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conexão brasilis CONEXÃO BRASILIS

SEGREDOS
road rage ROAD RAGE

DA
AMAZÔNIA
ANTIGA
O
dia amanhece com o cheiro de café
recém-coado e o barulho das batedeiras
manuais de açaí, vindos das pequenas
casas de madeira enfileiradas na beira.
Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a
vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a
margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e
caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de
madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comu-
nidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na
região do Arquipélago do Marajó, no Pará.
Uma mulher me chama e, enquanto aponta um lo-
cal, me fala: “Venha ver a greguinha”. Aproximo-me
da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo,
ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas
uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos
incisos realmente se assemelham a volutas gregas, ca-
prichosamente traçadas em relevo.
Uma peça arqueológica produzida pelos índios ma-
rajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C.
e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se
exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da
Vila Tessalônica, esta convivência com o passado re-
moto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira
Pesquisas nos maiores sítios tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que
foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais
arqueológicos da América do Sul estão de 40 anos. “Nessa época, tinha muito mais vasilhas.

revolucionando o que se definia como o Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi
quebrando com a força da água.”
passado da Amazônia précolonial. Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia que
muitos têm de que as urnas eram potes usados para se
Parte do cotidiano dos caboclos locais, guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. “Elas
serviam para agasalhar os mortos.” A vila – um pequeno
eles escondem mistérios sobre os antigos alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um
posto médico – está postada às margens do rio Arara-
habitantes da nossa terra mã. E inocentemente plantada sobre um aterro funerá-
rio, onde possivelmente se realizavam ritos sagrados.
O fato é que, por todo o Arquipélago do Marajó, es-
POR MÔNICA TRINDADE CANEJO ses vestígios da passagem do homem antes da chegada
FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas

80 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009


conexão brasilis CONEXÃO BRASILIS

SEGREDOS
road rage ROAD RAGE

DA
AMAZÔNIA
ANTIGA
O
dia amanhece com o cheiro de café
recém-coado e o barulho das batedeiras
manuais de açaí, vindos das pequenas
casas de madeira enfileiradas na beira.
Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a
vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a
margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e
caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de
madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comu-
nidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na
região do Arquipélago do Marajó, no Pará.
Uma mulher me chama e, enquanto aponta um lo-
cal, me fala: “Venha ver a greguinha”. Aproximo-me
da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo,
ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas
uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos
incisos realmente se assemelham a volutas gregas, ca-
prichosamente traçadas em relevo.
Uma peça arqueológica produzida pelos índios ma-
rajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C.
e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se
exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da
Vila Tessalônica, esta convivência com o passado re-
moto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira
Pesquisas nos maiores sítios tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que
foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais
arqueológicos da América do Sul estão de 40 anos. “Nessa época, tinha muito mais vasilhas.

revolucionando o que se definia como o Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi
quebrando com a força da água.”
passado da Amazônia précolonial. Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia que
muitos têm de que as urnas eram potes usados para se
Parte do cotidiano dos caboclos locais, guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. “Elas
serviam para agasalhar os mortos.” A vila – um pequeno
eles escondem mistérios sobre os antigos alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um
posto médico – está postada às margens do rio Arara-
habitantes da nossa terra mã. E inocentemente plantada sobre um aterro funerá-
rio, onde possivelmente se realizavam ritos sagrados.
O fato é que, por todo o Arquipélago do Marajó, es-
POR MÔNICA TRINDADE CANEJO ses vestígios da passagem do homem antes da chegada
FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas

80 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009


HOMEM DA AMAZÔNIA
Esqueleto encontrado no sítio
Hatahara, em Iranduba, AM, em
2007. De acordo com testes, ele
tem entre 1000 e 1200 anos; Ao
lado, ruínas de Paricatuba, AM,
onde pesquisadores investigam
vestígios arqueológicos, como
objetos de cerâmica
Rolling Stone Br asil, Abril, 2009 • 81
AMAZÔNIA ANTIGA
passou a ser ocupada por fazendas que investiam em 1
pecuária bufalina, com a chegada dos robustos búfa-
los de chifres tristonhos, muitas peças passaram a ser
encontradas. Durante 15 dias, fomos com nosso barco
visitando diversas dessas localidades. Em todas, frag-
mentos de cerâmica iam avisando que, por ali, passou
alguém num passado remoto.
Mas essa não é uma realidade exclusiva do Marajó.
Ela se repete por toda a região. Durante quatro anos,
o fotógrafo Maurício de Paiva perseguiu esse tema,
acompanhando pesquisadores pela Amazônia brasi-
leira. Foi à Santarém, Manaus, subiu o rio Negro, des-
ceu o Solimões, embrenhou-se pelo Amapá, dormiu
em redes, sentou-se à mesa do caboclo para comer açaí
com farinha de tapioca.
E, além de ganhar alguns quilos e trocar o tom páli-
do de pele por um bronzeado caboclo em cada viagem,
compreendeu por que as pesquisas estão revolucio-
nando o que até poucos anos se definia como o passado
SEGREDOS ANTIGOS
da Amazônia précolonial.

A
1. Vila Tessalônica, no Arquipélago
prende-se na escola que essa era uma do Marajó, no Pará; 2. O chileno
Manuel Arroyo em um sítio escola
região de solo pobre, de florestas intoca-
em Iranduba; 3. Eduardo Góes Neves, um
das, o “inferno verde”. Um lugar onde o dos mais respeitados pesquisadores da
homem nunca foi muito bem-vindo, com Amazônia; 4. Rotina: na casa
exceção de um ou outro grupo indígena, daqueles que de um morador, urna funerária Guarita,
coletavam algumas frutas, caçavam encontrada em Altazes, AM
alguns animais e iam logo embora,
2 3
com medo da Cobra Grande. E que
é assim mesmo que deve ser, uma
floresta eternamente imaculada. A
questão só começou a ser revista nos
anos 80, com o inicio dos estudos da
norte-americana Anna Roosevelt.
Especialmente nos últimos 15 anos,
a intensificação das pesquisas de
campo está provando que havia não
só muita gente em toda a Amazônia
brasileira como essas pessoas esta-
vam organizadas em sociedades so-
fisticadas, com complexas redes de
intercâmbio cultural e econômico.
Para começar, vestígios arqueoló-
gicos comprovam a passagem do
homem na Serra dos Carajás e em
Monte Alegre, no Pará, há cerca de
11.200 anos. Nas áreas litorâneas,
onde grandes aterros formados por
cascas de moluscos e ossos – cha-
mados de sambaquis – dão conta
da presença humana, estima-se que
ocupações tenham existido há mais
4
de 5.500 anos. Em alguns lugares, os indícios deixados ca, para avaliar se o local era de uso cotidiano
nos fazem pensar até que ponto de sofisticação chegava ou sagrado. Numa espécie de círculo formado
o conhecimento desse homem ancestral. por grandes rochas, uma delas, com um orifí-
No estado do Amapá, por exemplo, cerca de 20 sítios cio ao centro, desperta curiosidade: sua incli-
arqueológicos formados por alinhamentos de pedras, nação está relacionada ao solstício de dezem-
que podem passar dos 3 metros de altura, intrigam bro. Uma espécie de marcador do tempo que
pesquisadores e moradores. Conhecidas desde o final demonstra os conhecimentos astronômicos
do século 19, essas estruturas são únicas no Brasil e de seus construtores. “Este sítio é a transfor-
praticamente não foram estudadas até 2005, quando mação de algo tão efêmero como a observação
Mariana Petry Cunha e João Darcy Saldanha começa- da natureza em uma estrutura sólida e dura-
ram sua pesquisa. O jovem casal, vindo do Rio Grande doura”, afirma João Darcy Saldanha. O casal
do Sul, tem dedicado especial atenção a certo sítio, no de arqueólogos foge como o diabo da cruz de
município de Calçoene. uma aparentemente óbvia, porém extrema-
Bem ali, um tantinho acima da linha do Equador, é mente perigosa, associação com Stonehenge,
impossível fugir do calor. Mas eles não largam as enxa- o famoso sítio arqueológico na Grã-Bretanha.
das. É importante escavar ao redor das rochas para des- Mesmo porque suas pesquisas ainda estão na
cobrir se existem enterramentos ou utilitários de cerâmi- fase de coleta de dados, longe de conclusões.

82 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009


No Amapá estão ainda muitos outros sítios, com sítios-escolas, onde estudantes têm a oportunidade de reno rochoso como céus enevoados. Não sabemos se
cerâmicas de diferentes tradições culturais. As urnas participar de escavações. À noite, deitado numa rede, os habitantes podem andar pela cidade alargando as
funerárias conhecidas como Maracá e Cunani, por acende uma lanterna para manter a leitura em dia. galerias das minhocas e as fendas em que se insinuam
exemplo, têm um impressionante desenho antropo- Mas, mesmo que um de seus principais mentores não raízes: a umidade abate os corpos e tira toda a sua for-
morfo, que revela elaborada riqueza cultural. Mas é esteja presente, o PAC mantém-se firme graças ao esfor- ça; convém permanecerem parados e deitados, de tão
mais um caso onde as pesquisas ainda não trouxeram ço de um número cada vez maior de pessoas interessadas escuro. De Argia (...), daqui de cima, não se vê nada, há
muitas pistas. em desvendar os segredos da Amazônia, pesquisadores quem diga: ‘está lá embaixo’ e é preciso acreditar; os
Seguindo na direção oeste, subindo o lendário Ama- de diferentes disciplinas, que criam uma complexa rede lugares são desertos. À noite, encostando o ouvido no
zonas, os estudos estão mais adiantados. Na Amazônia de informação em variados ramos da ciência. E todos solo, às vezes se ouve uma porta que bate”.
Central, que inclui Manaus e arredores, o número de esbarram em alguém que é fundamental para o bom an- Calvino não estava pensando em arqueologia quan-
pesquisadores é bem mais significativo. Eles vêm de São damento do trabalho: o velho e bom caboclo. do poetizou sobre os mortos. Mas foi essa mesma visão
Paulo, Minas Gerais, Argentina, Itália, Estados Unidos, Caminhando entre os mamoeiros, Pedro Gomes que atraiu Cláudio Roberto Cunha para os braços da
entre outros cantos do mundo. O ponto de convergência Dias observa o efeito da chuva, que há vários dias arqueologia. Cláudio era um jovem taxista que con-
de todos é o Projeto Amazônia Central, ou, simplesmen- caía sem descanso, encharcando o solo, para a alegria duzia arqueólogos de barco durante um sítio-escola.
te, PAC. E, por trás dessa sigla, há um nome reconhecido das plantas, e obstruindo as estradas, para a tristeza No ano seguinte, ofereceram-lhe uma ferramenta para
no meio acadêmico nacional e internacional: Eduardo dos produtores rurais. Pedro é um bom exemplo des- ajudar na escavação. Foi a deixa que ele esperava. Seu
Góes Neves. Ou, simplesmente, Edu. se homem que hoje ocupa a Amazônia. Agricultor, pensamento, quase uma brincadeira, é que, a cada 10
A primeira vez em que tentamos algum contato com mora com a família no entorno do sítio arqueológico centímetros escavados, dez anos de vida se revelam.
Edu, não foi muito fácil. Ele nunca estava de bobeira do Laguinho, em Iranduba, a 25 km de Manaus. Sua Escavar 1 metro é como desvendar a história de toda
em sua sala no Museu de Arqueologia
e Etnologia da Universidade de São
Paulo, o MAE. Um dia num congresso
É COMUM ENCONTRAR URNAS FUNERÁRIAS NAS CASAS
no exterior, no outro em campo, ou numa banca exa-
LOCAIS, COMO PEÇAS DE DECORAÇÃO OU
minadora. Até que, finalmente, ele próprio nos ligou
do aeroporto, quando já embarcava para mais uma
UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. ESTAS PESSOAS ESTÃO
viagem, e conseguimos marcar uma reunião. Foi ele
quem primeiro nos alertou para
o grande dilema da sua profis-
são: “A arqueologia tem uma DESRESPEITANDO O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO?
crise de identidade constante,
ela se pergunta muitas coisas a todo momento”. casa, construída com madeira tirada da floresta, como uma vida. Em 2009, Cláudio, aos 33 anos, completa
Continua difícil achá-lo disponível, mas com a chan- todas por ali, fica numa área elevada constituída por uma década de trabalhos no PAC. E explica que isso
ce de conhecer melhor o trabalho que ele iniciou fica montículos, aterros recheados de cacos de cerâmica. mudou sua própria visão de mundo: “Achar uma peça
claro que ali se encontra muito mais do que um profes- Ele tem sua própria versão a respeito dos cacos: “Os de 2 mil anos é um mistério, como a vida. A arqueolo-
sor universitário. Em uma área que envolve profissio- pais da gente falavam, quando encontravam as cabe- gia mudou o modo como eu vejo a natureza, olho para
nais realmente comprometidos e – por que não? – apai- cinhas, que era coisa dos indígenas, era o passado que a mata, como vejo um ser humano”.
xonados, é como se Edu fosse um personagem à parte. era passado de pai pra filho”. É este ser humano o que esses profissionais estão

P
Ele mesmo conta, em suas aulas no MAE, que era um buscando quando vêm com suas espátulas e pincéis,
jovenzinho aventureiro quando se embrenhou na Ama- edro planta mandioca, laranja, cria desbastando os perfis terrosos. Eles vislumbram a vida
zônia pela primeira vez. Sua intenção era testar, em cabeças de gado. E seu principal ganha-pão latente deixada ao longo dos séculos abaixo do chão
campo, teorias vigentes. Longe de qualquer comprova- é o mamão, que vende para mercados em onde crescem mandiocas e mamões. Jaz ali, impressa
ção, ele se deparou com evidências de que muito do que Manaus. Mas os cientistas nem ligam para nas escavações de TP, a história de pessoas reais. Ou,
se pensava estava errado. A partir daí, precisou criar a fruta. Seus olhos estão voltados para o chão: os 6 mil nas palavras de Cláudio: “Você passa por momentos
suas próprias teorias e viabilizar novas formas de se pés de mamão de Pedro estão fincados numa terra es- que as pessoas viveram antes, que estão intactos, se-
pesquisar. Foi como se abrisse portas para dezenas de cura e fértil, que esconde mais do que raízes. lados na unidade”.
outros pesquisadores de várias partes do mundo. Em É a Terra Preta Arqueológica, a TP. Um solo classi- Utensílios domésticos, sobras do jantar, objetos
1995, criou em parceria com os colegas norte-america- ficado como antrópico, já que foi produzido pelo ho- ritualísticos. Resquícios de uma comunidade que se
nos Michael Heinckenberg e James Petersen o audacio- mem, por dejetos orgânicos deixados ao longo dos sé- congelou por séculos em paredes de terra. Até mesmo
so PAC. Hoje, com pouco mais de 40 anos, o doutor em culos. Onde há TP, houve ocupação humana por longo o próprio homem está presente, na forma de esquele-
arqueologia pela Univer- tempo. Quanto maior o espaço ocupado por ela, maior tos impressionantemente preservados. Com estes ves-
sidade de Indiana (EUA) o número de pessoas que ali viveu. Quanto mais pro- tígios, é possível investigar atentamente como se cons-
é uma referência mun- funda, maior o tempo em que essa comunidade se es- truía este dia-a-dia. Um único esqueleto pode falar
dial. Mas, se ele passa tabeleceu. Hoje, a TP é um solo de alto valor comercial, sobre seu sexo, a idade ao morrer, a dieta, a estatura.
mais horas em assentos já que é riquíssimo em matéria orgânica, e tanto pode Sorrisonildo, batizado assim pelos participantes
de avião do que em sua ser procurado para quem deseja estabelecer uma planta- do sítio-escola de 2007, realizado no sítio Hatahara,
própria cama, há um lu- ção quanto por empresas de paisagismo, que comercia- também em Iranduba, é um desses esqueletos. Uma
gar onde ele parece mais lizam essa terra para o uso em jardins. Ela também tem acertada alcunha quando observamos que tem ótimos
em casa que em qualquer instigado pesquisadores que acreditam na hipótese de dentes para quem viveu antes da chegada dos dentistas.
outro: na Amazônia. reproduzi-la intencionalmente para recuperar áreas de Sem mudar da cômoda posição fetal em que descansa
Durante o dia, assu- solos degradados. Compreender como, exatamente, ela há mil anos, Sorrisonildo nos conta que se alimentava à
me a direção da Kombi se formou, significaria um grande avanço em locais onde base de mandioca, não de milho. É que a mandioca, ao
branca pelas estradas de o solo não oferece condições de agricultura. Mas, para os contrário do milho, não possui sílica, uma substância
terra, discute hipóteses arqueólogos, ela tem outro valor. que facilita a formação de cárie. É assim, indo fundo
em diferentes idiomas Na obra As Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino escre- em cada detalhe, que cientistas de diferentes formações
com colegas de todo o veu: “O que distingue Argia das outras cidades é que acadêmicas vão trabalhando em conjunto. Um botâni-
mundo, dá entrevistas no lugar de ar existe terra. As ruas são completamente co procura sinais de agricultura. Ao seu lado, um espe-
a jornalistas afoitos e aterradas, os quartos são cheios de argila até o teto, cialista em solos vai descobrindo a composição química
ainda supervisiona o sobre as escadas pousam outras escadas em negativo, do terreno. No laboratório, uma historiadora da arte
trabalho nos chamados sobre os telhados das casas premem camadas de ter- restaura e compara peças de cerâmica.

Rolling Stone Br asil, Abril, 2009 • 83


AMAZÔNIA ANTIGA
1 2

VESTÍGIOS INVESTIGADOS

1. Em Lauro Sodré, arqueólogos e moradores


interagem; 2. Urna funerária com forma humana
dos Guarita, grupo indígena que habitou a
Amazônia Central entre os séculos IX e XVI

Hoje, sabe-se que a Amazônia brasileira guarda os Carla Gibertone Carneiro, educadora ligada ao PAC, Pele bronzeada pelos muitos anos de sol paraense,
maiores sítios arqueológicos de toda a América do Sul. A coordena uma equipe que visita as comunidades num cabelos escuros e jeito atlético, Denise é uma gaúcha de
grande preocupação é como preservá-los. A maioria, cer- extenso trabalho de educação patrimonial. Mas como pouco sorriso. Mas que se mostra à vontade com os mo-
ca de 90%, ainda não recebeu a visita de um arqueólogo, explicar a um morador que é importante guardar uma radores do Marajó, enquanto se senta para tomar café
não foi registrada pelo Instituto do Patrimônio Históri- peça feita por um índio que ninguém nem sequer sabe e entra numa prosa com os caboclos sobre visagens.
co e Artístico Nacional, não consta em nenhuma tese de dizer o nome? Ela explica que a primeira barreira é a Pode-se dizer também que conhece como ninguém
mestrado. É comum encontrar grandes urnas funerárias questão da identidade cultural. “Essas pessoas não a arqueologia no Marajó. É dela a surpreendente tese
dentro das casas locais, utilizadas como se fossem peças se identificam com os índios, elas não se reconhecem de que os desenhos coloridos que decoram as cerâmi-
de decoração. Estas pessoas estão desrespeitando o pa- como descendentes deles.” E, de certa forma, não des- cas marajoaras são uma espécie de escrita. Complexas
trimônio cultural brasileiro? A legislação prevê, desde cendem mesmo. Se formos generalizar, o morador atual combinações de sinais que, na verdade, representariam
1961, que todo artefato arqueológico é de propriedade da da Amazônia se identifica mais com seus ascendentes narrativas míticas. Em cada peça decorada, um conjun-
União, portanto está proibida toda forma de comerciali- nordestinos, a maioria vinda nos tempos agitados da to de desenhos conta a história de uma pessoa, talvez
zação. Mas a verdade é que a preciosidade dessas peças extração da borracha. O morador remoto, este que fez de um clã. Um código que hoje é um enigma, mas que,
está além do alcance oficial. E, enquanto entidades com- a cerâmica encontrada, ninguém sabe realmente para em seu tempo, era compreendido por uma sociedade.
petentes não se dispõem a guardar os artefatos, é o pró- onde foi. É provável que, com a chegada dos coloniza- Tanto se fala sobre as ricas culturas inca, maia, asteca,
prio caboclo que faz as vezes de guardião do tesouro. dores europeus, tenha migrado para outros territórios, e, de repente, alguém ensina que aqui mesmo no Brasil
um grupo indígena précolombiano chegou a um grau de
sofisticação tão elevado que possuía escrita própria.
A GRANDE PREOCUPAÇÃO É COMO PRESERVAR Naquela manhã na Vila Tessalônica, onde me mos-
traram a greguinha, não compreendi sua real
OS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DA AMAZÔNIA. CERCA importância. No caminho de volta, enquanto o
barco serpenteava vagaroso pelas águas escuras
do rio Araramã, observei em silêncio suas margens to-
DE 90% DELES NÃO RECEBERAM A VISITA DE UM madas pela mata fechada, com altos açaizeiros espeta-
dos aqui e acolá. Só então me dei conta
ARQUEÓLOGO, NÃO FORAM REGISTRADOS PELO IPHAN de que toquei com meus dedos um ob-

N
jeto sagrado. Uma peça moldada por
a comunidade de santa rita da va- sido dizimado por epidemias ou assimilado pelas mis- mãos hábeis de alguém que viveu há séculos, talvez um
léria, em Parintins, Amazonas, a chuva sões religiosas e se desagregado socialmente. Não basta milênio, para agasalhar o corpo de outra pessoa, num
derruba terra dos barrancos, deixando à aos educadores usarem o discurso da herança cultural. ritual de respeito e devoção. Quem foram esses antigos
mostra apliques de vasilhas com formas É necessário compreender como esses moradores exer- habitantes do Brasil? Para que deuses elevavam suas
de cabeças de pessoas ou animais, chamadas de careti- cem seus próprios sistemas de valores e estabelecer um vozes? Com que nomes batizavam seus filhos? Que
nhas. Uma manhã, enquanto fotografava, Maurício de diálogo, em que tanto se ensina quanto se aprende. O mensagens inscreveram no barro cozido dessas urnas?
Paiva conversou com um morador, de nome Marciano, que Carla definiu como um trabalho para a vida toda. Segredos guardados por tantos anos, enterrados numa
um pescador, pai de oito filhos e fã de Amado Batista, Essa lida constante com os atuais moradores faz parte terra que hoje é pisada pelos pés de outros homens.
que contou ter cerca de 300 caretinhas guardadas e que da rotina de todo bom arqueólogo. Quando terminamos Outros homens que têm, por sua vez, os próprios se-
prefere mantê-las num balde a deixar que sejam vendi- nossa viagem pelo Arquipélago do Marajó, fomos atrás gredos para zelar.
das ou que se percam. Com a presença cada vez mais de Denise Pahl Schaam, atual presidente da Associação
assídua de pesquisadores, a população já está conscien- Brasileira de Arqueologia. “Pesquisadores não se atêm O livro Arqueologia na Amazônia - Entornos (Ed. DBA),
tizada de que o comércio é ilegal. Mas o desafio é que apenas a achar peças e fragmentos e dizer: ‘A h, uma com imagens de Maurício de Paiva e textos da jornalis-
eles compreendam que esses objetos são importantes urna funerária!’ Um sítio se pesquisa, se convive, para ta Mônica Trindade Canejo e do arqueólogo Eduar-
para sua própria cultura. especificar outras ideias e pensamentos.” do Góes Neves, será lançado em setembro deste ano.

84 • Rolling Stone Br asil, Abril, 2009

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