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Desafio
O que pudemos perceber, nas análises desenvolvidas até aqui, é que as polêmicas
que ocuparam representantes de duas leituras diferenciadas a respeito da atuação estética e
política do popular na contemporaneidade estiveram pautadas em opiniões díspares acerca
das culturas de massas urbanas e em diferentes formas de questionamento dos pressupostos
modernos de civilização e progresso. Em outras palavras, a proposta armorial formulada
por Ariano Suassuna de “lutar contra o processo de descaracterização da cultura brasileira”
pela via da construção de uma “arte erudita, baseada nas raízes populares de nossa cultura”
(Suassuna, 1974, p. 8), e a “atitude mangue” de Chico Science, que se propôs a “resgatar os
ritmos regionais e ligar isso à música pop mundial” (Science,
www.uol.com.br/uptodate/up3/txt12.htm), se fundaram em visões distintas a respeito do
caráter massivo da cultura contemporânea, e apresentaram maneiras diversas de contradizer
o discurso etnocêntrico dos projetos colonialistas modernos. O que pretendemos discutir
neste momento final de nosso estudo são justamente os termos de tais distinções e seus
reflexos na proposição de políticas culturais pra a cidade do Recife.
Na aversão que Ariano Suassuna cultiva contra a mencionada “descaracterização e
vulgarização da cultura brasileira”, encontramos não apenas uma crítica da forma de
hegemonia cultural que a massificação introduz, mas, também, uma resistência
conservadora às transformações sociais que ela promove. Ou seja, o escritor exibe certo
desconforto frente à nova configuração tomada pelas disputas de autoridade em torno da
construção e legitimação de símbolos e interpretações culturais.
Ao adotar uma noção de cultura popular que remete quase sempre à suposta
integridade de um núcleo simbólico resistente, ameaçado de deteriorização pela ação
perniciosa da indústria cultural, Suassuna enxerga no produto massificado a imposição de
signos estrangeiros, porque estranhos à nossa subjetividade, e acredita poder combater sua
ação perniciosa por meio da rejeição dos elementos identificados com o imperialismo.
Porém, se tomarmos o massivo como condição de sociabilidade dos espaços urbanos
ocidentais, entenderemos que as transformações sociais postas em curso não dizem respeito
a um processo externo a ser contido, mas a uma nova conformação cultural que define o
próprio caráter então assumido pelo popular. Como nos diz Martin-Barbero:
O massivo, nesta sociedade, não é um mecanismo isolável, ou um aspecto, mas uma nova
forma de sociabilidade (...) Assim, pensar o popular a partir do massivo não significa, ao
menos não automaticamente, alienação e manipulação, e sim novas condições de existência
e luta, um novo modo de funcionamento da hegemonia. (Martin-Barbero, 2001, p. 322)
Strinati afirma que no período reconhecido como modernidade o debate acerca das
culturas populares também girou em torno da definição e da qualificação da cultura de
massas, aí relacionada aos meios massivos de comunicação e à indústria cultural. As novas
formas de construção estética exigiram a reformulação conceitual da investigação do
popular, que deveria, a partir de então, considerar as técnicas de reprodução como recurso
configurador das expressões artísticas.
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Contudo, as principais conclusões geradas por tais debates recusaram ao massivo o
status de arte por sua suposta perda do potencial de inovação, e o distanciaram do folclore
por não se originar de “manifestações espontâneas do povo”. O próprio termo “folk”, que
remete a uma realidade pré-industrial, aparece a Strinati como um conceito moderno, que
identifica nas expressões assim definidas resquícios agonizantes de um passado distante.
Uma preocupação taxonômica guiou os vários estudos acerca das formas de
expressão cultural reconhecidas nas sociedades de massa, e, no que diz respeito às criações
populares, estas deveriam ser qualificadas pela caracterização dos grupos que a produziram,
pelo grau de autonomia de suas produções em relação às hegemonias e aos processos de
industrialização e comercialização da arte, e pela carga ideológica que por ventura
pudessem carregar (de conservação de tradições ou de resistência cultural). Já a designação
da arte erudita esteve pautada tanto na afirmação de sua autonomia criativa quanto no
reconhecimento da distinção cultural e moral das castas superiores que a consumiam.
Desta forma, a diluição da ordem provocada pela vivência do massivo teria
desautorizado hierarquias entre “popular” e “culto”, categorias que davam conta da
diferenciação dos grupos conservando-os em lugares sociais estáveis. Receios e
hostilidades das elites intelectuais tradicionais em relação à cultura de massas são, assim,
associados por Strinati à perda de influência social e de autoridade julgadora por parte
daquela classe. Diferente do folk, o massivo não reconhecia os limites impostos pela
estratificação cultural, ignorando fronteiras e desaprovando os critérios da alta cultura. Daí
a visão negativa de muitos dos teóricos da sociedade de massa acerca das transformações
“democratizantes” nela reconhecidas. Estes denunciam ainda o “caráter manipulador”
assumido pela comunicação de massa quando se encontram a serviço das elites burguesas, e
alertam para o temível colapso das instituições mediadoras tradicionais.
A resistência às transformações sociais associadas à massificação da cultura, no
entanto, já se manifestava na Europa ocidental mesmo antes da indústria e do mercado se
firmarem como mediadores de trocas simbólicas. Segundo o historiador Arno Mayer
(Mayer, 1987), em fins do século XIX o continente europeu ainda se encontrava sob a
hegemonia dos valores, princípios e instituições da sociedade do Antigo Regime, não
efetivamente derrubados pelos pressupostos liberais do frágil capitalismo pós-mercantil. Os
axiomas iluministas teriam sido distorcidos e neutralizados quando adaptados às
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concepções de mundo preexistentes, numa conjuntura que oferecia fortes restrições para o
pleno desenvolvimento do projeto liberal.
A própria falta de enraizamento social e político dos ideais afirmados pela burguesia
racionalista – que saudava os progressos científicos, tecnológicos e materiais como
elementos desencadeadores de um processo positivo de avanço da racionalidade, da ética e
da prosperidade –, motivaram críticas que no fim do século se reverteram em contestação
hostil por parte de intelectuais e artistas que questionavam "o positivismo da teoria social, a
racionalidade do homem e a realidade do progresso" (Idem, p. 268).
Teóricos da decadência enxergavam no impacto das massas sobre as cidades o
declínio progressivo da Europa clássica e da cultura superior, até então garantida pela
ordem social tradicional à qual se aliavam. Compatíveis com as mentalidades, posturas e
crenças das aristocracias políticas, as idéias de decadência estiveram intrinsecamente
relacionadas às inseguranças de fim-de-século, sem deixar, no entanto, de abrigar uma
esperança de restauração da antiga ordem. O contragolpe – como tentativa de superação da
crise atribuída à “desorientação” do progresso capitalista – deveria se dar, principalmente,
através do combate às reformas democratizantes.
Propagou-se entre muitos grupos de intelectuais a revolta contra o cientificismo, o
materialismo, o positivismo e tudo o que representavam. Armaram-se contra o socialismo e
os movimentos operários com receio de que uma democracia de massas invalidasse o
cultivo da erudição e da cultura clássica e acentuasse a ação degradante das plebes urbanas
em ascensão. Claramente aristocrata em sua crítica à natureza da modernidade, esta
vertente do pensamento europeu alimentou um desprezo pela burguesia e por seu modelo
de Estado tido como promotor da contaminação da cultura tradicional, incentivador da
corrosão da autoridade aristocrática e veiculador da barbarização da Europa pela mistura de
classes e pelo nivelamento social.
Ainda de acordo com a perspectiva elitista aqui apresentada, a seleção de uma casta
superior de homens encarregados de deter o avanço da vulgaridade popular e salvar a alta
cultura da transfiguração está atrelada à reprovação das pretensões democráticas e
socialistas que reivindicavam poder de decisão para seres inaptos, ou seja, maiorias
despreparadas, respaldadas por teorias que definiram a soberania segundo princípios de
igualdade.
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Assim, o caráter pré-industrial e pré-burguês, ainda predominante nas sociedades
européias neste momento, coloca as inovações sociopolíticas em confronto com as
permanências garantidas pela resistência da antiga ordem, evidenciando a capacidade de
assimilação e neutralização dos princípios renovadores por parte da reação aristocrática, e
apontando para as interações diacrônicas entre leituras e temporalidades diversas num
mesmo contexto sociocultural.
Alguns ecos deste pensamento podem ser localizados nos pressupostos das “teorias
da cultura de massas”, se nos basearmos nas análises de Strinati acerca do elitismo de suas
críticas. É claro que o medo da ascensão política e da intervenção cultural da plebe, e o
receio da perda de autoridade por parte dos representantes da alta cultura não podem ser
diretamente transpostos para a caracterização destas correntes analíticas. Isso implica
reconhecer que, neste caso, a defesa da autenticidade do popular e a crítica à padronização
da criação artística na sociedade industrial, mesmo que fundadas em referenciais
equivocados, não se traduziram necessariamente numa demarcação de território de elites
políticas e intelectuais preocupadas com o processo avançado de democratização
encaminhado pela modernidade. As “teorias da cultura de massas”, de acordo com o
próprio Strinati, encontraram adeptos inclusive entre autores marxistas empenhados em
libertar o proletariado da influência ideológica dos meios massivos controlados pelo capital.
Mesmo assim, é possível reconhecer, em todas estas leituras, critérios concebidos em
espaços socioculturais diferenciados daqueles que elas próprias identificam como popular,
esteja ele em uma “manifestação folclórica” ou na “produção massificada” da indústria
cultural.
Este juízo crítico se funda em critérios fornecidos pela cultura erudita, não
problematizados nem relativizados em sua aplicação. Ou seja, distinções construídas por
intelectuais que elegeram o próprio referencial como padrão e o generalizaram na análise
da atuação cultural dos grupos mais diversos. Desconsideram a pluralidade e a diferença da
interpretação da arte massificada pelos consumidores e as reformulações operadas pelos
grupos subalternos. Menosprezam o valor das apropriações alternativas insistindo em
identificar uma passividade generalizada em um povo irremediavelmente ingênuo. De
acordo com Strinati, “a cultura é popular porque está aberta a usos e interpretações de
diferentes grupos sociais” (Strinati, Op. Cit., p. 51), e a mediação realizada pelos meios
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massivos dá margem a reconstruções e apropriações de signos antes monopolizados por
classes específicas.
Mesmo assim, a cultura de massas continuou sendo vista como uma vulgarização do
popular operada por meio de técnicas industriais e voltada para o consumo irrefletido de
grupos socialmente deslocados. Grupos estes, vulneráveis à manipulação ideológica
realizada pelos meios massivos de produção e difusão cultural. Neles, a arte erudita e a
cultura folk estão presentes, embora descaracterizadas e empobrecidas, já que em suas
conformações originais não deteriam grande valor mercadológico.
A utilização de técnicas modernas na produção em larga escala de cultura de
consumo também é vista como degradante e desconfiguradora, pela padronização, repetição
e fragmentação que promove. Tais processos não poderiam abrigar a possibilidade de uma
criação artística, que se definiria pela singularidade e pela complexidade das obras e pela
autonomia e liberdade de seus autores. Da mesma forma, a cultura folk se distancia dos
mecanismos industriais por se manifestar em circunstâncias comunitárias e orgânicas, e
exigir de seus produtores o domínio completo da técnica artesanal que determina sua
autenticidade. Além disso, o caráter artificial e impositivo da cultura de massas contrastaria
com a espontaneidade e a representatividade do folclórico.
Distinções entre erudito, folk e massivo, no caso dos estudos acerca da cultura de
massas, estariam, assim, norteadas por uma diferenciação entre o passado e o presente que
inverte a lógica do progresso e identifica nas transformações modernas um processo
degenerativo. Este movimento, ao desagregar a ordem anterior à sociedade industrial,
caminharia de um passado superior, orgânico e integrado para um futuro decadente,
desordenado e alienante.
No Brasil, segundo Ecléa Bosi, as análises da massificação da sociedade também
estiveram, por muito tempo, ordenadas pela apreensão dicotômica que opõe uma cultura
hegemônica artificialmente imposta pelos meios de comunicação a uma cultura popular
espontaneamente formada no cotidiano das comunidades. A autora põe em questão a
realidade de uma existência cultural assim definida e enfatiza as interrelações entre
instâncias supostamente distanciadas das culturas populares e das indústrias culturais. Bosi
defende que a adoção de uma noção específica de cultura popular por parte dos estudos
acadêmicos, das criações artísticas e dos discursos políticos que se debruçam sobre as
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manifestações do subalterno nas sociedades de massa, implicará, sempre, uma escolha
arbitrária que denunciará a posição política e a postura ética de seus formuladores.
Ariano Suassuna faz sua escolha ainda bastante referenciado nas posições
inauguradas pelas teorias da sociedade e da cultura de massas, mesmo que não cite nenhum
de seus autores como referência. A “comparação intersubjetiva” destas posições nos
permitirá esclarecer as especificidades do pensamento do escritor e localizar suas
proximidades com uma tendência crítica que, segundo Bosi, ainda direcionou, por muito
tempo, as leituras intelectuais acerca do massivo.
Apesar do sensível crescimento demográfico, da urbanização das sociedades
ocidentais e da descentralização dos focos de produção de conhecimento em andamento
desde o período de formação das teorias aqui abordadas, permaneceram parcialmente
atuantes, na década de 1970 – momento em que Bosi publica seu estudo e que Ariano
Suassuna funda o Movimento Armorial –, as categorizações hierarquizantes de suas
primeiras críticas ao massivo. Diz a autora:
O que não parece ter mudado muito foram as atitudes críticas dos intelectuais mais
exigentes que hoje, como há um século, acusam essa cultura de massa de não ser cultura,
mas indústria; de não ser orgânica e co-natural aos leitores que atinge, mas exterior a eles e
manipuladora da sua inteligência e da sua sensibilidade. (Bosi, 1977, p. 65)
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Suassuna condena o “imediatismo”, a “banalidade”, a “alienação” e a
“superficialidade” que “nivelam por baixo” a produção cultural contemporânea, em
detrimento dos valores por ele definidos como tradicionais e autênticos. Hierarquiza
passado e presente, identificando nos meios de produção e difusão pré-industriais formas
superiores de atuação cultural. Sendo assim, assume a “função de resistência” inaugurada
pelas vanguardas intelectuais européias do início do século XX, frente ao avanço da cultura
de massas. Empenha-se no “esclarecimento do povo”, com o intuito de reverter a situação
moderna de decadência, agindo pela via da educação e da política cultural, e recuperando a
autoridade para agir como “árbitro do gosto e dos valores culturais e artísticos” (Strinati,
Op.Cit., p. 35). Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Suassuna
reconhece a posição social privilegiada que ocupa, se colocando, no entanto, enquanto
intelectual crítico, a serviço dos povos oprimidos do país:
Não pretendo passar pelo que não sou. Egresso do Patriarcado rural derrotado pela
Burguesia urbana em 1889, 1930 e 1964, ingressei no Patriarcado das cidades como escritor
e professor que sempre fui (...), como escritor pertencente a um país pobre e uma sociedade
injusta, estou convocado a serviço. (Suassuna, 1990, p. 28)
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da ciência, a diluição de fronteiras, a reprodutibilidade da arte, a vulgarização da cultura,
etc; aquelas estiveram voltadas para o redirecionamento do processo de modernização
ocidental, e, por isso, também podem ser entendidas em associação com os conceitos de
modernidade e decadência, da forma como foram colocados por Matei Calinescu
(Calinescu, 1999).
Este autor identifica, a partir da segunda metade do século XIX, a distinção entre
duas modernidades, uma definida como fase da história da civilização ocidental e outra
entendida enquanto concepção estética. Tal divisão teria implicado a configuração de uma
relação recíproca de hostilidade e influências entre os grupos intelectuais que afirmaram a
crença na evolução positiva da história moderna e aqueles que se engajaram na crítica aos
seus pressupostos. A definição de decadência também se formou por contraposição à idéia
de progresso: paralelo ao desenvolvimento tecnológico, o crescimento do sentimento de
perda e a constatação do império da alienação teriam acentuado a visão de uma sociedade
em processo de degeneração.
Ao sistematizar os princípios e valores burgueses, apresentando-os como
mentalidade ao mesmo tempo inaugural e inerente ao período moderno, Calinescu os
contrapõe à modernidade estética que abrigou reações antiburguesas de naturezas diversas,
tendo tal postura negativa como principal fator de unidade. Esta condenação à cultura
burguesa assumiu um caráter diversificado que ia de críticas político-ideológicas até
contestações fundamentadas na afirmação da “arte pela arte”, passando pela postura
romântica de desprezo ao que foi definido como “filistianismo”: superficialidade,
banalidade, falsidade e excessivo pragmatismo do comportamento e da produção cultural
moderna, atribuídos à origem de classe de seus representantes.
Suassuna também apresenta uma crítica insistente à afirmação burguesa de um
progresso homogeneizador, identifica um processo degenerativo na consolidação da cultura
de massas no Brasil e o associa aos ideais capitalistas de funcionalidade e mercantilização
que distanciam a indústria cultural da atuação “autêntica” do popular e dos procedimentos
criativos da “verdadeira arte”. Diz o escritor:
O cordel tem uma capacidade de resistência fantástica. A dúvida existe para quem tem
dificuldade de entender como sobrevive uma classe social diferente da sua (...) Quer dizer,
ele não entrou no circuito de produção capitalista, essa é a sua fraqueza e penúria, mas
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também a sua força; ninguém mata ele não (...) Literatura para mim não é mercado. É a
minha festa, é onde eu me realizo. Digo sempre: arte é missão, vocação e festa. Não me
venha com essa história de mercado. (Suassuna In: Oricchio, Op. Cit.)
Por cultivo quero dizer uma atitude dinâmica, um mergulho e uma aprendizagem constantes
das várias tradições, somados a uma luta sem tréguas contra a homogeneização e a
simplificação, a favor da continuidade das manifestações culturais, que se encontram a
margem do grande circuito comercial de produção e que oferecem alternativas de expressão
e identificação frente à brutalidade excessiva dos produtos culturais oferecidos para
consumo. (Carvalho, 1992, p. 35)
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No entanto, a adoção do mercado como categoria de análise das “culturas
populares” pode, segundo Bosi, contribuir para a ampliação do termo. Para a autora,
quando a indústria se apropria do folclore gera um produto “popularesco”, quando absorve
a arte culta, a transfigura no kitsch. Ambos podem ser identificados como manifestação do
popular nas sociedades de massa. Os estudos das culturas populares, que antes se
centravam no folclore produzido em condições pré-industriais, podem então reverterem-se
em investigação do subalterno nos centros urbanos ocidentais.
Devemos assim, entender o popular como sistemas culturais que organizam as
percepções dos grupos e dinamizam sua atuação social. Estabelecendo uma relação estreita
entre as condições sociais e a manifestação do folclore, reconhecemos que este conceito se
encontra ameaçado pelo processo de urbanização, sem que, no entanto, isto signifique
extinção dos sistemas simbólicos integrativos, que podem coexistir ou se agregar ao estado
massivo das novas realidades.
Consideramos, portanto, o intercâmbio entre as diversas formas de criação e atuação
aqui apresentadas, como relações transculturais que provocam transformações em todas as
partes envolvidas, dificultando uma distinção rígida entre popular, erudito e massivo, e se
contrapondo à idéia de aculturação como anulação da cultura subordinada e imposição da
hegemônica.
Seguindo este mesmo raciocínio e aplicando-o à análise das relações globais entre
culturas, Featherstone (Featherstone, 1997), identifica na idéia de globalização como
tomada do planeta pelo modelo hegemônico advindo dos países capitalistas centrais, uma
concepção guiada pela compreensão das culturas como sistemas fechados, homogêneos e
ainda referenciados no recorte conceitual oferecido pela noção de Estado-Nação. E é sob tal
perspectiva que Ariano Suassuna concebe a mundialização em curso. O escritor afirma que,
“para o imenso conserto da cultura universal, cada povo tem que entrar com sua nota
peculiar e única” (Suassuna In: Barbosa, 2000). Interpretando as interações culturais em
termos sistêmicos, reconhece no processo de globalização a imposição imperialista e
degenerativa da cultura de massas norte-americana. De acordo com Suassuna:
(...) a universalização da cultura não pode ser esse achatamento que se pretende. A
verdadeira universalidade respeita as singularidades do país. Todos entram com sua parte
compondo a vasta sinfonia da cultura. Ela é feita de contrastes que não são contrários, mas
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complementares. Do jeito como está proposta, a globalização é apenas a prevalência de
uma cultura única, a norte-americana, sobre todas as outras. Só não vê esse fato quem não
quer (Suassuna In: Oricchio, Op. Cit.).
Eu vivia dizendo que ele estava equivocado. O maracatu não precisa do apoio do rock. Ao
contrário, quando ele se apoiava sobre o rock saia contaminado. Chico defendia a posição
oposta, achava que a união do rock com o maracatu enriquecia os dois. Discutíamos, mas
depois ele dizia assim, referindo-se a mim: “Ele é um monstro, sabe tudo, tem razão em
tudo”. Mas ficava com a opinião dele. Então eu apoio mesmo é literatura de cordel,
maracatu rural, bumba-meu boi, Mestre Ambrósio, Alma em Águas, esse pessoal (Suassuna
In: Oricchio, Op. Cit.).
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seu mandato, Suassuna também acaba reconhecendo, de alguma forma, a importância do
trabalho de Chico Science em termos de valorização da arte popular:
(...) nós nunca brigamos, mas eu discordei da sua proposta artística e continuo discordando.
Mas isso não impede que eu reconheça que Chico contribuiu para que a juventude de classe
média voltasse as suas atenções para o Maracatu rural. Ainda acho que o melhor rock do
Brasil é o dele, justamente por causa da fusão com o Maracatu (Suassuna In: Barbosa,
1998).
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autor denominou sociocentrismo. Ao julgar, não só o outro, mas também a si com supostos
valores universais fundados em seus próprios preceitos, os colonizadores encontraram no
Novo Mundo uma oportunidade única de reforçar sua posição de superioridade.
Acreditavam não apenas no primado da razão, mas na superioridade do modelo de
racionalidade ocidental, que hierarquiza os povos a partir do estabelecimento de níveis de
capacidade racional, capacidade esta que atingiria seu ápice justamente nas sociedades
européias. Quando tomam sua própria forma por essência, o barbarismo é o valor atribuído
aos diferentes povos com os quais passam a conviver.
A crença no absoluto é reconhecida por Todorov como característica da cultura
ocidental. No encontro entre povos sob a ordem colonialista, a projeção de si sobre os
outros transformou afirmações do etnocentrismo europeu em interrogações pré-
conceituosas. Ou seja, partia-se de respostas prontas, de verdades científicas estabelecidas,
para buscar confirmá-las, em terras estrangeiras, justificando assim os mecanismos
violentos de dominação.
Desta forma, a história de sucessivas ocupações simbólicas da América Latina
evidencia a condição colonialista de sua própria fundação, e forja tanto reações de rejeição
do estrangeiro quanto apropriações deturpadoras e desestabilizadoras de seus signos. Ao
libertarem tais signos impostos de sua carga opressora, os mangueboys propõem-se a
contaminar e ser contaminados pelo estrangeiro e pelo massivo. Põem o discurso
civilizador em questão ao expressarem em sua arte a persistência de formas de vida pré-
industriais e não-ocidentais, os contrastes entre miséria e riqueza, as convivências, as
interações e os conflitos culturais nos âmbitos regional, nacional e internacional. Criam o
novo na brecha entre a modernização e a memória histórica periférica, anacrônica e
excluída da sociedade subalterna que compõem.
Assim, a visibilidade atual das histórias e vozes abafadas, e a apreensão das
opressões e desigualdades como modo de atuação da modernidade possibilitaram a auto-
afirmação dos povos colonizados a partir de narrativas formuladas nas fronteiras do
moderno, e por meio do deslocamento de categorias fechadas que negligenciaram as
relações interculturais proporcionadas pelo próprio colonialismo. Funda-se um novo
conceito de cultura, decorrente não do encadeamento lógico entre símbolos que se impõem,
mas da atuação e da significação social destes, apreendidas a partir de situações concretas
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de conflitos, discordâncias e sincretismos, ou seja, por meio da afirmação das diferenças e
não da construção de coerências.
Tentamos incorporara tal compreensão ao abordarmos algumas das formas possíveis
de atuação e apropriação do popular através da análise das construções discursivas e
estéticas do Manguebit e do Armorial. Valermos-nos, assim, da proposta de interpretação
das culturas apresentada por Clifford Geertz: identificar “estruturas superpostas de
inferências e significações”, buscar localizar as narrativas dos grupos estudados, identificar
“suas bases e sua importância”, e desenvolver nossa leitura “à maneira de um crítico
literário”, desmontando composições conceituais complexas e reconhecendo as
irregularidades, incoerências, emendas e rasuras como fatores constitutivos das culturas e
de seus discursos. Por fim, esta postura interpretativa pressupõe que:
E foi dentro do contexto identificado por Canclini (Canclini, 2000) como “cultura
urbana” que procuramos compreender os fenômenos não enquadráveis nos rótulos “culto”
ou “popular”. Embora este autor denuncie a redução interpretativa que a simples
identificação da urbanidade de uma formação cultural complexa pode provocar, as
reordenações de tradição, as variadas posturas em relação às expressões das artes populares
aqui apresentadas e seus diálogos com múltiplas linguagens, as novas formas de mediação
cultural fundadas, as constantes tensões entre instâncias e níveis socioculturais diversos, as
relações cotidianas entre periferias e hegemonias e os hibridismos gerados por tais
interações, nos fizeram identificar, na cidade do Recife, uma estrutura de significação
associável a muitos outros centros urbanos periféricos.
Mais ainda, o desmanche da lógica ordenadora que restringia a ação de
determinados elementos simbólicos às histórias de grupos específicos, localizados em
universos culturais distintos e isolados, denunciou a fragilidade de categorizações e
divisões da produção artística por estilos, gêneros, ou estratos sociais. Ou seja, inviabilizou
os agrupamentos fundados em referências fixas, quebrando a unidade semântica e histórica
entre os signos que identificariam o popular em contraposição ao erudito ou ao massivo.
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De acordo com Rita Segato (Segato, 1992), os trabalhos que pensaram o folclore e a
cultura popular até a revisão paradigmática realizada no interior das ciências sociais nos
anos de 1960 se desenvolveram a partir do esforço de reconhecimento, delimitação e
definição de seu objeto de estudo. A valoração cultural do popular fundamentada no
nacionalismo romântico daria ao folclore uma conotação diversa da de um simples “saber
vulgar”, e os interesses políticos em torno destas questões permaneceriam articulando-as
em termos identitários até meados do século XX. Sua transposição para a América Latina
passa por uma adequação à configuração heterogênea das culturas, que associa a distinção
temporal e social que o conceito de folclore evoca à diversidade étnica dos países
colonizados. A mestiçagem se apresenta então como fator determinante na categorização
operacionalizada pelo estudo sistemático das tradições populares no Brasil.
Os primeiros apontamentos políticos dos folcloristas latino-americanos atentaram
para o risco de extinção do folclore diluído pelo processo de industrialização e pelo
crescimento da cultura de massas difundida pelos meios de comunicação. Como já foi
colocado, temia-se que a perda de identidade dos povos latino-americanos se mostrasse
como conseqüência irreparável de tal processo.
Sendo assim, os pesquisadores se empenharam em dar visibilidade aos povos que
não estariam inseridos no movimento de urbanização, por serem eles os guardiões das
tradições nacionais legítimas, testemunhas das origens e garantidores da continuidade das
culturas. E tal origem foi localizada na cultura oral tradicional, e não na cultura popular
massificada, sendo esta assimilada pelo povo e aquela por ele produzida.
Se concordarmos com José Jorge de Carvalho, quando este nos diz que “há sempre
uma relação muito estreita entre conceituação de cultura e formulação de políticas
culturais” (Carvalho, 1992, p. 23), não será difícil perceber que as idéias de Suassuna se
aproximaram, neste aspecto, à perspectiva folclorista, e que esta se reverteu num critério
estético que o fez afirmar, enquanto autoridade intelectual e política, preferência por
determinado tipo de construção simbólica.
Trata-se, no entanto, de abordagens esgotadas, distantes da configuração
apresentada pelo contexto contemporâneo – conjuntura que terminou por impor aos
diálogos com as culturas populares a consideração das manifestações urbanas e da
apropriação da cultura tradicional pelos meios de comunicação de massa. O “folclore” deve
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ser visto apenas como parte das culturas populares, que também podem ser entendidas a
partir de suas intervenções no massivo e das incursões que este realiza sobre seus
elementos.
Desde os primeiros esforços românticos de valorização do popular como reação
frente ao racionalismo e à ilustração burguesa, uma nostalgia por “culturas populares
autênticas” esteve norteando os projetos de fomento. Ao invés da autenticidade, a
“representatividade sociocultural” das expressões deveria se destacar como critério de
direcionamento das políticas voltadas para promoção das culturas populares. Esta nova
maneira de conceber o subalterno ampliaria o caráter das iniciativas para além da simples
preservação de patrimônio e aumentaria as possibilidades de participação democrática e
crítica dos próprios produtores.
Sendo que mesmo a fundação da soberania política sobre o respaldo popular foi,
desde o princípio, paradoxalmente associada à constatação de uma suposta inadequação
cultural do “povo” ao exercício da cidadania. Definido por negação, o subalterno foi visto
como lugar do não culto, parte de onde se travam relações não mediadas pela razão,
contraditórias com a própria noção de responsabilidade civil. Neste sentido, novas formas
de legitimação de desigualdades foram criadas, quase sempre referenciadas na mesma
lógica evolucionista que hierarquizou diferenças culturais e justificou as “intervenções
esclarecidas” das elites.
Com o surgimento social das massas, as acepções do popular passam a cumprir uma
função central nas definições da composição cultural do Ocidente. Reações de desprezo e
pessimismo estavam, no fundo, permeadas pela consciência de que o massivo mostrava-se
como caráter formador e inerente à própria modernidade. No mesmo momento, a
introdução do conceito de classe pela crítica marxista atrelou a idéia de alteridade popular
às condições de desigualdade e entendeu a auto-afirmação dos grupos subalternos como
luta contra as opressões sociais. Ou seja, a compreensão da especificidade do capitalismo
enquanto ordem e a declaração do potencial de transformação das classes populares
direcionaram a apreensão das relações de dominação por parte dos adeptos desta corrente
teórica. Podemos, neste sentido, reconhecer nas abordagens contemporâneas do popular um
movimento de expansão conceitual, que tem apreendido o protesto das diferenças ante as
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hegemonias como uma intricada dinâmica de conflitos, negociações e sincretismos,
colocando em novos termos tanto as análises críticas quanto as proposições políticas.
O que a intensidade dos debates e recorrência dos problemas conceituais podem nos
mostrar é que a complexidade da configuração das culturas contemporâneas invalida
leituras ortodoxas e dissolve critérios fundados unicamente na dimensão tradicional dos
fenômenos, e que um ideal de pureza só pode se afirmar em termos puramente conceituais,
já que, empiricamente, o hibridismo mostra-se como caráter de toda formação cultural.
Enfim, as concepções de popular e massivo como universos completamente
distintos só puderam ser sustentados por folcloristas preocupados com a preservação de
uma autenticidade popular rural, supostamente não corrompida pelo processo desagregador
identificado nas transformações contemporâneas, ou por uma vertente crítica da sociedade
de massas que enxergou na atuação das classes populares um caráter passivo que as
sujeitou às induções dos grupos hegemônicos. Ambas as posições apreenderam o popular
fora da dinâmica histórica, e excluído da disputa pela construção de sentidos.
O entendimento dos meios massivos como simples instrumentos de dominação
impediu que se identificassem na indústria cultural expressões de demandas simbólicas dos
mais diversos grupos em co-atuação com as narrativas hegemônicas, e terminou por
reforçar a imagem ideológica que identifica o povo como massa manipulável. Por isso se
faz necessária a consideração dos diversos papéis exercidos pelos meios massivos, e de sua
importância estratégica para construção de uma democracia efetiva nas sociedades
contemporâneas.
Nesta perspectiva, a crítica tecida pelo Manguebit à homogeneização promovida
pelos meios massivos de comunicação e difusão cultural passa pela reivindicação de
espaços democráticos em sua programação e não pela condenação dos veículos em si. Em
um texto onde combate a política cultural do Estado, Fred Zero Quatro denuncia os
esquemas mercadológicos que dominam as emissoras de rádio no país. Segundo o músico,
a predominância de canções nacionais nas programações das rádios brasileiras não implica
abertura para a pluralidade ou resistência cultural às imposições do capital transnacional.
Ao contrário, trata-se justamente de uma rendição ao domínio das grandes gravadoras sobre
a qualidade ou a diversidade da produção veiculada e ao império do lucro, já que apenas
versões formatadas segundo os critérios comerciais mais pasteurizadores conseguem
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espaço no sistema de radiodifusão. Dito isto, Zero Quatro reivindica a reforma do sistema
de comunicação e nos atenta para a urgência da consideração dos meios massivos por parte
das políticas culturais. Questionando o discurso do então Ministro da Cultura, Francisco
Weffort, o músico afirma:
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interpretativo de artistas que captaram as diversas dimensões e feições do universo urbano e
as representaram em sua criação. Empreendeu uma apropriação subversiva das inovações
tecnológicas para enfatizar a diversidade, a criatividade e a dinâmica, atitude muito bem
definida pelo antropólogo Hermano Vianna no encarte do Rádio S.A.M.B.A., quarto álbum
da “Nação Zumbi”:
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radicalmente seus critérios, já que reivindicam, para além da valorização do tradicional, a
promoção das manifestações populares urbanas e a democratização dos meios massivos.
Colocam-se frente aos impasses de seu tempo e procuram realizar uma leitura
crítica da configuração sociocultural sob a qual atuam. Desta forma, como procuramos
demonstrar no capítulo anterior, o posicionamento dos mangueboys diante do contexto
contemporâneo foi assumido por Chico Science e por ele descrito de maneira poética.
Chico canta:
a engenharia cai sobre as pedras/ um curupira já tem seu tênis importado/ não conseguimos
acompanhar o motor da história/ mas somos batizados pelo batuque e apreciamos a
agricultura celeste/ mas enquanto o mundo explode/ nós dormimos no silêncio do bairro/
fechado os olhos e mordendo os lábios/ sinto vontade de fazer muita coisa. 55
55
“Enquanto o mundo explode”. Letra: Chico Science Música: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia,
Sony Music, 1996.
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