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UNIRIO

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


Centro de Ciências Humanas
Escola de História

Memória e espaço da clausura: Narrativas Sobre a Experiência Prisional na


Fortaleza De Santa Cruz

Rio de Janeiro
Agosto/2004
1. Introdução

A Fortaleza de Santa Cruz, localizada na Estrada Eurico Gaspar Dutra, Jurujuba na


cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, possui enorme importância na história das
instituições prisionais do Brasil. A construção é tombada pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico nacional (IPHAN), fls. 141, conforme o processo nº 207 – T, Inscrição nº
122, Livro Histórico fls. 22 e Inscrição nº274, Livro das Belas Artes fls. 47 data 4 de outubro
de 1939.1
Sua história tem início em 1555 quando o francês Villegaignon instala peças de
Artilharia no Promontório, à entrada da Barra.2 Tomada por Mem de Sá, em 1567, tal
Fortaleza foi ampliada e transformada no principal ponto de defesa da Baía de Guanabara
recebendo o nome de Fortaleza de Nossa Senhora da Guia. A partir de 1632, seu nome foi
substituído por Fortaleza de Santa Cruz da Barra.3 Em setembro de 1710, seus fogos repeliram
a expedição de Duclerc, quando intentou entrar a Barra. No entanto, no ano seguinte, uma
nova expedição francesa, a de Duguay – Trouin, a Fortaleza foi tomada quando estava pouco
guarnecida. O governo regencial, ordenando em 1831, os desarmamentos gerais das fortalezas,
determinou quanto a esta, que fosse reduzida a meio armamento, ficando um canhão em
Bateria e outro sob abóbada e desarmados inteiramente o Forte do Pico e as Baterias de Praia
de Fora, que, naquela época, estavam subordinadas a sua defesa.4 Em 4 de dezembro desse
mesmo ano, a Fortaleza de Santa Cruz recebe como presos que tentaram uma sublevação
contra a Regência.5
Outro movimento importante na fortaleza foi quando em 1892, revoltou-se o Sargento
Silvino, que, com os presos prendeu os oficiais e obrigou a Fortaleza de Laje a aderir. Em

1
.AHEx. Ministério do Exército. Fortaleza de Santa Cruz – jul/2003. Documento interno, sem identificação de
autoria. Sobre Fortificações, caixa 4.
2
. MENDONÇA, Milton Teixeira de (colaborador). Ministério do Exército. Secretaria Geral do Exército. AHEx
Documento interno, sobre Fortificações, caixa 4.
3
Ibidem.
4
Revista Trimestral da IHGB. Augusto Fausto de Souza Salvador. Rio de Janeiro, 1885. P.103.
5 AHEx. Ministério do Exército. Fortaleza de Santa Cruz. Jul/ 2003. Documento interno, Sobre Fortificações,
caixa 4.
1905, houve o levantamento dos praças instigados pelo Cabo Joca contra o Tenente Torres,
que acabou assassinado e mutilado.6
A partir de 1917, passa a ser guarnecida pelo 1º Grupo de Artilharia de Costa, já
desativado. Em 1964, a Fortaleza de Santa Cruz passa a receber presos políticos da Ditadura
Militar implantada a 1º de abril. E em 6 de julho de 1968, é criado o Presídio do Exército que
fora abolido oficialmente em 1982.7 No entanto, uma outra fonte aponta a ativação do Presídio
do Exército para 1967.8
Em 1567, Salvador Corrêa de Sá dá vulto às obras de fortificação instaladas e deixadas
pelos franceses. As construções da Capela de Santa Bárbara, da “cova-da-onça” e das “prisões
do passado” datam do século XVII. No século seguinte, a construção da cisterna. Em julho de
1863, instala-se a Bateria “Santa Teresa” ou do “Imperador”. Nesse mesmo mês, instalam-se
as Baterias “25 de Março” e “2 do Dezembro.”9
Dentro da Fortaleza, algumas prisões figuram de forma contundente. A “cova-da-onça”
foi o local destinado à tortura de presos com o objetivo de fazê-los confessar os crimes:
lâminas cortantes serviam pra triturar o corpo humano, cujos restos eram jogados ao mar
através de um poço. O nome “cova-da-onça” era uma gíria muito comum no princípio do
século e designava um “valhacouto de malfeitores”. Houve um bar de má fama com esse nome
no Rio Antigo (1900).10 As “prisões do passado” localizam-se em frente à cisterna. Erguem-se
cinco celas onde ficavam aprisionados ao enforcamento, sendo que três destas celas
destinavam-se para homens em pé e as outras duas para homens agachados ou deitados. Estas
celas destinavam-se principalmente, aos escravos fugidos e recapturados. Em frente a essas
cinco celas encontrava-se a forca. Os condenados eram obrigados a ver o enforcamento dos
outros, até chegar o dia deles. Quando o escravo chegava era colocado na mais alta. No outro
extremo, o que estava na última seria o enforcado do dia seguinte. Esvaziada a cela mais baixa
o que estava na primeira acima passava para ela, e assim por diante. O condenado iria

6
PONDE, Francisco Paula E Azevedo, Defesa Do Porto e da Cidade do Rio de Janeiro em Quatro Séculos. Rio
de Janeiro: Imprensa do Exército, 1967.
7
AHEx. Ministério do Exército.Síntese Histórico jul/2003. Documento interno, sem identificação de autoria.
Sobre Fortificações caixa 4.
8
TEIXEIRA, Milton de Mendonça. (colaborador). Ministério do Exército. Secretaria Geral do Exército. AHEx.
Documento interno, sobre Fortificações, caixa 4
9
Ibidem.
10
Ibidem.
assistindo um enforcamento por dia, passando para celas mais baixas até chegar a última para
então ser levado à forca.11
Os presos políticos do regime militar de 1964 estiveram nas celas coletivas, nas “prisões
do passado” e nas casas, que tinham um conforto muito maior, onde também estiveram
soldados e oficiais presos localizadas distante das outras prisões.
Alguns presos famosos da Fortaleza foram: Tiradentes, Frutuoso Rivera – primeiro
presidente do Uruguai, André Artigas, Januano da Cunha Barbosa – fundador do IHGB, Bento
Gonçalves, Almirante Eduardo Wandenholk, Giuseppe Garibaldi, João Antônio Lavalleja,
Plínio Salgado, Juarez Távora e Brigadeiro Eduardo Gomes.12
Este artigo tem por objetivo principal analisar a experiência de ex-presos políticos no
espaço prisional da Fortaleza de Santa Cruz, durante o Golpe Militar de 1964. Além disso,
visa-se a elaboração etnográfica desse espaço de clausura, à luz dos relatos de ex-prisioneiros
políticos. Busca-se, ainda, identificar a documentação primária pertinente ao espaço prisional
da Fortaleza.
Para a consecução de tais objetivos, utilizou-se os procedimentos teórico-metodológicos
da História Oral, no sentido de registrar e problematizar a experiência da clausura vivenciada
por ex-presos políticos do período pós-64.
O presente trabalho desenvolvido no âmbito da disciplina de Seminário de Pesquisa em
História Oral, sob a orientação da Professora Icléia Thiesen, está inserido na linha de pesquisa
Memória e Espaço. Definiu-se alguns eixos a serem seguidos neste estudo. O que foi
preservado e transmitido sobre a experiência da prisão na fortaleza? Como os presos se
relacionaram entre eles e entre a direção carcerária? Quais as estratégias de sobrevivência
eventualmente construídas por esses personagens?

2. História Oral e o espaço da clausura: poder e resistência

11
José Roberto Rezende, Ousar Lutar:memórias da guerrilha que vivi Depoimento a Mouzar Benedito. São
Paulo: Viramundo, 2000, p. 127.
12
Milton de Mendonça Teixeira (colaborador). Ministério do Exército. Secretaria Geral do Exército. AHEx
A história oral permite fazer uma história do tempo presente ressaltando a importância
das memórias subterrâneas que se opõem à memória oficial. Há essa necessidade a de
privilegiar a análise dos excluídos porque “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir
ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais”. 13O controle da memória funciona impedindo acesso aos pesquisadores nos
arquivos e empregando “historiadores da casa”. E ainda, fora dos momentos de crise, as
memórias tornam-se mais difíceis de emergir. No entanto, “indivíduos e certos grupos podem
teimar em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um
nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar”14. Diante de tal insistência, exige
que se recorra ao instrumento da história oral.
A vontade de esquecer os sofrimentos do passado vêm, muitas vezes, depois da
comemoração dos acontecimentos traumatizantes. Essa comemoração é trazida à tona pela
memória majoritária da sociedade ou do Estado que quer diminuir a dor, fazer desaparecer sua
responsabilidade sempre a posteriori. A memória individual é indissociável da organização
social. Portanto, nenhuma história de vida é construída fora da sociedade, dessa mesma
maneira nenhuma pode deixar de refleti-la, ao mesmo tempo que é única.
Na Fortaleza de Santa Cruz, a idéia do panoptismo de Bentham a que Foucault se
refere aplica-se perfeitamente: “É uma forma que se exerce sobre os indivíduos em forma de
vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma
de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas
normas”.15
Foram realizadas duas entrevistas temáticas com ex-prisioneiros políticos encarcerados
pelos regimes oficiais no período da ditadura militar. Alguns fragmentos coletados no trabalho
de campo são analisados a seguir.

3. Fragmentos de memória sobre a experiência prisional

13
Michael Pollack. Memória, esquecimento e silêncio in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n..3, 1989, pp
3-15 p.5.
14
Ibidem. p. 12.
Etnografia das entrevistas:

A entrevista com N. R. realizou-se na sua residência na Zona Sul do Rio de Janeiro no


dia 14 de julho de 2004 e durou um pouco mais de meia hora. Depois de dias tentando
encontrá-lo em casa, e depois que finalmente consegui falar com ele ao telefone, a entrevista
ainda foi adiada por algumas semanas porque ele alegava falta de tempo. Argumentei a
urgência da entrevista, considerando os prazos estabelecidos no calendário universitário.
Então, ficou marcado para dois dias depois – uma quarta-feira de manhã. Eu cheguei e fiquei
realmente impressionada. Ele tem, com certeza, mais de 1,90 e a voz incrivelmente grave –
ainda mais grave pessoalmente do que ao telefone. Ao final da entrevista, já me sentia bem
mais à vontade. Ele procurou um livro pra mim (Ousar Lutar de José Rezende) mas mostrou a
desordem em que se encontravam os seus livros, e, por isso, não conseguia encontrá-lo.
Aceitei uma carona até a UNI-RIO e fomos até lá conversando.
A entrevista com P. R. realizou-se na sua residência na Zona Sul do Rio de Janeiro no
dia de julho de 2004 e durou mais ou menos uma hora e meia. O encontro tinha sido
combinado através de uma ligação telefônica no dia anterior. Mas a epopéia de telefonemas
tinha começado há, pelo menos, duas semanas antes, passando pelo Grupo Tortura Nunca
Mais (General Polidoro, 238 sobreloja Botafogo) –que faz reuniões com familiares de ex-
presos políticos mortos e desaparecidos - e, inclusive, uma assessora parlamentar que acabou
não sendo encontrada. Ficou combinado que o ponto de encontro seria em frente a uma
lanchonete de uma rede de fast-food. Ele disse que estaria usando calça jeans e eu só percebi
que isso não ajudaria muito depois de chegar ao local e ver os minutos passando. Mas esses
minutos não foram mais do que cinco depois da hora combinada – às cinco horas. Ainda
assim, ele pediu desculpas pelo atraso. O entrevistado sugeriu que nos sentássemos na
lanchonete. Eu disse que o barulho prejudicaria a gravação. Ele convidou, então, para ir até a
casa dele. Fomos andando a, apenas, cem metros de distância. Ao final , mostrou-se disposto a

15
Michel Foucault. A verdade e a forma jurídicas, Rio de Janeiro: Nau, 1996. p.103.
colaborar em uma nova entrevista ou qualquer outra coisa em que precisasse da sua
colaboração.
Os dois entrevistados compartilharam a mesma cela e chegaram à Fortaleza de Santa
Cruz num mesmo dia de julho de 1974. Eles ocuparam uma das duas celas coletivas – celas A
e B – a outra ocupada, em março do mesmo ano, pelo grupo de d0oze pessoas que vinham da
Ilha Grande. P. R. e N. R. estavam num grupo maior (entre vinte e quarenta homens) que
vinham dos vários quartéis do Rio de Janeiro, nesse caso, tinham estado por último no
Batalhão de Guardas em São Cristóvão.
Nas narrativas aparece tomando um espaço considerável dessas memórias, a idéia de
uma função, de um experimento exclusivo – pelo menos, entre os vários espaços de
confinamento por onde passaram esses ex-presos políticos – da Fortaleza de Santa Cruz.
Tratava-se de um projeto classificatório dos presos com o objetivo de agrupá-los em:
recuperados, recuperáveis e irrecuperáveis. Então para isso:

“eles instituíram uma série de medidas e tratamentos dentro da fortaleza que


visavam uma pressão diária, constante, psicológica e chegou até a uma pressão
física mesmo, agressão física mesmo, no sentido de estudar a reação de cada
preso.”16

Esse projeto tinha se iniciado, talvez, porque a ditadura, naquele momento, resolveu
movimentar a seção S-5, uma seção mais psicológica. O médico encarregado da fortaleza era o
capitão Arquimedes, um psiquiatra, a quem cabia o estudo da reação de cada preso. É razoável
supor que esse esquema tenha sido montado por militares que queriam manter seus privilégios
e contestavam a abertura lenta, segura e gradual do general Geisel.17
O projeto classificatório exigia uma série de medidas de pressão constante sobre esses
homens, como, por exemplo, reter os alimentos que as famílias levavam no dia das visitas, aos
sábados, até ficarem estragados e comidos pelos ratos quando eram entregues aos presos.
Outros tipos de provocações eram realizadas, conforme assinalado por P. R.:

16
Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004.
17
Ottoni Fernandes Júnior, O baú do guerrilheiro, Rio de Janeiro: Record, 2004. p.247.
“de repente vêm um livro que não tem nada a ver, o cara implica, apreende o livro,
não dá pra você, nem devolve pra família; aí você reclama todo dia, aquele
desgaste, esse tipo de desgaste que era a provocação diária.”18

Já N. R. lembrou que, naquela ocasião, havia o problema de

“água, eles só abriam de cinco da manhã às cinco e meia (...) todo mundo tinha
que tomar banho naquela água (...) tinha que tomar banho com um litro de água e
a gota que caía na cabeça tem que passar no corpo todo e sair no pé, senão não
toma banho.”19

Parece que o tal projeto ficou mais orquestrado e agressivo a partir da chegada, na
fortaleza, do grupo que veio dos quartéis. No entanto, quando o espaço é analisado verifica-se
um comprometimento à rigidez, o cerceamento e a humilhação no tratamento dos presos
políticos:

“nós tínhamos uma janela mínima com uma grade fortíssima que, no entanto,
existia em torno dela pelo menos numa área de um metro de distância dela, talvez,
um pouco mais, uma faixa amarela pintada da qual a gente não podia ultrapassar.
Essa janela tinha uma guarita que tinha um soldado permanentemente armado com
um fuzil FAL, que a ele era encarregado de olhar se a gente ultrapassava essa
linha; aí havia uma ameaça de ele atirar no caso da gente ultrapassar essa linha”.20

As duas celas, A e B, eram quase iguais. Ottoni Fernandes Júnior enclausurado na cela
ocupada pelo grupo que veio da Ilha Grande, também se recorda da faixa amarela, da
constante ameaça e difícil situação em que se encontravam na fortaleza. Havia algo de errado.
Ele relembra o momento quando chegaram ao Iate Clube de Niterói e um camburão os
aguardava para transportá-los até a fortaleza: “A violência dos soldados comandados pelo

18
Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004.
19
Entrevista com N. R. concedida à autora em 14/07/2004.
20
Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004.
tenente Bronzo surpreendeu a todos. Fomos algemados e colocados no camburão. Na
fortaleza, ao descermos, cada um recebeu um capuz preto que cobriu nossas cabeças.” 21
Os dois entrevistados lembraram-se das péssimas condições das péssimas condições de
higiene das tais celas coletivas que eram realmente grandes – 30 metros de fundo, 15 de frente
e abóbada, no ponto mais alto, estava a uns 15 metros de altura; beliches de metal espalhados
pela cela.22 As celas escavadas na rocha, tinham uma canaleta que corria a água e os ratos. O
expoente dessa insalubridade era o “ratódramo”, assim chamado porque: “era a noite toda rato
escorrendo ali pela canaleta, era uma canaleta de cimento, feita pra escorrer a água que
minava, da parede de fundo da cela.”23
Para tentar escapar a essa condição, uma estratégia de sobrevivência afastava,
infelizmente, para não muito longe, os ratos. Mas, ainda assim, a constante permanência
desses roedores associados biologicamente e psicologicamente à transmissão de doenças
perturbava as condições existenciais desses homens. Por alguma sorte, eles haviam descoberto
“que o macete era deixar a lata de lixo com alguma comida, que eles [os ratos] só ficavam na
lata de lixo (...) tinha duas latas de lixo que ficavam o resto de comida.”24
Para estes entrevistados, o espaço prisional da Fortaleza de Santa Cruz encaixava-se de
alguma forma no tal projeto classificatório, que exigia medidas duras, provocações constantes,
com o objetivo de testar a resistência dos presos, para então agrupá-los, obter sucesso minando
internamente a organização dos presos políticos, diminuindo a combatividade. Parece que teve
algum êxito, embora numericamente muito pouco, já que alguns dos presos transferidos dos
quartéis foram saindo, ou, porque tinham penas leves, ou ainda, porque tiveram suas prisões
preventivas relaxadas.
Ao contrário, a cela ocupada pelos homens transferidos da Ilha Grande permaneceu
sempre com o mesmo efetivo – doze. É difícil achar que esse êxito tenha ocorrido
necessariamente devido ao exclusivo projeto classificatório dentro da fortaleza porque os
divergentes do regime militar em quase todo o período de confinamento e tortura, houve
aqueles que optaram por diminuir a resistência. Na Fortaleza de Santa Cruz, não foi diferente:
“alguns não aderiram a essa greve [de fome], foram removidos, como privilégios, na verdade,

21
Ottoni Fernandes Júnior. O baú do guerrilheiro. p.244.
22
Ibidem.
23
Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/072004.
para as casas onde moravam os soldados e oficiais presos (...) que tinham um conforto muito
maior.”25
Dentro da cela ocupada pelo grupo transferido dos quartéis, havia um ex-militar que
sofria com sérias perturbações mentais. A dedução não poderia ser outra; ele havia aderido às
práticas dos militares, mas insistia em fazer isso dentro da cela que compartilhava com os
demais, queria mostrar para a repressão que havia se regenerado e fazia isso às vistas dos
companheiros de cela. Discutia sempre com os demais, não aceitava ser representado pelo
coletivo. Ao que tudo indica, ele já chegou nessa condição, que tinha se iniciado devido ao
processo de torturas. Por uma alegação de sobrevivência física, depois de já terem optado por
turnos de revezamentos para vigiar Ubajara durante a noite, o grupo, então, de seis a oito
pessoas, decide amarrá-lo para que possam dormir e exigem sua transferência definitiva, junto
à direção carcerária, para o Hospital Central do Exército. Os militares insistem para que ele
seja desamarrado e diante das negativas, todos dessa cela, exceto o preso perturbado, são
colocados sob espancamento dentro de uma solitária e são jogadas lá dentro duas ampolas de
gás lacrimogêneo. E então, tudo ficou ainda mais assustador. José Roberto Rezende conta
como foi aquela noite:

“As ampolas batiam na grade, estouravam e, além do gás, os cacos de vidro caíam
no chão. Alguns estavam descalços e, como se não bastasse o desespero causado
pelo gás num ambiente minúsculo, não podiam nem mexer os pés, por causa dos
vidros quebrados. (...) Ficamos [cada] um em meio a uma verdadeira porcaria:
lágrimas e catarro saindo em profusão e grudando em todo mundo. Além disso,
uma horrível sensação de fogo queimando a pele”.26

Na manhã do dia seguinte, uma tropa voltou e levaram dois presos Cláudio Torres da
Silva e José Roberto Gonçalves de Rezende - para as “celas do passado”- escolhidos
aleatoriamente. Essa escolha é confirmada por José Rezende encaixa-se no tal projeto de
provocações a que eram submetidos. “As tais celas do passado foram construídas há muito
tempo, em forma de arco, aproveitando o desnível da rua. A primeira delas tinha 1,80 m de

24
Entrevista com N. R. concedida à autora em 14/07/2004.
25
Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004.
altura, a segunda 1,60 e assim iam diminuindo até a última que tinha 70 centímetros de altura.
Eu fui colocado nessa última e o Gaúcho na seguinte, com 90 centímetros de altura. Ele era
alto, grande mesmo (...)”.27
Cabe aqui uma observação. Os mecanismos que afastam dos presos a noção do tempo
passado surtiram efeito na Fortaleza de Santa Cruz. Ottoni Fernandes Júnior relata a ida, para
ele, dos oito homens para a solitária e em seguida dos dois companheiros para as “celas do
passado” da seguinte maneira: “no dia seguinte [ao dia 14 de novembro, portanto dia 15] Mico
[José Rezende] e Cláudio foram retirados da solitária e levados para a ‘cela do passado’. (...)
No dia 16 de novembro, quando trouxeram o café da manhã, comunicamos que estávamos em
greve de fome. (...) No dia 18, o chefe da Polícia do Exército esteve conosco (...) e respondeu
que os dois companheiros já tinham sido tirados da ‘cela do passado’ e levados para o 1º
28
Batalhão de Guardas”. Dessa forma, José Rezende e Cláudio Torres da Silva entram no dia
15 de novembro e saem antes, ou ainda, no dia 18. No entanto, José Rezende fala que passou
dentro da “cela do passado” foram bem mais do que quatro dias: “Depois de sete dias na ‘cela
do passado’, finalmente, às vésperas da eleição de 1974 [a eleição é no dia 15, portanto, trata-se
do dia 14], nos levaram de volta pra junto dos demais presos”. 29
Logo depois da volta ao xadrez da turma que estava na solitária, numa articulação com
os presos que ocupavam a outra cela, decide-se por uma greve de fome. Depois da cena de
extrema violência,

“ a gente tinha que lutar pela sobrevivência física (...) de forma que a gente, então,
resolveu fazer uma greve de fome para sair da fortaleza (...) as nossas condições
eram de cessasse, aquele ambiente repressivo fosse removido, a direção do presídio
fosse trocada (...)”.30

Como pode uma única greve de fome reivindicar ao mesmo tempo a saída da fortaleza e a
troca da direção do presídio? Essas reivindicações divergem ainda de outra se comparadas as

26
José Roberto Rezende, op. cit., p. 129.
27
Ibidem.
28
Ottoni Fernandes Júnior, op. cit., p.249-250.
29
José Roberto Rezende, Ousar Lutar, p.130.
30
. Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004.
apresentadas por Ottoni Fernandes Júnior: “Além da volta de Cláudio e Mico, queríamos o fim
das arbitrariedades, dos espancamentos, a remoção dos presos anti-sociais, a melhoria das
condições carcerárias, a permissão para trabalhar com artesanato.”31
Foi uma greve rápida (entre três a cinco dias), diferente de outras do movimento dos
presos políticos. É necessário ressaltar que as famílias foram avisadas da greve no dia de visitas
por que não faz sentido fazer uma greve de fome sem ninguém tomar conhecimento. E foram
elas, as famílias, que se mobilizaram junto com os advogados, visitando juízes militares,
ministros dos tribunais superiores, o que resultou na interferência na Fortaleza de Santa Cruz.
O encontro com o coronel Milton, chefe da Polícia do Exército, no dia seguinte, com o major
Miranda parece ter surtido efeito e por uma semana mais ou menos tiveram um bom
tratamento. “Mas no dia 28 de novembro, a turma da cela B foi mandada de volta para a Ilha
Grande, seguida logo depois pelo resto do pessoal”.32
Ainda restaram presos políticos na cela coletiva quatro homens, entre os quais P. R..
Parece ainda, que havia outros três presos que estavam em casas – onde ficavam os oficiais e
soldados presos. Eram eles o coronel Jefferson Cardin e os irmãos Manes. A transferência
deles deu-se em abril de 1975, segundo o relato de P. R..

4. Considerações finais

Há trinta anos, chegavam no Presídio do exército na Fortaleza de Santa Cruz homens


enclausurados pelo órgãos oficiais do regime militar. Os acontecimentos vividos pessoalmente
ou vividos por tabela, que povoam as narrativas dos ex-presos políticos, são as únicas que
tentam esclarecer o que se passou dentro das masmorras da fortaleza.
A existência do “coletivo” na fortaleza é um traço da influência dos presos vindos da Ilha
Grande, e que depois contagiou aqueles transferidos dos quartéis. O “coletivo” foi uma forma
que os presos políticos encontraram para se organizar internamente, uma organização que
extrapolava as redes de fora da cadeia. Eles não haviam deixado de ser políticos porque
estavam presos. Dessa maneira, eles podiam fazer frente ao regime e, de alguma forma, resistir
às arbitrariedades. Isso foi muito importante para as conquistas que eles conseguiram, através

31
. Ottoni Fernandes Júnior, O baú do guerrilheiro, p.250.
de greve de fome, de contato com as famílias, com o exterior, de denúncias de maus tratos aqui
no Brasil e no exterior.
Como já foi dito antes, eles não sabiam exatamente quantos dias haviam se passado.
Nenhum entrevistado, nenhum dos outros dois que contaram suas vidas em cárcere em livros
autobiográficos souberam dizer precisamente o dia da transferência para a fortaleza. O dia de
visitas ora aparece como sendo o sábado, ora o domingo. Além disso, não sabem exatamente o
dia da saída da fortaleza. Mas, quando próximo a greve de fome, quase todos falam de uma
data mais ou menos próxima, que seria 15 de novembro de 1974, o aniversário da Proclamação
da República e a vitória do MDB. A alusão a um desses fatos acontece porque se trata de
homens ligados a vida política, a militância contra o regime.
O fato de terem passado por outras instituições prisionais antes e depois da transferência
para a fortaleza (pelo menos nos depoimentos a que tive conhecimento) contribuiu para um
embaralhamento na descrição do espaço, dos motivos que levaram à greve de fome, das
recordações sobre o cotidiano, sobre os companheiros de cela. A todo momento surge a
comparação entre os espaços de confinamento e a narração de uma ou outra situação que tenha
ocorrido em outro lugar que não a Fortaleza de Santa Cruz. É bastante comum frases do tipo:
“porque lá na Ilha Grande era diferente...”, ou ainda “no Batalhão de Guardas, eu fiquei...”
É interessante como as “lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos
recordações pessoais, os pontos de referência geralmente apresentados nas discussões são como
mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores”.33 O barulho
dos ratos à noite, a faixa que tinha pintada no chão que dependendo dos relatos poderia ser uma
ou mais, em todos os depoimentos essa faixa é amarela. São pontos importantes no registro da
memória.
O preso político tem um grau de identificação muito maior com o grupo. Uma
solidariedade que amotina essas pessoas em favor de um objetivo: o fim da ditadura. Esse
fenômeno é mesmo percebido e falado pelos próprios entrevistados e, diante da saída de
alguns, ou pelo menos, de um afastamento das lutas do grupo – nesse caso, em virtude do tal
projeto classificatório – verifica-se um enorme sentimento de frustração por parte dos membros
do grupo que ali permaneceram. Por outro lado, constata-se pelas entrevistas a vontade de

32
Ibidem.
reafirmar que o grupo, agora diminuído, está ainda mais coeso, mais forte diante da repressão.
O grau de identificação passa a ser ainda maior, na medida em que os componentes mais fracos
teriam sido eliminados. Na Fortaleza de Santa Cruz não ficou nenhum preso comum
enquadrado pela Lei de Segurança Nacional.
Como último ponto, vale a pena destacar que na Fortaleza de Santa Cruz e mesmo no
Arquivo Histórico do Exército, entre suas publicações, não há nenhum documento sobre a
permanência de presos políticos em 1974 nesse espaço, pelo menos, aquelas a que se pôde ter
acesso.
Através das entrevistas cedidas à autora, buscou-se analisar as duas experiências de
clausura dentro da Fortaleza de Santa Cruz. Além disso, junto com os outros dois relatos – de
José Roberto Rezende e de Ottoni Fernandes Júnior – tentou-se ampliar o foco para a análise da
experiência do grupo encarcerado – das relações estabelecidas dentro desse espaço, as
estratégias de sobrevivência. Os objetivos foram esboçados somente porque uma memória
subterrânea conseguiu emergir para confrontar com a memória oficial de Estado. Nenhuma
fonte primária pertinente ao espaço da Fortaleza durante a ditadura militar foi localizada pela
autora até a entrega desse artigo.

5. Referências Bibliográficas:

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33
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MORAES FERREIRA, Marieta de, AMADO, Janaína (organizadoras). Usos e Abusos da
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