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1) O documento discute a diferença entre compreensão e interpretação de texto, argumentando que são conceitos distintos e não sinônimos.
2) A compreensão envolve traduzir o código do texto, montar as peças do quebra-cabeça para formar o sentido total, evocar conhecimentos prévios e planejar estratégias de leitura.
3) A interpretação se constrói sobre a compreensão, indo além dela para uma análise mais profunda do texto.
1) O documento discute a diferença entre compreensão e interpretação de texto, argumentando que são conceitos distintos e não sinônimos.
2) A compreensão envolve traduzir o código do texto, montar as peças do quebra-cabeça para formar o sentido total, evocar conhecimentos prévios e planejar estratégias de leitura.
3) A interpretação se constrói sobre a compreensão, indo além dela para uma análise mais profunda do texto.
1) O documento discute a diferença entre compreensão e interpretação de texto, argumentando que são conceitos distintos e não sinônimos.
2) A compreensão envolve traduzir o código do texto, montar as peças do quebra-cabeça para formar o sentido total, evocar conhecimentos prévios e planejar estratégias de leitura.
3) A interpretação se constrói sobre a compreensão, indo além dela para uma análise mais profunda do texto.
Este texto parte da constatao de que interpretao de texto um conceito mal compreendido por muitos pesquisado- res, produtores de material didtico e professores de lngua por- tuguesa. Percebe-se uma confuso elementar entre interpretao e compreenso, muitas vezes apresentadas como sinnimas. No raro encontrar nos materiais distribudos aos professores frases e expresses como Interpretar compreender, Dicas para compreender e interpretar textos, dando a entender que os dois verbos fundem-se num mesmo e nico significado. tambm interessante notar que quando traduzimos o sintagma interpre- tao de texto para a lngua inglesa temos a expresso reading comprehension (compreenso leitora), mais uma vez fazendo desaparecer a diferena entre uma e outra e at justificando a confuso como uma idiossincrasia da lngua portuguesa; inter- pretao e compreenso seriam duas formas lingusticas distintas para um mesmo conceito. Quando refletimos sobre os dois termos, no entanto, logo sentimos que eles no so intercambiveis; h uma diferena irreconcilivel entre eles, no permitindo que se use indiscrimi- nadamente um no lugar do outro sem comprometer a comunica- o. Posso dizer, por exemplo, que sei interpretar um texto, mas fica estranho afirmar que sei compreender um texto. Do mesmo modo, posso afirmar com naturalidade que ningum me com- preende, mas so rarssimas as situaes em que caberia uma frase como ningum me interpreta. Pode ser apenas um pro- blema de preferncia colocacional (cada termo aceita a compa- nhia de algumas palavras e rejeita a companhia de outras) ou Interpretar no compreender
254 pode ser um problema mais srio, de natureza conceitual, mos- trando no apenas diferena, mas oposio entre dois termos que se excluem mutuamente na sua essncia. O que se prope neste estudo preliminar refletir sobre essa diferena e tentar ver at que ponto isso se reflete na relao bvia que existe entre compreenso, interpretao e interpreta- o de texto. Constri-se essa proposta em trs partes: na primei- ra, tenta-se conceituar compreenso; na segunda, em contrapon- to, busca-se explicar como a interpretao construda sobre o alicerce da compreenso; e finalmente, na terceira, com base na diferena, prope-se de que modo a interpretao de texto pode ser conduzida com o aluno. Tem-se a ambio de que a proposta possa ser til e necessria ao professor, no s contribuindo para a compreenso do problema, de modo a saber o que ensina, mas tambm sugerindo estratgias de mobilizao junto ao aluno, de modo a obter melhores resultados. COMPREENSO A base conceitual da interpretao de texto a compreen- so. A etimologia, ainda que no seja um recurso confivel para estabelecer o significado das palavras, pode ser til aqui, para mostrar a diferena entre compreender e interpretar. Compre- ender vem de duas palavras latinas: cum, que significa jun- to e prehendere que significa pegar. Compreender , por- tanto, pegar junto. Essa ideia de juntar bvia em uma das principais acepes do verbo compreender: ser composto de dois ou mais elementos, ou seja, abarcar, envolver, abranger, incluir. Vejamos alguns exemplos para ilustrar essa acepo: O ensino da lngua compreende o estudo da fala e da escri- ta. A gramtica tradicional compreende o estudo da fonologia, da morfologia, da sintaxe e da semntica. A leitura compreende o contato do leitor com vrios textos. A outra acepo de compreender entender, perceber, al- canar com a inteligncia. Essa a acepo que est mais prxi- Vilson J. Leffa
255 ma do tema abordado aqui. A ideia de pegar junto tambm cabe nessa acepo: o leitor no pega o texto sozinho; quando ele comea a ler, tudo vem junto. O leitor, numa das pontas, o lei- tor e suas circunstncias, mas o texto, na outra ponta, tambm o texto e suas circunstncias. Ou seja, existem ao redor do leitor e ao redor do texto, contextos que os envolvem, formando cama- das de significao que viabilizam a compreenso. Nem o leitor nem o texto esto isolados dos contextos que os envolvem. O leitor sozinho uma impossibilidade terica. O texto sozinho no tem sentido; apenas um amontoado de rabiscos no papel ou uma grande sequncia de minsculos pixels na tela do monitor. Leitor e texto s existem quando se encontram no momento da leitura. Antes ou depois desse momento, so apenas potenciali- dades. Conforme Rosenblatt, Cada leitura uma transao que ocorre entre o leitor e o texto em um determinado momento e lugar. (...) O sentido no est pronto nem dentro do texto nem dentro do leitor, mas surge durante a transao. (ROSENBLATT, 2004, p. 1369)
Comeando com o leitor, vejamos brevemente alguns dos elementos caractersticos de seu contexto, elementos que ele pre- cisa mobilizar para que a compreenso acontea. Partindo da literatura da rea (ex.: KLEIMAN, 1999), o que se percebe que esses elementos formam determinados conhecimentos, incluin- do, entre outros, o cultural, o lingustico, o textual e o conheci- mento de mundo (KOCH & TRAVAGLIA, 1990). Em outras pa- lavras, o leitor no pode chegar sozinho ao texto; traz com ele o seu mundo, sua experincia de vida, as competncias que j acumulou. A leitura uma espcie de doao recproca: o senti- do no simplesmente dado ao leitor; trocado por algo que ele deve trazer. Se o leitor chegar ao texto de mos vazias, nada leva. Neste trabalho, prope-se que a compreenso envolve quatro competncias: (1) traduo do cdigo, (2) montagem do quebra- cabea, (3) evocao do saber construdo e (4) planejamento das estratgias. Vejamos brevemente cada uma dessas competncias. Interpretar no compreender
256 Traduo do cdigo. Todo artefato cultural seja um livro, uma imagem ou um vdeo est acondicionado num determina- do cdigo, que precisa ser adquirido pelo leitor para alcanar a compreenso. Esse processo de aquisio tem sido tradicional- mente definido como alfabetizao, que, no caso do texto escrito, o desenvolvimento da competncia em transpor o contedo armazenado no cdigo impresso, com base no sistema grfico da lngua, para o cdigo da fala, com base no sistema sonoro. O desenvolvimento se d medida que o cdigo da escrita, ainda desconhecido pelo alfabetizando, vai pouco a pouco sendo do- minado, de modo a possibilitar a traduo para o cdigo que ele conhece. Isso acontece no s em relao escrita, mas tambm com imagens, vdeos ou qualquer outro objeto cultural capaz de armazenar sentido, incluindo esculturas, roupas, moblia, ali- mentos, etc. A contribuio do leitor neste caso vir para o ato da leitura munido de um cdigo de chegada para o qual o conte- do do cdigo de partida possa ser traduzido. s vezes, como no caso de uma lngua estrangeira desconhecida, o leitor no possui esse cdigo de chegada e a compreenso no possvel. Montagem do quebra-cabea. O objeto a ser lido sempre composto de partes que se encaixam umas nas outras, formando um todo coerente, embora com interstcios maiores e menores entre as peas, que devem ser preenchidos pelo leitor. O objeto de leitura ao mesmo tempo uma rede, com suas aberturas, e um quebra-cabea, com peas que se distribuem dentro de uma composio possvel, aceitando a vizinhana de algumas e rejei- tando a companhia de outras. A montagem comea no nvel da frase, envolvendo restries semnticas, de ordem lexical, e res- tries sintticas, com suas regras de concordncia, regncia e sequenciamentos possveis. O conhecido exemplo de Chomsky (1957), Ideias verdes incolores dormem furiosamente, uma frase que infringe as restries semnticas, mas ainda vivel em termos puramente sintticos, o que no acontece, por exemplo, em Dormem incolores verdes furiosamente ideias, em que se rompe tambm o sequenciamento natural das palavras, infrin- gindo as restries sintticas, pelo menos na lngua portuguesa. No uso normal da lngua, cabe ao leitor estabelecer as relaes adequadas entre as peas do quebra-cabea, s vezes deslocadas Vilson J. Leffa
257 pelo autor para produzir determinados efeitos. Para compreen- der a primeira orao do hino nacional brasileiro, por exemplo, necessrio que o leitor recupere suas restries sintticas, sem o que a orao no ser compreendida. Assim, onde est escrito:
Ouviram do Ipiranga as margens plcidas De um povo heroico o brado retumbante...
o leitor dever ler:
As margens plcidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico...
Em outras palavras, e nos termos da gramtica tradicional, ter que encaixar o verbo (ouviram) com o sujeito (as margens plcidas) e o objeto do mesmo verbo (o brado retumbante). Sem essas conexes, a compreenso no acontece. Do mesmo modo que as oraes formam frases e perodos, esses perodos formam tambm blocos maiores, que precisam ser encaixados em outros blocos ainda maiores que compem o obje- to de leitura. O que dito numa frase, pargrafo, seo ou cap- tulo precisa ser conectado com o que dito em outros segmentos, incluindo ttulo, subttulos, figuras, quadros, tabelas, etc. A cone- xo entre os diferentes tipos de segmento feita por diferentes tipos de relaes, incluindo, entre outras, relaes de subordina- o, causa e efeito, oposio, comparao, concesso, etc. Essas conexes devem ser feitas no s na leitura do texto escrito, mas tambm na leitura de outros objetos. No caso da relao por su- bordinao, por exemplo, podemos identificar a centralidade do substantivo sobre o adjunto no sintagma nominal, da orao principal sobre a subordinada no perodo composto, da ideia principal sobre as ideias secundrias no pargrafo, da regio central sobre a periferia na imagem, do protagonista sobre os coadjuvantes no filme, entre tantos outros. H uma hierarquia nessas relaes de subordinao, criando conexes que o leitor precisa identificar para compreender o objeto. A montagem das peas do quebra-cabea em blocos cada vez maiores acaba extrapolando o prprio objeto, criando tam- Interpretar no compreender
258 bm conexes com outros objetos, no s da mesma natureza, mas tambm de naturezas diferentes. A intertextualidade no se restringe apenas ao texto impresso; existe tambm entre literatu- ra e cinema, poesia e escultura, msica e pintura e todas as com- binaes que se possam imaginar. Evocao do saber construdo. O leitor no uma entidade vazia; ele tem uma experincia de vida preservada em sua me- mria, que precisa ser acionada quando inicia a leitura. Compre- ender, portanto, mais do que conectar segmentos dentro do objeto de leitura; tambm conectar esses segmentos, arquivados l no objeto, com segmentos arquivados na memria do leitor. Devido s lacunas que se abrem no texto, e precisam ser completadas, a compreenso s possvel se o leitor j conhece o assunto ou o contedo ideolgico especfico abordado pelo texto: o tema. Um texto filosfico sobre fenomenologia, por exemplo, s compreensvel para o leitor que conhece fenomenologia. Se ele no trouxer esse conhecimento, no tem como estabelecer a conexo com os dados do texto; so dados que se perdem porque encontram uma memria vazia, sem possibilidade de encaixe, e consequentemente sem possibilidade de compreenso. Alm do tema, o leitor precisa tambm conhecer o recipi- ente que o armazena, em seus diferentes gneros (ex.: carta, rela- trio, romance, suspense), suportes (ex.: impresso, digital) e segmentos (ex.: narrativo, descritivo, argumentativo, injuntivo, dialgico). Para entender uma carta, por exemplo, necessrio conhecer suas condies de produo, que pressupem, entre outros aspectos, um remetente, um destinatrio, o contexto em que foi escrita e a ao que pretende executar. Planejamento estratgico. Alm do domnio bsico do cdigo (conhecimento lingustico), da montagem do quebra-cabea (co- nhecimento composicional) e da evocao do saber construdo (conhecimento de mundo), o leitor precisa tambm gerenciar a leitura, estabelecendo objetivos, selecionando as tcnicas ade- quadas ao objetivo (ex.: scanning, skimming) e avaliando at que ponto os objetivos esto sendo atingidos. O leitor, por exem- plo, pode estabelecer como objetivo encontrar um telefone celu- lar que deseja comprar. A tcnica selecionada ser basicamente o scanning, dependendo do suporte disponvel: num jornal im- Vilson J. Leffa
259 presso poder buscar a pgina dos anncios classificados e fazer um rastreamento do texto; num catlogo buscar as pginas que mostram o produto desejado; na internet poder usar uma m- quina de busca ou indexador, digitando o item que procura. Em- bora o scanning seja uma estratgia que envolve um tipo de lei- tura extremamente simples, de fcil compreenso, j que o leitor sabe o que procura, mesmo assim, ainda pode apresentar pro- blemas inesperados de compreenso, talvez algum termo desco- nhecido, que o leitor avalia como importante e que tenta resolver acionando mais uma busca. Atingido o objetivo, no momento em que est satisfeito com o que buscou, a leitura se encerra. Um aspecto importante do planejamento estratgico o monitoramento feito pelo leitor do que est sendo lido e as me- didas que so tomadas para corrigir as falhas de compreenso quando elas ocorrem. Algumas das medidas que podem ser to- madas pelo leitor incluem, por exemplo: ignorar momentanea- mente a falha e ir adiante, esperando que o problema acabe se resolvendo; reler o segmento com mais ateno, buscando algum elemento novo que tenha escapado na primeira leitura; tentar fazer, com suas prprias palavras, uma parfrase do que leu; buscar informaes complementares em outras fontes, como dicionrios, enciclopdias, resenhas de filmes, vdeos explicati- vos de como fazer, livros didticos, etc. O leitor sente que precisa criar em sua mente um conhecimento novo, uma espcie de n- cora que possibilite fazer a conexo com o que est sendo lido. A compreenso, na acepo que se tenta definir aqui, no uma ao consciente executada pelo leitor sobre um determinado objeto de leitura; uma experincia que se vive abaixo da super- fcie da conscincia, pela sua complexidade e pela rapidez com que acontece. A compreenso no s se desdobra em vrios n- veis, do processamento do cdigo ao conhecimento de mundo, mas precisa tambm processar todos esses nveis de modo ins- tantneo. A conscincia humana, dentro dos limites impostos pela ateno, no tem condies de apreender todos esses ele- mentos no momento em que eles acontecem. Da a natureza necessariamente inconsciente da compreenso. Interpretar no compreender
260 Interpretao Etimologicamente a palavra interpretar vem do latim interpes, que se referia pessoa que examinava as entranhas de um animal para prever o futuro. Do ponto de vista da leitura, h um pressuposto interessante aqui: o significado daquilo que lido no est na cabea do interpres, do adivinho, mas contido no objeto. O interpres no pode atribuir um significado, no pode tirar algo de dentro de si para depositar no objeto; pode apenas extrair o significado que j est dentro do animal. Uma atribui- o de sentido seria no s uma impostura, mas seria tambm negar ao interpres a capacidade de leitura; ele no inventa e nem cria, ele apenas reproduz o que supostamente preexiste na sua frente. Em suma, para o interpres, o significado emerge do pr- prio objeto em direo ao leitor. Essa ideia de extrao de significado permanece at hoje, quando se trata de ler o futuro nos objetos. Dizemos, por exem- plo, que as cartas no mentem jamais; ou seja, a verdade est nas cartas e no em quem as l. Isso serve tambm para os bzios ou a bola de cristal. Variam os objetos e os nomes que se do a esses leitores do futuro (cartomante, pitonisa, quiromante, joga- dor de bzios, etc.), mas a leitura que todos fazem sempre a mesma. Nenhum adivinho, nenhum intrprete pode atribuir um significado ao objeto que ele usa para sua leitura, seja a mo, uma concha, uma carta ou uma bola de cristal. Quem interpreta normalmente atua como se estivesse a desvendar os sentidos contidos no texto. A crena de que o sentido imanente ao objeto faz parte do exerccio de quase toda atividade de interpretao. (COSTA, 2008, p. 11) Quem interpreta faz uma leitura de mo nica, recebendo passivamente as informaes, sem voz para interagir ou dialogar com o texto. alimentado diretamente pelo que l, semelhana de um paciente entubado no hospital, que se sustenta pela sonda, sem oportunidade de apreciar ou mesmo deglutir o alimento. Conforme Orlandi, ...enquanto intrprete, o leitor apenas reproduz o que j est l produzido. De certa forma podemos dizer que ele no l, Vilson J. Leffa
261 lido, uma vez que apenas reflete sua posio de leitor na leitura que produz. (ORLANDI, 2001, p. 116). De acordo com nosso senso comum, intrprete a pessoa que se coloca entre duas outras, de lnguas diferentes para que, conhecendo ambas, possa traduzir as palavras de um interlocu- tor para a lngua do outro. Essa ideia de traduzir e de explicar tem sido e continua sendo bastante comum em vrios segmentos da atividade humana; o que se v que a interpretao acontece no s entre uma lngua e outra, mas tambm entre falantes da mesma lngua. Na antiguidade, tnhamos o Hermes, aquele deus alado da mitologia grega, que transmitia e interpretava as men- sagens divinas para os seres humanos e que, como sabemos deu origem hermenutica, que a arte e a cincia de interpretar a bblia. A hermenutica parte do princpio de que as pessoas s deveriam ler a bblia atravs de intrpretes, para que no lessem, principalmente certas passagens, de modo errado. A educao de um intrprete para a leitura do texto sagrado era, e continua sendo, um processo longo e demorado, com anos de formao, muitas vezes em templos retirados, longe do convvio da socie- dade. A sacralidade do texto no uma caracterstica exclusiva do texto religioso. Muitos outros textos, incluindo os das reas profissionais, possuem tambm essa sacralidade hermtica, que pressupe um intrprete para sua compreenso. O texto jurdico, por exemplo, apresentado como se estivesse muito alm da compreenso do cidado comum e, por isso, precisa ser interpre- tado por algum, geralmente um advogado ou juiz, passando por anos de preparao, exames da ordem e mesmo por concur- sos, que finalmente o qualificam para interpretar a lei. O texto sacralizado, quer de natureza religiosa ou jurdica, no pode cair nas mos de pessoas desqualificadas, que no seriam competen- tes para fazer uma leitura adequada. A imagem do interpres abrindo as vsceras do animal pode parecer um pouco forte, mas serve para dar uma ideia bastante til do que interpretao; essa ideia de desviscerao, de retirar as entranhas, de extrair o contedo do texto. Interpretar no compreender
262 Interpretao de texto A interpretao de texto como atividade pedaggica parte do pressuposto de que o objeto de leitura (texto, imagem, filme, etc.) est alm da competncia leitora do aluno e, por isso, preci- sa ser desvelado a ele pelo professor, um colega, uma apostila ou mesmo algum algoritmo computacional. H vrias maneiras de se produzir esse desvelamento, dentre os quais selecionamos trs: a interpretao como parfrase, como rplica e como proce- dimento dialtico. A interpretao como parfrase tem sido usada no s pa- ra a explicao de diferentes textos (religioso, jurdico, literrio, etc.), mas tambm para outros modos de produo (charges, msicas, filmes, etc.). O Quadro 1 expe a frequncia com que so citados textos que fazem uma interpretao de seis tipos diferentes de obras de arte: poema, filme, quadro, conto, msica e crnica. O levantamento foi feito em dezembro de 2010 e mos- tra que a ideia de explicar um texto por meio de outro texto faz parte do mundo em que vivemos, indo muito alm da sala de aula.
Obra e autor Tipo % No Meio do Caminho (Drummond) O Bicho (Manuel Bandeira) A Origem (Christopher Nolan) O Grito (Edvard Munch) Disciplina do Amor (Lygia Fagundes Telles) E Agora Jos? (Drummond) ndios (Renato Russo) Alegria, Alegria (Caetano Veloso) Eu Sei Mas No Devia (Marina Colasan- ti) Avatar (James Cameron) Poema Poema Filme Quadro Conto Poema Msica Msica Crnica Filme 20% 16% 12% 11% 10% 9% 8% 6% 5% 3% Quadro 1: Levantamento informal das obras mais parafraseadas na internet em lngua portuguesa, com percentual de participao, entre as dez mais citadas. No h espao aqui para analisar em detalhes como so feitas essas parfrases, s vezes privilegiando um determinado Vilson J. Leffa
263 aspecto, s vezes outros (ex.: predominncia da forma sobre o contedo ou do contedo sobre a forma), mas pode-se adiantar que o resultado histrico dessas anlises tantas vezes repetidas o consenso na interpretao. Todos acabam dizendo a mesma coisa e qualquer divergncia normalmente vista como erro de interpretao. Veja-se, a ttulo de ilustrao, um pequeno exem- plo com base na primeira estrofe do Soneto de Fidelidade de Vincius de Moraes. Diz o poeta:
De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento.
O Quadro 2 mostra duas interpretaes que foram feitas sobre essa mesma estrofe. A questo fundamental nesse segmen- to identificar qual o objeto do encantamento do poeta. Para a interpretao da esquerda, o objeto o amor, visto como um sentimento de natureza abstrata; j para a interpretao da direi- ta, o objeto do encantamento no o amor, mas uma pessoa que ocupa fisicamente um determinado lugar no espao e no tempo. Apenas uma dessas interpretaes a correta, como veremos mais adiante.
No primeiro conjunto de ver- sos, percebemos uma declarao explcita ao Amor, isto , aten- o total ao sentimento amoro- so... (SNIOR, 2009). Na primeira estrofe o poe- ta fala sobre a fidelidade pessoa amada (ANNI- MO, 2010). Quadro 2: Duas interpretaes da primeira estrofe do poema de Vin- cius, Soneto de Fidelidade.
A interpretao como parfrase, ao reproduzir a obra ori- ginal, corre sempre o risco de mutil-la ou desfigur-la. Mutila quando tenta resumir algo que originalmente j foi reduzido sua essncia e do qual nada se pode tirar; conhecer uma obra apenas pela sua ficha de leitura, como acontece com alguns alu- Interpretar no compreender
264 nos em relao aos clssicos, pode ser considerado, a meu ver, uma tragdia pedaggica. Ao tentar manter a essncia da obra, o resumo tira-lhe justamente essa essncia, ficando apenas nos detalhes que pouco interessam, como o enredo, nome dos prota- gonistas, localizao no espao e tempo. Por outro lado, desfigu- ra quando tenta explicar tudo que o leitor deve encontrar na obra, produzindo uma parfrase s vezes mais extensa do que a obra original, como acontece na anlise de alguns poemas. A interpretao como rplica no procura explicar o texto diretamente para o leitor, como a parfrase, mas indiretamente, criando uma pretensa interlocuo com o autor, rebatendo e contestando o que foi originalmente proposto. Nesse caso, o in- trprete fala diretamente para o autor do texto original, mas indi- retamente dirige-se ao leitor ou a outro pblico, s vezes consti- tudo como plateia invisvel. comum nos tribunais, quando um advogado contesta o que outro disse, dirigindo-se a ele, mas na verdade visando o jri. Acontece tambm nas assembleias polti- cas, em que um parlamentar contesta as afirmaes do colega, como se rebatesse a ele, quando na verdade est falando ao seu eleitorado. No contexto pedaggico, a interpretao como rplica mais rara, mas tambm pode acontecer. Escolhemos aqui como exemplo a interpretao feita por uma aluna, citada por Leonam & Badar (2008), do conhecido poema de Cames, Amor fogo que arde sem se ver, transcrito a seguir: Amor fogo que arde sem se ver, ferida que di e no se sente, um contentamento descontente, dor que desatina sem doer. Veja-se abaixo como a intrprete constri sua interpretao do poema, pretensamente dirigindo-se a Cames, com o uso de uma retrica funcionalmente interpessoal, mas obviamente vi- sando no o autor do poema, mas o leitor de sua interpretao: Ah! Cames, se vivesses hoje em dia, tomavas uns antipirticos, uns quantos analgsicos e Prozac para a depresso. Compravas um computador, Vilson J. Leffa
265 consultavas a Internet e descobririas que essas dores que sentias, esses calores que te abrasavam, essas mudanas de humor repentinas, esses desatinos sem nexo, no eram feridas de amor, mas somente falta de sexo! (LEONAM & BADAR, 2008) No mundo contemporneo de blogs, depoimentos em re- des sociais e principalmente a formao de comunidades de inte- resses mtuos bem especficos, com a interlocuo direta entre autores e leitores, o uso da interpretao como rplica talvez seja uma possibilidade a ser explorada. A probabilidade de envolvi- mento do aluno, tantas vezes criticado por sua apatia, pode au- mentar com as oportunidades de participao proporcionadas pelas redes sociais. Alm da parfrase e da rplica, a interpretao pode tam- bm ser trabalhada como um procedimento pedaggico de indu- o ao conhecimento, feito por meio de perguntas, tanto abertas como fechadas, a que estamos dando aqui o nome de interpreta- o como procedimento dialtico. Enquanto que na interpretao como rplica, a interlocuo se d com o autor, na interpretao como procedimento dialtico, semelhana da maiutica socrti- ca, as perguntas so dirigidas ao leitor, que tentar buscar as respostas dentro de si, tentando resolver paulatinamente as con- tradies que possam surgir no sequenciamento dessas pergun- tas. Vejamos, a ttulo de ilustrao, um exemplo bem singelo de interpretao dialtica, retomando o soneto de Vincius de Mora- es e comeando com uma pergunta de escolha simples: De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento.
Na estrofe acima, a palavra dele refere-se a uma mulher. a um homem. a um sentimento. Interpretar no compreender
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Considerando que o aluno conhea Vincius de Moraes e seria at aconselhvel que lesse sobre o autor antes de ler o poe- ma ao ler a primeira opo, surge a primeira perturbao: no pode ser uma mulher porque a palavra dele s aceita como antecedente um substantivo masculino; a opo descartada j no nvel do cdigo lingustico. O aluno pode at desejar que o poeta tivesse usado dela, seria to mais fcil de interpretar, mas obrigado a procurar outra resposta. Parte ento para a segunda opo: dele refere-se a um homem. Aqui no h pro- blema no nvel do cdigo lingustico, pela concordncia de gne- ro entre dele e homem, mas surge um conflito com os dados que o aluno tem armazenado em sua memria: estranho que Vincius de Moraes esteja apaixonado por um homem; a conexo no faz sentido. O quebra-cabea ainda no est montado e o aluno parte para a terceira opo: dele refere-se a um senti- mento. Estrategicamente, volta ao poema e faz um rastreamento do texto buscando um termo que denote um sentimento at en- contrar a palavra amor. Finalmente, as peas do quebra-cabea se encaixam: o poeta no est apaixonado nem por um homem, nem por uma mulher; est apaixonado pelo amor. A parfrase da esquerda no Quadro 2 a que est correta. Continuando nossa proposta de interpretao dialtica, poderamos lembrar ao aluno que na literatura o como se diz to ou mais importante do que aquilo que se diz. Assim, mostra- ramos que essencialmente o que o poeta diz que vai prestar ateno no amor e que nada h de especial nisso; o interesse est em mostrar a intensidade com que diz e os recursos que usa para isso, principalmente a inverso sinttica das duas oraes e o uso repetido de locues adverbiais de intensidade. A primeira ora- o, na ordem natural da lngua portuguesa, seria apenas Serei atento ao meu amor antes de tudo..., que o poeta reescreveu como De tudo, ao meu amor serei atento antes..., trazendo as palavras amor e tudo para o primeiro plano e dando assim um destaque maior. Tambm, na segunda orao, a ordem dire- ta, natural na lngua portuguesa, seria meu pensamento mais se encante dele, mas o poeta preferiu a ordem indireta: dele se encante mais meu pensamento. Em outras palavras, o mesmo Vilson J. Leffa
267 destaque que foi dado antes para a palavra amor agora dado palavra dele; como essas duas palavras remetem ao mesmo referente, o resultado da dupla inverso que o destaque tam- bm dado duas vezes. Alm dessas inverses, a repetio das locues adverbiais no segundo verso (e com tal zelo, e sempre, e tanto), precedidas da conjuno aditiva e, repetida trs ve- zes, eleva ainda mais a intensidade do sentimento. A interpretao dialtica, como est sendo proposta aqui, propicia uma aprendizagem mais colaborativa do que o uso mo- nolgico da parfrase. Enquanto na parfrase, o intrprete substi- tui o texto, na dialtica o intrprete se coloca entre o texto e o aluno, propiciando uma construo coletiva da compreenso, evolvendo o texto, o intrprete e o aluno. H tambm uma inter- veno planejada com as quatro competncias da compreenso: (1) ajuda na traduo do cdigo, (2) na montagem do quebra- cabea, (3) na evocao do saber construdo e (4) no planejamen- to estratgico. A existncia da ajuda faz a diferena entre com- preenso e interpretao: se o leitor construir a compreenso autonomamente, sem ajuda, ser compreenso; se houver ajuda, temos interpretao. Essa interveno, na medida em que conduz o aluno para uma determinada direo, entra em xeque com algumas propos- tas tradicionais que pregam uma abertura maior na interpretao de uma obra artstica pelo aluno (ex.: MENDONA, 2003). O que se prope aqui que interpretao e compreenso so realidades diferentes, sendo uma mais fechada, a interpretao, e a outra mais aberta, a compreenso. Sugere-se, cautelosamente, que abrir a interpretao fechar a compreenso, sonegando ao aluno os caminhos necessrios para penetrar no texto, deixando-o perdido do lado de fora. Em suma, v-se a interpretao como uma atividade cons- ciente, que, ao mesmo tempo em que alimenta a compreenso, sugerindo possveis conexes, tambm se alimenta, cresce e se desenvolve a partir dela, explorando as conexes que j existem, pelo menos como potencialidade. A compreenso, por outro lado, vista como uma camada subterrnea, invisvel e impreg- nada de conexes possveis. Usando uma metfora, podemos dizer que a compreenso, embora esteja situada abaixo do nvel Interpretar no compreender
268 da conscincia, rene a fora, a energia e a fertilidade do hmus que faz brotar a atividade consciente da interpretao. CONCLUSO Compreender e interpretar so dois conceitos que se apro- ximam em alguns aspectos e se distanciam em outros. Enquanto alguns autores destacam a semelhana entre os dois, a ponto de muitas vezes confundir um com o outro, sem perceber a diferen- a, este trabalho procurou destacar as diferenas, partindo das semelhanas. Tem-se como pressuposto que a distino neces- sria para um trabalho didtico produtivo. Procurou-se mostrar que compreender relacionar. Essas relaes precisam ser estabelecidas em vrias direes, locais e globais, dentro do objeto de leitura e fora dele, dentro do leitor e fora dele. V-se um texto, uma imagem, uma msica, um vdeo e qualquer outro objeto de leitura, como um quebra-cabea que precisa ser montado em suas partes para se chegar compreen- so em sua totalidade. Interpretar, por outro lado, explicar para o leitor de que modo cada quebra-cabea pode ser montado. Dos inmeros pro- cedimentos possveis, destacamos trs para nossa anlise: inter- pretao como parfrase, como rplica e como dialtica. Mostra- mos que a parfrase o procedimento mais direto e objetivo: o trabalho do intrprete produzir outra verso do mesmo objeto de leitura, com a finalidade de explicar ao leitor/aprendiz de que modo esse objeto deve ser compreendido. O perigo maior da interpretao como parfrase a possibilidade que ela oferece de mutilar e desfigurar o objeto de leitura. J a interpretao como rplica tem a seu favor a possibilidade de interlocuo entre au- tores e leitores por meio de comunidades de interesse. Finalmen- te, a interpretao como procedimento dialtico a que parece oferecer maior possibilidade de retorno no desenvolvimento da compreenso do objeto de leitura pelo aluno, na medida em que permite uma penetrao nesse objeto, que desmontado e re- composto em cada um de seus elementos, mostrando de que modo ele se constri. Vilson J. Leffa
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