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Contos horizontais Flávio Martins

Autor de Reflexivas numa mesa de boteco


Contos para diversão e reflexão

Livro registrado e catalogado. Reprodução proibida.


Belo Horizonte
Março 2007
Se eu fosse virtual

“Chegou o tempo em que ou você é alguém@onde.oque ou você não é


ninguém”

Se pudesse ser uma coisa, uma outra coisa, eu queria ser um


software, digital, virtual. Não seria muito exigente. Bastava ser virtual.
Se eu assim fosse, eu dominaria as dimensões do tempo e do espaço e
viajaria pelo planeta digital e me deliciaria congestionando o tráfego
na Trafalgar Square. Literalmente passearia pelos sites literários e
num dia de sol enviaria um e-mail a Castro Alves e num navio
negreiro, navegaríamos por mares nunca dantes navegados em
companhia de Camões e Robinson Crusoe. Também por e-mail,
convidaria Helena e Capitu para ir à Espanha assistir a uma tourada e
mais tarde, em casa de Almodóvar, descansaríamos numa cama para
três.
Nas terras da Rainha, pesquisaria na Enciclopédia e com
pontualidade Britânica iria ao chá das cinco com Shakespeare e
Sherlock. Convidaria Rimbaud para um bate papo na Gallerie La
Agradeço à Deus.
Fayette e numa sexta à tarde me conectaria com Belo Horizonte,
aonde iria ao clube da esquina, tomar um café com bytes em flores virtuais para Madame Bovary. Digitalizaria o amor, para que
companhia de Milton e Lô Borges. minha musa não guardasse de mim apenas impressões digitais e
Ah, se eu fosse virtual! Se eu fosse virtual, teria memória sem fundaria com Gullar a Academia Brasileira de Bytes. Não seria um
limites e poderia guardar tudo do passado e do presente. Então, me Highlander, mas seria imortal.
presentearia com um álbum dos Mutantes. Seria amigo de Vinícius, de Se eu fosse virtual, simularia o meu Taj Mahal, onde leria As
Chico e de Janis Joplin. Com Lennon e McCartney, Pena Branca e mil e uma noites em uma só, deitado confortavelmente em minha rede.
Xavantinho, formaria uma banda larga inusitada e tocaríamos juntos Iria ao Louvre e admiraria cada píxel da Mona Lisa. Materializaria-me junto

em MP3.. Seria virtual, mas com sentimentos e, com Noel e ao túmulo de Salvador e o tiraria dali para meu alívio e para a persistência

Adoniram, choraria melosas canções de amor numa rádio digital. de sua memória. Gravaria em placas homenagens a Sebastião Salgado,
Picasso e Caetano constatando que a Guernica é aqui. Aprenderia com
Mesclaria Pixinguinha e Marisa Monte em uníssono, cantando Rosa,
Freud sobre Édipo e o Ego num site de psicologia e entenderia que quando
em poesia não em prosa, para fazer alguém feliz. Se eu fosse virtual,
os sonhos assumem forma concreta, surge a beleza. Seria menino e correria
Bach me ensinaria que na música, a nota codifica o som, e eu o
Brasil afora em busca de pica-paus amarelos ou de uirapurus cantantes.
explicaria que na informática, o bit codifica a ação.
Pularia carniça nas pinceladas de Portinari em companhia de Bardi e me
Se eu fosse virtual e cometesse crimes, Dostoievski seria meu deixaria deslizar nas curvas generosas de Niemeyer. Imprimiria elogios de
advogado e meus castigos minimizados. Poderia até ser processado, louvor á brasilidade de Macunaíma e Mário de Andrade me convidaria para
mas por processadores, que me mandariam pra Alcatraz. Lá eu um banquete antropofágico em casa de Tarsila, numa mensagem com a
escreveria minhas memórias do cárcere e um postal eletrônico para Muiraquitã em anexo.
Marco Polo. Planejaria uma fuga lá para o reino de Khan, a quem eu Se eu fosse virtual, conversaria com Da Vinci em código e
contaria de minhas andanças pelas terras do sem fim. Depois, criaria compilaria com Einstein o quântico dos contos . Instalaria-me com
um portal de games para jogar Dama com as Camélias e enviaria Clarice em uma rede e a ouviria explicar sobre como (d)escrever o
amor. Entenderia grego, português, inglês e outras línguas porque Conto inflamado
armazenaria todas as línguas na memória. Entraria nos arquivos do
FBI, do DOPS, do SNI e da CIA, de onde hackearia informações sigilosas e
as compartilharia com Henfil e Betinho. Criaria uma comunidade alternativa
Era uma vez um homem. Não. Não era uma vez um homem. É
no Orkut e Raul Seixas seria o síndico. Em uma página de poesia, jogaria
a vez de um homem. Um homem simples, porém determinado e que
conversa fora com Drummond, depois andaríamos por uma rua qualquer de
passava a vida vivendo fatos e experimentando decisões. Esse homem
Itabira, e no meio do caminho, nos assentaríamos em um banco de dados
também qualquer para escrever às crianças. era João Almeida, 43 anos, deputado e advogado. Separado pai de

Se eu fosse virtual, programaria com Júlio Verne, dez voltas duas filhas, uma lésbica e ele com problemas de memória.

ao redor da Terra, à velocidade de um download, num Led Zeppelin Às vezes até brincava com coisas mais complexas, mas no
amarelo. Buscaria no Google, um trabalho para Marx e trocaríamos fundo sua vida era muito simples. Tudo ia bem ate o dia em que teve
informações sobre workgroups. Após o almoço, Newton me ofereceria uma uma overdose de absinto com Bauhauss. Foi na casa do Trindade. A
maçã e eu o convidaria a ensinar física aos engenheiros da Apple por casa rodava, as pessoas também rodavam e elas eram meio retorcidas e
videoconferência. Se eu fosse virtual, ao envelhecer, não me preocuparia de um colorido meio misturado como tintas numa aquarela. Mas o que
com a forma física e nem sofreria cirurgias plásticas ou lipoaspiração. No o intrigava mesmo era a sensação de que flutuava e que tudo se
máximo, Ivo Pitangui me atenderia em uma clínica de upgrades e eu sendo movimentava em câmara lenta. E que gosto amargo era aquele na
velho, não morreria. Bastaria um update, um download, e eu me boca? Um misto de amargo e adocicado. Pela primeira vez na vida
renovaria como a Fênix.Tudo isso seria possível se Deus, o criador, João entendeu o significado do que era agridoce, e olhe que já tinha
fosse programador e, se no ato de me criar, tivesse feito um software, recorrido ao Aurélio várias vezes. A vida apresenta fatos e fatores que
não um escritor. Ah, se eu fosse virtual. apenas podem ser compreendidos quando vividos e o agridoce era um
deles.
Dois meses depois João voltava a trabalhar e depois de um sempre o deixavam confuso, já que se esquecia do que levara o filme
longo dia de trabalho, resolveu reler aquele fim do Oeste Causticante. àquele final.A soma dos seus medos era tão intensa que se assustava
Não conseguiu se concentrar e ligou a TV. Estavam mostrando a cena até mesmo com um ser desprezível e efêmero que vive por apenas três
em que Jody conversava com o terrorista irlandês que estava dias.
encarregado de matá-lo. Adormeceu sentindo um torpor suave e vez João mantinha o significado das coisas fixo na memória e
por outra um mosquito o perturbava e ele espantava o mosquito com o associava o significado ás palavras, então o problema era que como
Clarim Diário que estava amassado perto da poltrona. Novamente o uma máquina, ele não conseguia mudar o significado de acordo com o
mosquito aparecia com seu zumbido supersônico e passeava próximo contexto. A semântica era uma verdade absoluta dentro do que ele
ao seu ouvido com vôos rasantes. Ele se contorcia espantava o apreendia e isso não mudava, porque se algo era ambíguo, ele
mosquito novamente e logo se esquecia. Se sua memória ajudasse, assimilava logo o mais geral, não conseguia abstrair das palavras um
mandaria o mosquito para Pasárgada para atormentar o Rei, mas sentido diferente do que encontrava no dicionário.
esquecia-se facilmente das coisas desde aquela noite do absinto. Sua João nunca sabia o que guardar e o que descartar e vivia a
memória de curto prazo estava avariada e a avaliação médica dizia que confundir as coisas. Não sabia se Nero era um programa ou um
certamente depois de alguns meses isso iria melhorar. Esqueceu-se até político como ele. Não sabia ainda que uma reação química resultante
da TV ligada e João adormecia e acordava na sua incansável batalha de comburente, combustível e fogo resultam em modificações na
contra o mosquito. De fato o que estava acontecendo era que ele se natureza da matéria. E essa reação química tinha nome: combustão.
esquecia do mosquito e quando se lembrava tinha medo de mata-lo. Num lapso de lembranças semi-adormecidas, se apossou do jornal e
Mas como pode um homem vivido e experimentado se deixar ateou fogo, ciente de que a fumaça espantaria o inseto repugnante. O
amedrontar por um Anopheles Nyssurhynchus? Mas tinha, tinha medo único problema era que o sofá em que estava deitado era de tecido
do mosquito e dos finais tristes dos filmes. Isso porque os fins de filme sintético e listrado
Ninguém sabia, mas Ele era um vampiro decadente. Filho do demo.
Atração sanguínea
Em Santa Teresa Morfino conhecia vários taxistas, dentre esses
Adão, um ex-funcionário público aposentado, barrigudo e careca.
Alto, magro e esguio, Morfino andava pela redondeza do Adão era o que alguém poderia considerar como sendo peça rara e
Maletta com um ar de preocupado. Sabia que seria um zeninguém se sortudo. Usava roach, perfume da Avon, corrente de ouro e toda quinta
não conseguisse uma nova vítima para seu plano. Morfino não cortava cabelo no Mercado Central. Além do táxi, Adão tem uma
aparentava ter a idade que tinha, era muito mais velho e era impossível coceira gostosa no pé esquerdo e uma namoradinha de parar o trânsito.
determinar com quem se parecia. Diziam à boca miúda que era a cara Morfino nunca a tinha visto quando um domingo, andando pela praça
do Herchovich e que, mesmo feio, era um sedutor sem limites. Desde viu Adão conversando com uma morena gostosa que chamava a
que aparecera na região, dizia-se advogado, mas ninguém sabia ao atenção até de outras mulheres. Adão parecia bêbado pela mulher e a
certo o que fazia ou de onde viera. Era uma incónigta. Diziam que despia com os olhos. Os olhares dos outros taxistas também pareciam
Mazinho foi parar no Galba Veloso por causa do distinto após desnudar aquela Vênus cor de ébano. Morfino enlouqueceu, ia chegar
conhecê-lo perto para se deliciar da visão, mas Adão deu algum dinheiro a tesuda
Um dia, bêbado no boteco do Sapão, deixou escapar um dos e ela se foi rebolando pela Mármore.
seus muitos segredos: Morfino não sonhava. E isso acontecia há
muitos anos. Deixou transparecer também que vinha de longe, sempre De manhã Morfino não sonhou, mas desejou aquela mulher
viajando para “ganhar a vida”. Morfino mora bem, mora em Santa como se ela fosse a última do planeta. Bebeu algum vinho, fumou dois
Teresa e gosta muito do à bolonhesa da esquina da praça. Se pudessem Cadillacs e se deitou na varanda do apartamento. Maquinava uma
averiguar sua vida, os taxistas descobririam que por não sonhar, forma de se aproximar da morena, que imaginava, além de bela teria
Morfino, sugava mentes alheias para viver dos sonhos das vítimas. muitos sonhos a realizar. À noite Morfino se levantou e foi ao Spa-
ghetto, o bar que fica em frente ao ponto de táxi. De lá de dentro, Nesse momento os olhos fundos do ladrão de sonhos brilharam e ele
podia ver o ponto e o movimento da praça. arriscou alto:
Subitamente sente um toque no ombro. Era Adão. -Tá desistindo dela? Podemos dar um jeito nisso aí. Mas vai ter
-Diz ai ô Morfino gente boa, que cara é essa de desanimado que me ouvir.
homem? O taxista, que era ganancioso até os ossos abanou a cabeça e ouviu o
- Nada, só estou de veneta mesmo, tomando um ar. plano do vampiro.
-Rapaz você não dorme? Vi você ontem à noite andando pela
praça por horas. De salto alto, saia curta jeans e bustiê, Natasha mora num
-Sofro de insônia. Isso é coisa antiga e, além disso, gosto da prédio invadido em Santa Efigênia. Ela como toda jovem, sonha em
noite. ser famosa, além de ser fã da Luciana Gimenez. O que a faz mais
- Morfino, cê não me engana, acha que não vi como comia orgulhosa e a destaca das amigas é um book feito na Sonora, ter sido
minha mulher com os olhos? musa do boteco do Caixote e amante de Adão, o que lhe rende algum
O vampiro se assustou e fingiu não entender o tom de ironia. dinheiro.
-Ela é bonita. Cara sortudo você. Tem pelo menos uns 25 Natasha estava muito feliz porque Adão a levaria à final do
anos? concurso Comida de Buteco, na Casa do Conde. Ajuntou seu
-Nada cara, ninfetinha a Natasha. Mas fica comigo pela grana, dinheirinho e foi à Paraná comprar um vestidinho na Binoca. Mas
ela não me ama. Mas mete como ninguém e não me amola. É tudo que Natasha estava se cansando de Adão porque ele não se resolvia com a
um velho como eu poderia querer.Só tem um problema. Ela me leva ex-mulher e nem assumia Natasha definitivamente.
toda a féria do fim de semana. Isso é osso. E eu que tenho que pagar as Já Morfino, sabia bem o que queria e como o conseguir.
prestações do carro, fico apertado. Assim, sentindo o cheiro da cobiça no espírito do taxista, lhe oferece
seu opala Comodoro e uma suíte no JK de frente pra Raul Soares em de boi.
troca de uma noite de amor com a beldade. Adão aceitou sem -Nada não, prefiro só uma cachacinha com chouriço. E você
hesitação: Natasha o que prefere?
-Putaquiupariu, isso é muito mais do que consegui em 25 anos Morfino tentava ser boa-praça enquanto Natasha recusava a comida.
de repartição e 15 de táxi. -Ô seu Morfino, que tal a gente dar uma andadinha por ai?
Feitos os acertos, Morfino foi pra casa arquitetar o plano de ataque e Aqui tá meio cheio né?
Adão entrou no táxi e foi pra Lagoinha tomar uma Original pra - Sem formalidades mocinha. Pode me chamar de Morfino.
comemorar o negócio da China. Foram para o lado esquerdo do pátio onde havia galpões vazios e
algumas velhas peças de locomotiva.
Fim de semana seguinte se encontram na Casa do Conde num De dentro do galpão ouvem a música vindo de fora e o
festão com muitos convidados e show do Martinho da Vila. Morfino Esquerdo convida a moça pra dançar, beijando-a com volúpia.
se aproxima de Adão. Adão se afasta de Natasha e acerta os últimos Morfino é esperto, ele sabe que ela cairá no seu plano e tira uma
detalhes com o capiroto. Ela lindamente num coladinho de barras garrafinha com ungüento de dentro do paletó. Enquanto dançam ele
plissadas aparece e se insinua para o servo de Satã. Adão sai de fala palavras indecifráveis no ouvido da moça. Bêbada, Natasha acha
fininho e vai pra mesa onde está servido o frango ao molho pardo. graça e se deixa levar pelo príncipe da escuridão. Assim que abre a
Enquanto o garçom lhe oferece um chouriço à palito, Morfino trava garrafinha o demo esfrega o líquido nos cabelos da moça, que já está
uma conversa sem conteúdo com a ninfeta. Natasha está apalermada se contorcendo de prazer. Natasha quer sexo, Morfino quer sonhar.
por aquele homem que ela não saberia definir como bonito ou Usa uma navalhinha de inox pra raspar os cabelos dela e ela o lambe
charmoso, mas que a amarrava com as cordas da simpatia. no peito magro e incolor. O cinzento joga o resto do chouriço no chão
- Lingüiça de boi com arroz branco, vinho chapinha ou sangue e põe os cabelos da morena dentro do prato e ateia fogo. Natasha
apresenta os seios redondos à mostra e rasga o vestido ao meio,
Morfino aspira a fumaça do prato e entra em transe, transando, nu. Segunda feira de manhã, em uma kitchenete no edifício JK
Natasha passa a retorcer o corpo como se estivesse possuída e está. Adão se diverte lendo no Diário da Tarde as notícias do seu Leão do
Morfino se contorce de prazer e renovo. Natasha é rasgada por dentro Bonfim e tomando uma cerveja gelada. No Rio, numa clínica em
e por fora e os bicos dos seios se endurecem. Rebola e dá gritinhos de Santa Teresa, um paciente alto e com cara de polaco está sentado em
dor. Após longos minutos de peleja o vampirão uiva orgásmico. A uma máquina de hemodiálise e lê no jornal a notícia sobre um
moça enfraquece e cai como um lençol, desmaiada e pálida. Pobre assassinato em Belo Horizonte.
corpo de vestido preto. Morfino se sente renascido. Agora é alto, forte -Como se sente senhor?
e tem uma tez saudável e corada. O galpão fede a enxofre e fumaça. A enfermeira não sabe, mas, para ele a hemodiálise é apenas um ritual.
Lá fora a festa rola sem parar e o antes magro morcegão vai Em sua cadeira o polaco relaxa:
andando, ajeitando as calças com as mãos e toma um táxi pro -Não quero a cura, só quero trocar de alucinações.
aeroporto. Dentro do galpão Natasha é apenas uma mistura de sexo e
pano preto rasgados. Está careca e desfalecida. Está morta.
A polícia chega com a sirene das veraneios zoando e com os
braços do lado de fora. Descendo das viaturas, abrem o galpão e
sentem o cheiro forte de coisa queimada. No Boletim de Ocorrência
Policial redigida pelo soldado Sanguinetti pode-se ler: “cadáver
encontrado inerte em decúbito ventral, causa mortis desconhecida.
Acusado foragido do local, modus operandi também desconhecido.
Ausência de sangue no local e no corpo da vítima”.
Conto inflamado Dois meses depois João voltava a trabalhar e depois de um
longo dia de trabalho, resolveu reler aquele fim do Oeste Causticante.
Não conseguiu se concentrar e ligou a TV. Estavam mostrando a cena
Era uma vez um homem. Não. Não era uma vez um homem. É em que Jody conversava com o terrorista irlandês que estava
a vez de um homem. Um homem simples, porém determinado e que encarregado de matá-lo. Adormeceu sentindo um torpor suave e vez
passava a vida vivendo fatos e experimentando decisões. Esse homem por outra um mosquito o perturbava e ele espaantava o mosquito com
era João Almeida, 43 anos, deputado e advogado. Separado pai de o Clarim Diário que estava amassado perto da poltrona. Novamente o
duas filhas, uma lésbica e ele com problemas de memória. mosquito aparecia com seu zumbido supersônico e passeava próximo
Às vezes até brincava com coisas mais complexas, mas no ao seu ouvido com vôos rasantes. Ele se contorcia espantava o
fundo sua vida era muito simples. Tudo ia bem ate o dia em que teve mosquito novamente e logo se esquecia. Se sua memória ajudasse,
uma overdose de absinto com Bauhauss. Foi na casa do Trindade. A mandaria o mosquito para Pasárgada para atormentar o Rei, mas
casa rodava, as pessoas também rodavam e elas eram meio retorcidas e esquecia-se facilmente das coisas desde aquela noite do absinto. Sua
de um colorido meio misturado como tintas numa aquarela. Mas o que memória de curto prazo estava avariada e a avaliação médica dizia que
o intrigava mesmo era a sensação de que flutuava e que tudo se certamente depois de alguns meses isso iria melhorar. Esqueceu-se até
movimentava em câmara lenta. E que gosto amargo era aquele na da TV ligada e João adormecia e acordava na sua incansável batalha
boca? Um misto de amargo e adocicado. Pela primeira vez na vida contra o mosquito. De fato o que estava acontecendo era que ele se
João entendeu o significado do que era agridoce, e olhe que já tinha esquecia do mosquito e quando se lembrava tinha medo de mata-lo.
recorrido ao Aurélio várias vezes. A vida apresenta fatos e fatores que Mas como pode um homem vivido e experimentado se deixar
apenas podem ser compreendidos quando vividos e o agridoce era um amedrontar por um Anopheles Nyssurhynchus? Mas tinha, tinha medo
deles. do mosquito e dos finais tristes dos filmes. Isso porque os fins de filme
sempre o deixavam confuso, já que se esquecia do que levara o filme X imagem de Y ou deslocamento ou a degola
àquele final.A soma dos seus medos era tão intensa que se assustava
até mesmo com um ser desprezível e efêmero que vive por apenas três Estou um ser periférico, deslocado do mundo real e sinto-me
dias. perdido num labirinto cretino. Minha vida é um caleidoscópio mas
João mantinha o significado das coisas fixo na memória e sobrevivo de desbotadas lembranças. Minha mente é seccionada em
associava o significado ás palavras, então o problema era que como duas e tenho dificuldade em me entender. Criei uma sub-língua mental
uma máquina, ele não conseguia mudar o significado de acordo com o para me comunicar com um Eu que eu mesmo descobri. Esse eu é meu
contexto. A semântica era uma verdade absoluta dentro do que ele amigo e meu inimigo, eu o amo e o odeio. Somos dois e somos um,
apreendia e isso não mudava, porque se algo era ambíguo, ele Abel e Caim, bem e mal, sim e não. Gêmeos da mesma placenta,
assimilava logo o mais geral, não conseguia abstrair das palavras um quase siameses. Se um lado meu é superficial, o outro é profundo,
sentido diferente do que encontrava no dicionário. visceral e sobrevive à minha revelia. Há poucas pessoas com quem
João nunca sabia o que guardar e o que descartar e vivia a mantenho contato. Durkheim, Freud, Borges e Eu. Sei ler em vários
confundir as coisas. Não sabia se Nero era um programa ou um idiomas, mas o alemão revolve minha alma. Meu único hábito é a
político como ele. Não sabia ainda que uma reação química resultante leitura, às vezes me entrego à contemplação. O meu outro ser, aquele
de comburente, combustível e fogo resultam em modificações na que está em meu corpo, é amante da música. Meu mundo se resume a
natureza da matéria. E essa reação química tinha nome: combustão. um quarto e sala, um banheiro, uma pequena biblioteca e um jardim
Num lapso de lembranças semi-adormecidas, se apossou do jornal e nos fundos da casa. Morei em vários lugares, mas meu canto preferido
ateou fogo, ciente de que a fumaça espantaria o inseto repugnante. O é Intuí. Meu habitante, vou chamá-lo X, perdeu a capacidade de falar,
único problema era que o sofá em que estava deitado era de tecido mas se comunica comigo no inconsciente. Tem um gato, um canário e
sintético e listrado já morou em Barbacena. Quando deixei minha casa e fui morar
comigo mesmo, minha mãe cuidava de um fantoche que pensava ser ambos sintomaticamente nos representam. Há vezes em que X quer se
um filho. Meu pai a trocou por meu tio, depois se suicidou. Das livrar de mim e evoca Münch olhando o quadro. Ele acha que há algo
lembranças que minha mãe me deixou, a que mais aprecio é a gaiola querendo sair daquela figura retorcida. Metáfora. Algo que quer se
onde guardo minhas fotos. Passo horas observando-as. Por vezes me libertar. X já tentou o suicídio, mas eu impedi. Não posso permitir que
surpreendi em monólogo regurgitando poemas de Pessoa que nunca li, se vá. Somos co-existentes. X é carne da minha carne. Somos areia e
mas sei que são dele. X acha que sofro de esquizofrenia, mas ele é deserto. Recipiente e conteúdo, cada um a seu tempo. Um dia, ao me
egocêntrico demais pra conhecer minhas verdades. A biblioteca é meu barbear em frente ao espelho, notei que X estava estranho. Eu molhava
Éden e passo horas cheirando meus livros. X acha isso repugnante, o rosto e X afiava a navalha. Era sempre assim. Barbear era um ritual
prefere se deitar na rede que habita o jardim e ouvir Bach. X ainda no qual cada um de nós tinha uma função, como um ato comunitário.
insinua que sou um relapso, um degenerado. Ele, que em outra vida foi Ouvíamos o epílogo das valsas nobres e sentimentais de Ravel e X
um caçador, é discípulo de Baco e ama as mulheres. X é impulsivo, tremia muito, parecendo nervoso. Súbita e determinadamente, X
diz que tem ânsia de viver, mas é egoísta. Ás vezes, simplesmente tomou a navalha na mão direita, levantou meu rosto com a mão
ignora minha presença e passa horas inerte, absorto. Eu não sou esquerda e se degolou num único golpe.
impulsivo, mas tento estar racional. Demoro dias para tomar uma
decisão. Com o passar dos anos, X tornou-se indecifrável. Passa
muito tempo narrando mentalmente caçadas que fizera no passado.
Isso me assusta. Acho que ele era tão violento quanto um gladiador.
Cismo até que gostava de ver sangue. Temos dois quadros em casa. O
grito e A persistência da memória. Amamos esses quadros e embora
tenham características estilísticas bem diferentes, descobrimos que
Encontro marcado Não via o filme, pois estava vazia de si mesma, mas sabia que

(livremente inspirado no poema Anônimo de Ana Cristina César) era de má qualidade. – Que me importa qualidade se a solidão me
consome? Indagou a si mesma. Qualquer filme servia.

Desceu rápido a Tupinambás e tomou a Bahia sem nem olhar Atentou-se ao filme no momento em que ouviu um casal à sua

pra trás. Estava decidida. Iria ver um filme, qualquer que fosse. frente gemer. Nem se importavam com as outras pessoas. Enquanto se

Precisava mesmo era espairecer. A briga fora muito séria. Porque ele consumiam no chupa e lambe, Cicciolina se contorcia de prazer com

tinha feito aquilo? Ela o queria como homem, ele a queria como Rocco. O telefone vermelho. Era esse o nome do filme. Não deu

amante. Mas brigaram, brigaram feio no Parque Municipal. Ela se importância ao fato, mas notou que chorava. O homem na sua fileira

sentiu só e desesperada saiu correndo deixando-o no parque. Ela parecendo pressentir isso, se aproximou. Ela sentindo, permitiu e ele a

andava a toa e queria ver um filme. Ela era assim, amava cinema abraçou carinhosamente. Ela retribuiu como se precisasse proteção.

embora não soubesse nada além das estórias por trás da tela. Gostava Ela sabia que o filme não importava, e se amanteigava nos braços dele.

mesmo era de um prazer momentâneo. Ela sentia que o cinema cheirava a desinfetante barato. Teve náusea.

- Onde tem um cinema por aqui? Perguntou a um transeunte Ela chora mais ainda e ele a aperta junto dele. Ela aceita reconhecendo

que distribuía santinho do Valdivino do bordéu.O homem apontou em o perfume dele e se acariciam por longos minutos. (...)

uma direção desconfiado. Ela entrou pelo corredor rápida e ofegante. O desejo escorre pra fora dela. Estão arfantes e suados quando

Passou em frente a escritórios de contabilidade e a um cartório. Viu o os créditos sobem na telona enquanto ela se sente mais mulher, mais

cinema e sem nem mesmo perguntar o nome do filme comprou um confiante.

ingresso do velho que estava à portaria. Levantam-se e saem do cinema abraçados e calados. Junto

Entrou e assentou-se numa das ultimas fileiras. O filme já tinha deles saem outras pessoas que não se conhecem na penumbra. Velhos,

começado.Um homem estava sentado na outra ponta da fileira. noivos, negros, albinos, açougueiros e gordos. Trombadinhas e
morféticos. Todos viram o mesmo filme. Todos pulsando de desejo. Eu quero encontrar um amor
Ao chegar fora do cinema vê pela primeira vez o rosto do homem. Era “Somos feito da mesma matéria que os sonhos”
ele. Ele mesmo. O amante do parque. William Shakespeare
Sorriem e ela diz enquanto caminham:
-Essa cidade é mesmo muito movimentada. Quero ler um livro, apenas mais um. Aquele que me indique o
Atrás deles, em azul e vermelho brilha a placa do Cine Regina. caminho para encontrar um grande amor. Não precisa ser desses
amores de novela, nem daqueles para a vida toda, mas precisa ser
amor. Através de várias viagens, sou um cidadão do mundo mas
desconheço o amor. Tenho dividido os últimos anos de minha vida
entre os discos de bolero, meus livros e um grande sonho. Nunca
encontrei um grande amor. Sempre fui rodeado por sentimentos
passageiros, nunca amor. Quero mesmo é viver nos poemas de
Vinícius, porque acredito que lá o amor é um sentimento concreto,
embora isso possa parecer paradoxal. Quero amar.
Queria um amor denso, que durasse míseros 5 minutos, mas
que enquanto durasse fosse realmente amor. Alguém para se importar,
brigar, concordar e discordar, elogiar e criticar. Quero um amor
simples como um algodão doce, porque viver já é muito complicado.
Que meu amor não se importe se eu usar aquela camiseta amarelinha a
semana toda. Que meu amor goste de planta, arte, bicho, de cinema e
de conversar sobre tudo, mas que, sobretudo, me perceba quando eu falar Instinto cibernético
sobre nada. Que esse amor me dê carinho e respeito e que faça sexo num ato
de amor. Que meu amor seja amigo e que fale de política e me explique
quem é Deus, mesmo se não O conhecer. Quero um amor capaz de tornar
“Porque, cientificamente não existem sentimentos”
semântica a palavra família. Para ser meu amor não precisa ter dinheiro,
nem fama ou corpo de modelo. A idade não importa, basta me dar amor.
Aquilo não nascera, passara a existir Era fruto de tecnologia de
Que me faça sentir o coração como se sente um calo ou um espinho na
ponta e fora criado por um grupo de estudantes e profissionais
carne. Que me faça também ter certeza de que está ali, não precisa me
entender, mas que eu saiba que me ouve, pois sei que sou mesmo
fissurados por ficção científica e robótica.A princípio, era apenas uma

complicado. Que meu amor me ligue num domingo de manhã sem razão. série de implantes corporais instalados no corpo de um gato em coma.
Que nesse telefonema não se importe se eu não disser nada, mas que me Depois, circuitos eletrônicos foram gerados para serem integrados a
sinta. Quero um amor sem vergonha, sem timidez. Não precisa ter soluções sistemas inteligentes que formavam órgãos artificiais, funcionais. O
desde que me ajude a sobreviver aos problemas. Quero um amor pra andar gato sofrera cirurgias plásticas, e através da infusão de drogas e de
de mãos dadas pela rua, pela Bahia, que me faça descer pra floresta com mudança genética, a turma do GENEthicat pôde criar uma interface
desejo. Que meu amor seja suave e selvagem, paradoxal, mas nunca prolixo. cerebral e por conseqüência, uma inteligência artificial que era que um
Que não me sufoque nem me entristeça, mas que me faça sentir homem,
complexo sistema neural fecundado por um chip de computador. Com
antes do fim do meu ciclo. Quero um amor romântico, shakespereano, um
os recursos da robótica deram movimento ao ser híbrido e com ajuda
amor Ágape, Eros. Quero um amor Amor.
de computação gráfica simularam mundos virtuais que foram
mecanicamente instalados no cérebro-processador do animal. A
Quero um amor, mas que meu amor não seja efêmero, afinal,
nanotecnologia ajudou na fusão das ligações eletrônicas com as
não se pode amar com pressa.
terminações nervosas graças à células-tronco modificadas. Neurônios
foram substituídos por microchips e glândulas por circuitos integrados. achavam mesmo que seria possível aproveitar o conhecimento
Após três anos de noites mal dormidas, experimentos diversos e muita tecnológico existente para criar um andróide bem próximo de um gato
dedicação, o embrião do projeto estava finalmente pronto. O gato já natural. Nos encontros decidiram criar o grupo de pesquisa chamado
podia andar e emitir sons. Tudo ainda muito mecânico e artificial. Mas GENEthicat. Dividiram as áreas de pesquisa por área e assim cada um
ainda havia um problema, a pele e a carne do animal apodreciam com poderia se dedicar a uma parte do projeto sem se responsabilizar por
muita facilidade. Decidiram então trocar a pele por tecido e a carne tudo. A partir daí, Plânquio, estudante de medicina, ficou responsável
por estopa, mas ambos entravam em combustão após alguns minutos pela estética e parte biológica; Nickel, letras, responsável pela parte
de testes. Cádmio testou e sugeriu o uso de kevlar para substituir a neurolinguística e de seleção de conteúdo a ser implantado; Cádmio,
pele e de silicone pastoso em lugar da estopa. A partir daí, os químico e professor, responsável pela definição e análise dos materiais
movimentos do bicho tornaram-se mais objetivos e suaves, menos a serem usados; Mercon, engenheiro mecânico e professor de
mecânicos. Aos poucos os cientistas iam aperfeiçoando o projeto de matemática, cuidava da anatomia e da cinética do robô e Cúrio e
tal forma que em pouco tempo teriam um robô tão perfeito quanto um Berílio, que eram estudantes da computação, ajudavam com o
gato real. conhecimento em eletrônica, lógica e processamento de dados.
Cádmio era o mais velho. Formara-se há 15 anos e o projeto era seu
Enquanto amantes da tecnologia, aqueles amigos buscavam grande sonho. Casara-se e tinha em sua única filha, Olga, a inspiração
nos estudos meios para aperfeiçoar o robô. Cádmio, Nickel, Mercon, para trabalhar. Olga era pequenina, cinco anos se tanto. Seus cabelos
Plânquio, Cúrio e Berílio se encontravam ás sextas-feiras e durante a vermelhos contrastavam com a pele alva e sardenta. Adorava brincar
semana se dedicavam aos experimentos. Encontraram-se pela primeira com Mícron, um gatinho preto, vira-latas que ganhara de um vizinho.
vez há três anos após contatos por e-mail através de um site que citava Cádmio anotava todos os detalhes da relação afetiva que Olga,
Asimov e Hawking. Influenciados pelas idéias cyberpunks, os amigos desenvolvia com o gatinho. Olga era muito calada, parecia guardar
segredos infantis. Cádmio ficava várias horas observando o de fora da própria rede. Isso aumentou o grau de sigilo e segurança do
comportamento da menina.. Um dia, Olga brincando no laboratório da projeto. Decidiram também por não mais permitir a alunos e curiosos
GENEthicat, achou o gato do projeto e o fez beber leite. Colocando visitar o laboratório.
um copo na boca do animal-robô, deixou leite derramar na boca do
bicho e no corpo do animal. Como o robô estava desligado e não Após reestruturar a criação do robô e longos meses de
respondia aos estímulos e indagações da menina, ela o apertava contra pesquisa, finalmente chegaram a uma nova proposta para o projeto.
o peito e chorava diante da imobilidade mórbida do bicho. Desistiu de Novos materiais foram incorporados e novas idéias haviam surgido.
brincar com o robô após alguns minutos. Dias mais tarde, ao entrar no Reconstruiriam o gato, mas dessa vez ele teria inteligência autônoma e
laboratório, Cádmio e os amigos descobriram o módulo jogado a um seria tão real quanto possível. Mercon havia recriado a estrutura óssea
canto totalmente molhado em leite e quebrado. Após alguns minutos com cromo molibdênio, um metal ultra-resistente e muitas vezes mais
constataram que quase todos os chips estavam avariados e os circuitos leve que o aço. A pele seria mesmo kevlar, porém um pouco mais fino
e articulações começavam a oxidar em função do contato com o e o silicone pastoso foram substituídas por fibras de silicone estriado.
líquido. Esse episódio fez com que o grupo pensasse na própria Para o cérebro, Cúrio e Berílio haviam redesenhado o
segurança e sigilo do projeto GENEthicat. Decidiram não trabalhar no microprocessador e apenas esperavam de Nickel o tipo de conteúdo
projeto pelos próximos meses, período este que dedicaram à pesquisas que seria implantado. Plânquio havia descoberto um meio de clonar o
e à experimentação de materiais. Mercon desenvolveu um sistema cérebro animal e com auxílio da eletrônica reproduzí-lo. Havia
mecânico de segurança que impedia a entrada de pessoas estranhas no também uma nova unidade de processamento que cuidava
laboratório. Cúrio e Berílio configuraram a rede de computadores do essencialmente da parte cinética e que ocupava o lugar de coração. Na
grupo de modo a evitar invasões de hackers. Agora tinham uma parte final de montagem do animal-robô, puseram garras de titânio,
Ethernet, ou seja, uma rede que não poderia ser acessada por pessoas resistente à oxidação. Duas webcams substituíam os olhos e enviavam
imagens para o cérebro-processador que as interpretava em até 256 era revestido de material impermeável.
cores e calculava tudo em 3D, assim o robô teria noção de espaço.
Uma tinta impermeável fora usada para pintar a pele de kevlar em A primeira experiência foi com uma bola de borracha, que o
preto e o gato ficou parecido com uma pantera. Nickel apresentou o híbrido abraçava, corria atrás e fazia rolar. Depois colocaram o gato-
conteúdo a ser inserido na memória do animal. Havia informações robô numa cama elástica. Um computador emitia ordens sonoras em
sobre movimentos, hábitos felinos e um banco de dados com várias línguas e o robô obedecia e respondia com movimentos e sons.
informações lingüísticas. Foi incluído um sistema áudio-sensorial, que O gato era capaz de identificar sons, imagens, pessoas e sua
permitia ao robô emitir sons e obedecer a comandos de voz. Havia inteligência artificial lhe permitia calcular movimentos e ter vontade
ainda uma seção que agrupava todas as anotações que Cádmio havia própria. Podia, por exemplo, andar em duas ou quatro patas, arrastar-
feito baseado nas ações e reações do gatinho preto e de Olga. Tudo foi se ou deitar, de acordo com a necessidade. Era também capaz de
inserido num micro-disco rígido acoplado ao cérebro-processador. assimilar formas e tinha capacidade de análise do ambiente graças às
Agora tinham um robô ágil, com inteligência autônoma e rápida, mas simulações geradas no cérebro-processador. O GENEthicat estava
faltava a fonte de energia. No projeto anterior haviam usado pilhas quase aprovado, o projeto funcionava perfeitamente. Tudo estava
recarregáveis, mas a capacidade de sustentar a carga elétrica era pronto e o teste final deveria ser com pessoas, afinal o gato é um
reduzida. Duas pequenas células fotoelétricas foram então instaladas animal doméstico. Resolveram testar a docilidade do animal deixando-
na parte superior da cabeça, atrás das orelhas. Este equipamento o com Olga por uma semana, já que Mícron, o gatinho dela, havia
absorvia energia solar e assim abastecia o bichano por até 3 dias. Este sumido. Queriam desenvolver as habilidades lúdicas e ativar uma
sistema contava também com um dispositivo de economia de energia possibilidade de tornar o bicho menos máquina e mais animal.
que utilizava um capacitor e baterias que armazenava a carga Durante este período, Berílio e os outros pesquisadores observavam o
excedente produzida nas células fotoelétricas. Todo o corpo do robô animal durante muitas horas e lançavam as notas num computador que
gerava gráficos e calculava resultados. Isso tudo formava um arquivo porém são frios e pragmáticos, incapazes de se deixar levar pelas
que o grupo consultava para melhorar a performance do robô. A cada emoções. O problema é que alguns replicantes atingiam tal grau de
dia o gato, chamado de Genésio, tinha suas habilidades apuradas e autonomia que se tornavam incontroláveis. Genésio era assim. Um
surpreendia as pessoas com suas capacidades e suas ações. Genésio gato que não era gato. Um robô que era mais que um robô. Um
possuía agilidade e rapidez incomuns e a memória do bicho era replicante. Por apenas alguns minutos Cádmio o deixou brincando
impressionante. Olga adorava brincar de jogos de memória com com Olga enquanto comemorava o sucesso do projeto inovador com
figuras coloridas com o gato, que sempre acertava onde estavam os os amigos. A criatura híbrida era fria. Muito fria. A menina era
pares. Já Cádmio o fazia descobrir uma bola de meia escondida dentro inocente. Pegou o pescoço do animal-robô com as mãozinhas e tentou
de um copo, que virado era embaralhado com outros quatro. O animal fazê-lo de boneca. Pôs um vestidinho no bichano e com uma tesoura
era capaz de reconhecer textos de autores clássicos pela simples leitura tentava cortar o rabo do bicho. O bichano não gostou. Pulou na mesa
que Nickel fazia em voz alta. O gato confirmava o autor assentando-se de ferramentas e de lá se arremessou contra Olga com as unhas em
no nome correspondente escrito no chão. Além disso o gato parecia ter riste. Eram unhas fortes, afiadas como navalha. Matou a filha de
gosto por autores específicos e, por exemplo, miava alto ao ouvir Cádmio sufocando a menina e cravando as garras no pescoço dela.
textos de Poe e Baudelaire. Ficou brincando com os cabelos de Olga como se fosse um novelo de
lã. A tecnologia havia criado tudo, mas Genésio, o gato que era
De acordo com autores cyberpunks, movimento cultural que perfeito, não tinha alma.
apresentou ao mundo a possibilidade dos andróides, os replicantes são
robôs feitos à semelhança do homem, graças à evolução das
descobertas na área da genética. Têm inteligência artificial
independente e são mais fortes e resistentes que os próprios criadores,
Investigação sobre nomes próprios no português brasileiro próprios que combinam com determinados sobrenomes e destes não se
separam jamais. Por exemplo, eu garanto que nem todo Geraldo que
você conhece é Magela, mas quase todo Magela é Geraldo. Carlos
Nos longínquos anos de antigamente, vovó e suas comadres Alberto, Roberto Carlos, Pedro Paulo, Lúcio Mauro e assim vai
costumavam batizar os filhos, com os nomes de santos contidos na indefinidamente.
Folhinha Mariana. A criança era nomeada de acordo com o nome do Existem ainda os nomes mistos: Mariângela, Analu, Luciana,
santo do dia. Daí vieram Cosme e Damião, Mateus e Marcos, Pedro e Anamaria, Claudianderson, Neivan. Mas o que o brasileiro gosta
Tiago (muito antes dos sertanejos) e surgiram verdadeiras pérolas mesmo é de misturar nomes importados com nomes mais comuns.
como as Ana Lúcias, os Antonio Sebastiões e a interminável série de Alguns anos atrás, um jornal de grande circulação publicou uma nota
combinações possíveis e impossíveis para Maria, os infinitos Josés na seção policial onde se lia: “João Michael foi morto a facadas na
(Disso e Daquilo), Joões e outros mais. Rocinha”. Mas ainda há os casos de Marylin de Souza, Antonio Roger,
Apenas considerando os nomes dos santos e a maluca Juan Florisvaldo, John Rodrigues, Lorraine Michele, Uochinton
criatividade matri-paterna, podemos apresentar vários nomes Almeida. Nota-se ainda que brasileiro tem também a mania de nomear
engraçados, feios, bonitos, ridículos, insignificantes, curtos, longos, filhos homenageando personagens famosos: Romário de Oliveira,
malucos, comuns. Mas podemos também selecionar alguns dados que Frank Benevides Sinatra, Tomas Jéferson Santos. Este ano constatei a
podem ajudar a compreender um pouco mais dos nomes de pessoas incrível aparição de um jogador do Guarani de Campinas por nome de
que conhecemos. Aposto que você conhece alguma Maria do Creedence Clearwater e de outro no Vitória da Bahia chamado Alan
Rosário, Maria do Perpétuo Socorro, Maria da Anunciação, Maria da Delon, tudo isso além de um Cannigia, sendo este meu vizinho.
Glória, Maria das Graças, Maria da Penha ou alguma maria assim Certa vez, num programa de rádio aqui mesmo da capital, foi
bem comum. Como era de se esperar, há também uma linha de nomes aberto um espaço para que os ouvintes falassem a respeito dos nomes
próprios, e apareceram uns mais esdrúxulos e engraçados que já soube. Para finalizar pergunto-me: por que será que meu amigo
Os ouvintes disseram conhecer gente por nomes estranhos como, por Charly desenvolveu esta teoria? Ah, e se você estiver curioso para
exemplo, Agesípolis, Vasco, Rudinan, Manfredso, Correlato, saber meu nome, também tenho um nome importante. Eu sou Uéris
Abrilina, Cheropita e até uma possível, mas inacreditável Urinícula. John, que vem do inglês.
Recentemente, um deputado apresentou um projeto de lei que
proíbe nome de pessoas em animais. Pobres crianças, que agora só
poderão chamar seus animais de Totó, Bilu ou Xerife, mesmo
adorando nomes como Sacha, Xuxa e Ronaldinho.
Conhecemos algumas pessoas com nomes diferentes, mas que
têm origem histórica assim como Athaíde, Austregésilo, Sócrates,
Dídimo. Conhecemos também pessoas que têm sobrenomes extensos
como Dom Pedro II, que tendo vários nomes, penso, nem ele próprio
era capaz de se lembrar. Para terminar vou falar a respeito da teoria
formulada por um amigo meu chamado Charly Darvin Oliveira :
“Toda a criança ao nascer deveria receber um apelido, ou na
pior das hipóteses um número e assim que ela chegasse a uma idade
em que pudesse responder por ela mesma, ela escolheria um nome de
acordo com sua própria vontade, afinal somos nós todos
desconhecidos como pessoas e conhecidos como números, vide CPF,
RG, cartão de crédito etc...”.
James Choice algum tempo. Tem a ligeira impressão de que está sendo seguido. Um
dos escritos na parede do banheiro do bar permanece em sua mente.

“Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma(...)” Edgar Allan Poe1 Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma. Poe era mesmo
instigante e obscuro.

James caminha até a barca que atravessa o Mississipi e vai até Volta para a praça e segue em direção a um táxi parado. Decide

o outro lado. Desce da barca, caminha uns quinze metros, pensativo, e ir pra casa andando, mas o táxi parece atraí-lo. Caminha em direção ao

entra à esquerda numa ruazinha estreita. Pela sétima vez naquela carro sentindo como se fosse induzido a fazê-lo. Entra, cumprimenta o

semana, vai ao pub inglês. Entra, vai ao balcão e pede uma dose de motorista e pede que o leve ao mercado francês. Por instantes tem a

Everclear. Bebe vagarosamente, enquanto observa um inglês com impressão de que o taxista é seu conhecido. Após alguns minutos,

camisa do Red Devils e um americano magrela jogando dardos. Fica avista o French Quarter, desce do carro e caminha direto passando em

no balcão por uns minutos ainda, depois entra no banheiro. Assenta-se frente a Funeral Vodoo onde uma bandinha toca Jazz. Trôpego,

no vaso, vê fotos de Diana e da Rainha coladas no teto e um poema de James vai até a estátua de mulher no fim do corredor e a beija, sem

Baudelaire colado atrás da porta. Jean ama Jane, Mary esteve aqui, saber porque faz isso. Sente o gosto frio de metal na boca, mas não se

Yankees campeões, fora Bush, são alguns dos muitos rabiscos bêbados importa. Volta ao táxi. O motorista no lado esquerdo do carro tenta

nas paredes. Decide ir embora e volta para a balsa. Passa por outro conversar. James se deixa levar pelo bate papo enquanto se esvai em

caminho, pela praça e entrando na Bourbon indo para a rua da casa de pensamentos.

Faukner, seu favorito. Olha para a casa do escritor em silêncio por Tudo estava acontecendo muito rápido. Casara-se no mês
anterior em Salém e em seguida foi com a mulher passar o Mardi Gras
em New Orleans. Ficara bêbado, abandonara a mulher num quarto do
1
In O gato preto Marriot´s e fora se divertir com mulheres numa boate. Separam-se
depois de apenas sete dias de casados, fora passar a vida a limpo no todos os graus de conhecimento, de toda sorte de pensamento, com
maior cassino da cidade e, não se sabe se num lance de sorte, ou acaso, toda espécie de problemas. Nunca estudei, mas conheço como poucos
ganhara um milhão de dólares. Desde então, aquela era sua rotina nos a mente humana e suas fraquezas.
últimos dois meses, beber e vagar pela cidade remoendo suas dores -Mas, você me parece familiar. Por acaso, é de Salém2,
pelos cabarés e shows baratos de jazz que sempre aconteciam pelas Massachussets?
ruas. - Minha casa é casa de muitos moradores. Moro no centro de
Solteiro repentinamente, James sofria de um mal terrível que tudo e posso dizer que sou como um rei louco de um reino perdido.
com a separação só piorou, não conseguia se decidir por nada e, agora Sem entender bem o que o taxista dizia e semibêbado, James ignora as
rico, corroia-se em dúvidas e não sabia o que fazer de seu próprio respostas e diz:
futuro. Poderia sugerir uma reconciliação à mulher, ou ainda mudar-se -Fiquei rico, mas sou um atolado em dúvidas. Minha vida é uma

para outro estado. Sempre fora assim, sem capacidade de decisão, e se incerteza só. Quando criança, eu gostava de ler, porque sempre encontrava

casara devido à pressão das famílias e da noiva. Na separação brigara as respostas que precisava. Depois, na faculdade conheci Eve, e ela sempre
tomava as decisões por mim. Mas brigamos. Numa das minhas primeiras
com todos. Portanto, agora estava rico e sozinho.
decisões, fui ao cassino. Ganhei no jogo e perdi a mulher. Briguei com a
- É mesmo difícil essa decisão. Caminhos tortuosos se
família e estou perdido numa cidade que conheço. Queria dar um fim a tudo
apresentam e as decisões, essas, nunca saberemos se foram acertadas.
isso, mas não posso. Sou fraco e indeciso.
Agora que é rico, não deve voltar para sua mulher.
-As decisões dependem de você unicamente e para isso você recebeu
- Ei, como você sabe sobre mim? Pergunta James ao soturno uma dádiva, o livre arbítrio.
taxista que parecia saber ler pensamentos.
-Prazer te conhecer também, sou Lucianno. Nessa profissão
sempre se sabe mais que as pessoas pensam. Já carreguei pessoas de 2
Salém, nos arredores de Boston, é conhecida como a cidade das bruxas.
-O que é o livre arbítrio quando não se sabe o que quer? Como posso opções, sempre pescoço cheio de beads. Uma mulher bêbada também cheia
viver se a cada momento tenho que fazer escolhas e tenho medo? Eve era de beads4 se arrasta pelo corredor a dizer impropérios. Em New
quem decidia por mim, além disso, deixo a vida ir acontecendo porque Orleans às 4 da manhã é assim, quem não está bêbado está indeciso.
acredito convictamente em destino.
-Destino, palavra doce como o mel, no entanto, dura como uma
pedra. Nem mesmo quem controla os desejos e sabe tomar decisões pode ter
certezas a respeito do destino. Veja meu caso. Eu era o filho preferido de
meu pai, o mais brilhante dos meus irmãos. Meu pai muito rico e rígido, não
aceitou minha desobediência. Foi errar uma vez e fui jogado no abismo.
Conto aos passageiros minha história e ouço seus problemas. Transporto
desejos que já foram meus. Levo pessoas e trago lembranças do passado que
decidiu meu destino. Mulheres são um perigo quando tomam decisões.
Através de uma o Mal entrou no mundo. Eve, nome oportuno.
Vagarosamente, pararam num semáforo na Jackson Square e havia
um grupo de pessoas num restaurante a comer Gambo3. James sentiu fome e
sem esperar respostas disparou perguntas ao estranho Lucianno:
-Então, já foi rico também? Fez a escolha errada? Por isso sofro,
sempre existe a possibilidade de estar cometendo um erro. Entre duas

3 4
Comida típica de New Orleans, cozido feito à base de camarão, vegetais, ervas e Colar de contas plásticas usado por turistas no carnaval (Mardi Gras) de New
pimenta. Orleans, na Louisiana, Estados Unidos.
Namoro virtual5 das imagens que criaram um do outro, do tempo e da nova
configuração política mundial depois da guerra, mas tudo soava muito

“Se um cara chamado portões ficou rico vendendo janelas que vivem superficial. A verdade é que a conversa estava uma chatice. Nada a ver

quebrando, acho que posso abrir minhas portas”6 com o Chat onde sempre tinham assunto.Olhavam-se envergonhados e
ficaram horas compartilhando o suco invisível que acabara há muito

Tudo aconteceu num cybercafé. Ela era teen e amava um chat. tempo. Até que ele sugeriu um programa diferente e ela aceitou.

Ele era hacker e estudava sistemas. Marcaram um encontro na Café Foram para o reservado, no nível de cima do bar. Haviam pcs

com Bytes, uma mistura de café, boate e ponto de encontro dos conectados em cabines individuais e o som ambiente tocava “Nunca te

usuários de computador. Ela foi de micro-saia, laptop vermelho e vi sempre te amei” da Broadband, o novo mp3 que era um record nos

sapatos salto alto. Ele foi de walk-machine, óculos escuros, aro de sites de download.

tartaruga. Entrou, escaneou a área do bar e a localizou perto da Ele se assentou de frente pra um pc compaqto, enquanto ela

máquina de refrigerante. Se reconheceram pelas fotos que exibiam na alisava os cabelos com um pentium de lítio. Ela ligou o laptop, ele já

Internet. Cumprimentaram-se e ele viu que não precisava perguntar estava on-line e conectaram-se. Virtualmente iniciaram o namoro

como ela era. Instalaram-se numa giratória e pediram um suco natural. teclando elogios, depois ele a convidou para visitá-lo em casa. Ela

Tudo cooperava para o encontro e o ambiente era compatível. Falaram tinha duas opções; não e ficar no bar e sim, continuar. Preferiu a
segunda opção e foram para o endereço dele.
Era uma casa muito grande mobiliada com muitos arquivos e
5
Conto escolhido para a prova de redação da Universidade Estadual de Maringá, PR
algumas janelas sobrepostas, parecendo um office moderno. Na casa
em 2005.
6
Brincadeira com o nome de Bill Gates e Windows; Gates = portões e Windows =
havia um cômodo especial. Era uma área de trabalho pequena, mas
janelas. pintada em branco e azul tinha-se a impressão que era maior. Na sala
ele ligou o DVD e colocou um disco no dispositivo. Era o filme “ICQ memórias uma sensação nada virtual. A ação sexual é realizada pela
– Episodio I seek you”. Assentaram-se num banco de dados que ali terceira vez, esta porém, numa webcama, que estava atrás de uma
havia e assistiam ao filme trocando carícias. Minutos depois ele disse pesada porta serial. Dormem.
que iria à despensa buscar algo para comer. Não achou o milho de
pipoca, embora soubesse que havia armazenado mais que o suficiente. Ele acorda preguiçosamente e num impulso analisa a cama à
Optou por um chocolate em placas. Ela ainda estava sentada, mas não procura dela. Não encontra e rastreia o quarto. Ela se foi. Tomou
parecia interessada no filme. Ele como que por efeito mágico tira do algum caminho que ele não sabia qual. Escapou de sua rede enquanto
bolso um anel de cristal liquido, que ela recebe estupefata enquanto ele hibernava. Tudo que compartilharam estava no passado, mas não
come o chocolate. Beijaram-se contidamente, mas ele sabia que as seria esquecido como um papel na lixeira e nem ele queria deletar isso
mulheres têm os mesmos códigos, apenas a combinação poderia ser da memória.Tinha perdido-a e teria que recuperá-la, mesmo sem saber
diferente. Ela apertou a orelha dele e sussurrou algo sobre um local qual foi seu erro. Ainda sonolento ele maquina uma forma de
mais à vontade. Ele como em automático a arrastou para outro reconquistá-la. Talvez enviasse flores. Talvez a convidasse a ir ao
compartimento com um wallpaper amarelinho claro. Era seu gabinete. sitio, lá ele tinha uma torre onde poderiam simular Rapunzel. Talvez
Ele abriu uma pasta, tirou uma proteção antivírus e assoviou. se acendesse uma tela Jesus poderia salvar a relação. Adormeceu
Carregando-a, deitou-a na rede acoplada no cômodo e retirou o novamente processando informações sobre como atraí-la.
pesado boot que estava calçado. Amam-se virtualmente. No ápice da No mundo virtual é assim, após cada encontro é preciso
conexão amorosa eles fazem leituras dos próprios pensamentos reiniciar.
através de um prolongado movimento de olho no olho. Amam-se
novamente e toda a interação é reiniciada. Todos os sentidos são
ativados pelo tato através das relações neurais. Isso traz às suas
Nostalgia pueril ou fluxo e refluxo Nos meus sonhos eu tinha medo, no entanto era um medo
estimulante. Meus inimigos eram fortes, porém imaginários. Meus
medos eram ventos num milharal, sempre rápidos e passageiros. Eu

“Because I am a dreamer, and I dream my life again, again, again me assustava e corria e corria e vencia. Meus inimigos eram

(...)” continuamente derrotados. Sempre aparecia uma escada ou um

Ozzy Osborne precipício e eu caia e não me machucava. Nos meus sonhos havia
abismos e cavalos. Sempre sonhei com cavalos. Quantas vezes

Quando eu era criança eu sonhava. E sonhava muito e meus sonhava, acordava, e o sonho continuava como um filme com

sonhos tinham personagens lendários e mágicos. Cenas tão reais que intervalo comercial! Meus sonhos eram como labirintos e davam

pareciam cenas vividas. Eu sonhava transcendental, mesmo sem saber voltas. Eram cíclicos, se na época eu soubesse o significado dessa

o que era isso. Sonhava natural, sonhava ficção e romance. Nos meus palavra. Meus sonhos eram tão imagéticos como a aquarela de

sonhos havia sempre uma ponte que caía e uma situação de perigo. Toquinho e Vinícius.

Havia também uma vontade louca de chegar a algum lugar Quando criança, assim que aprendi a escrever, costumava

desconhecido. Nos meus devaneios pueris eu voava sem ter asas e anotar meus sonhos num caderninho que se perdeu no tempo. Hoje,

quando alguém me perseguia, eu corria sem sair do lugar e escapava. ainda escrevo, mas não anoto o que sonhei, escrevo ilusão, crio

Às vezes, eu ficava confuso com um rio ou uma torneira que aparecia fantasias. As que sonho, essas me fazem sofrer. Não tenho pretensão

e eu fazia xixi na cama. Sonhava que estava num balanço muito alto, alguma de ser reconhecido pelo que escrevo ou sei, todavia sou

sem medo de cair, e o balançar era eterno, seguro. Sonhava com o assolado pelo que não sei. Sou um especialista em nada. Sei muito de

papai me levando pra tomar sorvetes e amanhecia com sede. Sonhava algo que é apenas um detalhe. O que escrevo nada tem de novo,

com a professora de matemática e amanhecia molhado. escrevo sobre a angústia humana sobre o futuro, sobre o devir, sobre o
há de ser. Muitas vezes eu tenho vontade de fazer coisas, mas, ou me Sonhar é como viver em capítulos, uma estória que não tem fim e que
falta coragem, ou a profissão e a condição social me proíbem. Então é contada por um narrador onipresente, onipotente. Nos meus sonhos,
escrevo e quando escrevo, sou um super herói. Enfrento o mundo. Sou vivo representando um papel que não é meu. Sou dirigido por um
invencível e, se este mundo não me basta, eu crio, sonho um outro. diretor maluco que me faz interpretar uma estória dentro da estória,
Mas a verdade é que quando sou real, tenho um medo que não é mais dentro da estória, dentro da estória. Sou um ator-fantoche e o enredo
estimulante, desafiador como noutros tempos. É um medo real. É da minha vida é um fractal. Para mim, sonhar é sofrer aos
Medo. Meu medo hoje é para além do aspecto onírico. É um dragão pedacinhos, fragmentando. Meu balançar ainda é eterno como nos
que consome meus dias a partir de cada manhã. Meu lado imaginário é sonhos de criança, mas agora tenho medo de cair. Tenho saudades dos
hoje tomado por um Bucefálo negro e ameaçador que pisoteia minhas meus sonhos infantis. Tenho lembranças das estórias ouvidas ao pé da
esperanças e meus desejos. Não acredito que sonho, entretanto, sinto cama que embalavam meu sono e desenhavam na minha memória
que sofro. Sofro de um mal chamado fluxo de consciência. Sonhar é desejos em forma de sonho. Meus sonhos hoje são pesadelos terríveis
sofrer dormindo, sofrer é sonhar acordado um sonho com um abismo como rabiscos malcriados e por isso, pelo menos mais uma vez,
real e amedrontador. Não há mais o Gato que elucida o caminho no gostaria de ouvir a mamãe dizendo:
labirinto que é meu pesadelo. Quem dá as cartas agora é um palhaço -Passe a mão na cabeça, menino, que assim você esquece o
com cara de ditador e que me assusta. Meus personagens da infância sonho.
são hoje meus vilões, cresceram comigo.
Quando era criança eu pensava que sonhar era viver uma outra
vida enquanto dormia. Hoje acredito que sonhar é como uma lei da
Física. Com ação e reação, fluxo e refluxo. O mundo real é o lado real.
O sonho é o lado avesso, upside down, e a loucura é um sonho vivido.
Sobrevôo formas e feitios e figueiras por toda parte. Havia também crianças que
jogavam futebol e amarelinha. Elas também eram pequenas, mas
A princípio pensou que estava perdido e se desesperou ao pareciam tristes. Muitas crianças corriam e não havia nenhum carro
imaginar a possibilidade de não se encontrar em meio ao nas ruas que eram muito limpas. Ele olhou mais uma vez para as
desconhecido, mas na situação em que estava não se importava nem casas e as crianças e reconheceu casas e amigos de infância. Amigos
um pouco com convenções geográficas ou mesmo com o futuro. De inocentes, casas todas novinhas e limpas.
fato ele começou a notar que o lugar era estranho, porém muito bonito
e agradável. Então ele ia se movimentando como se voasse e notou Foi chegando a um lugar que dentre todos os outros ele
que embora não soubesse onde estava, passava por vários lugares desconhecia. Era um atalho cheio de mato a beira da estrada ladeada
conhecidos. A paisagem era de uma beleza tão intensa e de uma ainda pelo rio. Era uma favela. Toda pintada em azul e amarelo e que
riqueza tão táctil que sua mente lhe permitia sensações prazerosas tinha nos gatos* sombras de passarinho, pura ironia da natureza. Mas
como se ele fosse ter orgasmos visuais. O lugar era muito arejado, ele nunca tinha visto uma favela. Aquela visão o perturbou porque viu
soleado e verdejante com morros muito altos Todas as portas eram casebres miseráveis habitados e viu pobreza e simplicidade conviver
azuis veludo e tinham uma maçaneta dourada. As casas eram com harmonia. Os primeiros habitantes eram magros, pequenos e
pequeninas e estavam á beira-rio e nas pequenas pontes que podia ver, alegres. Caminhavam e falavam numa língua que ele não conhecia,
reconheceu imagens de animais tropicais esculpidos nos beirais. Uma mas que, no entanto, compreendia. Á entrada do morro havia um
cobra, um tamanduá ou mesmo um passarinho verde naturais. Um rio portal e um grande monumento provavelmente feito de entulho no
muito colorido sibilava entre as casinhas e fazia voltas molhadas pela qual se destacava uma cobra com um nó próximo ao meio do corpo. O
pequena cidade. O rio era furta-cor e era um riacho caudaloso, embora corpo era furado por objeto por ele desconhecido.
pequeno e silencioso. Ás margens do riacho havia árvores de várias De um lado um muro cheio de pichações artisticamente coloridas e do
outro uma escola amarela e com uma placa onde se lia: “Escola da distância, as crianças que corriam não mais sorriam, não se podia vê-
vila”. las. As portas azuis eram de longe negras e estavam todas fechadas. O
Nesse ponto ele pode descer ao solo e começou a se ater ás coisas que que era verde parecia cinza e o rio corria em direção oposta.
os moradores falavam, mas eles pareciam não vê-lo. Descobriu que O morro, a favela, a encosta, a vila era outro mundo, outra realidade.
aquelas pessoas eram favelados quanto à moradia,mas não quanto à Era artisticamente construída por arquitetos e engenheiros sem
atitude.Eram muito inteligentes e havia na escola um grupo de diploma e analfabetos. Os carros, ah eles não tinham carros, tinham
senhoras que eram encarregadas de guardar as memórias e estórias bicicletas, tinham rádio comunitária que levava e trazia noticias do
populares em livros. Descobriu ainda que o conhecimento do povo era outro mundo. As crianças corriam peladas, porém vestidas de
muito evoluído. As pessoas velhas eram jovens e os jovens eram felicidade. Subiu então aos ares e lá de cima viu o mundo, viu a cidade
conscientes. Falavam de política e de evolução das espécies entre as e a favela, viu o rio e o morro. Só então entendeu o que era até aquele
refeições e ele que nem mesmo sabia o que era fidelidade partidária... momento obscuro. O morro era um país diferente, uma outra
Caminhou por uma rua larga ao lado da escola e viu barracas e vendas dimensão de felicidade.
que vendiam doces, manguezada e dondó. As vendedoras mascavam
fumo e cuspiam no chão. Aquilo era para branquear os dentes. Notou *Gato: nome dado ao emaranhado de fios que roubam
que os pobres favelados não eram tristes e sempre estavam sorridentes eletricidade dos postes nas favelas.
e contando estórias.
Do alto da favela viu a parte da cidade que já tinha passado e
percebeu que era um lugar muito diferente se visto do morro. As casas
não eram tão pequenas e as árvores não eram tão bonitas mais. As
belezas que antes eram tão fascinantes agora eram encobertas pela
Tecnostalgia ou notícias do mundo de lá eletrônico. As bibliotecas agora são virtuais, mas seus livros não têm
cheiro. O bit é inodoro, insalubre. O Joyce e o Pessoa, as tragédias e as
comédias que outro dia impressionavam nas estantes, hoje cabem
todos num disquinho de plástico. Plástico também não tem gosto. A
Belo Horizonte, 12 de abril de 2006
evolução é pertinente, o que incomoda é a impessoalidade. Não há
À alguém, à algum, ao século passado mais tantos saraus literários, criaram os blogs. Para que ler se a Rede
me dá tudo resumido? Enciclopédia para que? Como no sexo, só
“Caríssimos amigos os, fatos que vou narrar compreendem minha preciso de uma conexão. E a conexão também oferece prazer. Porque
rotina diária e a saudade que sinto dos anos dourados, da infância o apelo sexual agora é mais visual, voyer. Uma imagem vale mais que
alegre e do mundo menos tecnológico . “ mil carinhos. O telegrama agora pesa mais de uma tonelada, é mais
leve mandar um e-mail. Precisamos nos atualizar porque as janelas
“Assento-me numa cadeira de frente a um laptop e não há mais
foram lançadas em nova versão e esta não é mais compatível com
escrivaninha, caneta ou bloquinho de anotações. Esqueçam os cadernos de
serenatas! A reciclagem agora é também de conhecimento e o bit matou a
caligrafia, agora tenho um editor de textos que tem sempre a mesma letra,
letra cursiva. As teclas tomaram o lugar que sempre foi das canetas, do lápis.
porque a moda agora é ser virtual. Um mundo evoluído em que a
Tudo é digital, inclusive as digitais, livro, foto, diário, música e saudade.
inteligência biológica se confunde com a artificial, o proibido com o
Todo mundo tem um fotolog e posso fazer e selecionar os membros da
permitido, a ética com a estética. O mundo se rendeu à cibernética. O
minha própria comunidade. Até Da Vinci virou código. Entretanto, o
processo de criação se distanciou do Criador. Qualquer um pode ser
conhecimento é nulo se não há inspiração. Rendi-me e transformei a letra
dadaísta. É tudo um jogo de dados. A inspiração já não vem dos Céus, vem
do Acaso. As musas do Olimpo foram globalizadas e agora tem
em bit e à luz da literatura crio um hipertexto, não uso mais caneta e

sobrenome ponto com. Temos sites, programas, plágio e dicionário papel. Não saberia dizer se as relações pessoais evoluíram ou
involuíram. O que sei é escrevi meu último texto num plano curvo de
modelo variável dentro de um livro de luz! Encontro a solução táctil
quando digito uma palavra que já não é mais palavra, é comando.
Aperto teclas e mordo o lábio porque a caneta é inútil. Minha opinião nem
é tão importante porque minha pátria é minha Rede, e essa Rede é minha
Língua. Meu cérebro agora é um periférico (hardware) ! Minha memória é
fruto de uma compilação de dados extraídos de vários sites. Antes eu sabia
falar, hoje minha voz são meus dedos e minhas palavras são Words. Tenho
convulsões e minha mente medula pelo lóbulo da minha orelha. Sou uma
antena móvel acessível ao mundo digital. Download, upload. Envio, recebo.
Se fujo disso, fico marginal. Minha letra é um signo, um símbolo
matemático. Lançaram mais um jogo, eletrônico, porque pôquer é
coisa do passado, futebol com os amigos só se for online! Não moro
mais. Agora me hospedo em um provedor. Na minha antiga casa havia
uma sala que se cansou de estar, queria ser, e hoje é sala de bate papo.
Talvez esteja me tornando um homem-máquina alienado por um
Sistema que não aceita aquele menino do interior. Mas apesar disso
ainda sou capaz de chorar porque lágrima é água em estado
sentimental (dígito não pode molhar). Se escrever ainda é arte, a
minha escrita é uma oração pela volta ao paraíso.”
Impresso por conta própria. Se você quiser contactar o autor não
hesite:
technomatics@gmail.com.

Flávio Martins da Silva, também conhecido como Nickel nasceu em


João Monlevade e desde muito cedo escreve contos e poemas. Desde
2003 é licenciado em Letras/ Inglês pela UFMG e publica seus contos
e poemas em sites literários do Brasil e Portugal. Desde 2000 é
professor de Língua Inglesa, trabalhando em várias escolas, dentre as 2007

quais o Centro de Extensão da Faculdade de Letras da UFMG, o


Centro Acadêmico de Ciências Sociais da FAFICH - UFMG e a
Prefeitura de Contagem.

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