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Contribuição Para a História

do Cristianismo Primitivo
Friederich Engels
1895

1ª Edição: Die Neue Zeit, em 1894-95


Tradução:....
Fonte: Partido da Causa Operária
Transcrição: Rodrigo Jacob, julho 2007
HTML: Fernando A. S. Araújo, julho 2007

I
A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de
contato com o movimento operário moderno. Como este, o
cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu
primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e
dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos
por Roma. Os dois, o cristianismo como o socialismo operário,
pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria; o
cristianismo transpõe essa libertação para o Além, numa vida depois
da morte, no céu; o socialismo coloca-a no mundo, numa
transformação da sociedade. Os dois são perseguidos e encurralados,
os seus aderentes são proscritos e submetidos a leis de exceção, uns
como inimigos do gênero humano, os outros como inimigos do
governo, da religião, da família, da ordem social. E, apesar de todas
as perseguições, e mesmo diretamente servidos por elas, um e outro
abrem caminho vitoriosamente. Três séculos depois do seu
nascimento, o cristianismo é reconhecido como a religião do Estado e
do Império romano: em menos de sessenta anos, o socialismo
conquistou uma posição tal que o seu triunfo definitivo está
absolutamente assegurado.
Conseqüentemente, se o Sr. Professor A. Menger, no seu “Direito
ao Produto Integral do Trabalho”, se espanta de que, sob os
imperadores romanos, tendo em vista a colossal centralização das
riquezas e os sofrimentos infinitos da classe trabalhadora, composta
essencialmente de escravos, “o socialismo não tenha sido implantado
depois da queda do Império romano ocidental”, é porque
precisamente não vê que esse “socialismo”, na medida em que era
possível na época, existia efetivamente e chegava ao poder. . . com o
cristianismo. Só que o cristianismo, como tinha fatalmente de ser,
considerando as condições históricas, não queria a transformação
social neste mundo, mas no Além, no céu, na vida eterna depois da
morte, no millenium eminente.

Já na Idade Média o paralelismo dos dois fenômenos se impõe,


quando dos primeiros levantamentos dos camponeses oprimidos e,
sobretudo, dos plebeus das cidades. Esses levantamentos, tal como
todos os movimentos de massas na Idade Média, tiveram
necessariamente uma máscara religiosa; aparecem como
restaurações do cristianismo primitivo em conseqüência de uma
degenerescência crescente, mas atrás da exaltação religiosa
escondem-se, regularmente, interesses muito positivos deste mundo.

Isso transparecia de uma maneira grandiosa na organização dos


taboritas da Boêmia sob João Zizka, de gloriosa memória. Mas este
traço presiste através de toda a Idade Média, até que desaparece
pouco a pouco, depois da guerra dos camponeses na Alemanha, para
reaparecer entre os operários comunistas depois de 1830. Os
comunistas revolucionários franceses, tal como Weitling e os seus
aderentes, afirmavam-se ligados ao cristianismo primitivo muito
antes de Renan ter dito:

Se quiserem fazer uma idéia das primeiras comunidades


cristãs, observem uma seção local da Associação
Internacional de Trabalhadores.

O homem de letras francês que, graças a uma exploração da


crítica bíblica alemã, sem exemplo mesmo no jornalismo moderno,
confeccionou o seu romance sobre a história da Igreja, “As Origens
do Cristianismo”, não sabia tudo o que havia de verdade na sua
frase. Eu queria ver o antigo internacionalista capaz de ler, por
exemplo, a segunda “Epístola aos Coríntios”, atribuída a Paulo, sem
que, pelo menos num ponto, antigas feridas não reabrissem nele.

A “Epístola” inteira, a partir do VIII capítulo, ecoa da eterna


queixa demasiado bem conhecida: “As cotizações não entram.” Por
volta de 1865, quantos, entre os mais zelosos propagandistas, não
teriam apertado a mão do autor desta carta, quem quer que ele
fosse, com uma simpática inteligência, murmurando-lhe ao ouvido:
“Então, irmão, também isso te aconteceu a ti!” Também nós teríamos
muito a dizer acerca disso — também na nossa associação pululam os
coríntios —, essas cotizações que não apareciam, que, inalcançáveis,
giravam diante dos nossos olhos de Tântalo, eis o que constituía os
famosos milhões da Internacional.

Uma das nossas melhores fontes sobre os primeiros cristãos é


Luciano de Samosata, o Voltaire da antigüidade clássica, que
mantinha a mesma atitude cética em relação a todas as espécies de
superstições religiosas e que, portanto, não tinha motivos — nem por
crença pagã nem por política — para tratar os cristãos
diferentemente de qualquer outra associação religiosa. Pelo contrário,
acusa a todos da sua superstição, tanto aos adoradores de Júpiter
como aos adoradores de Cristo: do seu ponto de vista rasamente
racionalista, um gênero de superstição é tão inepto como o outro.
Esta testemunha, de qualquer maneira imparcial, conta, entre outras
coisas, a biografia de um aventureiro, Peregrinus, que se chamava na
realidade Proteu de Parium sobre o Helesponto. O dito Peregrinus
começou na sua juventude, na Armênia, por um adultério. Foi
apanhado em flagrante delito e linchado segundo o costume do país.
Felizmente conseguiu escapar, estrangulou Parium, o seu velho pai, e
teve de fugir.

Foi por essa época que se fez instruir na admirável


religião dos cristãos, contactando na Palestina com
alguns dos seus padres e escribas. Que vos hei-de dizer
acerca disso? Esse homem depressa lhes fez ver que eles
não passavam de crianças; profeta, tiasarco, chefe de
assembléia, tudo ele foi sozinho, interpretando os seus
livros, explicando-os, compondo-os por iniciativa própria.
Por isso muita gente o olhava como a um deus, um
legislador, um pontífice, igual a esse que é honrado na
Palestina, onde foi posto numa cruz por ter introduzido
esse novo culto entre os homens. Proteu, tendo por este
motivo sido detido, foi posto na prisão. Desde o
momento que foi posto a ferros, os cristãos,
considerando-se como presos nele, tudo fizeram para o
libertar; mas, não o conseguindo, renderam-lhe pelo
menos toda a espécie de honras com um zelo e uma
dedicação infatigáveis. Desde a manhã, viam-se à volta
da prisão uma multidão de mulheres velhas, de viúvas,
de órfãos. Os principais chefes da seita passavam a noite
junto dele, depois de terem corrompido os carcereiros:
para lá levavam as suas refeições e liam os seus livros
santos; e o virtuoso Peregrinus, ele ainda se chamava
assim, era por eles tratado de novo Sócrates. Não é
tudo; várias cidades da Ásia lhe enviaram deputados em
nome de cristãos, para lhe prestar assistência, lhe
servirem de apoio, de advogados e de consoladores. Era
inacreditável a dedicação em tais ocorrências; para tudo
dizer, nada lhes custava. Desse modo Peregrinus, sob o
pretexto da sua prisão, viu chegarem grandes
quantidades de dinheiro e acumulou muito. Esses
infelizes acreditam que são imortais e que viverão
eternamente; em conseqüência, desprezam os suplícios e
entregam-se voluntariamente à morte. O seu primeiro
legislador ainda os convenceu de que eles são todos
irmãos. Desde que mudaram de culto, renunciaram aos
deuses gregos e adoram o sofista crucificado de quem
seguem as leis. Desprezam igualmente todos os bens e
põem-nos em comum, pela fé completa que têm nas
suas palavras. De forma que, se aparece entre eles um
impostor, um patife decidido, ele não terá dificuldade em
enriquecer rapidamente, rindo-se por trás da sua
simplicidade. Contudo, Peregrinus depressa foi libertado
pelo governador da Síria.

Depois de outras aventuras, diz-se:

Peregrinus retomou, pois, a sua vida errante,


acompanhado nas suas vagabundagens por um grupo de
cristãos que lhe servem de satélites e lhe subvencionam
abundantemente as suas necessidades. Ele fez-se assim
alimentar durante algum tempo. Mas depois, tendo
violado alguns dos seus preceitos (tinham-no visto comer
carne proibida), foi abandonado pelo seu cortejo e
reduzido à pobreza.

Quantas recordações de juventude acordam em mim ao ler esta


passagem de Luciano. Eis primeiro o “profeta Albrecht”, que por volta
de 1840 e durante alguns anos tornava pouco seguras — à letra — as
comunidades comunistas de Weittling na Suíça. Era um homem
grande e forte, que percorria a Suíça a pé, à procura de um auditório
para o seu novo evangelho da libertação do mundo. No fim de contas,
parece ter sido um trapalhão bastante inofensivo e morreu cedo. Eis
o seu sucessor, menos inofensivo, o “Dr.” Jorge Kuhlmann de
Holstein, que aproveitou o tempo em que Weittling esteve na prisão
para converter os comunistas da Suíça francesa ao seu próprio
evangelho e que, por um tempo, o conseguiu tão bem que conquistou
até o mais espiritual e ao mesmo tempo o mais boêmio de todos eles,
August Becker. Depressa Kuhlmann dava conferências que foram
publicadas em Gênova em 1845 sob o título: “O Novo Mundo ou o
Reino do Espírito Sobre a Terra. Anunciação”. E na introdução,
redigida, segundo toda a probabilidade, por Becker, lê-se.
Faltava um homem na boca de quem todos os nossos
sofrimentos, todas as nossas esperanças e todas as
nossas aspirações, numa palavra, tudo o que agita mais
profundamente o nosso tempo, encontrasse uma voz...
Esse homem que a nossa época esperava, apareceu. É o
Dr. Jorge Kuhlmann de Holstein. Ele surgiu com a
doutrina do novo mundo ou do reino do espírito na
realidade.

Será necessário dizer que essa doutrina do novo mundo não


passava do mais banal sentimentalismo, traduzido em fraseologia
semibíblica à Lamennais e debitada com arrogância de profeta? O que
não impedia os bons discípulos de Weittling de andarem com
atenções para com esse charlatão, tal como os cristãos da Ásia
tinham feito em relação a Peregrinus. Eles, que, de ordinário, eram
arquidemocratas e igualitários, a ponto de alimentarem desconfianças
inextinguíveis para com todo o mestre-escola, todo o jornalista, todos
aqueles que não eram operários manuais, como se eles fossem
outros tantos “sábios” procurando explorá-los, eles deixaram-se
persuadir por esse Kuhlmann, com os seus atavios de melodrama, de
que, no “novo mundo”, o mais sábio, id est Kuhlmann,
regulamentaria a repartição dos prazeres e que, portanto, já no velho
mundo, os discípulos deviam fornecer alqueires de prazeres ao mais
sábio e contentarem-se com migalhas. E Peregrinus-Kuhlmann viveu
na alegria e na abundância... enquanto isso durou. Na verdade tal
não durou muito; o descontentamento crescente dos céticos e dos
incrédulos, as ameaças de perseguição do governo, puseram fim ao
reino do espírito em Lausanne; Kuhlmann desapareceu.

Exemplos análogos virão às dezenas à memória daqueles que


conheceram por experiência o começo do movimento operário na
Europa. Na hora atual, casos tão extremos tornaram-se impossíveis,
pelo menos nos grandes centros; mas em localidades perdidas, em
que o movimento conquista um terreno virgem, um qualquer
Peregrinus deste tipo poderia ainda conseguir um sucesso
momentâneo e relativo. E, tal como em todos os países aflui para o
partido operário toda a gente que já nada tem a esperar do mundo
oficial, ou que nele se queimou — tal como os adversários da
vacinação, os vegetarianos, os antivivecionistas, os partidários da
medicina dos simples, os pregadores das congregações dissidentes a
quem as ovelhas fugiram, os autores de novas teorias acerca da
origem do mundo, os inventores falhados ou infelizes, as vítimas de
reais ou imaginárias irregularidades a quem a burocracia chama
“refilões inúteis”, os honestos imbecis e os desonestos impostores —,
o mesmo acontecia com o cristianismo. Todos os elementos que o
processo de dissolução do antigo mundo tinha atirado,
sucessivamente, para o círculo de atração do cristianismo, o único
elemento que resistia a essa dissolução — precisamente porque se
tratava de um produto especial — e que, portanto, subsistia e
crescia, enquanto que os outros elementos não passavam de moscas
efêmeras. Todas as exaltações, extravagâncias, loucuras ou golpes
sujos que foram tentados em relação às jovens comunidades cristãs,
todas, temporariamente e em certas localidades, encontraram
ouvidos atentos e crentes dóceis. E, tal como os comunistas das
nossas primeiras comunidades, os primeiros cristãos eram de uma
credulidade espantosa em relação a tudo que parecia convir à sua
doutrina, de modo que não podemos saber realmente se, dos
numerosos escritos que Peregrinus compôs para a cristandade, não
haverá, aqui e ali, qualquer fragmento que tenha escapado para o
nosso novo Testamento.

II
A crítica bíblica alemã, até agora a única base científica do nosso
conhecimento da história do cristianismo primitivo, seguiu uma dupla
tendência.

Uma dessas tendências é representada pela escola de Tubingue,


à qual, em sentido lato, pertence também D. F. Strauss. Ela vai tão
longe no exame crítico quanto uma escola teológica poderia ir.
Admite que os quatro Evangelhos não são comunicações de
testemunhas oculares, mas arranjos ulteriores de escritos perdidos, e
que, no máximo, quatro das Epístolas atribuídas a S. Paulo são
autênticas etc. Ela afasta da narração histórica, como inadmissíveis,
todos os milagres e todas as contradições; do que resta, ela “procura
salvar tudo o que pode ser salvo” e, por aí, transparece claramente o
seu caráter de escola teológica. E é graças a essa escola que Renan,
o qual, em grande parte, se apóia nela, pôde, aplicando o mesmo
método, operar ainda muitos outros “salvamentos”. Além de
numerosas exposições mais que duvidosas do Novo Testamento, ele
quer ainda impor-nos uma quantidade de lendas de mártires como
historicamente autenticadas. Em todo o caso, tudo o que a escola de
Tubingue rejeita do Novo Testamento como apócrifo, ou como não
sendo histórico, pode ser considerado como definitivamente afastado
pela ciência.

A outra tendência é representada por um único homem: Bruno


Bauer. O seu grande mérito é ter, impiedosamente, criticado os
Evangelhos e as Epístolas apostólicas, ter sido o primeiro a encarar
seriamente o exame dos elementos não só judaicos e greco-
alexandrinos, mas também gregos e greco-romanos que permitiram
ao cristianismo tornar-se uma religião universal. A lenda do
cristianismo nascido integralmente do judaísmo, partindo da Palestina
para conquistar o mundo com uma dogmática e uma ética traçadas
nas suas grandes linhas, tornou-se impossível depois de Bruno
Bauer; a partir de então ela pode, no máximo, continuar a vegetar
nas faculdades teológicas e no espírito de quem quer “conservar a
religião para o povo”, mesmo à custa da ciência. Na formação do
cristianismo, tal como foi elevado à categoria de religião de Estado
por Constantino, a Escola de Philon de Alexandria e a filosofia vulgar
greco-romana — platônica e sobretudo estóica — desempenharam
importante papel. Essa contribuição está longe de ter sido
estabelecida nos detalhes, mas o fato está demonstrado, e tal deve-
se, sobretudo, a Bruno Bauer; ele lançou as bases da prova de que o
cristianismo não foi importado de fora, da Judéia, e imposto ao
mundo greco-romano, mas que é, pelo menos na forma que adquiriu
como religião universal, o mais autêntico produto desse mundo.
Naturalmente que, nesse trabalho, Bauer exagerou bastante, como
acontece a todos que combatem preconceitos inveterados. Na
intenção de determinar, mesmo do ponto de vista literário, a
influência de Philon, e sobretudo de Sêneca, sobre o cristianismo
nascente, e de representar formalmente os autores do Novo
Testamento como plagiários desses filósofos, é obrigado a retardar o
aparecimento da nova religião em meio século, a rejeitar as
narrativas de historiadores romanos que a isso se opõem e, em geral,
a tomar graves liberdades com a história conhecida. Segundo ele, o
cristianismo como tal só aparece sob os imperadores Flavianos, a
literatura do Novo Testamento só sob Adriano, Antonino e Marco
Aurélio. Portanto, Bauer faz desaparecer todo o fundo histórico para
as narrativas do Novo Testamento relativas a Jesus e aos seus
discípulos; resolvem-se em lendas em que as fases de
desenvolvimento interno e os conflitos morais das primeiras
comunidades são transpostos e atribuídos a personagens mais ou
menos fictícias. Não são a Galiléia nem Jerusalém, segundo Bauer, os
lugares de nascimento da nova religião, mas sim Alexandria e Roma.

Assim, se no resíduo, que não contesta, da história e da literatura


do Novo Testamento, a escola de Tubingue nos oferece o extremo
máximo do que a ciência pode, ainda nos nossos dias, aceitar como
estando sujeito a controvérsia, Bruno Bauer representa o máximo de
contestação que ela se pode permitir. A verdade situa-se entre estes
extremos. Que esta, com os nossos meios atuais, seja suscetível de
ser determinada, eis o que parece bem problemático. Novas
descobertas, como em Roma, no Oriente e sobretudo no Egito, darão
um contributo muito mais decisivo do que toda a crítica.

Ora, existe no Novo Testamento um único livro de que é possível,


com margem de alguns meses, fixar a data da redação; ele deve ter
sido escrito entre junho de 67 e janeiro ou abril de 68; é um livro
que, por conseqüência, pertence aos mais longínquos tempos
cristãos, que reflete as idéias dessa época com a mais ingênua
sinceridade e na língua idiomática que lhe corresponde; que, de
início, é, na minha opinião, muito mais importante para determinar o
que foi realmente o cristianismo primitivo que todo o resto do Novo
Testamento, muito posterior em data na sua redação atual. Esse livro
é o que se chama o apocalipse de João; e como, ainda por cima, esse
livro, em aparência o mais obscuro de toda a Bíblia, se tornou hoje,
graças à crítica alemã, o mais compreensível e o mais transparente
de todos, proponho-me falar dele aos nossos leitores.

Basta uma olhadela sobre esse livro para nos apercebermos do


estado de exaltação não só do autor mas também do “meio” em que
vivia. O nosso “Apocalipse” não é o único da sua espécie e do seu
tempo. Do ano 164 antes da nossa era, data do primeiro que chegou
até nós — o livro de Daniel —, até cerca de 250 da nossa era, data
aproximativa do “Carmen” de “Comodiano, Renan não conta menos
de 15 “Apocalipses” clássicos chegados até nós, sem falar das
imitações ulteriores. (Cito Renan porque o seu livro é o mais acessível
e o mais conhecido fora dos círculos dos especialistas.) Foi uma
época em que, em Roma e na Grécia, e muito mais ainda na Ásia
Menor, na Síria e no Egito, uma mistura absolutamente casual das
mais crassas superstições dos mais diversos povos era aceita sem
exame e completada por piedosas fraudes e por um charlatanismo
direto, em que os milagres, os êxtases, as visões, a adivinhação, a
alquimia, a cabala e outras bruxarias ocultas ocupavam o primeiro
lugar. Foi nessa atmosfera que o cristianismo primitivo nasceu, e
ainda numa classe mais do que qualquer outra acessível a essas
quimeras. Assim, os gnósticos cristãos do Egito, como o provam,
entre outras coisas, o papiro de Leyde, dedicaram-se, no século II da
época cristã, fortemente à alquimia, e incorporaram noções de
alquimia nas suas doutrinas. E os “mathe matici” caldeus e judeus
que, segundo Tácito, foram por duas vezes, sob Cláudio e ainda sob
Vittelius, expulsos de Roma por magia, as únicas “astúcias” de
geometria a que se dedicavam eram aquelas que encontraremos em
pleno no “Apocalipse” de João.

A isto acrescenta-se que todos os apocalipses se julgam no


direito de enganar os seus leitores. Não só são, geralmente, escritos
por outras pessoas — na maioria mais recentes — diferentes dos
pretensos autores, por exemplo o livro de Daniel, o livro de Enoch, os
“Apocalipses” de Esdras, de Baruch, de Juda etc., os livros sibilinos,
como no fundo não profetizam senão coisas conhecidas há muito
tempo e perfeitamente conhecidas do verdadeiro autor. Foi assim que
no ano de 164, pouco tempo antes da morte de Antiochus Epifano, o
autor do livro de Daniel, que era suposto viver na época de
Nabucodonosor, fez predizer a Daniel a subida e o declínio da
hegemonia da Pérsia e da Macedônia, e o começo do Império mundial
de Roma, para preparar os seus leitores, por essa prova dos seus
dons proféticos, a aceitar a sua profecia final: que o povo de Israel
ultrapassará todos os seus sofrimentos e será, enfim, vitorioso.
Assim, se o “Apocalipse” de João fosse realmente obra do autor
pretendido, constituiria a única exceção na literatura apocalíptica.

O João que se propõe para autor era em todo o caso um homem


muito considerado entre os cristãos da Ásia Menor. O tom das cartas
às sete Igrejas é disso garantia. Poderia pois admitir-se que fosse o
apóstolo João cuja existência histórica, se não é absolutamente
atestada, é pelo menos muito possível. E se esse apóstolo fosse
efetivamente o autor, não se poderia pretender melhor para a nossa
tese. Seria a melhor prova de que o cristianismo desse livro é o
verdadeiro cristianismo primitivo. Está provado, diga-se de
passagem, que o “Apocalipse” não é do mesmo autor do Evangelho
ou das três “Epístolas” atribuídas a João.

O “Apocalipse” compõe-se de uma série de visões. Na primeira, o


Cristo aparece, vestido de padre, caminhando entre sete castiçais de
ouro, que representam as sete Igrejas da Ásia e dita a “João” cartas
aos sete “anjos” dessas Igrejas da Ásia. Desde o início, a diferença
manifesta-se gritante entre este cristianismo e a religião universal de
Constantino formulada pelo concílio de Nicéia. A Trindade não só é
desconhecida como constitui uma impossibilidade. No lugar do
Espírito Santo, único ulterior, encontramos os “sete espíritos de
Deus” extraídos pelos rabinos de Isaías, XI, dois; Jesus Cristo é o
filho de Deus, o primeiro e o último, o alfa e o ômega, mas de modo
nenhum Deus ou igual a Deus: pelo contrário, ele é “o começo da
criação de Deus”, portanto uma emanação de Deus existente de toda
a eternidade, mas subordinada, análoga aos sete espíritos acima
mencionados. No capítulo XV, 3, os mártires, no céu, “cantam o
cântico de Moisés, o servidor de Deus, e o cântico do cordeiro” para a
glorificação de Deus. Jesus Cristo aparece, pois, aqui, não somente
como subordinado a Deus, mas, de certa maneira, colocado no
mesmo plano que Moisés. Jesus Cristo foi crucificado em Jerusalém
(XI, 8), mas ressuscitou (1, 5, 18); é o “cordeiro” que foi sacrificado
pelos pecados do mundo e com o sangue do qual os fiéis de todos os
povos e de todas as línguas são perdoados por Deus. Encontramos
aqui a concepção fundamental que permitiu ao cristianismo realizar-
se como religião universal. A noção de que os deuses, ofendidos pelas
ações dos homens, podiam ser acalmados por sacrifícios, era uma
idéia comum a todas as religiões dos Semitas e dos Europeus; a
primeira idéia revolucionária fundamental do cristianismo (extraída
da escola de Philon) era que, pelo único grande sacrifício voluntário
de um mediador, os pecados de todos os tempos de todos os homens
eram expiados de uma vez para sempre. . . para os fiéis. De tal modo
que desaparecia a necessidade de qualquer sacrifício ulterior e,
portanto, a base de numerosas cerimônias religiosas. Ora, a
libertação de cerimônias que entravavam ou proibiam o comércio
com homens de crenças diferentes era a condição primeira de uma
religião universal. E, contudo, o hábito dos sacrifícios estava tão
enraizado nos hábitos populares que o catolicismo — que retomou
tantos costumes pagãos — julgou útil considerá-lo, introduzindo pelo
menos o simbólico sacrifício da missa. Por outro lado, nenhum
vestígio, no nosso livro, do dogma do pecado original.

O que sobretudo caracteriza estas cartas, bem como o livro


inteiro, é que nunca, nem em parte alguma, vem à idéia do autor
designar-se, a ele e aos seus correligionários, de outra maneira senão
como. . . Judeus. Aos sectários de Esmirna e de Filadélfia, contra os
quais se ergue, ele acusa: “Eles dizem-se Judeus, mas não o são,
pertencem sim a uma sinagoga de Satã”; e, dos de Pérgamo, diz:
Estão ligados a Balaam, que ensinava a Balak a criar
toda a espécie de dificuldades aos filhos de Israel, para
que eles comessem carnes sacrificadas aos ídolos e para
que se dedicassem à impudícia.

Não encontramos, pois, aqui, cristãos conscientes, mas pessoas


que se consideram Judeus: o seu judaísmo, sem dúvida, é uma nova
fase do desenvolvimento do antigo: é precisamente por isso que é o
único verdadeiro. É por isso que, quando da aparição dos santos
diante do trono de Deus, vêm em primeiro lugar 144.000 Judeus,
12.000 de cada tribo, é só depois a inumerável multidão de pagãos
convertidos a esse judaísmo renovado. O nosso autor, no ano 69 da
nossa era, estava bem longe de pensar que representava uma fase
completamente nova da evolução religiosa, destinada a tornar-se um
dos elementos mais revolucionários na história do espírito humano.

Vemos, pois, que o cristianismo de então, que não tinha ainda


consciência de si, estava a mil léguas da religião universal,
dogmaticamente desenhada pelo concílio de Nicéia; impossível
reconhecer esse nesta. Nem a dogmática, nem a ética do cristianismo
ulterior, se encontram; em compensação, há o sentimento de que se
está em luta com toda a gente e se sairá vencedor dessa luta; um
ardor belicoso e uma certeza de vencer que desapareceram
completamente nos cristãos dos nossos dias e não se reencontra
senão no outro pólo da sociedade, entre os socialistas.

De fato, a luta contra um mundo que inicialmente levou a melhor


e a luta simultânea dos inovadores entre si são comuns aos dois; aos
cristãos primitivos e aos socialistas. Os dois grandes movimentos não
são feitos por chefes e profetas — ainda que os profetas não faltem,
quer num, quer no outro —, são movimentos de massas. E todo o
movimento de massas é no começo necessariamente confuso;
confuso porque todo o pensamento de massas se move, primeiro, em
contradições, porque lhe falta clareza e coerência; confuso ainda
precisamente por causa do papel que, nos começos, nele
desempenham os profetas. Esta confusão manifesta-se na formação
de numerosas seitas que se combatem entre si pelo menos com tanto
empenho como o que dedicam ao comum inimigo exterior. Isto
passava-se assim no cristianismo primitivo; passa-se da mesma
maneira nos começos do movimento socialista, por mais aflitivo que
isso seja para as honestas pessoas bem intencionadas que pregavam
a união, quando a união não era possível.

Será que, por exemplo, a coesão da Internacional era devida a


um dogma unitário? De forma nenhuma. Encontravam-se lá
comunistas segundo a tradição francesa anterior a 1848, que, por sua
vez, representavam cambiantes diferentes; comunistas da escola de
Weittling; outros ainda pertencendo à liga regenerada dos
comunistas; proudhonianos, que eram o elemento preponderante na
França e na Bélgica; blanquistas; o Partido Operário Alemão; enfim,
anarquistas bakouninistas, que, por momentos, dominaram na
Espanha e na Itália; e estes eram só os grupos principais. A partir da
fundação da Internacional, foi preciso um bom quarto de século para
que se efetuasse definitivamente e por todo o lado a separação com
os anarquistas, e se estabelecesse um acordo pelo menos acerca dos
pontos de vista econômicos mais genéricos. E isso com os nossos
meios de comunicação, os caminhos de ferro, os telégrafos, as
monstruosas cidades industriais, a imprensa e as reuniões populares
organizadas.

A mesma divisão em inumeráveis seitas entre os primeiros


cristãos, divisão que era justamente o meio de organizar a discussão
e de obter a unidade ulterior. Constatamo-la já nesse livro,
indubitavelmente o mais antigo documento cristão, e o nosso autor
condena-a com a mesma atitude implacável que emprega em relação
ao mundo dos pecadores não cristãos. Eis primeiro os Nicolaites, em
Éfeso, em Pérgamo; aqueles que se dizem Judeus mas que são a
sinagoga de Satã, em Esmirna e Filadélfia; os aderentes da doutrina
do falso profeta, chamado Balaam em Pérgamo; aqueles que dizem
ser profetas mas que não o são, em Éfeso; enfim os partidários da
falsa profetisa, chamada Jezabel, em Tiátira. Nada de mais preciso
nos é dito acerca destas seitas; só dos sucessores de Balaam e de
Jezabel se diz que comem carne sacrificada aos ídolos e que se
entregam à impudícia.

Tentou-se imaginar que essas cinco seitas eram de cristãos


paulinianos e todas essas cartas como sendo dirigidas contra Paulo, o
falso apóstolo, o pretenso Balaam e “Nicolas”. Os argumentos, aliás
dificilmente sustentáveis, encontram-se reunidos em Renan. “São
Paulo” (Paris, 1869, páginas 303-305-367-370). Todos acabam por
explicar as nossas cartas pelos “Atos dos Apóstolos” e pelas
“Epístolas” ditas de Paulo, escritos que, pelo menos na sua redação
atual, são sessenta anos posteriores ao “Apocalipse” e cujos dados a
elas relativos são, pois, mais que duvidosos e que, além disso, se
contradizem absolutamente entre si. Mas o que resolve a questão é
que de modo algum o nosso autor se lembraria de dar a uma única e
mesma seita cinco designações diferentes: duas só para a de Éfeso
(falsos apóstolos e nicolaites), duas igualmente para Pérgamo (os
balaamitas e os nicolaites), e ainda designando-as expressamente em
cada caso como duas seitas diferentes. Contudo, nós não pensamos
negar que entre essas seitas se pudessem encontrar elementos que
hoje se considerariam como seitas paulinianas.

Nos dois passos em que se entra em pormenores, a acusação


limita-se ao consumo de carnes sacrificadas aos ídolos e à impudícia,
os dois pontos sobre os quais os Judeus — tanto os antigos como os
Judeus cristãos — estavam em perpétua disputa com os pagãos
convertidos. Carne oriunda dos sacrifícios pagãos era não só servida
nos festins, em que recusar os pratos apresentados poderia parecer
incoveniente e até perigoso, mas era também vendida nos mercados
públicos, em que não era praticamente possível distinguir se era
Koscher ou não. Por impudícia, os mesmos Judeus não entendiam
apenas o comércio sexual fora do casamento, mas também o
casamento entre parentes de graus proibidos pela lei judaica, ou
ainda entre Judeus e pagãos, e é este o significado que geralmente é
dado à palavra nos “Atos dos Apóstolos” (XV, 20 e 29). Mas o nosso
João tem uma opinião própria mesmo no que dizia respeito ao
comércio sexual entre os Judeus ortodoxos. Ele diz (XIC, 4) dos
144.000 Judeus celestes: “São aqueles que não se mancharam com
mulheres, porque são virgens.” E, de fato, no céu do nosso João não
existe uma única mulher. Ele pertencia, pois, a essa tendência que se
manifesta igualmente noutros escritos do cristianismo primitivo e
considera pecado o comércio sexual em geral. Se, além disso,
considerarmos o fato de ele chamar a Roma a grande prostituída,
com a qual os reis da Terra se entregaram à impudícia e foram
embriagados pelo vinho da sua impudícia — e os seus mercadores
enriqueceram pelo poder do seu luxo —, é-nos impossível considerar
a palavra, nas cartas, no sentido estrito que a apologética teológica
lhe queria atribuir, com o único fito de extrair uma confirmação para
outras passagens do Novo Testamento. Muito pelo contrário. Essas
passagens das cartas indicam claramente um fenômeno comum a
todas as épocas profundamente perturbadas, isto é, que, ao mesmo
tempo que se abalam todas as barreiras, procura-se relaxar os
limites tradicionais do comércio sexual. Nos primeiros séculos
cristãos, igualmente, ao lado do ascetismo que mortifica a carne,
manifesta-se muitas vezes a tendência para estender a liberdade
cristã às relações, mais ou menos livres, entre homens e mulheres. A
mesma coisa aconteceu no movimento socialista moderno.

Que santa indignação não provocou, depois de 1830, na


Alemanha de então — essa “piedosa nursery”, como lhe chama Heine
— a reabilitação da carne são-simoniana! As mais intensamente
indignadas foram as ordens aristocráticas que dominavam na época
(nessa época não havia ainda classes entre nós) e que, tanto em
Berlim como nas suas propriedades de campo, não sabiam viver sem
uma reabilitação sempre reiterada da sua carne. Que diriam essas
boas pessoas se tivessem conhecido Fourier, que oferece para a
carne a perspectiva de muito mais alegrias!

Uma vez ultrapassado o utopismo, essas extravagâncias cederam


lugar a noções mais racionais e, na realidade, bem mais radicais, e,
desde que a Alemanha, da “piedosa nursery” de Heine que era, se
tornou o centro do movimento socialista, toda a gente se ri da
indignação hipócrita do piedoso mundo aristocrático.
É tudo, quanto ao conteúdo dogmático das cartas. Quanto ao
resto, elas excitam os camaradas à propaganda enérgica, à orgulhosa
e corajosa confissão da sua fé face aos adversários, à luta sem
tréguas contra o inimigo de fora e de dentro; e, sob esse aspecto,
elas poderiam também ter sido escritas por um entusiasta da
Internacional, por menos profeta que ele fosse.

III
As cartas são apenas a introdução ao verdadeiro tema da
comunicação do nosso João às sete Igrejas da Ásia Menor e, através
delas, a toda a comunidade judaica reformada do ano 69, donde,
mais tarde, saiu a cristandade. E então entramos no santuário mais
íntimo do cristianismo primitivo.

Entre que tipo de gente se recrutavam os primeiros cristãos?


Principalmente entre os “laboriosos e os fatigados”, pertencendo às
mais baixas camadas do povo; tal como convém a um elemento
revolucionário. E de quem se compunham essas camadas? Nas
cidades, de homens livres decadentes — gente de toda a espécie,
semelhantes aos “mean whites” dos Estados esclavagistas do Sul, aos
aventureiros e aos vagabundos europeus das cidades marítimas
coloniais e chinesas, depois de libertos — e sobretudo de escravos;
nos latifundia da Itália, da Sicília e da África, de escravos; nos
distritos rurais das províncias, de pequenos camponeses cada vez
mais dependentes pelas suas dívidas. Não existia de modo algum
uma via de emancipação comum para tantos elementos diversos.
Para todos, o paraíso perdido situava-se no passado; para o homem
livre desiludido, era a “polis”, cidade e Estado ao mesmo tempo, de
quem os seus antepassados haviam sido outrora cidadãos livres; para
os escravos prisioneiros de guerra, a era da liberdade antes da
sujeição e do cativeiro; para o pequeno camponês, a sociedade
gentílica e a comunidade do solo destruídas. Tudo isso, a mão de
ferro niveladora do Romano conquistador havia deitado abaixo. O
agrupamento social mais consistente que a Antigüidade tinha sabido
criar era a tribo e a confederação de tribos aparentadas,
agrupamento baseado, entre os Bárbaros, nas linhas de
consagüinidade, entre os Gregos e os Italiotas, fundadores de
cidades, sobre a “polis”, que compreendia uma ou várias tribos
aparentadas. Filipe e Alexandre deram à península helênica a unidade
política, mas dela não resultou a formação de uma nação grega. As
nações só se tornaram possíveis depois da queda do Império
Romano. Este pôs termo, de uma vez para sempre, aos pequenos
agrupamentos; a força militar, a jurisdição romana, o aparelho de
percepção de impostos, deslocaram completamente a organização
interior tradicional. À perda da independência e da organização
original acrescentou-se a pilhagem pelas autoridades civis e militares,
que começavam por despojar os vencidos dos seus tesouros para
depois lhes emprestarem de novo com taxas de usura, para que eles
pudessem pagar novas exações. O peso dos impostos e a
necessidade de dinheiro que daí resultava, em regiões em que a
economia natural reinava exclusivamente ou de maneira
preponderante, colocava cada vez mais os camponeses na
dependência dos usurários, introduzindo uma grande desproporção
de fortuna. Enriquecia os ricos e empobrecia completamente os
pobres. E toda a resistência das pequenas tribos isoladas ou das
cidades ao gigantesco poder de Roma era sem esperança. Que
remédio para isso, que refúgio para os vencidos, os oprimidos, os
empobrecidos, que saída comum para esses grupos humanos
diversos, de interesses divergentes ou mesmo opostos? Era contudo
preciso encontrar uma, era preciso que um único grande movimento
revolucionário os envolvesse a todos.

Essa saída encontrou-se; mas não neste mundo. E, no estado de


coisas de então, só a religião podia proporcioná-la. Descobriu-se um
novo mundo. A existência da alma depois da morte do corpo tinha-se
tornado, pouco a pouco, um artigo de fé reconhecido em todo o
mundo romano. Além disso, um modo de sofrimento e de
recompensa para a alma do morto, segundo as ações cometidas em
vida, era por toda a parte progressivamente admitido. Quando às
recompensas, na verdade, isso soava um pouco falso; a Antigüidade
era demasiado espontaneamente materialista para não considerar
infinitamente mais preciosa a vida real do que a vida no reino das
sombras; para os Gregos, a imortalidade era mesmo considerada
uma infelicidade. Apareceu o cristianismo, que levou a sério os
sofrimentos e as recompensas no outro mundo e criou o céu e o
inferno; assim estava encontrada a via por onde conduzir os
laboriosos e os desiludidos deste vale de lágrimas para o paraíso
eterno. De fato, era preciso a esperança de uma recompensa no Além
para conseguir elevar a renúncia ao mundo e o ascetismo da escola
estóica de Philon à categoria de princípio ético fundamental de uma
nova religião universal, capaz de arrastar as massas oprimidas.

Contudo, a morte não abre de imediato esse paraíso celeste aos


fiéis. Veremos que o reino de Deus, de que a nova Jerusalém é a
capital, não se conquista nem se abre senão depois de ardentes lutas
contra as potências infernais. Ora, os primeiros cristãos consideravam
essas lutas como iminentes. Desde o começo, o nosso João designa o
seu livro como a revelação “de coisas que devem acontecer em
breve”; pouco depois, no versículo três, ele diz: “Feliz aquele que lê e
aqueles que escutam as palavras da profecia, porque o tempo está
próximo”; à comunidade de Filadélfia, Jesus Cristo faz escrever:
“Virei em breve”, e, no último capítulo, o anjo diz que revelou a João
“as coisas que devem acontecer em breve” e ordena-lhe: “Não seles
as palavras da profecia deste livro, porque o tempo está próximo”, e
Jesus Cristo diz por duas vezes, versículos 12 e 30: “Virei em breve”.
Veremos em seguida quanto essa vinda era esperada para breve.

As visões apocalípticas que o autor faz passar sob os nossos


olhos são todas, e quase sempre palavra por palavra, extraídas de
modelos anteriores. Em parte dos profetas clássicos do Antigo
Testamento, sobretudo de Ezequiel, em parte dos apocalipses
judaicos posteriores, compostos segundo o protótipo do livro de
Daniel, e sobretudo do livro de Enoch, já redigido, pelo menos em
parte, nessa época. Os críticos já demonstraram, até os mínimos
detalhes, de onde o nosso João tirou cada imagem, cada prognóstico
sinistro, cada chaga inflligida à humanidade incrédula, em suma, o
conjunto de materiais do seu livro; de forma que ele manifesta uma
pobreza de espírito pouco comum, mas ainda é o próprio a
proporcionar-nos a prova de que, as suas pretensas visões e êxtases,
ele não as viveu, nem mesmo em imaginação, tal como as descreve.

Eis, em algumas palavras, a marcha das aparições. Primeiro, João


vê Deus sentado sobre o seu trono, um livro selado com sete selos na
mão; diante dele está o cordeiro (Jesus) degolado, mas de novo vivo,
que é considerado digno de abrir os selos. A abertura dos selos é
acompanhada de toda a espécie de sinais e de prodígios
ameaçadores. Ao quinto selo João apercebe, sob o altar de Deus, as
almas dos mártires de Cristo que foram mortos por causa da palavra
de Deus:

Eles gritaram com voz forte: Até quando, mestre santo e


venerável, continuarás a adiar o julgamento e a vingança
do nosso sangue sobre os habitantes da terra?

Nesta altura, é dada a cada um uma veste branca e dizem-lhes


que esperem ainda um pouco até que esteja completo o número de
mártires que devem morrer. Ainda então não se fala da “religião do
amor”, do “amai aqueles que vos odeiam, abençoai os que vos
maldizem” etc. . . . Aqui prega-se abertamente a vingança, a sã, a
honesta vingança a exercer sobre os perseguidores dos cristãos. Isso
prolonga-se ao longo de todo o livro. Quanto mais se aproxima a
crise, mais as chagas e os julgamentos chovem densamente do céu,
e mais o nosso João sente alegria ao anunciar que a maioria dos
homens continua a não se arrepender e a recusar fazer penitência
pelos seus pecados; que novos flagelos de Deus devem cair sobre
eles; que Cristo deve governá-los com uma vara de ferro e pisar o
vinho no lagar da cólera de Deus todo poderoso; mas que, apesar de
tudo, os maus continuam a ter o coração endurecido. É o sentimento
natural, afastado de toda a hipocrisia, de que se está em luta, e que
“na guerra como na guerra”. Na abertura do sétimo selo, aparecem
sete anjos com trombetas: sempre que um anjo toca a trombeta,
produzem-se novos sinais de terror. Depois do sétimo toque de
trombeta, sete novos anjos surgem em cena trazendo as sete cóleras
de Deus, que são lançadas sobre a terra, e de novo chovem flagelos e
julgamentos, no essencial uma fatigante repetição do que já
acontecera inúmeras vezes. Depois, surge a mulher, Babilônia, a
grande prostituída, vestida de púrpura e de escarlate, sentada sobre
as águas, bêbada do sangue dos santos e do sangue dos mártires de
Jesus; é a grande cidade sobre as sete colinas que tem a realeza
sobre os reis da terra. Está sentada sobre um animal que tem sete
cabeças e dez cornos. As sete cabeças são sete montanhas, são
também sete “reis”. Desses reis, cinco passaram; um existe, o sétimo
virá, e, depois dele, um dos cinco primeiros voltará, o qual estava
ferido de morte mas curou-se. Este reinará sobre a terra quarenta e
dois meses ou três anos e meio (a metade de uma semana de anos
de sete anos), perseguirá os fiéis até a morte e fará triunfar a
impiedade. Em seguida, trava-se uma grande batalha decisiva, os
santos e os mártires são vingados pela destruição da grande
prostituta Babilônia e todos os seus partidários, quer dizer, a grande
maioria dos homens; o diabo é precipitado no abismo e aí é
agrilhoado durante mil anos, durante os quais reina Cristo com os
mártires ressuscitados. Quando os mil anos tiverem sido cumpridos,
o diabo é libertado: segue-se uma última batalha dos espíritos na
qual ele é definitivamente vencido. Há uma segunda ressurreição, os
restantes mortos ressuscitam e comparecem diante do trono de Deus
(não do de Cristo, reparem bem) e os fiéis entram num novo céu,
numa nova Terra e numa nova Jerusalém para a vida eterna. Tal
como toda esta construção é erguida com materiais quase
exclusivamente judeus e pré-cristãos, também inclui quase
exclusivamente concepções puramente judaicas. Desde que as coisas
começaram a correr mal para o povo de Israel, a partir do momento
em que ficou tributário da Assíria e da Babilônia, desde a destruição
dos dois reinos de Israel e de Judá, até à sua submissão pelos
Seleucidas, isto é, de Isaías até Daniel, sempre existiu, nas horas da
adversidade, a profecia de um salvador providencial. No capítulo XII,
I, de Daniel encontra-se a profecia da descida de Miguel, o anjo-da-
guarda dos Judeus, que os libertará da sua grande angústia: “Muitos
mortos ressuscitarão; haverá uma espécie de julgamento final e
aqueles que ensinaram a justiça à multidão brilharão como estrelas,
para sempre e perpetuamente”. De cristão, apenas a forma como se
insiste na iminência do reino de Jesus Cristo e na felicidade dos fiéis
ressuscitados, particularmente dos mártires.

É à crítica alemã, e sobretudo a Ewald, Lucke e Ferdinand Benary


que devemos a interpretação desta profecia, no que respeita aos
acontecimentos da época. Graças a Renan, ela penetrou noutros
meios para lá dos círculos teológicos. A grande prostituída, Babilônia,
significa, como vimos, a cidade das sete colinas, Roma. Do animal
sobre o qual ela está sentada, diz-se, XVII, nove, 11:

As sete cabeças são sete montanhas sobre as quais a


mulher está sentada. São também sete reis: cinco
caíram, um existe, o outro ainda não veio, e, quando
vier, ficará pouco tempo. E o animal que estava, e que já
não está, é um oitavo rei, e pertence ao número dos
sete, e caminha para a perdição.

O animal é, pois, a dominação mundial de Roma, representada


sucessivamente por sete imperadores, um dos quais foi ferido de
morte e deixou de reinar, mas que se curou, e voltará, para cumprir,
como oitavo rei, o reino da blasfêmia e da rebelião contra Deus.

E foi-lhe ordenado que fizesse a guerra aos santos e os


vencesse. E foi-lhe dada autoridade sobre todas as
tribos, todos os povos, todas as línguas e todas as
nações, e todos os habitantes da Terra o adorarão,
aqueles cujo nome não foi escrito desde a fundação do
mundo no livro da vida do cordeiro que foi imolado. E ela
fez com que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres,
livres e escravos, recebessem uma marca sobre a mão
direita ou sobre a fronte e com que ninguém pudesse
comprar ou vender sem ter a marca, o nome do animal
ou o número do seu nome. É esta a sabedoria. Que quem
tem inteligência calcule o número do animal. Porque é
um número de homem e o seu número é 666 (XIII, sete-
18).

Constatemos apenas que o boicote é mencionado aqui como uma


medida a empregar pelo poderio romano contra os cristãos — que ele
é, pois, manifestamente uma invenção do diabo — e passemos à
questão de sabermos quem é esse imperador romano que já reinou,
que foi ferido de morte e que volta como o oitavo da série para ser o
Anticristo.

Depois de Augusto, o primeiro, temos: dois, Tibério; três,


Calígula; quatro, Cláudio; cinco, Nero; seis, Galba. “Cinco caíram, um
existe”. Portanto Nero já caiu. Galba existe. Galba reinou de 9 de
junho de 68 até 15 de janeiro de 69. Mas, assim que ele subiu ao
trono, as legiões do Reno sublevaram-se sob Vitellius, enquanto,
noutras províncias, outros generais preparavam levantamentos
militares. Mesmo em Roma, os pretorianos sublevaram-se, mataram
Galba e proclamaram Otão imperador.

Daqui resulta que o nosso “Apocalipse” foi escrito sob Galba,


naturalmente para o fim do seu reinado, ou mais tarde, durante os
três meses (até 15 de abril de 69) do reinado de Otão, o sétimo. Mas
quem é o oitavo, que foi e não é? O número 666 é a chave.

Entre os Semitas — os Caldeus e os Judeus — desta época, uma


arte mágica estava em voga, baseada num duplo significado das
letras. Desde cerca de trezentos anos antes da nossa era, as letras
hebraicas eram também empregues como números: a=1, b=2, c=3,
d=4, e assim sucessivamente. Ora, os adivinhos cabalistas
adicionavam os valores numéricos das letras de um nome, e com a
ajuda da soma dos algarismos obtida, por exemplo formando
palavras ou combinações de palavras de um igual valor numérico que
permitiam extrair conclusões sobre o futuro de quem tinha o nome,
procuravam fazer profecias. De forma idêntica exprimiam-se palavras
secretas nessa língua numérica. Dava-se a esta arte um nome grego,
“ghematriah”, geometria; os Caldeus, que a exerciam como
profissão, e a quem Tácito chamava “mathemaci”, foram expulsos de
Roma sob Cláudio, e de novo sob Vitellius, provavelmente por “delito
grave”.

Foi precisamente por meio desta matemática que foi produzido o


número 666. Por detrás dele, esconde-se o nome de um dos
primeiros cinco imperadores romanos. Ora, Ireneu, no fim do século
II, além do número 666, conhecia a variante 616, que datava
também de uma época em que o enigma dos algarismos era ainda
conhecido. Se a solução responder igualmente aos dois números, a
prova está feita.

Ferdinand Bernary, em Berlim, encontrou essa solução. O nome é


Nero. O número fundamenta-se em Neron Kesar, a transcrição
hebraica — como o atestam o Talmude e as inscrições palmirianas —
do grego “Nérôn Kaisar”, Nero imperador, que tinha, como legenda, a
moeda de Nero, cunhada nas províncias do Leste do Império. Assim:
n (nun)=50; r(resch)=200; v(vau) por 0=6; n(nun)=50;
k(koph)=100; s(samech)=60; e r(resch)=200; total=666. Ora,
tomando como base a forma latina, “Nero Caesar” o segundo
n(nun)=50 suprime-se, e obtemos 666-50=616, a variante de
Ireneu.

Efetivamente, todo o Império Romano, no tempo de Galba, vivia


em plena confusão. O próprio Galba, chefiando as legiões de Espanha
e da Gália, marchara sobre Roma para expulsar Nero; este fugiu e
fez-se matar por um liberto. Mas, contra Galba, não só os pretorianos
em Roma mas também os comandantes das províncias conspiravam;
por todo o lado surgiram pretendentes ao trono, preparando-se para
avançar sobre a capital com as suas legiões. O Império parecia ter
caído numa guerra intestina; a sua queda parecia iminente. Para
cúmulo, espalhou-se o boato, sobretudo no Oriente, de que Nero não
estava morto, mas apenas ferido, que estava refugiado entre os
Partas, que atravessaria o Eufrates e surgiria com uma força armada
para inaugurar um novo reino de terror ainda mais sangrento.
Sobretudo a Acaia e a Ásia foram alarmadas com essas notícias. E,
precisamente no momento em que o “Apocalipse” deve ter sido
composto, apareceu um falso Nero que se estabeleceu com um
partido bastante numeroso na ilha de Citnos (a Térmia moderna), no
mar Egeu, perto de Patmos e da Ásia Menor, até que foi morto sob
Otão. Nada de espantoso que entre os cristãos, contra quem Nero
lançara as primeiras grandes perseguições, se tenha propagado o
boato de que ele havia de voltar como Anticristo, que o seu regresso
bem como uma nova e mais séria tentativa de exterminação
sangrenta da jovem seita seriam o presságio e o prelúdio de Cristo,
da grande batalha vitoriosa contra as potências do inferno, do reino
dos mil anos a estabelecer “em breve” e cuja chegada certa permitia
aos mártires irem alegremente para a morte.

A literatura cristã e de inspiração cristã dos dois primeiros séculos


garante, com índices suficientes, que o segredo do número 666 é
então conhecido de muitos. Ireneu de certeza que já o não conhecia,
mas, por outro lado, sabia, como muitos outros até fins do século II,
que o animal do “Apocalipse” era Nero voltando. Depois, este último
traço perdeu-se e o nosso “Apocalipse” caiu em poder da
interpretação fantástica dos adivinhos ortodoxos; eu próprio ainda
conheci pessoas idosas que, segundo os cálculos do velho Johnn
Albrecht Bengel, esperavam o fim do mundo e o último julgamento
para o ano de 1836; a profecia realizou-se na data anunciada. Só que
o julgamento não atingiu o mundo dos pecadores, mas antes os
piedosos intérpretes do “Apocalipse”. Porque, nesse ano de 1836, F.
Bernary forneceu a chave do número 666 e pôs assim termo a todo
esse cálculo divinatório, a essa nova “ghemetriah”.

Do reino celeste reservado aos fiéis, o nosso João apenas nos


fornece uma descrição muito superficial. Para a época, a nova
Jerusalém é construída segundo um plano bastante grandioso: um
quadrado de 12.000 estádios de lado=2227 quilômetros, portanto
uma superfície de cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados, mais
do que metade dos Estados Unidos da América, construída
unicamente em ouro e pedras preciosas. Aí, Deus habita no meio dos
seus e ilumina-os, substituindo o Sol; não há já nem morte, nem
lamentos, nem sofrimentos; um rio de água viva corre através da
cidade, nas suas margens cresce a árvore da vida produzindo doze
vezes os seus frutos, dando fruto todos os meses, e as folhas das
árvores servem “para a cura dos gentis” (à maneira de um chá
medicinal, segundo Renan: “O Anticristo”, p. 542). Aí vivem os santos
nos séculos dos séculos.

Era assim que se construía o cristianismo na Ásia Menor, o seu


primeiro centro, por volta do ano de 68, segundo o que conhecemos.
Nenhum indício de uma Trindade; em seu lugar, o velho Jeová, uno e
indivisível, do judaísmo decadente, que, de Deus nacional judeu, se
elevou à categoria de Deus único; Deus supremo do céu e da terra
onde pretende reinar sobre todos os povos, prometendo a graça aos
convertidos e exterminando os rebeldes sem misericórdia, nisso fiel
ao antigo “parcere subjectis ac debellare superbos”. Também é esse
Deus que preside o último julgamento, e não Jesus Cristo, como nas
narrativas ulteriores dos Evangelhos e das Epístolas. Conforme à
doutrina persa da emanação, familiar ao judaísmo decadente, o
Cristo é o cordeiro, emanado de Deus de toda a eternidade; tal como,
embora ocupando um lugar muito inferior, os “sete espíritos de Deus”
que devem a sua existência a uma passagem poética mal
compreendida (Isaías, XI, dois). Nenhum deles é Deus ou igual a
Deus, mas submetido a ele. O cordeiro oferece-se de sua plena
vontade como sacrifício expiatório pelos pecados do mundo, e por
esse alto feito vê-se expressamente promovido em grau no céu; em
todo o livro esse sacrifício voluntário é contado como um ato
extraordinário e não como uma ação oriunda necessariamente do
mais profundo do seu ser.

É evidente que toda a corte celeste dos antigos, dos querubins,


dos anjos e dos santos não falta. Para se constituir em religião, o
monoteísmo sempre teve de fazer concessões ao politeísmo, datando
do “Zendavesta”. Entre os Judeus, a recaída para os deuses pagãos e
sensuais persiste em estado crônico até que, depois do exílio, a corte
celeste, à maneira persa, acomoda um pouco melhor a religião à
imaginação popular. O próprio cristianismo, mesmo depois de ter
substituído o Deus dos Judeus eternamente imutável pelo misterioso
Deus trinitário, diferenciado em si mesmo, não conseguiu suplantar o
culto dos antigos deuses entre as massas senão pelo culto dos
santos. Assim, segundo Fallmerayer, o culto de Júpiter persistiu no
Peloponeso, na Maina, na Arcádia, até cerca do século IX. E só a
época moderna e o seu protestantismo afastam os santos e encaram,
enfim, seriamente, o monoteísmo diferenciado.

O nosso “Apocalipse” também não conhece o dogma do pecado


original nem a justificação pela fé. A fé dessas primeiras comunidades
belicosas difere completamente da Igreja triunfante posterior; ao lado
do sacrifício expiatório do cordeiro, a próxima vinda de Cristo e a
iminência do reino milenar constituem o seu conteúdo essencial e ela
manifesta-se pela ativa propaganda, pela luta sem tréguas contra o
inimigo de fora e de dentro, pela orgulhosa confissão das suas
convicções revolucionárias diante dos juízes pagãos, pelo martírio
corajosamente suportado na certeza da vitória.

Como vimos, o autor não suspeita ainda que é algo mais que
Judeu. Conseqüentemente, nenhuma alusão, em todo o livro, ao
batismo; existem também numerosos indícios de que o batismo é
uma instituição do segundo período cristão. Os 144.000 Judeus
crentes são “selados”, não batizados. Dos santos no céu é dito: “São
aqueles que lavaram e embranqueceram as longas vestes no sangue
do cordeiro”; nada acerca da água do batismo. Os dois profetas que
precedem a aparição do Anticristo (cap. XI) também não batizam e,
no capítulo XIX, 10, o testemunho de Jesus não é o batismo mas o
espírito de profecia. Teria sido natural em todas estas ocasiões falar
do batismo, por pouco que estivesse já instituído. Estamos pois
autorizados a concluir com uma quase certeza que o nosso autor não
o conhecia e que ele só foi introduzido quando os cristãos se
separaram completamente dos Judeus.

O nosso autor é também ignorante acerca do segundo


sacramento ulterior — a eucaristia. Se no texto de Lutero o Cristo
promete a todos os Tiasirianos que perseveraram na fé a entrada na
sua casa e a comunhão com ele, isso constitui uma falsa abordagem
do texto. Em grego lê-se “deipneso”, eu cearei (com ele), e a palavra
está corretamente traduzida na bíblia inglesa: “I shall sup with him”.
A ceia como festim comemorativo não é aqui referida.

O nosso livro, com a data (68 ou 69) atestada de maneira tão


particular, é indubitavelmente o mais antigo da literatura cristã no
seu conjunto. Nenhum outro é escrito numa língua tão bárbara, em
que formigam os hebraísmos, as construções impossíveis, os erros
gramaticais. Só os teólogos de profissão, ou outros historiógrafos
interessados, continuam a negar que os Evangelhos e os “Atos dos
Apóstolos” são arranjos tardios de escritos hoje perdidos e cujo tênue
núcleo histórico já não pode ser descoberto sob a luxuriante lenda;
mesmo as três ou quatro “Epístolas” apostólicas pretensamente
autênticas de Bruno Bauer não representam mais do que escritos de
uma época posterior, ou, na melhor das hipóteses, composições mais
antigas de autores desconhecidos, retocadas e embelezadas por
numerosas adições e interpolações. É muito mais importante para
nós possuir com a nossa obra, cujo período de redação se estabelece
com a margem de erro de um mês, um livro que nos apresenta o
cristianismo sob a sua forma mais rudimentar, sob a forma em que
está para a religião de Estado do século IV, constituída na sua
dogmática e na sua mitologia pouco mais ou menos como a mitologia
ainda vacilante dos Germanos de Tácito está para a mitologia do
Edda, plenamente elaborada sob a influência de elementos cristãos e
antigos.

O germe da religião universal encontra-se lá, mas contém ainda


em estado indiferenciado as mil possibilidades de desenvolvimento
que se realizaram nas inumeráveis seitas ulteriores. Se o fragmento
mais antigo do processo de elaboração do cristianismo tem para nós
um valor muito particular, é porque nos proporciona, na sua
integridade, o que o judaísmo — fortemente influenciado por
Alexandria — forneceu ao cristianismo. Tudo o que é posterior é
acrescento ocidental, greco-romano. Foi necessária a mediação da
religião judaica monoteísta para fazer revestir ao monoteísmo erudito
da filosofia grega vulgar a forma religiosa sob a qual ele podia chegar
às massas. Uma vez essa mediação encontrada, ele só podia tornar-
se uma religião universal no mundo greco-romano, continuando a
desenvolver-se para finalmente se fundir no fundo de idéias que esse
mundo tinha conquistado.

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