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Leandro Calbente Câmara


Dissertação: Rousseau e o Discurso sobre a desigualdade entre os homens

A proposta dessa dissertação é analisar o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens” de Jean-Jacques Rousseau, tendo como base um pequeno excerto do trabalho
de Luiz Roberto Salinas Fortes 1 .
Como se sabe, é nesse discurso, escrito em 1753, que Rousseau constrói, de maneira sistemática, sua
tese central a respeito da natureza do homem e de sua transformação ao longo da história da humanidade.
Nesse sentido, a questão chave da obra é tratar de desfazer uma certa concepção a respeito da moral: os
homens são maus, mas o homem não é essencialmente mau. Seu objetivo é, justamente, demonstrar como se
deu essa passagem. Nesse sentido, é interessante destacar as palavras de Rousseau: “O princípio fundamental
de toda moral sobre a qual raciocinei em todos os meus escritos e que desenvolvi neste último [Emílio ou da
educação] com toda a clareza de que era capaz, é de que o homem é um ser naturalmente bom, amando a
justiça e a ordem; que não há perversidade original no coração humano e que os primeiros movimentos da
natureza são sempre retos. (...) Mostrei que todos os vícios que se imputam ao coração humano não lhe são
naturais; disse a maneira segundo a qual eles nascem; segui, por assim dizer, sua genealogia e fiz ver como,
pela alteração sucessiva de sua bondade natural, os homens se tornam afinal o que são” 2
Desse modo, fica clara a importância central que o Discurso ocupa na obra de Jean-Jacques
Rousseau. É a partir dele que o filósofo constrói sua antropologia do homem moderno e a poderosa crítica
social lançada contra as estruturas sociais dos finais do Antigo Regime. O que interessa aqui é perceber como
esses dois movimentos estão intimamente articulados nessa obra.
O Discurso foi elaborado como uma resposta à questão “Qual a origem da desigualdade entre os
homens e será ela permitida pela lei natural?”, elaborada pela Academia de Dijon. O texto está dividido em
duas partes, sendo que a primeira trata, de maneira geral, das características fundamentais do homem natural,
ainda sem nenhum tipo de modificação imposta pela sociabilidade; a segunda parte, por conseguinte, trata
dos estágios pelos quais a humanidade foi atravessando ao longo do seu desenvolvimento histórico.
Como surge logo no início do prefácio, o nexo fundamental da reflexão de Rousseau é a recuperação
do homem despido de todos seus traços sobrenaturais. Isso parece tão essencial quanto pouco realizado.
Como explica o filósofo, “o mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me
ser o do homem (...) como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer
a eles mesmos?”. Para isso, é necessário “separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as
circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram” 3 .
Assim, Jean-Jacques acreditava que a única possibilidade de compreensão da sociedade coetânea era
iniciar pela arqueologia do próprio homem, desbastando as múltiplas camadas de temporalidade que foram se

1 O excerto é o seguinte: “O discurso sobre a origem da desigualdade apresenta, ao mesmo tempo, uma concepção da
história e uma doutrina da sociedade”.
2 Jean-Jacques Rousseau, Carta a Beaumont apud FORTES, Luiz Roberto Salinas, Rousseau: o bom selvagem. Sao

Paulo: Humanitas/Discurso Editorial, 2007, p. 15.


3 Todas as citações em português do Discurso foram extraídas do volume II dos Pensadores consagrados aos textos de

Rousseau. Para facilitar as citações, doravante irei me referir a esta edição apenas como Discurso. Ver Discurso, p. 31.
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depositando em seus modos, ações e comportamentos, indo até a essência primeva do homem 4 . Com isso,
seria possível recuperar um homem “que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente
jamais existirá” 5 . Somente após atingir esse ponto zero é que se torna possível reconstruir a textura da
temporalidade humana até a sociedade atual e todas suas desigualdades e contradições.
O problema, como acusa Rousseau, é que a maior parte dos filósofos e homens de letras atribuíram
ao homem natural características que são exclusivas do homem em sociedade, misturando traços essenciais
com modificações sociais. Com isso, todos acabaram tratando o homem natural como seres repletos de
“necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho”, transportando “para o estado de natureza idéias que
tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil” 6 .
Para superar esse impasse, o filósofo genebrino utiliza um procedimento metodológico radical: ele se
afasta de todos os fatos, das pesquisas e verdades históricas. Afinal, o homem natural é aquele que existe na
anterioridade da própria história, é um homem anti-histórico 7 . Para conhecê-lo, portanto, é necessário ignorar
tudo que Clio nos conta e atentar exclusivamente para os “raciocínios hipotéticos e condicionais”. O filósofo
deve agir muito mais como um físico que estuda a origem do mundo do que como um erudito que se dedica
ao estudo das sociedades do passado 8 .
Como explica Starobinski, a “a história com que Rousseau vai entreter-nos não é aquela de que se
ocupam os historiadores. Não falará dos impérios nem de seu destino. Ele toma distância; decidiu olhar as
coisas de mais longe. (...) De fato, essa discussão filosófica concerne menos aos acontecimentos da história do
que ao processo pelo qual o homem, de início estranho à história, tornou-se progressivamente um ser
histórico” 9 . É isso que o filósofo pretende recuperar com seu método hipotético-dedutivo, o nascimento da
própria história só é possível quando esta é negada.
O que encontramos quando voltamos nossa atenção para esse tempo primevo: encontramos um ser
que há pouco saiu das “mãos da natureza”, robusto e capaz de proezas físicas que nossos corpos sociais não
são mais capazes. Vemos um homem que vive disperso pelo ambiente selvagem, contando apenas com seus
recursos para se defender dos animais e das intempéries da natureza.
Vivendo em um ambiente bruto, o homem natural desenvolve em maior grau aquelas faculdades
necessárias para sua sobrevivência, sua capacidade de atacar suas presas, de se defender dos animais mais

4 Quando falo em uma arqueologia do homem me inspiro nas palavras de STAROBINSKI, Jean. A transparência e o
obstáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991: “A primeira fonte do mal é a desigualdade, escrevera ele em sua resposta
a Estanislau. Agora sente a necessidade de remontar mais longe, de 'cavar até a raiz': essa desigualdade de que provém o
mal, trata-se agora de ver de onde ela própria procede. Pode-se demonstrar a verdadeira origem do mal apenas
examinando a origem da desigualdade”.
5 Discurso, p. 32.
6 Discurso, p. 39-40.
7 DUCHET, Michèle explica que o homem de Rousseau é um “ser sem história, homem entre os animais e não entre os

homens, para si e não para outrem, sem consciência e sem memória. O estado de natureza exclui o acidental, o
histórico”, Anthropologie et Histoire au siècle des lumières. Paris: François Maspero, 1971, p. 334.
8 Discurso, p. 40. A radicalidade desse procedimento ganha mais força quando se lembra que o contexto de Rousseau é

justamente aquele no qual os procedimentos de pesquisa histórica erudita ganharam um grande destaque. É nesse
momento, por exemplo, que as academias de pesquisa histórica começam a compilar e organizar documentos do
passado, bem como a sistematizar uma metodologia de pesquisa mais rigorosa no campo da historiografia. É nesse
quadro que o rigor da pesquisa começa a se tornar uma idéia chave importante nos trabalhos voltados para o passado.
9 Jean Starobinski, op cit., p. 296.
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selvagens, de encontrar o abrigo adequado. É um ser que pensa pouco e suas únicas preocupações são
aquelas voltadas para sua própria conservação.
A única diferença entre esse homem natural e os animais é sua capacidade de aperfeiçoar-se, ou seja,
a capacidade de com “o auxílio das circunstâncias” desenvolver novas habilidades, conquistar novos
recursos. Em suma, a única diferença é que a perfectibilidade permite ao homem se transformar, abandonar
seus traços puramente naturais 10 .
Porém, essa capacidade de se aperfeiçoar quase não se encontra desenvolvida no homem natural. Por
isso, as poucas operações da sua alma são aquelas comuns a todos os animais, quais sejam, perceber e sentir,
querer e não querer, desejar e temer. Suas únicas paixões são aquelas relativas a suas necessidades:
alimentação, reprodução e repouso. Este homem também teme poucas coisas, apenas a dor e a fome. É um
homem de alma tranqüila, quieto e entregue “unicamente ao sentimento da existência atual sem qualquer idéia
do futuro” 11 .
Este homem vivia disperso pois não encontrava necessidade de um convívio mais prolongado com
outros homens. Todos os recursos necessários para enfrentar as intempéries, ele encontrava em si próprio.
Não havia famílias e nem bandos unidos por intervalos prolongados. Por conta disso, era quase desprovido
de qualquer capacidade de comunicação.
O homem natural, vivendo apenas segundo seu instinto, desconhece o uso da razão, a fonte das
maiores paixões e responsável pelo nascimento do sentimento de amor-próprio. Por isso, é apenas o desejo
de conservação que anima suas ações. Este sentimento é chamado por Rousseau de amor de si. E dele nasce
um outro sentimento natural, a piedade, aquela repugnância inata de ver um semelhante a si sofrer. A
combinação do amor de si com a piedade tornam os atos desse homem o menos prejudicial a qualquer outro
homem. Logo, nesse estado primevo da humanidade quase não havia possibilidade de conflitos e
desentendimento.
Para Rousseau, o retrato exato desse homem natural era o do ser errante “pelas florestas, sem
indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus
semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles
individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão
os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava
aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a
vaidade” 12 .
Tendo esse quadro em vista, fica bastante evidente porque Rousseau entende o estado de natureza
como o momento mais tranqüilo e pacato da existência humana. O conflito, motor da história, era quase
inexistente. Tudo que restava ao homem era seguir sua existência harmoniosa com a natureza e sem qualquer

10 Discurso, p. 47.
11 Discurso, p. 49.
12 Discurso, p. 60-61.
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vínculo mais duradouro com outros homens. Quase como um paraíso terreno, a humanidade viveu sua era de
ouro 13 .
Porém, por razões fortuitas, que seguiram apenas o acaso, essa tranqüilidade inicial foi se desfazendo.
A capacidade de se aperfeiçoar possibilitou o exercício da razão humana. Os homens começaram a viver mais
próximos dos seus semelhantes. A natureza humana foi, pouco a pouco, sendo modificada pela sociabilidade
nascente. O homem natural foi transformado em um “ser social”. É o início da história e também o início da
queda 14 .
Os homens conseguiram dominar os obstáculos da natureza, construíram ferramentas rudimentares,
estabeleceram os primeiros rudimentos de uma linguagem, criaram os primeiros vínculos com seus
semelhantes. E mais importante, começaram a lançar para si próprio um olhar de admiração, tornando-se
orgulhoso de seus feitos e conquistas. Ganharam gosto pelas suas posses e obras. Isso tudo permitiu a
formação das primeiras cabanas, as primeiras famílias, o embrião da sociedade civil.
Rousseau acredita que o “verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado
um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” 15 . A
partir desse ponto, a humanidade perdeu sua inocência inicial e rumou para um caminho sem retorno. É a
partir desse ponto que as desigualdades entre os homens começam a crescer.
O filósofo, no início do seu Discurso, havia feito uma distinção entre as desigualdades naturais,
aquelas que eram provenientes exclusivamente das diferentes constituições físicas dos homens, e as
desigualdades morais ou políticas, que é estabelecida pelo “consentimento entre os homens” 16 . No estado de
natureza, estas eram inexistentes e as primeiras eram insignificantes. Afinal, para homens tão independentes o
que importava ser mais fraco ou mais forte, mais belo ou mais feio?
Porém, a partir do momento em que as convenções sociais são estabelecidas, nascem também as
diferenças sociais, as posses ganham valor e marcam a preeminência de alguns sobre os demais. E com isso,
nasce uma multidão de novos conflitos entre os homens.
Assim, aquele homem errante foi dando lugar a homens de existência mais fixa, que foram se
aproximando e formando comunidades cada vez maiores. As línguas foram se desenvolvendo, ganhando
tonalidades diferentes nas regiões mais afastadas, os avanços técnicos foram se aprofundando e as paixões
foram crescendo. O amor conjugal e o amor paterno estimularam essas uniões e o amor próprio, a admiração
de si próprio, estimulava cada novo avanço. O conforto dos bens conquistados aqueceu as almas e os desejos
desses seres. O mérito e a beleza, os prazeres sobrenaturais, tudo modificou profundamente a moral do
homem.

13 Michèle Duchet explica que para Rousseau a “plenitude da felicidade primitiva se opõem a uma história humana
conquistada pelo acontecimento”, op. cit., p. 327.
14 “O drama da queda não antecede, portanto, a existência terrestre; Rousseau transporta o mito religioso para a própria

história; divide-a em duas eras: uma, tempo estável da inocência, reino tranqüilo da pura natureza; a outra, história em
devir, atividade culpada, negação da natureza pelo homem” em Jean Starobinski, op. cit, p. 24. De maneira análoga,
Maria das Graças Souza explica que a visão da história do filósofo genebrino pode ser chamada de história apocalíptica,
ou seja, o movimento da história é dividido em um “um antes de estatuto prospectivo, que consiste numa preparação
para o que virá no futuro, e um depois de caráter retrospectivo, dependendo do que se realizar agora”, em Ilustração e
História. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 70.
15 Discurso, p. 63.
16 Discurso, p. 39.
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Os ganhos do exercício da razão também foram acompanhados pelo desentendimento, pelas paixões
conflituosas, o homem passou a desejar aquilo que seu semelhante detinha. O orgulho ferido alimentou a
violência e motivaram as mais sanguinárias vinganças. O amor de si, convertido em amor próprio, não
sustentava mais um sentimento instintivo de piedade natural. O egoísmo grassou nos corações dos homens 17 .
A partir desse ponto, Rousseau estabelece um conjunto de etapas pelas quais o desenvolvimento
histórico da humanidade seguiu 18 . A primeira destas, com o surgimento das cabanas e a formação das famílias
e comunidades, ocupou “uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade
petulante do nosso amor-próprio deve ter sido a época mais feliz e a mais duradoura” 19 . No entanto, uma
dupla revolução – o desenvolvimento das artes da metalurgia e da agricultura – acabou também por provocar
a ultrapassagem desse momento.
Desse momento em diante, houve um crescimento muito acelerado das desigualdades entre os
homens, combinando as desigualdades morais com as desigualdades naturais. Ademais, nessa etapa as
associações entre os homens atingiram um tal estado que toda a independência do homem natural se desfez.
Os homens se tornaram mutuamente dependentes, o que transformou, segundo Rousseau, todos em escravos
de todos 20 .
Para Rousseau é nessa interdependência dos homens que o grande mal da vida em sociedade nasce: a
necessidade em deixar de ser fiel a si próprio, a transparência consigo mesmo que se perde. As convenções
sociais obrigam o homem a se mostrar “diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas
coisas totalmente diferentes” 21 . É preciso iludir seus semelhantes para alcançar o que lhe é útil, os homens
sociais começam a se esforçar ativamente por se prejudicarem mutuamente. É daí que nasce o estado de
guerra permanente entre os homens, bem como a necessidade de se estabelecer uma ordem capaz de
recuperar a tranqüilidade abalada.
Dessa forma, a “lei da propriedade e da desigualdade” obrigou a formação da primeira sociedade dos
homens. Este foi, talvez, o passo mais nefasto tomado pela humanidade, pois os homens “correram ao
encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade” 22 .
Rousseau acredita que os primeiros corpos políticos surgiram como acordos livremente estabelecidos
entre o povo e os chefes escolhidos, visando a manutenção da paz e a garantida da propriedade individual.
Porém, estes homens simples e desprovidos de muita experiência não puderam prever a infinidade de abusos

17 Como explica Jean Starobinski, Para Rousseau, “o mal é exterior e é a paixão pelo exterior: se o homem se entrega
inteiro à sedução dos bens externos, será inteiramente submetido ao império do mal”. É por isso, que a desnaturação do
homem não altera sua essência interna, mas são os laços sociais exteriores que começam a se estabelecer nesse momento
que vai provocar a degradação do homem. Ver, op. cit, p. 31-32.
18 Vale lembrar que essas etapas nunca são vistas por Rousseau como etapas necessárias. Para o filósofo não há uma lei

geral da evolução das sociedades humanas, um caminho fixo e obrigatório. O que se dá, porém, é que a partir de um
determinado ponto, o movimento de transformação se torna algo sem retorno. Não é possível retornar ao estado de
natureza após a desnaturação social do homem. Ver Michèle Duchet, op. cit., 341.
19 Discurso, p. 68.
20 Discurso, p. 71. BARRÉ-MÉRAND, Heidi, a “desigualdade é definida como o produto do desenvolvimento das

necessidades e da interdependência dos indivíduos que lhe acompanham. Ela não pode, portanto, existir em um estado
onde os homens vivem isolados e na ignorância daquilo que os distingue do resto da natureza”, “Dossier” em Discours
sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes. Paris: FolioPlus, 2006, p. 124.
21 Discurso, p. 71.
22 Discurso, p. 73.
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que nasceriam desse primeiro acordo 23 . E rapidamente estes corpos foram degenerando em formas tirânicas e
injustas, o que fez apenas crescer os conflitos, que assumiram a proporção de guerras nacionais e batalhas
mais sangrentas, e ampliou a desigualdade entre todos 24 .
Finalmente, “do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, elevando aos poucos sua
horrenda cabeça e devorando tudo o que percebesse de bom e de sadio em todas as partes do Estado,
conseguiria por fim esmagar sob seus pés as leis e o povo, e estabelecer-se sobre as ruínas da república”. A
última etapa do desenvolvimento histórico se concretizou. O despotismo, último movimento em direção a
desnaturação do homem, marca o ponto máximo da degradação do homem. Os abusos do governo chegaram
a tal ponto que já não existe mais liberdade, todos foram completamente submetidos aos desmandos e apenas
a força mantém os vínculos sociais.
O que Rousseau identifica nesse momento é o fecho do círculo: a igualdade natural, assumida de
forma positivo, é restabelecida, só que agora pela negativa. Todos são iguais em sua servidão: “todos os
particulares se tornam iguais, porque nada são” 25 . A igualdade social marca a metamorfose final da alma
humana, agora completamente desnaturada e degradada, dominada pelas paixões particulares e pela discórdia
generalizada. O homem natural era sozinho e vivia em sua plenitude, o homem social é sozinho pois não
consegue mais viver naquela plenitude. A artificialidade da sociedade fragmenta a completude natural do
homem.
É por isso que Jean Starobinski define a empreitada filosófica de Rousseau como uma “negação da
negação”: a sociedade nega a natureza e a crítica de Jean-Jacques nega a própria sociedade. Para o filósofo, “o
homem não é naturalmente vicioso; tornou-se vicioso. O retorno ao bem coincide, então, com a revolta
contra a história, e, em particular, contra a situação histórica atual” 26 . É justamente por isso que está tão
intimamente entrelaçado a crítica da sociedade de Rousseau com sua antropologia do homem natural.
Ao se lançar para fora da história, resgatando a natureza do homem, Rousseau lançava um olhar
crítico para seu próprio tempo, visava, acima de tudo, demonstrar como as bases que estruturavam a
sociedade de finais do Antigo Regime eram corruptas e nefastas para o indivíduo. O mais interessante é que,
se o homem naturalmente bom está situado fora da história, a sua corrupção é um movimento da própria
história. Por isso, a “luta contra o mal cabe também ao homem na história” 27 .
Nesse sentido, o que está em jogo, no pensamento de Jean-Jacques, é o “retorno da transparência”
perdida. Como explica Starobinski, na obra do filósofo aparecem diversas formas de lutar contra esse mal,

23 Michèle Duchet explica que “para Rousseau, o pacto que criou os primeiros corpos políticos é viciado na sua natureza

mesma, e longe de ser um ato racional pelo o qual todos renunciam a violência para se submeter a lei, ele estabeleceu
‘novos entraves aos pobres e novas forças aos ricos’, destruindo sem regresso a liberdade natural, e fixando de forma
definitiva ‘a lei da propriedade e da desigualdade”, op. cit., p. 355.
24 Não vou me alongar nesse momento, mas é importante destacar que Rousseau promove um deslocamento importante

na maneira tradicional que a Filosofia Política tratou o surgimento dos diferentes modelos de governo (monarquia,
aristocracia e democracia). Para Rousseau, estes modelos estavam relacionados com o grau de desigualdade existente
entre os particulares na ocasião da formação do primeiro pacto político. Ademais, nenhum dos modelos é
essencialmente arbitrário, mas apenas suscetíveis a degeneração em decorrência dos abusos dos particulares. Ver
Discurso, p. 80.
25 Discurso, p. 84.
26 Jean Starobinski, op. cit, p. 32 e 49.
27 Jean Starobinski, op. cit, p. 24.
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mas para além dos seus conteúdos variados há uma “unidade de intenção, que visa à salvaguarda ou à restauração
da transparência comprometida”.
Essa unidade de intenção pode assumir tanto um aspecto coletivo, com a formação de um pacto político
legítimo, tal qual Rousseau desenvolve na obra O contrato social ou no verbete Economia Política da
Enciclopédia, ou um aspecto individual, seja por meio de um retorno para si ou pela educação dos infantes,
como desenvolvido no Emílio 28 .
De qualquer modo, o que importa para meus propósitos aqui, é perceber como a crítica de Rousseau
está intimamente relacionada com o papel normativo assumido pelo homem natural. Como dito
anteriormente, este não existe mais e nunca mais poderá existir novamente e, talvez, sequer tenha existido,
mas isso não importa. O que importa é que no sistema de pensamento de Rousseau, é ele o modelo de
existência individual que deve ser perseguido. Atua, desse modo, como a base da crítica daquilo que realmente
existe, serve de medida para mostrar o quanto é necessário modificar a sociedade existente 29 .
O movimento da história é, portanto, para Rousseau o lento desfazer desse modelo normativo, o
grau zero do homem. Por conta disso, sua visão da história não pode ser nada além da lenta “degeneração e
enfraquecimento” da alma humana e suas instituições. Sua história constrói uma “trajetória linear de
decadência e corrupção progressivas” que, quando iniciada, torna-se irreversível. Esta visão, como explica
Maria das Graças de Souza, foi “herdada da tradição cristã, mas que se afasta dela do ponto de vista da
direção do curso dos acontecimentos: os homens caminham sim de um ponto de origem a um ponto de
chegada. Mas este percurso não é o da salvação, e sim o da perdição” 30 .
Porém, o pensamento de Jean-Jacques não assume apenas uma faceta crítica-decadentista, que se
limitaria a saudar uma era grandiosa que não existe mais. Na realidade, sua empreitada filosófica assume uma
postura crítica justamente porque o autor escapa dessa posição, defendendo uma postura ética e de ação
contra a ordem existente. Afinal, em uma sociedade corrompida, a única opção válida para aqueles que
tomam consciência desse fato é buscar a negação da negação, tendo como modelo de ação uma outra ordem
normativa, agora socialmente instituída, como por exemplo, o próprio pacto social. Isso, no entanto, não
garante a possibilidade efetiva de transformação da sociedade existente, mas torna factível uma existência
ética e afirmativa e, portanto, crítica do presente 31 .
É nesse sentido, creio eu, que se torna possível falar na existência, no Discurso, e no pensamento
mais geral de Rousseau, de uma articulação entre uma “uma concepção da história e uma doutrina da
sociedade”. No cruzamento dessa história decadente com uma normatividade do social, é que se estabelece a
força do pensamento do filósofo genebrino. E com isso, se torna possível uma leitura sempre atual de sua
obra.

28 Heidi Barre-Mérand, op. cit., p. 125; Jean Starobinski, op. cit, p. 56 ; Michèle Duchet, op. cit., p. 357.
29 Heidi Barre-Mérand, op. cit., p. 122.
30 Maria das Graças de Souza, op. cit., p. 72 e 75.
31 Maria das Graças de Souza, op. cit., p. 91-92.

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