erguer a
realidade até ao ideal (Wer.ke, XII, 126).

A filosofia de Schiller é substancialmente a tentativa de


interpretar o homem, o seu mundo e a sua história nos termos de
uma teoria da poesia.

227

A mesma ideia de um acordo intrínseco ou substancial entro a


natureza e o espírito, o mundo e Deus, está contida na actividade
filosófica de Wolfgang Coethe (1794-1832) que, diversamente de
Schiller, parte não de uma teoria da poesia mas de pesquisas,
observações e hipóteses naturalistas. Não foi a arte, mas a própria
natureza que serviu de tema inspirador à reflexão filosófica de
Goethe. Goethe estava convencido de que a natureza e Deus se
encontram intimamente ligados, constituindo um todo único. "Tudo o
que o homem pode ambicionar na

vida é que o Deus-natureza se lhe revele", afirma. A natureza não é


senão "a roupagem viva da divindade" . Não se pode alcançar Deus
senão através da natureza, como não se pode alcançar a alma senão
através do corpo. Se Goethe é contrário aos materialistas que
fazem da natureza um puro sistema de forças mecânicas, é também
contrário a Jacobi que coloca Deus, de forma absoluta, para além
da natureza. "Quem quer o ser supremo deve querer o todo; quem
se interessa pelo espírito deve pressupor * natureza, quem fala da
natureza deve pressupor * espírito. O pensamento não se deixa
separar daquilo que é pensado, a vontade não se deixa separar de
tudo o que é movido. A existência de Deus, como a de uma força
espiritual, de uma razão, que domina todo o universo, não precisa de
demonstração. A existência de Deus é o próprio Deus" afirma ele
numa carta a Jacobi (datada de 9 de Junho de 1785). Deus é uma
força impessoal e suprapessoal que actua

228
nos homens através da razão e determina o seu destino. A um tal
destino, que é ao mesmo tempo ordem providencial, não se furta
nem mesmo Prometeu que, na sua titânica revolta contra o Olimpo,
encontra na consciência de si o auxilio e a força para tal. - Nestas
concepções panteístas se inspiram as investigações e as hipóteses
naturalistas de Goethe, que pretendem investigar na natureza o
fenómeno originário (Urphãnomenon) em que se manifesta e

se concretiza, num determinado tipo ou forma, a força divina que


tudo rege. Flor isso Goethe não compartilha do ponto de vista de
Kant, segundo o qual a finalidade da natureza pertence a uma
consideração puramente subjectiva do mundo, e não tem valor
objectivo. Para Goethe, a finalidade é a própria estrutura dos
fenómenos naturais e as ideias que a exprimem são os símbolos dos
mesmos. Arte e natureza distinguem-se apenas em grau e não em
qualidade; o fim que a arte e o artista prosseguem, actua sobre o
mundo de forma menos consciente, mas igualmente eficaz. - Uma
outra expressão da unidade entre a natureza e espírito, que é a fé
de Goethe, é o equilíbrio, que ele defende explicitamente e que
constitui uma característica da sua personalidade, entre
sensibilidade e razão. A vida moral não é para ele, como é para,
Kant, o predomínio da razão sobre os impulsos sensíveis, mas a
harmonia de todas as actividades humanas, a relação equilibrada
entre as forças contrastantes que constituem o

homem. É neste equilíbrio que Goethe reconhece a

normalidade da natureza humana

229
§ 537. HUMBOLDT

No ideal humanístico de Schiller e Herder se inspira a obra de


Wilhelra Humboldt (22 de Junho
1767 - 8 de Abril de 1835), que é o criador da moderna ciência da
linguagem. Os problemas que ocupam Humboldt dizem respeito à
história, à arte e à linguagem, sem esquecer também os problemas
políticos. Aos primeiros dedicou alguns ensaios e

breves tratados que em parte se mantiveram inéditos e em parte se


encontram incluídos nos seus escritos de crítica literária e
filológica: Sobre a religião (1789); Sobre a lei de desenvolvimento
das forças humanas (1791); Teoria da formação do homem (1793);
Plano de lima antropologia comparada (1795); Sobre o espírito da
humanidade (1797); Considerações sobre a

história universal (1814); Considerações sobre as causas eficientes


da história universal (1818); Sobre a

tarefa dos historiadores (1821). As suas ideias sobre arte estão


contidas nos ensaios literários, especialmente no que se intitula
Sobre o Armínio e Doroleia de Goethe (1797-98), enquanto que as
suas ideias políticas se encontram expostas num vasto texto Ideia
de uma investigação sobre os limites da acção do estado (1792). O
princípio fundamental de Humboldt é de que nos mesmos homens e
na sua história vive, age e se realiza gradualmente a forma ou o
espírito da humanidade, que vale como ideal e critério valorativo de
toda a individualidade e de toda a manifestação humana. Como
Schiller e Herder, Humboldt sustenta que o objectivo dos homens
está nos próprios homens, na sua formação progressiva,

230
no desenvolvimento e na realização da forma humana que lhes é
própria. Sob este aspecto o estudo do homem deve ser objecto de
uma ciência - a antropologia - que, embora interessada em
determinar as condições naturais do homem (temperamento, sexo,
nacionalidade, ete.,), porque também descobrir, através da mesma,
o próprio ideal da humanidade, a

forma incondicionada, a que nenhum indivíduo jamais consegue


adequar-se perfeitamente, mas que não deixa de ser o objectivo
para que tendem todos os

indivíduos (Schriften, 1, p. 388 e sgs.). Esta ciência deverá tratar o


material empírico de modo especulativo, organizar filosoficamente
o estudo histórico do homem e considerar a verdadeira condição do
homem do ponto de vista dos seus possíveis desenvolvimentos.
Humboldt designa por espírito da humanidade a forma humana ideal
que não se encontra nunca realizada empiricamente, ainda que seja
o termo de toda a actividade humana; e reconhece neste espírito da
humanidade a força espiritual de que dependem todas as
manifestações do homem no mundo. Os grandes homens foram
aqueles que, de forma mais vincada, afirmaram o espírito da
humanidade, como aconteceu com Goethe, por exemplo; e os
grandes povos os que mais se aproximaram no seu progresso da
realização integral daquele espírito, como

foi o caso dos Gregos (M., 11, p. 332).

A investigação e a realização da forma incondicionada da


humanidade é também o objectivo da arte. Esta transforma a
realidade numa imagem da fantasia e por isso se desvincula da
própria realidade, dando lugar a um reino ideal; mas na medida em
que
231

tal, acontece, a arte supera os limites da realidade, purifica-a e


idealiza-a; representando-a através da fantasia faz dela uma
totalidade, um mundo harmonioso e compósito. O carácter de
totalidade é, com o

da fantasia transfiguradora, elemento essencial da arte (lb., 11, p.


133 e sgs.; p. 284). Sob este aspecto, a poesia tem unia verdade que
não é redutível à da história ou à da ciência. Essa mesma verdade
consiste no seu acordo com o objecto da imaginação, ao passo que a
verdade da história consiste no acordo

com o objecto da observação (1b., H, p. 285).


1 A história - apresenta-se a Humboldt como "o esforço da ideia
para conquistar a sua existência na realidade" (Ib., IV, p. 56). A
ideia manifesta-se na

história numa individualidade pessoal, numa nação, e em geral em


todos os elementos necessários e determinantes que os
historiadores se encarregam de separar e de dar relevo dentro do
conjunto dos aspectos insignificantes ou acidentais. Para o homem
que não pode conhecer o plano total que governa o mundo, a ideia só
se pode revelar através do curso dos acontecimentos, dos quais
constitui, ao mesmo tempo, a força produtiva e o objectivo final. "0
fim da história pode ser apenas a realização da ideia representada
pela humanidade, em - todos os seus aspectos, c em todos os modos
nos quais a forma finita possa ser ligada à ideia; e o curso dos
acontecimentos pode ser interrompido quando nem uma nem outra
estão em situação de reciprocamente, se interpenetrarem" (lb., IV,
p. 55).

Com a ideia de humanidade se associa a linguagem. A linguagem é a


própria actividade das forças

232

HUMBOLDT

espirituais do homem. Como não existe nenhuma força da alma que


não seja activa, nada existe no íntimo do homem que não se
transforme em linguagem ou não se reconheça nela (Schriften, VII,
1, p. 86). Em razão destas raízes humanas comuns, todas as
linguagens têm na sua organização intelectual qualquer coisa de
semelhante. A diversidade intervém no que respeita a essa
organização, quer pelo ,grau em que a força criadora da linguagem
se

exerce, grau que é diferente de povo para povo e

em tempos diferentes, quer porque outras forças actuam na criação


da linguagem além do intelecto, como seja a fantasia e o
sentimento. Fantasia e sentimento que, na medida em que
determinam a diversidade dos caracteres individuais, também
determinam a diversidade dos caracteres nacionais e por
conseguinte a multiplicidade das linguagens. A linguagem é o próprio
sentido interno enquanto reúne

o conhecimento e a expressão, e por conseguinte está ligada ao mais


íntimo do espírito nacional; e na diversificação deste espírito
encontra a raiz última das suas divisões (1b., V11, 1, p. 14). Além
disso. ela forma um organismo que vive apenas na totalidade e na
conexão das suas partes: a primeira palavra de uma língua
prenuncia-a e pressupõe-na na sua totalidade. Em virtude desta
mesma ideia, Humbold-t conseguiu transformar o estudo da
linguagem de pura actividade de recolha de elementos numa
compreensão do fenómeno da linguagem na sua totalidade.

A exigência de garantir a livre realização do espírito e da


humanidade no homem leva Humboldt

233

a restringir os limites da acção do Estado. O seu

escrito político (que só foi publicado em 1851) res- @tringe a


função positiva do Estado à garantia da segurança interna e
externa, mas exclui, como excedendo os limites do Estado, toda a
acção positiva no sentido de promover o bem-estar e a vida moral e
religiosa dos cidadãos. Tudo o que diga respeito directamente ao
desenvolvimento físico, intelectual, moral e religioso do homem cai
fora dos limites do estado, é tarefa própria dos indivíduos e das
nações.
O estado pode favorecer essa tarefa quando se limita a garantir as
condições em que esse mesmo desenvolvimento se verifique com
segurança, mas toda a sua

intervenção positiva é prejudicial porque contrária às condições


indispensáveis a que se alcance o desenvolvimento completo dos
indivíduos singulares, ou seja: a liberdade. Esta doutrina é a
antítese antecipada da concepção ética do estado que irá ser

defendida por Hegel.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 532. K. L. Reinho@d, Leben und literarischcs Wirken nebst ciner


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Zeitgenossen an ihn (ao cuidado do seu filho Emst), Jena, 1925.

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Guéroult, Llévolution et ta strwture de Ia Doetrine de Ia Se@ence
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1, pgs. 1, 153; V. Verra, Dopo Kant, Il criticisma ne,111~ pre-
romantica, Turim, 1957 (para esta obra se, remete tanibéni quanto
aos autores seguintes).

234

§ 533. Sobre o Enes~o: H, Wilegershausen, Aenes~-Schulze,


Berlim, 1910.

De Malmon: Versuch einer neuen Logik, Bei-ffim,


1912 (com bibl.)

Sobre Maimon: P. Kuntze, Díe Phílosophíe S. M.S, Heidolberg, 1912;


M. Guéroult, La philosophie transcendentale de S. M., Paris 1929; G.
Durante, Gli epigoni di Kant, Florença, 1943.

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§ 534. Ramman, Werke, 42d. Roth, Berlim, 1821-1843; ed.


Gildmeister, Gota, 1857-73; ed, NaMer, Viena,
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235

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dottrina di Spinoza, trad. itaj. F. Capra, Bari, 1914; Idealismo e
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Sobre Jacobi: L. Levy-Bruffi, La philosophie de J., Paris, 1894; F. A.


Schmidt, F. H. J, Heidelberg,
1908.

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Schriften und Gedichte, antologia de E. Kühnemann, Leipzig, 1909;
Lettere sull'educazione estetica ed altri scritti, a cargo de G. Oaló,
1937.

Sobre Schiller: K. Fischer, S. al,& Philosoph, Heidelbarg, 1891; K.


Engel, S. aIs Denker, Berlim, 1908; E. Kühnemqjnn, S. sein
Leben und seine Werke, Munique, 1911; K. Vorlander, Kant, Schiller,
Goethe, Leipzig, 1922.

Unia escolha dos textos filosóficos de Goethe foi feita por M.


Heynacher, G.s Phiplosophie- a" seinem Werken, Leipzig, 1905. Em
itaã~: Teoria della natura, recolha de textos e tradução de M.
Montinari, Turim, 1958.

Sobre Goethe: H. Siebeck, G., aIs Denker, Stuttgarda, 1902; G.


Sinunel, G., L~ig, 1913; P. Carus, G., Chicago, 1915; A. Schweitzer,
G., 1952.

§ 537. De Humboldt: Gesammelte Schiften, ed. a cargo da


Academia de Berlim, 16 voda., Berlim, 1904 e sgs. -Em italiano:
Seritti di estetica, escolha e trad.

da G. Marcovaldi, Roma, 1934; Antologia degli scritti politici, a


cargo de P. SerrN Bolonha, 1961.

236

Sobra Humboldt: E. Spranger, W. v. H. und die Humanitdt~e,


Berlim, 1909; O. 1-la~k, W. V. H., Berliin, 1913; Bins-Wlanger, W. v.
H., Le@pzig, 1937; E. Ho~d, W. v. H., Erlenbach-Zürich, 1944; F.
Schaffs~, W. v. H., Frankfort, a. M., 1956.

237

O ROMANTISMO

§ 538. ORIGENS E CARACTERES DO ROMANTISMO

Com o termo "romantismo", que na sua origem se referia ao


romance de cavalaria, rico em aventuras e amores, pretende-se
indicar o movimento filosófico, literário e artístico que se iniciou na
Alemanha nos últimos anos do século XVIII, teve o seu período de
florescimento máximo, em toda a Europa, nos primeiros decênios do
século XIX, e que constitui o cunho próprio deste século.

O significado corrente do termo "romântico" que significa


"sentimental" deriva de um dos aspectos mais salientes do
movimento romântico, ou seja, o

reconhecimento do valor atribuído por ele ao sentimento: uma


categoria espiritual que a antiguidade clássica havia ignorado ou
desprezado, categoria que

239

o iluminismo de setecentos tinha reconhecido e que viria a adquirir


com o romantismo um valor predominante. Este valor predominante
é a principal herança que o romantismo recebe do movimento do
Sturm und Drang (§ 536) que tinha contraposto o
sentimento, e com ele a fé, a intuição mística ou acção, à razão,
considerada incapaz, nos limites que lhe haviam sido prescritos por
Kant, de alcançar a

substância das coisas ou as coisas superiores e divinas. Mas


propriamente neste sentido, a razão continuava a ser para os
defensores do Sturin und Drang o que era para o iluminismo: uma
força humana finita capaz no entanto de transformar gradualmente
o mundo, mas não absoluta nem omnipotente e por conseguinte
sempre mais ou menos

em contradição com o próprio mundo e em luta com a realidade que


tinha como objectivo transformar.
O romantismo, pelo contrário, nasce quando este conceito de razão
começa a ser abandonado e se passa a entender por razão uma
força infinita (omnipotente) que habita o mundo e o domina, e por
conseguinte constitui a própria substância do mundo. Esta passagem
surge com nitidez em Fichte que identificou a razão com o Eu
infinito ou Autoconsciência absoluta e que constitui a força que deu
origem ao

mundo. A infinitude neste sentido é uma infinitude de consciência e


de potência, mais que de extensão e de duração. Ainda que
diversamente designado pelos filósofos românticos (Fichte chamou-
lhe Eu, Schelling Absoluto, Hegel Ideia ou Razão Autoconsciente). o
Princípio Infinito foi sempre enten240

dido como consciência, actividade, liberdade, capacidade criadora


incessante.

Mas apesar de existir uma base comum quanto às características


apontadas atrás, o Princípio Infinito é interpretado pelos
românticos de dois modos diversos e fundamentais. A primeira
interpretação, mais próxima da ideia do Stunn und Drang, considera
- o infinito como sentimento, como actividade livre, isenta de
determinações ou para além de qualquer determinação, revelando-
se no homem naquelas actividades mais estritamente ligadas com o
sentimento, como seja a religião e a arte.

A segunda interpretação define o infinito como Razão Absoluta que


se move com uma necessidade rigorosa de uma determinação para
outra, de forma que todas as determinações podem ser deduzidas
umas das outras necessariamente e a priori. É esta interpretação
que prevalece nas grandes figuras do idealismo romântico, Fichte,
Schelling e Hegel,ainda que Schelling tenha insistido na presença,
no Princípio Infinito, de um aspecto inconsciente, análogo ao que
caracteriza a experiência estética do homem.

As duas interpretações do infinito foram frequentemente


contraditórias e Hegel especialmente orienta a polé mica contra o
primado do sentimento. Mas até mesmo esse contraste e essas
polémicas constituem um dos traços fundamentais do movimento
romântico na sua complexidade.

Ao romantismo do sentimento pertence corno traço fundamental a


ironia. O conceito de ironia é uma consequência directa do princípio
romântico de que o finito é uma manifestação do infinito. Com

241

efeito, o infinito pode ter infinitas manifestações e

nenhuma delas, segundo os românticos do sentimento, lhe é


verdadeiramente essencial. A ironia consiste em não tomar a sério e
não deixar de refutar, como coisa limitada, as manifestações
particulares do infinito, (a natureza, a arte, o eu, o próprio Deus) na
medida em que não passam de expressões provisórias do mesmo.

Um outro traço do romantismo do sentimento é o primado


reconhecido à poesia, em geral à arte, sobre a ciência, a filosofia e,
em geral, toda a actividade racional. Com efeito, a arte, segundo os
românticos, é a expressão do sentimento; e se o infinito é
sentimento, a sua melhor expressão é, portanto, a arte. Muitos
românticos fazem sua esta tese, a qual adere também Schelling que
vê no mundo a obra de arte do Absoluto e considera a experiência
estética a melhor via de acesso à compreensão do próprio Absoluto.

A outra interpretação fundamental do principio romântico, a que o


considera como infinita Razão, vê na filosofia a mais elevada
revelação da mesma. Foi este o ponto de vista defendido pelas
grandes figuras do idealismo romântico a que dedicaremos os
próximos capítulos. E foi este o ponto de vista que mais fortemente
influenciou toda a filosofia de Oitocentos, mesmo quando o grande
florescimento do primeiro romantismo perde audiência e o
pensamento europeu parece tomar outros caminhos. Com efeito,
manter-se-ão dominantes os caracteres gerais e fundamentais do
romantismo: o optimismo, o providencialismo, o tradicionalismo e o
titanismo.

242

O optimismo é a convicção de que a realidade é tudo aquilo que deve


ser e é, em qualquer momento, racionalidade e perfeição. Com esta
sua

característica, o romantismo opunha-se polemicamente ao


iluminismo, ou seja, à pretensão de transformar a

realidade, de dar lições aos factos. Para o romantismo, a realidade


é tudo aquilo que deve ser, e a

razão não deixa de ser uma potência só em virtude de não se


realizar os factos. Foi por causa desta característica que o
romantismo teve a tendência para exaltar a dor, a infelicidade e o
mal como manifestações parciais e necessárias de uma totalidade
que,

na sua complexidade, permanece pacífica e feliz.

Com o optimismo metafísico se relaciona o providencialismo


histórico do romantismo. Para os românticos, a história é o processo
necessário no qual se manifesta ou realiza a própria Razão infinita,
nada havendo nela, por conseguinte, que seja irracional ou

inútil. Segundo este ponto de vista, a história ou é um progresso


necessário e incessante no qual todos os

momentos superam os anteriores em perfeição e racionalidade; ou


é, na sua complexidade, uma totalidade perfeita cujos momentos
são todos igualmente racionais e perfeitos. Hegel (como mais tarde
Croce) elaborou esta segunda concepção; e contrapõe ao "falso

infinito", que é o infinito da duração ou da extensão ou do


progresso, o "verdadeiro infinito", aquele que se realiza
integralmente em todos os momentos finitos e que, por conseguinte,
têm o mesmo valor do infinito. O outro conceito, o do progresso
necessário e inevitável, surge pelo contrário exterior ao idealismo
em toda a filosofia oitocentis-ta; e um dos seus

243

reflexos é aquele conceito de evolução que, primeiramente


elaborado pela ciência biológica, se estendeu depois a toda a
realidade, surgindo esta como um único e ininterrupto
desenvolvimento progressivo.

Ao providencialismo se liga um outro aspecto do romantismo, o


tradicionalismo. O iluminismo tinha sido uma filosofia crítica e
revolucionária: pretendia libertar-se do passado porque no passado
podíamos descortinar, quase exclusivamente, o erro, o preconceito,
a violência e :a fraude. O romantismo, pelo contrário, reconhecendo
a bondade de todos os momentos da história, regressa ao passado e
exalta-o.
O passado para o romantismo nada tem que deva ser abandonado ou
perdido, contém sim, potencialmente, o presente e o futuro. Por
isso as instituições que o passado criou e transmitiu (o Estado, a
Igreja e tudo aquilo que com elas se relaciona) apaixonam os
românticos como se fossem dotadas de um valor absoluto e
destinadas à eternidade. Desta mesma posição deriva a reabilitação
da Idade Média que o Iluminismo (como o Humanismo) tinha
considerado uma época de decadência e de barbárie, com a
consequente literatura em que a Idade Média é representada de
forma idealizada e sentimental, bastante longe da realidade
histórica. Um outro corolário do tradicionalismo romântico é o
nacionalismo. Ainda que a noção setecentista de "povo" fosse
definida em termos de vontade e de interesse comuns, a "nação" é
defendida em termos de elementos tradicionais como a raça, a
língua, os costumes e a religião. Por outras palavras, o povo consiste
na coexistência dos indivíduos que querem viver em

244

conjunto; a nação refere-se à coexistência de indivíduos que devem


viver em conjunto, de tal modo que o não podem deixar de fazer
sem renegarem ou traírem a sua própria personalidade.
Finalmente, entre os traços mais salientes do romantismo está
ainda o titanismo. O culto e a exaltação do infinito têm como
contrapartida o carácter insuportável de tudo o que é finito. E este
carácter insuportável está na base da rebelião perante tudo o que é
um limite ou uma regra e no des-ako incessante a tudo o que, pela
sua finitude, surge como
incompatível ou inadequado em comparação com o
infinito. Prometeu é assumido pelos românticos como o símbolo
deste titanismo, através de uma interpretação que está muito
afastada do espírito do antigo mito grego, uma vez que tende a
exaltar uma rebelião que é fim de si própria. Os Gregos viam em
Prometeu o titã que paga justamente o castigo de ter rompido com
a ordem fatal do mundo, dando aos homens o uso do fogo e a
possibilidade da sobrevivência. O romantismo, pelo contrário, exalta
em
Prometeu o rebelde à vontade do destino. O titanismo não pretende
que uma situação de facto seja ou possa ser superior ou preferível
a outra; empenha-se antes num protesto universal e genérico que
não pode no entanto traduzir-se em qualquer decisão concreta.

Todos os caracteres acima enumerados e que correspondem ao


espírito romântico, excepto evidentemente aqueles que mais
directamente se referem aos aspectos literários do romantismo
(como seja a
ironia e o titanismo) se encontram no positivismo

HÕDERLIN

245

quando sonha, um mendigo quando pensa", diz Hõlderlin. Só a beleza


lhe revela o infinito; e a primeira filha da beleza é a arte, a segunda
filha é a religião, que é o amor da beleza. A filosofia nasce da
poesia porque só através da beleza está em relação com o

Uno infinito. "A poesia é o princípio e o fim da filosofia. Assim como


Minerva surge da cabeça de Júpiter, também a filosofia surge da
poesia de um ser infinito, divino". "Do simples intelecto não nasce
nenhuma filosofia porque a filosofia é mais do que o não limitado
conhecimento do contingente. Da simples razão não nasce nenhuma
filosofia, porque a filosofia é mais do que a exigência cega de um
infinito progresso na síntese ou na análise de uma dada matéria".
Nestas palavras o princípio do infinito de Fíchte encontra já a sua
crítica e a sua correcção romântica. E em Hõlderlin se encontra
também a outra característica do espírito romântico: a exaltação
da dor. "Não deve tudo sofrer? Quanto mais elevado é o ser maior
o sofrimento. Não sofre a sagrada natureza?... A vontade que não
sofre é sono, e sem morte não há vida". Hiperion acaba por exaltar
a sua própria dor: "õ alma, beleza do mundo, indestrutível,
enfeitiçante! Com a tua eterna juventude existes; mas o que é a
morte e toda a dor do homem? Muitas palavras vãs fizeram os
homens estranhos. Tudo nasce portanto da alegria e tudo termina
na paz". Esta conciliação do mundo que Hegel consegue através da
dialéctica da ideia, consegue-a Hõlderlin com o sentimento da
beleza infinita.

248

SCHLEGEL

§ 540. SCHLEGEL

A criação do romantismo literário, na sua derivação fichtiana, pode-


se distinguir claramente na obra de Friedrich SchIegel (1772-
1829). Depois de uma série de ensaios sobre a poesia antiga,
SchIegel publicava em 1789 uma História da poesia dos gregos e
dos romanos e dava início, no mesmo ano, em colaboração com o
irmão August WilheIra, à publicação do "Atheneum" que foi o órgão
da escola romântica e durou até 1800. Nesta revista foram
publicados os escritos filosóficamente mais significativos de
Schlegel (Fragmentos, 1798; Ideias, 1800; Diálogo sobre a poesia,
1800). Outros Fragmentos de Schlegel haviam sido publicados no
periódico "Lyceum" em
1797. Depois de 1795, nas cartas ao seu irmão Guilherme (Briefe,
ed. Walzel, p. 236, 244), SchIegel pronuncia-se do modo mais
entusiástico sobre a

doutrina de Fichte. E no final do ensaio Sobre o estudo da poesia


grega (1795, mas publicado em

1797) depois de ter delineado três períodos da teoria estética, o


primitivo, dominado pelo princípio da autoridade, o dogmático da
estética racional e empírica, e o crítico, SchIegel reconhece em
Fichte aquele que poderá conduzir a bom termo a estética críflica.
"Depois de Fichte descobrir (afirma ele em Jugendschriften, ed.
Minor, 1, p. 172-73) o fundamento da filosofia crítica, passou a
existir um princípio seguro para rectifficar, completar e levar a
cabo o Plano kantiano da filosofia prática; e deixa de ter
justificação a dúvida sobre a possibifidade de um

sistema objectivo das ciências estéticas, práticas e

249

teóricas". Na verdade, o conceito da poesia romântica, tal como foi


definido por SchIegel, não é mais que a transferência para o campo
da poesia, considerada como mundo em si, do princípio fiffitiano do
infimito. A poesia romântica é a poesia infinita. Ela é universal e
progressiva. "0 seu fim não é o de reunir novamente os géneros
poéticos que se sopararam e de pôr em contacto a poesia com a
filosofia e com a retórica. A poesia quer e deve mesmo misturar,
combinar poesia e prosa, genialidade e

crítica, poesia de arte e poesia ingénua, tornando viva e social a


poesia, poétiica a vida e a sociedade, poetizando a argúcia,
preenchendo e saturando as formas de arte como o mais variado e
puro material de cultura e animando-a com vibrações de humour".
Identificada com o infinito, a poesia absorve em si o mundo todo e
encarrega-se de tarefas que surgem fragmentadas e dispersas nos
váilios aspectos da cultura. "Só ela é infinita, como só ela é livre,
reconhecenJo como sua primeir lei a seguinte: o arbítrio do poeta
não suporta lei alguma" (Fragm., 116). A poesia transfigura o homem
no infinito e no eterno; por isso a sua função é essencialmente
religiosa. À volta deste tema, o da religiosidade da poesia, se
debate o ensaio Ideias. "Toda a relação do homem com o infinito é
religião, acto do homem em

toda a plenitude da sua humanidade". Se o matemático calcula o


infinitamente grande, não quer dizer que isso seja religião. Só o
infinito pensado com aquela plenitude é a divindade" (Ideen, 81).
Mas "só pode ser artista aquele que tem unia religião, uma intuição
original do infinito" (1b., 13); por isso o

250

artista verdadeiro é também o verdadeiro mediador religioso do


género humano. "Mediador é aquele que exorta em si o divino,
sacrificando-se e apagando-se para anunciar esse mesmo divino,
para o participar e representar a todos os homens por meio dos
costumes e das acções, com palavras e com obras. Se este impulso
não existe, então é porque o que foi exaltado não era divino ou não
era particularmente forte. Ser mediador entre o humano e o divino
é tudo quanto de mais superior pode haver no homem; e todo o
artista é mediador entre o divino e todos os outros homens" (Ib.,
44). A ideia de infinito reúne a poesia, a filosofia e a religião de
modo tal que nenhuma destas actividades pode subsistir sem a
outra. "Poesia e filosofia são, conforme se entender, esferas e
formas diferentes ou ainda factores da religião. Com efeito, tentai
reuni-las verdadeiramente: não obtereis senão religião" (Ib.,
46). No Díálogo sobre a poesia a própria filosofia de Espinosa é
considerada como expressão de um sentimento verdadeiramente
poético, o sentimento ida divindade do homem. A separação entre o
que é eterno e o que é individual e simples, própria do espinosismo,
é, segundo SchIegel, o ponto de partida da fantasia poética; e a
nostalgia do divino, a

grandeza calma da contemplação, que são os traços do sentimento


espinosiano, constituem "a centelha de toda a poesia".

No mesmo Diálogo, o romântico é definido como "o que representa


uma matéria sentimental numa

forma fantástica", definição em que se entende por sentimental


sobretudo o movimento espiritual do

251

amor, que é "uma substância infinita" e perante a mesma, tudo o que


o poeta pode abarcar "é apenas um sinal do que mais alto, infinito e
hieroglífico existe no único e eterno amor: a sagrada plenitude de
vida da natureza criadora". O sentimento implica, portanto, uma
outra coisa que caracteriza a tendência da poesia romântica:
indistinção entre aparên- cia e verdade, entre o sério e o jocoso.
Numa palavra, implica e justifica a ironia. "A ironia, afirma
SchIegel (Ideen, 69), é a clara consciência da agilidade eterna, do
caos infinitamente pleno": palavras que implicam, nitidamente, o
infinito como indefinido e como movimento no indefinido. "Uma ideia
é um conceito levado até à ironia, uma síntese absoluta das sínteses
absolutas, a contínua alternância auto-geradora de dois
pensamentos em conflito entre si". A ideia não permanece confinada
à esfera do ideal, mas implica o facto. No entanto, isso implica
também uma liberdade absoluta perante o facto, e esta absoluta
liberdade é a ironia. "Transferir-se arbitrariamente ora para esta,
ora para aquela esfera, como para um outro mundo, não apenas com
o intelecto e com a imaginação, mas com toda a alma; renunciar
livremente ora a esta, ora àquela parte do próprio ser, e limitar-se
completamente a uma outra; aproximar-se e encontrar o próprio
uno e o todo, ora neste, ora naquele indivíduo, e olvidar
voluntariamente todos os outros: isto só pode ser conseguido por
um espírito que contenha em si como que uma pluralidade de
espíritos e todo um sistema de pessoas, e em cujo íntimo o universo,
que como se diz, está em germe em todas as mónadas, se desen252

volveu e alcançou toda a sua maturidade" (Fragm.,


1211). Aquilo que em Fichte era a liberdade do princípio infinito é
em Schlegel o arbítrio absoluto do génio poético. Face a todas as
suas criações, o génio poético mantém a sua posição irónica e
recusa-se a Tomá-la a sério: porque sabe que elas são finitas, logo
irreais, e que a realidade é ele próprio, o génio, ou a actividade
infinita que se manifesta no seu arbítrio.

O romantismo foi nestes termos a aspiração dos anos de juventude


de SchIegel; depois da morte de Novalis, começou a aproximar-se
do catolicismo até acabar por fazer da sua filosofia uma defesa da
revelação, da Igreja e do Estado. Nas Lições sobre a filosofia da
vida (1828) e nas Lições sobre a filosofia da história (1829),
SchIegel reconhece como princípio do saber a revelação que Deus
faz de si no mundo da natureza, no mundo da história, e nas
Sagradas Escrituras. A unidade do finito e do infinito aparecia em
SchIegel, nesta última fase da sua especulação, entendida como
revelação no infinito; e este conceito acabaria por adquirir, no
posterior desenvolvimento do espírito romântico, uma importância
cada vez maior.

§ 541. ROMANTISMO: NOVALIS

Juntamente com Frederico Schlegel, Tieck e Novalis são os arautos


do romantismo literário. Ludwig Tieck (1773-1853) foi poeta e
literato e representou nas personagens dos seus romances o
espírito do romantismo. No seu William Loveel, a ironia encontra a
sua mais perfeita incarnação. "Nós somos,

253

afirma, o destino que rege o mundo. Os seres existem porque nós os


pensamos; a própria virtude é apenas um reflexo do meu sentimento
interior (Werke, VI, p. 178). Esta concepção do homem como um
mago invocador do mundo, criador e

destruidor da realidade, encontra a sua melhor expressão na obra


de Friedrich von Hardenberg, Novalis (1772-1801). Num romance,
Heinrich von Hofterdingen, num outro romance incompleto, os
discípulos de Sais, e nos Fragmentos, alguns publi- cados no
"Atheneum", este sonhador que morreu tísico aos 29 anos celebra
com palavras entusiásticas o poder infinito do homem sobre o
mundo. Como SchIegel, Novalis parte também de Fichte; mas
recusa-se a reconhecer ao não-eu. qualquer poder sobre o eu. "Aos
homens, afirma Novalis (Schriften, ed. Heiborn, 1, p. 385), nada é
impossível: eu posso aquilo que quero". Na raiz do mundo existe a
força criadora da vontade divina, e o homem pode e deve coincidir
com ela. Esta coincidência é a fé. "Toda a crença é maravilhosa e
milagrosa. O próprio Deus existe no momento em que creio nele.
Com a crença podemos em qualquer momento produzir, para nós e
também para os outros, o milagre da criação" (lb., p. 571). Este
milagre pode realizar-se através dos sentidos, que são apenas
modificações do órgão do pensamento, do elemento absoluto em

que se origina a realidade. O pintor tem já, em

certo grau, o seu poder no olhar, o músico no ouvido, o poeta na


imaginação, o filósofo no pensamento. Mas estes génios particulares
devem unir-se: o génio deve ser total e passar a ser dono do próprio
corpo

254

e também do mundo (1b., p. 176). Com efeito, para Novalis o mundo


é "um índice enciclopédico e sistemático do nosso espírito, uma
metáfora universal, uma imagem simbólica daquele" (Ib., p. 142). O
mundo tem, por conseguinte, uma capacidade originária de ser
vivificado pelo espírito. "0 mundo é vi,v~o por num a priori, faz
comigo uma só

coisa, e eu tenho uma capacidade originária para vivificai-lo" (lb., p.


315). Esta vivificação do mundo é a transformação do sistema da
natureza no sistema da moral, transformação que pertence ao
homem. "0 sentimento moral, afirma Novalis (1b., 11, p. 375), é em
nós o sentimento do poder absoluto de criar, o da liberdade
produtiva, da personalidade infinita do microcosmos, da divindade
propriamente dita que em nós existe".

Este dilatar-se do homem no sentido do infinito, este seu


transformar-se em vontade divina criadora da natureza e
omnipotente, é o fundamento do idealismo mágico de Novalis. Mago
é pois aquele que sabe dominar a natureza até ao ponto de colocá-la
ao serviço dos seus fins arbitrários. Este é o ponto que o homem
pode atingir, segundo Novalis, através da poesia. E que o pode
atingir, demonstra-o a

matemática. Novalis vê na matemática a explicação do poder


infinitamente criador do pensamento. Ela é a própria vida divina; é
portanto religião: Mas acima de tudo é arte porque é "a escola do
génio". Se a matemática encontra limites ao seu poder, é porque
nela entra o saber, e a actividade criadora cessa com o saber. A
poesia é uma matemática que não tem limites e é por conseguinte
uma arte infini255

tamente criadora. Só ela, segundo a imagem dos Discípulos de Sais,


consegue levantar o véu de Iside e penetrar no mistério. A própria
filosofia não é mais que a teoria da poesia: serve para demonstrar o
que ela é e como é o uno e o todo (Ib., 11, p.
89-90). Tratar a história do mundo corno, história dos homens,
descobrir por toda a parte e apenas factos e relações humanas, é
uma ideia que deve estar presente; a própria causalidade da
natureza se liga quase de per si à ideia da personalidade humana, e
a natureza torna-se mais compreensível quando considerada como
um ser humano. Por isso x poesia foi sempre o instrumento favorito
do verdadeiro amigo da natureza, e na poesia surge com maior
clareza toda a espiritualidade da natureza (lb., 1, p. 215). Esta
animização da natureza é, como se vê, o princípio da magia; e o
idealismo de Novalis é na verdade um idealismo mágico, mas só no
sentido de que a magia é a própria poesia. Nestas teses tão
ingenuamente extremistas, o princípio do infinito surge em toda a
sua força, se bem que arrancado à necessidade dialéctica que o
limitava na expressão racional que tinha encontrado em Fichte.
§ 542. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER

O carácter religioso do romantismo revela-se de forma típica na


obra de Friedrich Daniel Ernst SchLeiermacher, que foi amigo de
SchIegel e colaborador do "Atheneum". Schleiermacher nasceu em
Breslavia a 21 de Novembro de 1768 e estu256

dou teologia em Hafi, e. Em BePlirn, onde era pregador, conheceu,


no salão de Henriette Herz, mulher de Marcus Herz, o discípulo de
Kant, Friedrich SchIegel, com quem se ligou de amizade e entrou
para o grupo romântico. Em 1799, publicou o seu primeiro trabalho,
Discursos sobre a religião, a que se seguiram em 1800, os
Monólogos. No mesmo ano de 1800 publicava as Cartas
Confidenciais sobre o

romance de SchIegel, Lucinda, em que sustentava de acordo com


SchIegel, a unidade do elemento espiritual e do elemento sensível
no amor, e daí o carácter sagrado e divino deste sentimento. Estas
ideias, e talvez a relação, ainda que puramente espiritual, com a
mulher de um colega, Eleanore Grunow, fizeram com que fosse
obrigado (em 1802) a deixar Berlim. Em 1903 publicava a Crítica da
doutrina moral; no ano seguinte foi designado professor de teologia
e filosofia em Halle: neste período leva avante e termina a tradução
dos diálogos de Platão e de alguns estudos platónicos. Em 1810, com
a fundação da Universidade de Berlim, passa a ser professor de
teologia nesta Universidade até morrer, em 12 de Fevereiro de
1834. Em 1821-22, publicava a sua maior obra teológica, A fé cristã.
Depois da sua morte foram publicados os cursos

de filosofia que deu em Halle e em Berlim, cursos que comprendem


uma História da filosofia, uma

Dialéctica, uma Ética, uma Estética, uma Doutrina do Estado e uma


Doutrina da Educação.

As investigações de Dilthey sobre as cartas e manuscritos de


juventude (inéditos) de Schleiermacher vieram trazer luz sobre as
primeiras orientações

257

do seu pensamento. A primeira atitude de Schleiermacher foi a de


um marahsmo crítico e circunspecto: mantinha o ponto de vista
kantiano da limitação da consciência ao mundo da experiência e da
moralidade autónoma, mas recusava-se a aceitar as integrações
metafísicas e religiosas que o próprio Kant tinha dado ao seu ponto
de vista. Assim, sustentava ser impossível qualquer acesso ao supra-
sensível, mesmo pela via da moralidade e contrária à pureza da vida
moral a crença numa recompensa extra-terrena. A leitura das
Cartas sobre Espinosa de Jacobi, e em seguida, das obras de
Espinosa, veio produzir uma alteração no seu pensamento
encaminhando-o na direcção desse princípio do infinito que viria a
dominar depois a Doutrina da ciência de Fichte. De início
Schleiermacher opõe-se ao racionalismo de Fichte; mas o princípio
fichtiano do infinito foi por ele utilizado como fundamento de uma
doutrina da religião, que exprime o mesmo

ideal da escola romântica. Esta doutrina influenciou fortemente o


protestantismo alemão e anglo-saxónico e constitui
indubitavelmente uma das soluções típicas do problema religioso no
mundo moderno.

§ 543. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A DOUTRINA DA


RELIGIÃO

Schleiermacher preocupa-se, antes de mais, em


estabelecer a autonomia da religião perante a filosofia. e a moral. A
religião não aspira a conhecer e a explicar o universo na sua
natureza, como faz a metafísica; não aspira a continuar o seu
desenvolvimento e a aperfeiçoá-lo mediante a liberdade e a vontade

258

do homem, como faz a moral. A sua essência não é nem o


pensamento nem a acção, mas a intuição e o sentimento. A religião
aspira a intuir o universo na forma do sentimento. A filosofia e a
moral, do universo não vêem senão o homem; a religião no homem,
como em todas as outras coisas particulares e finitas, não vê senão
o infinito (Reden, 11, trad. ital., p. 36). A religião não é mais que o
sentimento do infinito. Segundo este ponto de vista,
Schleiermacher vê em Espinosa a mais elevada expressão da
religiosidade. "0 sublime espírito do mundo penetrava nele, o
infinito era o seu princípio e o seu fim, o universo o seu único e
eterno amor" (1b., p. 38-39). No entanto ele distingue-se de
Espinosa ao sustentar que a expressão necessária do infinito é
apenas o

sentimento. Resolver o finito no infinito, considerar todos os


acontecimentos do mundo como acções de Deus, é religião. Mas
gastar-se o cérebro procurando provas sobre a existência de Deus,
anterior e exterior ao mundo, é coisa que está para lá da religião.
Esta está necessariamente conexa com a forma do sentimento
porque só o sentimento nos pode revelar o infinito. A infinitude na
religião é a infinitude no sentimento. "A religião é infinita não só
porque as acções e as paixões, ainda que através da mesma matéria
finita e do espírito, mudam infinitamente, não só porque é por
demais indeterminável no interior como a moral, mas é também
infinita e na sua forma, no seu ser, na visão e na ciência em todos os
lados; é um infinito na sua matéria e na sua forma, no seu ser, na
visão e na ciência que nela existem" (lb., p. 43). Por meio desta
infi259

nitude, a religião descobre-se e reconhece-se na história, mas na


história enquanto tende a progredir para além da própria
humanidade, na direcção do infinito. A humanidade tem com o
universo a mesma relação que cada um dos homens tem com aquela:
é uma forma particular, uma modificação individual do todo. Como
tal, é apenas um anel intermédio entre o indivíduo e o Uno, uma
etapa na via que conduz ao infinito. Por isso todas as religiões
apontam para algo que está fora e acima da humanidade, para algo
de incompreensível e de inexprimível. Segundo este ponto de vista,
o milagre e a revelação perdem a sua importância. Estas palavras
apenas implicam uma referência entre certo fenómeno e o infinito,
são os nomes que as religiões dão àquilo que, fora da religião, se
chamam factos. Do ponto de vista da religião, tudo é milagre e
revelação; mas por isso nada o é de forma especial. Schleiermacher
combate no entanto o princípio de que "som Deus não há religião":
de Deus e da sua existência pode-se falar no âmbito de uma
particular intuição religiosa; mas todas as especiais intuições
religiosas implicam a religião. "Deus não é tudo na religião, é uma
parte, e o universo, representa nela mais que Deus". Assim a
imortalidade individual não é uma aspiração religiosa; há-de ser
sempre uma aspiração ao infinito, a sair, por conseguinte, dos
limites da individualidade finita e a renunciar a uma vida miserável.
"Tornar-se-á uma só coisa com o infinito, e estar no entanto no
finito, ser eterno num momento do tempo, tal é a imortalidade da
religião" (1b., p. 86).

260

Da aspiração ao infinito, que constitui a religião, nasce a tendência


para a comunicação e daí a existência da organização eclesiástica. O
sentimento do infinito toma o homem capaz de poder abarcar
apenas uma pequena parte, e leva-a o perceber através da mediação
dos outros aquilo que ele não pode perceber imediatamente. A
organização desta recíproca comunicação é a igreja, a sociedade
religiosa, que nenhum indivíduo pode abarcar na totalidade que, pela
sua complexidade, é tanto quanto a religião, a religião infinita, que
nenhum indivíduo pode abarcar na sua totalidade e na qual ninguém
pode ser educado ou criado (lb., IV, p. 125). A infinidade da religião
explica e justifica a diversidade de religiões. A religião infinita não
pode existir senão na

medida em que todas as infinitas intuições religiosas são reais, e


reais na sua diversidade e na sua recíproca independência. Todo o
indivíduo tem a sua religião; e esta pode integrar-se mais ou menos
nas religiões já estabelecidas. E ainda que permaneça obscura a
intuição de um indivíduo, é todavia sempre um elemento da infinita
religiosidade universal (1b., V, p. 173-74). Mas já não é religião, a
religião natural do iluminismo, que é demasiado genédea e

descarnada, e cuja substância não passa da polémica contra o


elemento positivo e característico da religiosidade.

Podemos ver como a lógica intrínseca do princípio do infinito leva


Schleiermacher, no domínio da religião, a uma conclusão análoga a
que o mesmo princípio tinha levado Hegel no domínio da realidade
em geral. A conclusão é a justificação do finito,

261

Dão enquanto finito, mas enquanto é, na sua substância, infinito.


Todas as manifestações singulares igualmente se justificam porque
exprimem todas o
sentimento do infinito e constituem no seu conjunto a religião
infinita. Mas enquanto que para Hegel o infinito é razão, ainda que
absorvendo e anulando a individualidade, para Schleiermacher o
infinito é sentimento e daí exaltar a individualidade. O romantismo
está destinado a oscilar entre a negação da individualidade e a sua
exaltação, ignorando o equilíbrio da fundação da própria
individualidade. Os Monólogos de Schleiermacher (como os
Fragmentos de Novalis) constituem neste ponto a exaltação
religiosa da individualidade. " Cada homem, afirma ele "Mon., II,
trad. ital. p. 231), está destinado a

representar a humanidade de um modo que lhe é próprio, mediante


uma combinação original dos seus elementos, de forma a que aquela
se possa revelar de todas as maneiras e tudo o que pode derivar do
seu seio possa realizar-se na plenitude de um tempo e de um espaço
ilimitados". A variedade dos indivíduos é necessária à infinita vida
da humanidade, porque é a realização da mesma. "Tornar-me cada
vez mais naquilo que sou, esta é a minha vontade". Mas tornar-me
naquilo que sou significa ser infinitamente livre, e o poder tudo
arrasta consigo uma

consequência: não se ser o próprio. "A única impossibilidade de que


tenho consciência é a de transcender os limites que ponho à minha
natureza com o primeiro acto da minha liberdade". Em razão deste
limite intrínseco, determinado pela escolha originária de si próprio,
o homem pode tudo. Aquilo

262

que a realidade lhe recusa, concede-lhe a fantasia. "Oh, se os


homens soubessem usar esta divina faculdade da fantasia, que pode
libertar o espírito e
colocá-lo acima de todas as limitações e de todas as coacções, e
sem a qual a vida do homem é tão mesquinha e angustiante!" (1b., p.
268). E deste modo, o poder e a infinita liberdade do homem se
transformam em evasão, tipicamente romântica, do mundo e da
realidade, no mundo da fantasia, do romance e da fábula.

Vimos como as diversas religiões todas se justificam porque todas


no seu conjunto constituem a

religião infinita. Schleiermacher distingue três tipos diferentes de


religiões, que são determinados por três diversas intuições do
mundo. A primeira é aquela com que o mundo é um caos e na qual
portanto a divindade surge representada ou numa

forma pessoal como fetiche ou numa forma impessoal como um


destino cego. A segunda é aquela em que o mundo surge
representado na multiplicidade dos seus elementos e das suas
forças heterogéneas, e a divindade é concebida ou sob a forma de
politeísmo (religião greco-romana) ou como reconhecimento da
necessidade natural (Lucrécio). A terceira forma é aquela em que o
ser surge representado como totalidade e unidade do múltiplo, e a

consciência da divindade assume a forma de monoteísmo e de


panteísmo. Esta última forma é a mais elevada, e os homens tendem
a alcançá-la através da história. O judaísmo e o cristianismo são
considerados por, Schleiermacher como manifestações superiores
de religiosidade. A ideia central do judaísmo

263

é a de "uma retribuição universal imediata, de urna


reacção automática do infinito contra qualquer facto particular
finito que derive do livre arbítrio, por meio de um outro facto finito
não considerado como derivando do livre arbítrio".

A ideia central do cristianismo é pelo contrário "a intuição da


oposição geral do finito contra a unidade do todo e do modo como a
divindade trata esta oposição, do modo como reconcilia a inimizade
contra si e põe ter-mo ao afastamento cada vez maior de si
mediante pontos particulares, disseminados por toda a parte, e que
são no seu conjunto algo de infinito e de finito, de humano e de
divino". O cristianismo tende a intuir o infinito na religião e na sua
história, e por conseguinte, faz da própria religião a matéria da
religião. Ele é essencialmente porque impele continuamente os
homens para o infinito e para o eterno. Jesus é portanto o mediador
da reconciliação do finito com o infinito. A unidade da natureza
divina e da humana existente nele é a própria unidade que a religião
realiza entre o finito e o infinito. Sendo superior a todas as outras
religiões, o cristianismo não está todavia, segundo Schleiermacher,
destinado a observar as outras e a tornar-se a única forma de
religião. "Assim como não há nada de mais irreligioso que existir
uniformidade na humanidade em geral, também nada existe de
menos cristão que procurar uma uniformidade na religião". O
desenvolvimento da vida religiosa exige liberdade, e por
conseguinte, a separação da Igreja e do Estado.

264

SCHLEIERMACHER

§ 544. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A DIALÉCTICA

Do sistema filosófico que Schleiermacher expõe nos seus cursos


universitários e que deixou inédito, as partes mais vivas são a
Dialéctica e a Ética. MEW Ir, 1=. MP-- é a de

1822) mostra, por um lado, uma subentendida intenção polémica


contra a lógica de Hegel, por outro uma tentativa de reconduzir
esta disciplina ao seu originário significado platónico. O estudo
dedicado de Platão devia ter sugerido a Schleiermacher esta
tentativa, cujos pontos principais são os da refutação do princípio
hegeliano da identidade do pensamento e do ser. A dialéctica surge
definida por Schleiermacher como a "arte de conduzir um discurso
de forma a suscitar representações que sejam baseadas apenas na
verdade" (Dialektik, od. Oderbrecht, p.
48). Neste sentido, a dialéctica é mais extensa que a filosofia
porque as suas regras têm valor para qualquer objecto,
independentemente do seu conteúdo filosófico. Mas por outro lado,
a filosofia, na medida em que se ocupa imediatamente dos princípios
e da coerência do saber, é necessária à dialéctica e condiciona-a em
todos os campos. O carácter que assinala a dialéctica moderna
perante a antiga é o da sua religiosidade. Para a dialéctica moderna
a unidade e a totalidade do saber só é possível em conexão com a
consciência religiosa de um ser absoluto (1b., p. 91). Uma tal
consciência é pressuposto originário da dialéctica, que deve partir
de uma situação de diversidade e de conflito das representações
entre si

265

e que deve alcançar a unidade e a coerência das representações.


Mas para prosseguir do seu ponto de partida até ao seu ponto final,
da multiplicidade à unidade, do conflito à coerência, deve pressupor
um saber originário e regras de combinação originárias, que devem
ser admitidas como interiores em todos os homens e que a própria
dialéctica deve esclarecer e trazer à luz.
Com um tal fundamento a dialéctica tem como fim a construção de
todo o saber na sua coerência. Neste objectivo está implícita a
eliminação de todo o conflito e a unificação do saber fragmentário
num todo coerente. Schleiermacher divide por isso a dialéctica em
duas partes: a parte transcendental que diz respeito ao saber
originário que é o guia e a norma da construção do saber, e a parte
formal que diz respeito a esta mesma construção, ou seja, as
operações de divisão e de unificação do pensamento.

O transcendental é entendido como condição do processo


dialéctico, como saber originário que o encaminha e constitui a
norma. Mas o saber possui duas características, uma subjectiva,
outra objectiva: é produto comum da razão humana por um lado, e
do organismo humano, por outro. A oposição entre estes dois pólos
(entre o material orgânico das impressões e a forma da razão) é a
oposição entre o real e o ideal. O ser como objecto do pensamento,
enquanto está ou pode estar presente em nós através da função
orgânica, é o real. O pensamento é o próprio processo a - través do
qual o ser se torna interior no que pensa, é o ideal. Ideal e real
constituem a

266

unidade do ser (Id., p. 177). Tempo e espaço estão entre si como


ideal e real: o ser ideal é o próprio conceito do tempo concreto, tal
como o ser real é o conceito do espaço concreto.

Como se disse, o saber originário deve ser de qualquer modo a


unidade destes dois pólos. Esta unidade é o sentimento (Gefühl)
como autoconsciência imediata. Schleiermacher considera o
sentimento como identidade do pensar e do querer. Todo o
pensamento, considerado como um acto ' se relaciona com um
querer porque é sempre vontade de discurso e de comunicação com
outros; e todo o querer, se é claro e determinado, tem na sua base
um claro e determinado pensamento (Ib., p. 126), Mas a identidade
do pensar e do querer é uma

contínua passagem de um ao outro, e esta passagem é a pura


autoconsciência imediata ou sentimento (lb., p. 287). Enquanto é
imediatidade, o sentimento distingue-se do eu, que é
autoconsciência reflexa. Enquanto unidade ou coerência e superação
de oposições, o sentimento refere-se ao Ser absolutamente uno e
coerente que está na base de todo o outro ser. Esta referência é
particularmente clara no sentimento religioso, no qual o fundamento
transcendente ou ser

supremo encontra a sua representação mais elevada.


O sentimento religioso é o sentimento de independência do finito
em relação ao infinito, do condicionado em relação ao
incondicionado, ou seja. do ser dilacerado e eternamente em
conflito em relação ao ser uno e perfeitamente coerente (1b., p.
298 sgs.). o sentimento religioso é o reflexo do Ser.
Schleiermacher recusa a tese hegeliana (sem

267

referir expressamente) de que a mais alta representação do


fundamento transcendente do ser seja a filosofia. Mas, por outro
lado, também se recusa a subordinar a actividade especulativa à
religião. As duas actividades são complementares, porque a
autoconsciência ou sentimento imediato não existe por si, é sempre
condicionada pelas duas outras funções do pensar e do querer. A
autoconsciência não subsiste na sua pureza, daí a sua
impossibilidade de realizar a pura representação do fundamento
transcendente, porque é sempre autoconsciência finita, deve
encontrar o seu complemento nas funções finitas do pensar e
do querer. A análise da autoconsciência como tal é a doutrina da fé:
mas dada a natureza da autoconsciência, esta doutrina jamais
consegue alcançar o fundamento transcendente e acaba por cair
sempre no antropomorfismo. "Em todas as doutrinas da fé, sejam
monoteístas, sejam poiliteístas, domina uma mescla inextrincável do
fundamento transcendente e de uma analogia com a consciência
humana. Este antropomorfismo tem o seu fundamento na
consciência do finito com o qual a autoconsciência se encontra
misturada" (1b., p. 296-297). Quanto à natureza do fundamento
transcendente, este tem um valor duplo: um valor real enquanto
ideia do mundo, totalidade do ser, que pode assumir ou a forma de
conceito (força absoluta e plenitude absoluta dos fenómenos) ou a
forma de juizo (sujeito absoluto e absoluta multiplicidade dos
predicados); e

um valor aproximativo e simbólico, enquanto exprime o próprio


fundamento transcendente, ainda que nunca de forma adequada
(sentimento ou autoconsciência).

268

Daqui resulta que o fundamento transcendente pode assumir ou a


forma da ideia de Deus ou a forma da ideia do mundo: mas qual é a
relação entre estas duas ideias? Schleiermacher recusa-se a
estabelecer uma relação de dependência, que está implícita no
conceito de criação. "Não há Deus sem

mundo, como não há mundo sem Deus", diz ele (1b., p. 303).
Lógicamente poder-se-ia dizer que Deus é "unidade com exclusão de
toda a oposição", mas

esta fórmula deixaria de fora o x porque o mundo não pode existir


sem Deus e Deus sem o mundo. Com efeito, se Deus tivesse
preeminência sobre o mundo é porque haveria nele algo que não
concUdonaria o mundo; e se o mundo tivesse preeminência sobre
Deus é porque haveria naquele algo que não estava condicionado por
Deus. A conclusão é de que a

ideia do mundo e a de Deus devem estar sempre conexas; e só nesta


conexão valem como fundamento transcendente e por conseguinte
como norma absoluta do saber. A ideia do mundo é o terminus ad
quem do saber que procura adequar-se àquela no seu

infinito processo. A ideia de Deus é o terminus a quo do pensamento


que deve reconhecer como fundamento toda a realidade temporal e
espacial um

ser eterno. "0 fundamento transcendente permanece sempre fora


do pensamento e do ser real, ainda que seja o fundamento
transcendente de ambos. Por isso não pode existir outra
representação desta ideia que não seja a da imediata
autoconsciência: em ambas as formas da função do pensamento,
aquela jamais poderá ser alcançada, nem como terminus ad quem
nem como terminus a quo" (Ib., p. 307).

269

Nesta parte transcendental da dialéctica, Schleiermacher


pretendeu determinar a primeira condição do saber humano e
reconheceu-a num fundamento transcendente que surge
representado, na sua forma mais adequada, pelo sentimento. Depois
de longa explanação, acaba por confirmar assim a tese fundamental
dos Discursos e dos Monólogos; mas esta tese adquire também uma
limitação importante. Se o sentimento religioso ou autoconsciência
é a unidade do finito com o infinito, ela só é na forma do finito, e
não

do infinito. A polémica com Hegel levou-o provàvelmente a esta


limitação. A dialéctica de Schleiermacher não conduz, corno a de
Hegel, à dissolução do finito, mas antes à determinação de uma
representação finita, religiosa, do infinito. Daí a definição do
sentimento religioso como sentimento de dependência.

A parte formal da Dialéctica considera o pensamento no seu devir,


o pensamento em movimento, enquanto se socorre da ideia de
mundo e de Deus como d-. um princípio construtivo do saber. Esta
parte da Dialéctica subdivide-se em duas outras partes que são: a
construção de um pensamento em si e por si através de conceitos e
juízos; a combinação de um pensamento com outros pensamentos,
através da eurística e da arquitectónica. A eurística é a combinação
com o exterior de um pensamento dado com outros pensamentos
dados; a arquitecitóritica é uma combinação com o interior, é a
redução de uma multiplicidade à unidade, a construção de uma
ordem. Esta segunda parte da Dialéctica de SchIeier270

macher teve uma influência importante nas pesquisas lógicas e


gnoseológicas dos neo-kantianos.

§ 545. ROMANTISMO: SCHLEIERMACHER: A ÉTICA

A ética de Schleiermacher é de inspiTaÇão kantiana: move-se no


âmbito do finito e precisamente na posição entre o ser espiritual e
o ser natural, o primeiro interpretado como ser cognoscente, o
segundo como ser conhecido (Ethik, ed. Schiele, p. 8). A actividade
ética é a que tende a superar esta <>p~o e a realizar a unidade.
Consiste na acção da razão, no sentido de produzir a unidade da
natureza e do espírito que sem esta acção não seria possível; ela é
ao mesmo tempo uma acção da razão sobre a natureza e traduz-se
numa naturalização, sempre iniciada e nunca totalmente conseguida,
da própria razão. Daqui resulta que a pura razão e a vida puramente
espiritual ou santa não entram no domínio da ética, que apenas diz
respeito à razão natural e à vida

que luta sobre a terra (1b., p. 15). Segundo este ponto de vista a
antítese, recolhida em Kant, entre natureza e liberdade, atenua-se
até desaparecer. "No domínio do ser, tudo é ao mesmo tempo livre e
necessário: livre enquanto há identidade e unidade de forças e
manifestações; necessário, enquanto forças e manifestações se
distinguem" (1b., p. 18). Esta conexão entre

liberdade e necessidade veriflica-se no próprio campo da ética, que


por isso não se opõe como domínio da liberdade ao domínio da
necessidade natural.

271

Schleiermacher admite um paralelelismo perfeito entre a física e a


ética. A ética é a representação do ser

finito sob o poder da razão, a física a representação do ser finito


sob o poder da natureza: a oposição é apenas relativa ao ser finito,
mas absolutamente, ou seja, no completo desenvolvimento das duas
ciências, a

ética é física e a física é ética (1b., p. 6 1). Daqui não deriva no


entanto uma anti-razão, um antideus,

e a oposição entre o bem e o mal é sempre relativa. "0 bem e o mal,


afirma Schleiermacher (Ib., p.
63), não exprimem mais que os factores positivos e negativos no
processo de unificação entre a natureza
e a razão, e por isso não podem ser compreendidos senão através da
pura e completa representação desse processo".

Como já acontecera nos Monólogos, Schleiermacher defende na


Ética o valor da personalidade individual. A razão existe apenas na
forma da personalidade; por isso "a razão que se encontra
completamente unida à personalidade é a força elementar de que
resulta o processo ético em toda a sua totalidade" (Ib., p. 67). A
ética pode ser considerada segundo três pontos de vista que são
também aqueles sob os quais ela sempre se apresentou
historicamente, como doutrina, do bem, doutrina da virtude e
doutrina do dever. O bem supremo é a unificação total da natureza
com a razão, e os bens particulares são os resultados desta
unificação. A virtude é a

função da natureza humana que se tornou força racional. O dever é


o conceito da acção moral. A acção da razão sobre a natureza pode
ser ou organizadora e formativa ou simbólica. No primeiro

272

caso dá lugar ao domínio das relações comerciais e

sociais, no segundo caso ao domínio do pensamento e do sentimento.


Assim surgem as quatro éticas fundamentais: direito, sociabilidade,
fé e revelação; a que correspondem os quatro organismos éticos:
estado, sociedade civil, escola e igreja, ~smos que têm na família o
seu princípio comum. A tude aparece considerada em
Schleiermacher o ponto de vista da intenção e o da e os deveres
aparecem divididos em amor e deveres de direito. deveres .'Á
Z~
e deveres de consciência- Mas estas &~,a o" sificações puramente
escolástica de Schleiermacher não apresentam senão um escasso
interesse.

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 5,38. sobre o romantismo: R. Haym, Die romantische Schule,


Berlim, 1870, 4.a ed. ao cuidado de
O. Walzei, 1920; J. H. Schlege@l, Die Neuc RonwntW in ihreM
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Accolti Gil VItale, Milão, 1947; O. WaJzel, Deutsche Romantik,
trad- ital. Sa,ntoli, Florença, s. d.; A. ParinClUi, II romant~O in
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Romantischen, Gothen, 1921; G. stefansky, Das Wesmi der
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273

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1822; Briefe, ed. Walzel, Berlim, 1890; Neue philos. Schiften, ed.
Kurner, Frankfurt, 1935; Fragmenti critici e scritti di estetica,
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1907; 1 discepolí di Sais, trad. de Alfero, Lanciano,
1912; Fram77wnti, tra@d. Prezzolini, Laneiano, 1922; Frammmti,
trad. Prezzolini, Lanciano, 1922; Frammenti, trad. integ. de E. Paci,
Milão, 1948. - Dilthey, Die Erlebnis und die Dichtung, cit.; E. Spenlé,
Novalis, essai sur Vídéalisme romantique en Allemagne, Paris, 1904.

§ 542. SchIetermacher, Werke, Berlim, 1835-64, dividida em três


partes: Escritos teológicos, Prédicas e Escritos filosóficos, este
últinio compreendendo 9 vo!s.; Grun4riss der philosophischen Ethik,
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1911; Dialektik, ed. Odebrecht, Leipzig, 1942; Discorsi sulla
religione e monologhi, trad. Durante, Morença,
1947.

Dilthey, Leben Schl.s Berlim, 1870; Selú., in "AlIge- ~e


deutseh@ Biographie", XXXI, 1890.

§ 543. Troeltseh, Titius, Natorp, Hensel, EcIr, Rade, Sch1. der


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§ 544. Weissenborn, Vorlesungen über Sch.s Dialektik und


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wissenschaftliche Theologie", 1869.
274

§ 545. Heinrich, Sch.s ethische Grundgedanken,


1890; Ungem Stemberg, Frei7?,eit und Wirklichkeit, Schl.s
Philosophie, 1931; Odebrer-ht, Sch1.s System der Aesthetik, 1931;
Croce, Storia delllestetica per saggi, Paris, 1942.

275

íND1CE

XM_O ILUI~MO ... ... ... ... ... ... 7

§ 500. o ihmibúsmo em Náp~ ... ... 7 § 501. O


iLuminismo em mIão ... ... 14 § 502. Beccaria ... ... ...
... ... ... 16 § 503. Romagnosi, Giola ... ... ... ... 20

Nota bibliogrãfica ... ... ... ... 23

XIV - O ILUM=SMO ALEMÃO ... ... ... 25

§ 504. WoafC ... ... ... ... ... ... 25 § 505. Precursores do
iluminismo ... ... 33 § 506. o iluminismo Wolffiano ... ...
36 § 507. B=garten ... ... ... ... ... 42 § 508. O ilunúnisino
religioso ... ... ... 46 § 509. Lessing ... ... ... ... ... ... 50

Nota bibliogrãfica ... ... ... ... 55

xv - KA= ... ... ... ... ... ... ... ... 57

§ 510. A Vida ... ... ... ... ... ... 57 § 511. os ~tos do primeiro
período- 61 § 512. os egeritos do segundo período,
64
277

3. Os escritos do período crItico@_ 73


4. . A filIDSOfia Critioa' ... ... ... ... 79
5. @'A análise tranq~elta, ... ... 83
6. IA critica da raz ão pura ... ... 89 r. As formas da
s~bilidade ... ... 93

As categorias e a lógica, fornia@ 95 A de dução


transaendental . ... ... 9 A dedução t@anscendeIItaJ
das categorias ... ... ... ... ... ... 103 A analítica dos princípiGs
... ... 115
O númeno ... ... ... ... ... 120 *-A,,' dialéctica transcendental
128 A 6utrina. transcendentEW do mé_@ todo ... ... ... ... ... ...
137 'Analítica, da razão prática: moralidade e santidade ... ...
... 141 Diajéctica da 'razão prática: postulado e fé moral ... ... ...
... 156
O mundo, do direito e da história 163
O juízó estético ... ... ... ... 169
O juiz, tel@P_ol6gic0 ... ... .... ... 179 A natureza do homem e
o mal radical ... ... ... ... ... ... 184 Relligião, Razão, Liberdade
... ... 189 Nota bibliográfica ... ... ... ... 194

278

SEXTA PARTE

A FILOSOFIA DO ROMANTISMO I_A POInmICA SOBRE O


KANTISMO, 201

§ 532. Reinhold ... ... ... ... ... ... 201 § 532. Prenúncio do
idealismo ... ... 205 § 534- A filosofia da fé ... ... ... ...
211 § 535. Jacobi ... ... ... ... ... ... 217 § 536. O "Stunn und
Drang". Schialer.

Goethe ... ... ... ... ... ... 222 § 537. Humboldt ... .... ... ... ...
... 230

Nota bibliográfica ... ... ... ... 234

II - O ROMANTISMO ... ... ... ... ... 239

§ 538. Origens e caracteres do romantismo ... ... ... ... ...


... 239 § 539. Hõlderlin ... ... ... ... ... ... 245 § 540.
SchIegel ... ... ... ... ... ... 247 § 541. Novalis ... ... ... ... ...
... 251 § 542. Schleierniacher ... ... ... ... 254 § 543.
Schleiermacher: a Doutrina da

Religião ... ... ... ... ... ... 256 § 544. Schleiermacher: a
Dialéctica ... 263 § 545. Schleiermacher: a ]@tica ... ...
269

Nota bibliográfica ... ... ... ... 271

279

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