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book Page 13 Thursday, July 22, 2004 4:20 PM

Fazendo Compras no
Supermercado Genético
SHOPPING AT THE GENETIC SUPERMARKET*
Resumo Este artigo parte da afirmação do filósofo estadunidense Robert Nozick,
que, já em 1974, vislumbrara a possibilidade de um supermercado genético, e da po-
sição de Diane Beeson, contrária às atuais práticas de diagnóstico pré-natal. Tomando
por base essas duas posições, são discutidos os argumentos e dilemas relativos à defesa
ou ao ataque às possibilidades de melhoramento genético. Mantendo uma distância
crítica com relação a essas, mas, ao mesmo tempo, levando a sério suas probabilidades,
os processos de exclusão apoiados no melhoramento genético são aqui criticados e
enfatizado o princípio de igualdade de condições de escolha como alternativa ao pro-
blema. Por fim, apóia-se a idéia da ingerência do Estado nessa questão, na condição
de promotor de uma loteria que socializaria para toda a população as possibilidades do PETER SINGER
melhoramento genético, ao invés de deixá-la somente nas mãos do mercado. Princeton University/EUA
psinger@princeton.edu
Palavras-chave BIOÉTICA – MELHORAMENTO GENÉTICO – DIAGNÓSTICOS
PRÉ-NATAIS – SETOR PÚBLICO – INICIATIVA PRIVADA.

Abstract This essay starts from an affirmation of the American philosopher Robert
Nozick, that in 1974 foresaw the possibility of a genetic supermarket, and of Diane
Beeson’s position contrary to the current practices of prenatal diagnosis. Taking into
account these two positions, arguments and dilemmas as well as defenses or attacks
on the possibilities of genetic enhancement. Maintaining a critical distance from these
positions, but at the same time, taking their probabilities seriously, he reviews the
processes of exclusion supported by genetic enhancement, while emphasizing the
equality of choice conditions as an alternative to the problem. Finally, the State’s
intervention in this question is supported, as promoter of a lottery that would
socialize the possibilities of genetic enhancement for the whole population, instead of
leaving it exclusively on the hands of the market.

Keywords BIOETHICS – GENETIC ENHANCEMENT – PRENATAL DIAGNOSIS –


PUBLIC SECTOR – PRIVATE ENTERPRISE.

* Tradução do inglês para o português de AMÓS NASCIMENTO (AAI/UNIMEP).

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Considere o tema da engenharia genética. Muitos biólogos tendem a pensar


que o problema é uma questão de design, de se especificar os melhores tipos
de pessoas, de modo que eles possam vir a produzi-las. Assim, preocupam-se
com o(s) tipo(s) de pessoas que podem vir a ser criados e sobre quem deverá
controlar esse processo. Não são levados a pensar, talvez porque isso possa
diminuir a importância de seu papel, num sistema no qual eles venham a
gerenciar um supermercado genético que satisfaça as especificações indivi-
duais (dentro de certos limites morais) de pais em potencial (...). Esse sistema
de supermercado tem a grande virtude de não pressupor nenhuma decisão
centralizada que fixe o(s) tipo(s) humano(s) futuro(s).1
NOZICK, 1974, P. 315N

GENOCÍDIO DA CULTURA DOS SURDOS?

O
supermercado genético já parece ser uma realidade,
com propaganda publicitária em The Prince e outros
periódicos dos campi das melhores universidades dos
Estados Unidos [Ivy League], em que se oferecem
grandes somas de dinheiro para obter óvulos de mu-
lheres de alta estatura e com pontuação elevada nos
testes SAT.2 Mas isso ainda não quer dizer nada.
Obviamente a seleção genética já existe há muito, de for-
ma um tanto mais manifesta nos diagnósticos pré-natais anteriores à realiza-
ção de um aborto. Por isso, Diane Beeson tem se oposto às práticas atuais des-
ses diagnósticos, com base no seguinte argumento:
A suposição central por trás da realização de um diagnóstico pré-natal
é que a vida com algum tipo de deficiência não vale a pena e representa
sobretudo uma fonte de sofrimento (...). Visto da perspectiva dos di-
reitos das pessoas com necessidades especiais, o teste pré-natal para
averiguar anomalias fetais pressupõe uma forte mensagem no sentido
de que buscamos eliminar futuras pessoas com deficiências, sem re-
conhecer-lhes o valor social, além de transmitir a idéia de uma desva-
lorização daqueles que vivem atualmente com alguma deficiência ou
necessidade especial (...). Ao concentrar tantos recursos na eliminação
de possíveis pessoas deficientes, nos deixamos levar na direção do res-
surgimento de uma eugenia diversa apenas superficialmente de mo-
delos anteriores. Nesse processo, estamos distorcendo seriamente o
propósito histórico da medicina como cura. Estamos criando uma so-
ciedade na qual a deficiência é cada vez mais estigmatizada e, como re-

1 “Consider (…) the issue of genetic engineering. Many biologists tend to think the problem is one of
design, of specifying the best types of persons so that biologists can proceed to produce them. Thus
they worry over what sort(s) of person there is to be and who will control this process. They do not
tend to think, perhaps because it diminishes the importance of their role, of a system in which they run a
“genetic supermarket,” meeting the individual specifications (within certain moral limits) of prospective
parents (…). This supermarket system has the great virtue that it involves no centralized decision fixing
the future of human type(s).
2 Nota do Tradutor (N.T.): o SAT é um exame de acesso à universidade similar ao ENEM no Brasil, no qual
são avaliados os estudantes do Ensino Médio oriundos de diferentes escolas e Estados.

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sultado, a imperfeição humana, de qual- modo que, no futuro, suas crianças possam fre-
quer tipo, torna-se cada vez menos tolera- qüentar uma boa escola ou universidade.
da e suscetível de ser aceita como uma
Já no que se refere à segunda questão, co-
variação normal da humanidade.3
mecemos pelo fato de que, de acordo com a de-
O implante coclear no ouvido, o descobri- cisão do processo jurídico envolvendo Roe con-
mento do gene da acondroplasia e o uso do abor- tra Wade, uma mulher nos Estados Unidos pode
to seletivo, para evitar o nascimento de crianças interromper sua gravidez, por qualquer razão, en-
com Síndrome de Down, servem para testar os li- tre o primeiro e o segundo trimestre de gestação
mites do nosso apoio às políticas de igualdade e ou, pelo menos, até o momento em que o feto
diversidade. Afirmamos crer que todos os huma- seja viável [“or at least until the fetus is viable”].
nos são iguais e que valorizamos a diversidade. Logicamente isso não significa que ela esteja eti-
Mas será que a nossa crença na igualdade vai tão camente justificada para tomar tal decisão. Al-
longe a ponto de duvidarmos se é melhor não ter guns autores argumentam que nunca é possível
uma deficiência do que tê-la? Será que o valor que encontrar uma justificativa ética para interromper
atribuímos à diversidade significa que devemos uma gravidez, ao passo que outros admitem essa
nos opor a qualquer medida capaz de debilitar a possibilidade quando há perigo de vida e em caso
cultura dos surdos, ou reduzir o número de pes- de estupro ou incesto. Contudo, Beeson e vários
soas nascidas com Síndrome de Down ou com outros, preocupados com a questão do diag-
acondroplasia? Devemos limitar o uso de recur- nóstico pré-natal, não baseiam seus argumentos
sos públicos para diagnósticos pré-natais ou para no princípio de oposição ao aborto. Por esse mo-
implantes cocleares no ouvido? tivo, em vez de me dedicar aqui a discutir esse as-
pecto, afirmarei simplesmente, como já o fiz em
Para avaliar essas críticas ao diagnóstico
outro artigo, que não considero o feto uma classe
pré-natal, pode ser útil pensar por um instante
de ser que tenha direito à vida.4
sobre duas questões inter-relacionadas. Primeira-
mente, qual é a importância dada pela maioria dos Assim, não é difícil justificar a interrupção
pais e mães ao fato de brindar seus filhos e filhas de uma gravidez. Suponhamos, por exemplo, que
com o melhor início de vida possível? Em segun- um casal tenha planejado filhos, mas que uma
do lugar, qual a seriedade do motivo que uma gravidez inesperada tenha ocorrido antes de eles
mulher deve ter para justificar a interrupção de se sentirem preparados para tanto. Digamos que,
sua gravidez? naquele momento, eles dividiam o pequeno espa-
ço de uma kitchenette e que não tinham condições
A resposta à primeira pergunta é que, para
de assumir os gastos de uma moradia maior, mas
a maioria dos pais, dar a seus filhos o melhor iní-
que, em cinco anos, poderiam mudar-se para um
cio de vida possível consiste em algo extrema-
lugar mais espaçoso. Na minha opinião, não es-
mente importante. O desejo de que isso de fato
tariam agindo de modo imoral se decidissem fa-
ocorra leva mulheres grávidas que tenham fuma-
zer um aborto.
do ou bebido a lutar fortemente contra seu vício.
Milhões de livros são vendidos a fim de ensinar Imaginemos agora um casal cujo filho que
os pais sobre como ajudar seus filhos a alcançar o a mulher carrega no ventre terá alguma deficiên-
seu potencial – razão pela qual muitos casais mu- cia, por exemplo, a Síndrome de Down. Como a
dam-se para os subúrbios, onde as escolas são maioria dos pais, esses consideram importante
melhores, mesmo que eles tenham de empregar dar o melhor começo de vida possível ao filho e
boa parte de seu tempo diário viajando. Essa in- não acreditam que a Síndrome de Down o seja.
tenção estimula também a poupança familiar, de Será que esse casal deve aceitar que a vida com de-
ficiência não vale a pena e que é sobretudo uma
3BEESON, 2000, p. 2. Para alguns argumentos similares, cf.
NEWELL, 1999, p. 68; e ASCH, 1999, p. 1.649-1.657, esp. p. 1.650. 4 Cf. SINGER, 1993, cap. 5.

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fonte de sofrimento? As possíveis justificativas do aborto? Tal preocupação parece altamente se-
para a suposição desses pais não são melhores do letiva. Seguramente, ela está por trás da mensa-
que as dos pais que resolvem interromper a gra- gem de cada garrafa de bebida alcoólica vendida
videz por considerar que não têm como arcar nos Estados Unidos, que traz no rótulo as se-
com os custos de um apartamento maior. Isso se guintes palavras: “Advertência do governo: de
tomarmos por base a suposição de que a vida de acordo com o médico, mulheres não devem con-
uma criança num apartamento de um só cô- sumir bebidas alcoólicas durante a gravidez, por
modo, dividindo-o com seus pais, não vale a pena causa do risco de ocorrência de deformidades no
e é sobretudo uma fonte de sofrimento. recém-nascido”.
Em ambos os casos, tudo o que os pais ne- Será que essa advertência – bem mais visível
cessitam aceitar é que seria melhor ter um filho ao norte-americano comum do que o diagnóstico
sem Síndrome de Down ou um filho que possa pré-natal – não envia a forte mensagem de que se
ter o seu próprio quarto de dormir. Afinal de deve evitar o nascimento de crianças com defei-
contas, em nenhuma das duas situações os pais tos? E o que há por detrás das mensagens das
estão decidindo ou não ter um filho – o que estão campanhas de vacinação contra a rubéola? Al-
tendo é a opção de escolher entre ter esse filho ou guém poderia, com toda a seriedade, propor a re-
algum outro, que, com uma certa dose de confiança, tirada de tais advertências governamentais ou de-
eles guardam a esperança de poder gerar mais tar- fender o encerramento desses programas de va-
de, em circunstâncias mais auspiciosas.5 cinação?
Portanto, é possível justificar o aborto nes- O desejo do médico aqui é que as mulheres
sas circunstâncias e, ao mesmo tempo, como sus- não tenham filhos com deficiência em virtude do
tenta Beeson, aceitar que as pessoas com defi- consumo de álcool. E isso não implica, de modo
ciências congênitas freqüentemente alcançam o algum, que a preocupação dele com os interesses
mesmo nível de satisfação em sua vida que as pes- das pessoas com deficiências ou necessidades es-
soas sem deficiência.6 Um casal pode pensar, com peciais seja menor do que por aquelas sem qual-
razão, que o termo freqüentemente não é suficiente. quer deficiência. Como já argumentei anterior-
Da mesma forma, pode admitir – assim como eu mente, devemos ter igual consideração por todos
– que, muitas vezes, pessoas com Síndrome de os seres que tenham interesses,7 ainda que, no meu
Down são carinhosas e queridas, que têm vidas modo de ver, essa seja a base fundamental da igual-
felizes. Ainda assim, são capazes de pensar que dade, tanto no âmbito da nossa própria espécie
isso não é o melhor a fazer por seu filho. Talvez quanto entre ela e os seres de outras espécies que
queiram apenas ter um filho que, eventualmente, tenham seus interesses, razão pela qual essa mesma
se converta em seu par intelectual, alguém com base pode não satisfazer os defensores das pessoas
quem possam ter conversas interessantes ou que com deficiências. Mas que outro sentido defensá-
lhes dê netos e os ajude quando chegarem a uma vel pode ser dado à idéia da igualdade de valor?
idade mais avançada. Esses não são desejos pouco Mesmo nos casos em que os implantes co-
razoáveis a um pai ou uma mãe. cleares não são genocidas e os diagnósticos pré-
O que ocorre, então, com a forte mensa- natais combinados ao aborto seletivo não se pa-
gem de que buscamos eliminar futuras pessoas com reçam, em absoluto, com antigas práticas de eu-
deficiências, a qual, segundo Beeson, é efetivada genia, eles ainda poderiam ser considerados injus-
por meio das práticas do diagnóstico pré-natal e tos. Mas lembremos o seguinte princípio: em
qualquer condição X, se houvesse uma forma de
5 Allen Buchanan faz a mesma observação, utilizando o exemplo de abuso infantil imposta pelos pais a seus filhos
uma mulher que adia a decisão de ter uma criança por conta de estar logo após o nascimento, deveria, então, ser per-
vivendo num campo de refugiados. Cf. BUCHANAN, 1996, p. 18-
45, esp. p. 29.
6 BEESON, 2000. 7 SINGER, 1990, cap. 1.

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missível, em igualdade de circunstâncias, ao me- nidade dos surdos, sobretudo no que diz respeito
nos tomar medidas para evitar essa condição ao ao crescimento dela no grupo social ao qual per-
próprio filho. tencem seus pais. Entretanto, isso não lhes justi-
Não proponho esse princípio como uma fica a atitude.
verdade auto-evidente, nem como uma derivação No caso de responder a esse exemplo da
de algum fundamento moral particular, mas forma como eu acabo de fazê-lo, e se o princípio
como algo possivelmente atrativo a muita gente, por mim proposto vier a ser aceito, infere-se daí
independentemente de suas concepções morais. que ao menos se permita aos pais, em igualdade
Esse princípio preventivo, como tratarei de cha- de circunstâncias, tomar medidas para assegurar
má-lo, requer rechaçar o ponto de vista de que o que seus filhos não sejam surdos.
fato de que algo resulta da loteria genética é su- Esse argumento traz a dificuldade de se es-
ficiente para que seja correto. Por que alguém tabelecer até onde ir com tal discussão. Ser negro
acreditaria nisso? Acho que acreditaria apenas se é uma deficiência? Ser homossexual é uma defi-
pensasse, no fundo, que a loteria genética não é ciência? O caso racial pode ser facilmente dife-
realmente uma loteria, e sim uma obra da divina rençado do da surdez, pois embora seja certo que
Providência. Se fosse esse o caso, poderíamos en- as pessoas surdas devem superar algumas barrei-
tão pensar que é incorreto interferir na ordem na- ras sociais, é também indiscutível o fato de elas
tural das coisas. No entanto, deixando de lado não disporem da capacidade de audição. Os afro-
essa perspectiva, por falta de evidência que a americanos, por exemplo, não sentem falta de ne-
apóie, assumamos a posição de que a loteria ge- nhuma outra faculdade característica de pessoas
nética é realmente uma loteria. Assim, se não há de outras raças; o que há são padrões de discri-
nenhuma barreira moral a nos impedir de inter- minação ou preconceito. Portanto, ser negro não
ferir no modo como as coisas são, o princípio é uma deficiência.
preventivo parece sólido. E quanto a ser homossexual? Enquanto
Tentemos agora aplicar o princípio preven- gays e lésbicas não dispõem da faculdade de se
tivo aos casos aqui tratados. Suponhamos que um sentir sexualmente atraídos pelo sexo oposto, os
casal de surdos dê à luz uma filha que pode ouvir heterossexuais não têm tal disposição com rela-
normalmente. Em razão de os pais valorizarem ção a pessoas de seu próprio sexo. Essa linha de
sobremaneira sua própria pertinência à comuni- argumentação implica que, a menos que sejamos
dade de surdos, e temerem que sua filha não seja bissexuais, sofremos de deficiência erótica. É
parte dessa comunidade, eles fazem alguns arran- possível defender que os homossexuais não têm
jos com o cirurgião – nesse caso, uma pessoa capacidade porque não desfrutam de relações se-
compreensiva – para que ele destrua o ouvido da xuais ditas normais envolvendo um pênis e uma
garota. A intervenção, levada a cabo sob anestesia vagina? Essa questão exigiria sustentar que esse
geral, não causa nenhuma dor, mas seu objetivo é tipo de relação sexual é superior a aquelas dos
cumprido. A partir de agora, a menina será per- gays e lésbicas, mas ignoro a maneira como, na
manentemente surda. Será esse um caso de abuso ausência de um argumento apoiado na lei natural,
infantil? Creio que sim. O procedimento dos semelhante asseveração possa ser fundamentada
pais assegurará à garota nunca conseguir ouvir a satisfatoriamente.8
música de Beethoven, um riacho murmurante ou Talvez uma melhor forma de encarar a ho-
lições e debates falados, a não ser por meio de tra- mossexualidade como deficiência seria com base
dução. A menina se encontrará também em des- na concepção de que os homossexuais são inca-
vantagem em outras inumeráveis circunstâncias. pazes de ter filhos com quem se sentem atraídos
Mas, indubitavelmente, também deveremos con- sexualmente e, por conseguinte, de levar uma
siderar os benefícios a serem conquistados pela
menina em virtude de ela tomar parte na comu- 8 Cf. SINGER & WELLS, 1985, p. 24-29.

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vida familiar normal. É questionável que essa se os genes de pelo menos uma pessoa diferente.
trate de uma deficiência, assim como também o Nas próximas duas décadas, provavelmente tere-
seja a incapacidade de ouvir. No entanto, supo- mos uma quarta opção: o melhoramento genéti-
nhamos que ela represente, de fato, uma deficiên- co de nossos próprios embriões. Disponível essa
cia. Mesmo nesse caso, seria uma deficiência a ser possibilidade, muitos pais terão interesse em uti-
superada prontamente, na medida em que apren- lizá-la.
dêssemos a misturar gametas de pessoas do mes- Esforçamo-nos tanto em modelar o entor-
mo sexo e a injetá-las num óvulo sem núcleo. Ca- no de nossos filhos, para dar-lhes o melhor co-
sais de lésbicas teriam, então, que decidir somen- meço na vida, que, quando tivermos a habilidade
te qual delas levaria a criança, ao passo que os de escolher seus genes, é improvável que venha-
gays precisariam encontrar uma mãe substituta mos a abrir mão dessa possibilidade. O que po-
ou de aluguel, disposta a carregar-lhes um filho. deria refrear alguns pais potenciais são fatores
Tornando-se isso possível, seria difícil defender como o risco, o custo e a dúvida de que a criança
em que sentido os homossexuais poderiam ser seja-lhe realmente filha no sentido biológico. Até
considerados deficientes. agora, isso tem representado um obstáculo aos
Nesse sentido, ao se decidir por não ter fi- casais dispostos a utilizar óvulos e esperma doa-
lhos deficientes, os pais atestam que valorizam dos por terceiros. Mas o rápido crescimento de
muito mais a possibilidade de ter um filho sem nosso conhecimento sobre a genética humana
deficiências do que ter um filho com alguma de- fará com que logo seja possível ter filhos geneti-
ficiência, e que esse arrazoado pode, em princí- camente nossos e, mesmo assim, geneticamente
pio, ter fundamento. Contudo, o que ocorre superiores aos filhos possíveis de ser produzidos
quando se decide ter uma criança com caracterís- contando com a sorte dos processos normais de
ticas superiores à média, em vez de se evitar ter reprodução.
uma criança com deficiência? Tal método começará com um monitora-
mento genético cada vez mais sofisticado dos
COMPRANDO BELEZA E CÉREBRO embriões in vitro. Não há dúvida de que, em bre-
Como assinalamos anteriormente, os pais ve, será possível inserir novo material genético no
fazem tudo o que estiver ao seu alcance para in- embrião in vitro, e de maneira segura. Ambas as
fluenciar os fatores ambientais, que, sem dúvida, técnicas permitirão aos casais ter uma criança
também desempenham seu papel na formação cujas habilidades serão provavelmente superiores
dessas características da criança. Atualmente, eles às oferecidas pela loteria natural e, além do mais,
têm condições de influenciar tanto os fatores ge- um filho “deles”, no sentido de possuir seus ge-
néticos quanto os ambientais, por meio das se- nes, e não os de apenas um dos membros do ca-
guintes maneiras: requerer um monitoramento sal, tampouco os de uma terceira pessoa, exceto
dos embriões antes da implantação, ao se valer da quando (adotando a modificação genética, em
fertilização in vitro; utilizar o diagnóstico pré-na- vez da simples seleção genética) se produzam es-
tal e aborto seletivo; e conseguir também óvulos, pecificamente as características desejadas.
esperma ou embriões de pessoas que considerem Muitas pessoas afirmam aceitar a seleção,
geneticamente superiores. Todas essas três técnicas quanto se trata de usá-la contra enfermidades e
apresentam desvantagens. A primeira é cara, in- deficiências sérias, mas não para melhorar o que
conveniente e nem sempre resulta em gravidez. A se considera normal. Contudo, não há uma dis-
segunda técnica implica aborto, procedimento ja- tinção clara entre uma seleção para evitar defi-
mais prazeroso a uma mulher, independentemen- ciências e outra para obter características positi-
te de seu ponto de vista sobre o status moral do vas. Não existe grande distância entre a seleção
feto. E a terceira significa que a criança não será contra a enfermidade de Huntington e a seleção
um filho biológico do casal, mas levará consigo contra os genes produtores do risco, significati-

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vamente alto, de câncer de mama ou de cólon. questão. Não cabe a nós julgar se o resultado des-
Partindo-se desse caso, torna-se fácil dar um per- se processo será melhor ou pior. Numa sociedade
fil genético ao próprio filho, a fim de lhe oferecer livre, tudo o que podemos fazer legitimamente é
uma saúde acima da média. assegurar um processo que consista em transa-
Do mesmo modo, se quase todos nós nos ções individuais escolhidas livremente. Deixemos
dispuséssemos a abortar um feto com Síndrome o supermercado genético atuar livremente – não
de Down, a maioria estaria também inclinada a apenas o mercado, mas também os indivíduos
abortar um feto com genes indicativos da presen- altruístas, as organizações voluntárias ou aqueles
ça de outras limitações intelectuais, por exemplo, que desejarem, por qualquer motivo, oferecer
os genes associados a um nível de coeficiente in- serviços genéticos a quem queira aceitá-los, nos
telectual inferior a 80. Mas por que, então, nos termos em que forem colocados.
deteríamos nos 80 pontos? Por que não selecio- Não é um acidente o fato de os Estados
nar, pelo menos, um coeficiente intelectual mé- Unidos permitirem a existência de um mercado
dio? Ou, talvez, um pouco mais acima da média? de óvulos e esperma, que cumpre, de certo modo,
O atual mercado de óvulos humanos sugere que a profecia de Nozick. Em outros países, uma prá-
algumas pessoas escolheriam inclusive a estatura, tica que ameace converter o filho de um casal
correlacionada, em certa medida, com o seu nível num objeto comercial enfrentaria poderosa opo-
sociofinanceiro. sição por parte tanto de políticas conservadoras
de valores da família quanto de grupos de centro
OPÇÕES PRIVADAS E PÚBLICAS e esquerda horrorizados com a idéia de deixar o
Como devemos reagir perante esse cená- mercado livre decidir algo tão fundamental à so-
rio? Podemos tratá-lo de um ângulo escorregadio, ciedade, ou seja, o modo como serão concebidas
de maneira a provar que precisamos agir agora no as futuras gerações. Contudo, nos Estados Uni-
sentido de deter o monitoramento pré-natal. Isso dos a esquerda se restringe a grupos marginais da
porque, do contrário, estaremos nos movendo na vida política e os conservadores que dominam o
direção de um futuro de pesadelos, com os filhos Congresso afirmam seu apoio aos valores familia-
feitos por encomenda e desejados conforme suas res apenas quando se trata de impedir o emprego
especificações, e não amados pelo que são. Po- de recursos federais para fins que eles desapro-
rém, aceitar esse tipo de argumento nos força a vam. Além do mais, esses conservadores permi-
rejeitar as práticas atuais do diagnóstico pré-natal, tem que a sua crença no mercado livre se impo-
consideradas pela maioria como um grande nha como mais importante do que o seu apoio
benefício, ou a mostrar que nos é possível decidir aos tradicionais valores familiares.
parar em algum ponto, antes que as suposições Existem fortes argumentos contra a inter-
aqui descritas sejam implementadas. Mas nenhu- ferência do Estado nas decisões relativas à repro-
ma dessas alternativas é convincente. Outra pos- dução humana, pelo menos nas decisões de adul-
sibilidade é afirmar que esse futuro aqui esboçado tos competentes. Seguindo o princípio de Mill,
não representa um pesadelo, e sim a disposição de que o Estado somente é justificado a intervir
de uma sociedade melhor do que a de agora, uma nas ações de seus cidadãos para impedir danos a
sociedade repleta de pessoas mais saudáveis, mais outros, podemos considerar tais decisões como
inteligentes, mais altas, mais bonitas e – por que particulares, e que não fazem mal a ninguém, dei-
não? – até mais éticas. Não há, assim, um ângulo xando-as, assim, corretamente como algo a ser
escorregadio, pois ele não leva a um abismo, mas definido no âmbito privado.9 Quem seria afetado
se eleva na direção de um patamar de civilização pelo supermercado genético? Os pais não sofrem
mais alto do que o até hoje alcançado. dano algum ao ter seus filhos tão saudáveis, lin-
As palavras de Nozick, citadas no início
deste artigo, sugerem uma terceira resposta a essa 9 Cf. MILL, J.S. On Liberty (várias edições disponíveis).

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dos e inteligentes conforme eles mesmos dese- resultados é o mais provável. Portanto, não acre-
jam. Os filhos, por sua vez, sofrem algum dano? dito que tenhamos razões para concluir que um
Num artigo sobre a prática de comprar óvulos de supermercado genético causaria algum dano a
mulheres com as características desejadas, entre quem optasse por comprar nele ou a quem fosse
elas, alta estatura e inteligência, George Annas criado a partir dos materiais nele adquiridos.
comenta: “O que resulta preocupante é essa ob- Porém, passando da perspectiva individua-
jetivação, esse tratar as crianças como produtos. lista para uma visão social mais ampla, os aspectos
Encomendar filhos sob medida não pode ser negativos de um supermercado genético tornam-
bom para eles. Pode ser bom para os adultos a se mais sérios. Ainda que assumamos, com certo
curto prazo, mas não para as crianças pensadas otimismo, que os pais somente selecionarão ge-
dessa forma”.10 nes que tragam benefícios a seus filhos, há pelo
No entanto, dizer que não é bom para essas menos três razões independentes para admitir
crianças leva à seguinte questão: não é bom em conseqüências sociais adversas. A primeira é que
comparação com o quê? A criança, para a qual se algumas características buscadas pelas pessoas em
supõe que isso não seja bom, não poderia ter exis- seus filhos serão vantajosas comparativamente, e
tido por nenhum outro meio. Se o óvulo não fosse não em termos absolutos. Aumentar a longevida-
comprado para ser fertilizado pelo esperma do pai, de de nossas crianças é bom para elas, indepen-
ela nem estaria viva. Por acaso a vida dessa criança dentemente do fato de a vida dos demais ter sido
será tão má que ela deseje não haver nascido? Isso dilatada de modo similar. Contudo, aumentar a
me parece pouco provável. Assim, ao perguntar estatura de nossos filhos somente trará benefí-
sobre qual deveria ser o parâmetro para compara- cios se isso os elevar com relação à altura dos de-
ção, é evidente a falsidade da idéia de que a compra mais. Não haveria desvantagem numa estatura de
desses óvulos não seja algo bom para a criança.11 1,5 m, se a estatura média da comunidade fosse
Suponhamos entender o não é bom para as 1,49 m; tampouco existiria vantagem em medir
crianças como não é o melhor para o próximo filho 1,92 m, se a altura média fosse 2,01 m.
desse casal. Então, o fato de que a compra do óvu- Poderíamos argumentar que seria melhor
lo seja ou não boa para a criança dependerá de se todos fôssemos menores e mais baixos, pois
uma comparação com as outras maneiras por necessitaríamos menos alimento, viveríamos em
meio das quais o casal poderia ter procriado. Para espaços menores, dirigiríamos automóveis me-
facilitar essa comparação, imaginemos que os pais nores e com menos potência, de modo a produ-
não são estéreis – compraram um óvulo somente zir menor impacto ao meio ambiente. Assim, ter
para melhorar as possibilidades de ter uma crian- a capacidade de escolher a altura – algo que mui-
ça alta, atlética e com condições de ingressar tos casais já realizam em pequena escala, ao ofe-
numa ótima universidade. Se não tivessem agido recer mais dinheiro por óvulos de mulheres altas
assim, teriam gerado normalmente uma criança, – poderia iniciar algo como o equivalente huma-
que seria seu filho genético. Foi ruim para essa no da cauda do pavão real: uma corrida pela esta-
criança o fato de os pais comprarem o óvulo? Ela tura ascendente, em que a distinção entre altos e
até pode ter uma vida mais difícil, pois foi feita sob normais aumentaria a cada ano, sem trazer bene-
encomenda e talvez decepcione os pais. No en- fícios a ninguém, além de ocasionar um conside-
tanto, ela os teria decepcionado ainda mais por rável custo ambiental e, talvez, também à saúde
possuir menos possibilidades de ser aquilo que os dessas crianças.12
pais gostariam. Não vejo como saber qual desses O segundo motivo para se opor a um su-
permercado genético é o temor de reduzir a di-
10
11
GERSON, 1999. versidade entre os seres humanos. Nem todas as
Sobre a difícil questão a respeito da possibilidade de beneficiar uma
criança por trazê-la à existência, cf. PARFIT, 1984, p. 367; e SINGER,
1993, p. 123-125. 12 CRONIN, 1991, cap. 5.

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formas de diversidade são positivas. A diversida- cérebro a quem pagar mais no leilão – aponta um
de na longevidade é maior quando há mais pes- futuro no qual os ricos terão filhos lindos, sãos e
soas cujos genes as levem a uma morte prematu- inteligentes, ao passo que os pobres, ainda atados
ra. Nesse caso, a perda da diversidade é bem-vin- à velha loteria genética, ficarão mais e mais em
da. Mas o que acontece com a perda do que é me- desvantagem. Por conseguinte, as desigualdades
ramente não usual ou excêntrico? Antony Rao, econômicas se converterão em desigualdades ge-
especialista em terapia de comportamento infan- néticas e o relógio retrocederá séculos na luta
til, assinala que muitos pais de classes média e alta contra os privilégios da aristocracia.
recorrem a ele para medicar os filhos quando es- A atual geração de pessoas ricas terá a opor-
ses se comportam de maneira incomum, por “te- tunidade de embutir suas vantagens nos genes de
mer que qualquer desvio da norma [lhes] arruine sua descendência. Essa gozará, então, não apenas
o futuro”.13 Se isso ocorre com irregularidades de dos abundantes benefícios oferecidos pelos seus
conduta, que, para muitas crianças, não represen- pais, mas também das vantagens adicionais ofer-
tam nada mais do que uma fase passageira, é pro- tadas pelos últimos desenvolvimentos da genéti-
vável que o mesmo aconteça com anormalidades ca. Como resultado, o mais provável é que con-
genéticas. tinuem mais ricos, mais longevos e mais bem-su-
É fácil imaginar informações sobre monito- cedidos que os filhos dos pobres e, na hora certa,
ramentos genéticos indicando que os genes da passarão tais vantagens a seus filhos, que tirarão
criança são não usuais, ainda que a importância da bom proveito de técnicas genéticas ainda mais
anormalidade não seja bem entendida (abreviatu- sofisticadas a eles acessíveis. O livre mercado para
ra médica habitual para não temos idéia do que se o melhoramento genético aprofundará o abismo
trata). Será que muitos pais decidirão interrom- entre os estratos superiores e inferiores de nossa
per uma gravidez nessas circunstâncias? Nesse sociedade, minará a crença na igualdade de opor-
caso, haveria alguma perda na diversidade, de tunidades e fechará a válvula de segurança da mo-
modo a empobrecer a sociedade humana ou, bilidade social ascendente.15
mais do que isso, reduzir a longo prazo a capaci- Caso não desejemos aceitar essa situação,
dade da espécie de adaptar-se a circunstâncias que opções teremos? Podemos proibir todos os
mutantes? usos de seleção e engenharia genéticas que exce-
A terceira razão para ir contra o supermer- dam a eliminação do que claramente somos capa-
cado genético – a mais importante, na minha opi- zes de reconhecer como defeitos. Mas há algumas
nião – é a sua ameaça ao ideal de igualdade de dificuldades óbvias no que tange a esse procedi-
oportunidades. John Schaar escreveu: “Nenhuma mento. Quem decidirá o que é claramente um de-
fórmula política está melhor desenhada para for- feito? Presumivelmente, um painel governamental
talecer instituições, valores e fins dominantes na será criado com a função de informar sobre as
ordem social norte-americana do que a fórmula técnicas genéticas relevantes e decidir quais as le-
de igualdade de oportunidades, pois oferece a gais e quais as ilegais. Isso conferirá ao governo um
cada pessoa uma circunstância justa e igual de en- papel nas decisões reprodutivas, situação conside-
contrar um lugar nessa ordem”.14 Obviamente, rada por alguns estudiosos ainda mais perigosa do
essa crença de que a igualdade de oportunidades que a de deixá-las à mercê do mercado.
prevalece nos Estados Unidos é quase um mito, Existem também sérias interrogações sobre
uma vez que os pais ricos dão aos filhos enormes uma proibição da seleção e engenharia genéticas
vantagens na corrida pelo êxito. Além do mais, o com fins de melhoramento vir a funcionar de
slogan dos Ron’s Angels – oferecendo beleza e norte a sul e de leste a oeste nos Estados Unidos,
13
já que as regulamentações da concepção e do nas-
GROOPMAN, 2000, p. 55.
14SCHAAR, 1981, p. 195, apud MEHLMAN & BOTKIN, 1998, p.
100. 15 Ibid., cap. 6.

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cimento de crianças encontram-se nas mãos dos Se uma proibição nos Estados Unidos che-
Estados, e não do governo federal. No caso da gasse a ser irrealizável, ineficaz ou contrária aos
maternidade substituta, as tentativas de vários interesses vitais da economia norte-americana,
Estados norte-americanos de converter tal práti- talvez pudesse ser tentada uma estratégia mais ar-
ca em algo ilegal, ou invalidar os contratos que a riscada. Estabelecendo-se o objetivo de evitar
regulamentam, tiveram um efeito mínimo, pois uma sociedade dividida em duas partes genetica-
Estados como Arkansas, Califórnia e Ohio são mente diferenciadas, os serviços de melhoramen-
mais favoráveis a ela. Os casais que buscam uma to genético poderiam ser subsidiados, de modo
mãe de aluguel para seus filhos estão dispostos a que todos pudessem ter acesso a eles. Mas será
viajar para obter o que querem. que a sociedade teria condições de oferecer a to-
Supondo que conseguíssemos uma proibi- dos os seus membros os serviços que somente os
ção do Congresso dos Estados Unidos à seleção ricos poderiam pagar? Mehlman e Botkin pro-
e à engenharia genética com fins de melhoramen- põem uma solução engenhosa: o Estado deveria
to, além de persuadir a Corte Suprema de que tal estabelecer uma loteria na qual o prêmio fosse
legislação não viola os direitos dos Estados em le- igual ao pacote de serviços genéticos comprados
gislar sob sua jurisdição, nem os direitos consti- pelos ricos. Os bilhetes da loteria não estariam à
tucionais à privacidade na reprodução, impondo,
venda, e sim fornecidos – um bilhete para cada ci-
desse modo, com eficácia tal medida nesse país.
dadão adulto. O número de prêmios dependeria
Ainda assim, nos encontraríamos diante do fato
de quantos pacotes fossem financiados, variando
de viver numa economia global. Uma pequena
segundo os custos dos serviços genéticos e os re-
nação empobrecida poderia sentir-se tentada a
cursos disponíveis.
permitir o melhoramento genético e a construir
um nicho industrial para atender os casais ricos Para evitar impor uma alta carga financeira
dos Estados Unidos e de outros países que tives- ao Estado, Mehlman e Botkin sugerem a criação
sem proibido o melhoramento genético. de um imposto sobre o uso de tecnologias gené-
Mais além, levando em conta a natureza ticas e prevêem a destinação de sua arrecadação
competitiva da economia global, poderia até ser para o financiamento da loteria.17 Um seguro
benéfico para as nações industrializadas promo- universal seria claramente preferível, mas o uso
ver o melhoramento genético, dando-lhe uma de uma loteria pelo menos asseguraria a todos al-
vantagem sobre aquelas que não o fizessem. No guma esperança de seus filhos chegarem um dia à
Dia Nacional de Singapura, em 1983, o primei- elite. Além disso, a cobrança de um imposto da-
ro-ministro Lee Kuan Yew discursou acerca da queles que, mediante o melhoramento genético
hereditariedade da inteligência e de sua impor- de seus filhos, estão alterando o significado da re-
tância para o futuro desse país. Pouco depois, o produção humana parece um modo eqüitativo de
governo introduziu medidas explicitamente de- financiá-la.
senhadas para estimular os graduados universitá- Dessa maneira, fazer compras no super-
rios a ter mais filhos.16 Se Lee Kuan Yew tivesse mercado genético nos leva à surpreendente con-
condições de ter acesso ao melhoramento gené- clusão de que, talvez, o Estado deva envolver-se
tico, talvez o tivesse preferido, em lugar de pro- diretamente na promoção do melhoramento ge-
por serviços computadorizados de entrevistas nético. A justificativa para tal conclusão resume-
patrocinadas pelo governo e incentivos financei- se, simplesmente, a que ela é preferível à alterna-
ros para aqueles alvos de sua mensagem naquele tiva mais provável – de deixar o melhoramento
momento. genético nas mãos do mercado.

16 KHOON & LENG, 1984, p. 4-13. 17 MEHLMAN & BOTKIN, 1998, p. 126-128.

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SINGER, P. & WELLS, D. Making Babies. New York: Scribner, 1985.

Dados do autor
Considerado um dos pais da bioética, é
professor da cátedra Ira. W. DeCamp e membro
do University Center for Human Values, na
Princeton University/EUA. É co-editor da
revista Bioethics e fundador da International
Association of Bioethics. Entre suas obras mais
importantes encontram-se Animal Liberation
(1990, Practical Ethics (1979) e Rethinking Life
and Death (1996), que têm suscitado discussões
e polêmicas sobre os limites da ética e da
argumentação moral.

Recebimento artigo: 5/fev../04


Consultoria: 6/fev./04 a 27/fev./04
Aprovado: 18/mar./04

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Genética e Justiça: tratando


a doença, respeitando a
diferença
GENETICS AND JUSTICE: TREATING DISEASE,
RESPECTING DIFFERENCE *
Resumo Este artigo aborda os complexos dilemas éticos que o tópico da engenharia
genética sugere. A autora apresenta argumentos filosóficos presentes no trabalho de
quatro teóricos de ética médica. Uma discussão séria sobre decisões genéticas deve
considerar, de maneira global, instituições sociais justas e a igualdade de oportunida-
des. Dessa forma, o texto passa pelos principais desafios éticos suscitados pela possi-
bilidade de se melhorar geneticamente futuras gerações, como, por exemplo, os tra-
tamentos genéticos que devem ser permitidos, se devem ser subsidiados ou deixados
a escolha individual, a exigência de diagnósticos genéticos como medida de saúde pú- MARTHA C.
blica, a questão da liberdade reprodutiva e as implicações dessas novas possibilidades NUSSBAUM
genéticas para a posição social dos deficientes. University of Chicago/EUA
martha_nussbaum@
Palavras-chave ENGENHARIA GENÉTICA – JUSTIÇA – APERFEIÇOAMENTO GENÉ- law.uchicago.edu
TICO – BIOÉTICA.

Abstract This article approaches the complex ethical dilemmas that the topic of
genetic engineering suggests. The author puts forward philosophical arguments
presented by four philosophers of medical ethics. A serious discussion about genetic
decisions must include an overall consideration of just social institutions and equal
opportunity. Thus, the article approaches the main ethical challenges suggested by the
possibility of genetically enhancing future generations, such as which genetic
treatments should be allowed, if they should be subsidized or left to individual choice,
if screening for widespread genetic defects should be required as a public health
measure, the topic of reproductive liberty, and the implications of new genetic
possibilities for the social standing of the disabled.

Keywords GENETIC ENGINEERING – JUSTICE – GENETIC ENHANCEMENT –


BIOETHICS.

* Traduzido do inglês para o português por NUNO COIMBRA MESQUITA.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 65-74, 2004 25

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