Gênero é uma destas categorias que invadem nossa forma
de pensar os outros e nossa forma de elaborar a nossa identidade. A pergunta pelo que é masculino e o que é feminino é uma pergunta pelo lastro desta categoria. De onde vem esta categoria? Trata-se de uma essência da natureza humana que, fortunadamente, descobrimos já desde os primórdios do patriarcado? Ou trata-se de uma construção inevitável dadas as aparências das pessoas, um dado inescapável? Ou trata-se de alguma necessidade profunda inscrita na nossa necessidade de pais e mães? Ou trata-se de um conjunto de performance que reproduzimos e com isto reforçamos a cada ato de vestir, falar, desejar e discriminar? Ou, ainda, trata-se de uma categoria de opressão sobre a qual ergueu-se um sistema que põe barreiras às possibilidades de levar algumas de nossas necessidades e de nossas habilidades a sério?
O essencialismo quanto ao gênero esteve latente na
maioria das formas de pensar as pessoas e seus direitos no ocidente. Estas formas de pensar tentam apagar qualquer vestígio de uma produção do gênero exatamente para dar um ar de universalidade, ou de naturalidade à categoria.
Em geral, ao feminino associa-se a passividade, a
domesticidade, a incapacidade de ação, uma mentalidade escrava de uma anatomia onde falta alguma coisa etc [1].
Tal concepção do que seja feminino é, por sua vez,
herdeira da noção do feminino como algo menor que deve estar preso à uma suposta esfera privada ou familiar - o domínio das mulheres é jurisdição exclusiva de homens individuais.
Hegel (1807), por exemplo, procura mostrar a divisão do
que ele chama substância ética em si mesma: ela se manifesta tanto com um elemento de universalidade e com um elemento de singularidade. A primeira refere-se às leis explícitas da cidade como expressão da vontade comum dos cidadãos, a segunda refere-se à lei da família, que não se expõe à luz do dia.
Ele então sugere que por meio da família o homem se eleva
à lei humana, que é positiva, enquanto a mulher conserva uma lei divina, sem positividade e sem escritura - inquestionável.
Até recentemente, até o trabalho de Susan Okin (1989), as
teorias das justiça não consideravam o que é justo e o que é injusto na esfera familiar ou mesmo acerca do que colabora para produzir a esfera familiar. O essencialismo, portanto, é uma base ideológicas do patriarcado e de sua concepção do que seja secreto, doméstico e restrito em oposição ao mundo do que é público.
O feminismo é a politização do debate acerca do
patriarcado - e assim precisa insistir que a esfera privada é política.
Uma vez que o patriarcado é posto a nu, parece que
devemos por em questão as suposições de essencialismo. Mas a questão não é tão simples. De fato, grande parte do pensamento feminista desde Simone de Beauvoir até Susan Okin passando por Andrea Dworkin, Shulamit Firestone e Gloria Steinem rejeita suposições claramente essencialistas [2].
Não se trata de promover uma inversão igualmente
opressiva, como descreve Gloria Steinem em suas inversões (1983, 1994). No entanto, o pensamento sobre o feminino destituído das suposições patriarcais exige mais nuance.
É preciso que o feminino seja resgatado, o que significa
torná-lo visível, público e não mais secreto; o que envolve, por exemplo questões de linguagem. Para que algo seja partilhado, torne-se público, conhecido, esse algo tem que ser dito, de uma forma ou de outra. Acontece que se eu digo esse algo em uma linguagem que não lhe traduz, esse algo será sempre ou apresentado como o que escapa, o indizível, etc., ou então será distorcido, porque estará encerrado por uma linguagem que lhe é estranha.
Assim, por exemplo, o axioma da psicanálise é sexual,
centrado sobre o falo, a castração, o Nome-do Pai, e, principalmente, sobre a oposição masculino/feminino. A razão sexual, como o próprio Freud disse, é masculina, já que só há uma libido, a masculina - talvez precisássemos poder falar de uma libida. Nesse caso, toda tentativa de recuperar o feminino no interior dessa linguagem terá como efeito o espelhamento do feminino pelo masculino, que será apresentado como o termo ao qual faltam coisas.
O feminismo tentou, e conseguiu, por a claro o que
significa ser mulher na nossa sociedade por meio de uma criação, talvez parcial, de uma maneira de falar em que, como disse Gloria Steinem, fez com que o que era "coisas da vida" se tornasse "assédio sexual", "estupro no primeiro encontro", "violência doméstica" etc. A criação de uma linguagem do oprimido é uma maneira de tornar visível os pontos cegos da visão de mundo do opressor.
Algumas feministas foram mais longe na sua tentativa de
usar teoricamente as categorias de gênero. Carol Gilligan (1984), por exemplo, em um famoso estudo determinou que muitos homens em nossas sociedades pensam sobre questões éticas de um modo diferente das mulheres - aqueles pensam em termos de princípios e estas em termos de cuidado, de proteção. Gilligan então parece generalizar noções de feminino e masculino como se elas fossem independentes da situação de oprimidos e opressores. Na época - uma época de reação à segunda onda feminista [3] - o trabalho de Gilligan foi entendido como abrindo portas para o essencialismo e portanto forneceu elementos para os argumentos em defesa da naturalização de estruturas patriarcais. A legitimidade do patriarcado não pode ser defendida sem algum essencialismo.
Uma alternativa para se opor ao essencialismo sobre o
gênero é adotar um ceticismo quanto à categoria - insistir que nenhuma generalização pode ser feita com base no que seja masculino ou feminino.
A mais famosa forma de ceticismo quanto ao gênero é a
que emerge da obra de Judit Butler (1990). O ceticismo quanto ao gênero parte da diversidade da situação das mulheres no mundo - o que vale para as mulheres etíopes não vale para as mulheres da classe média americana etc. - na melhor das hipóteses há solidariedades locais. Butler procura estabelecer que gênero é performance; que não há nada que sustente as distinções de gênero senão nosso modo de vestir, de julgar, de desejar etc. Segue que podemos dissolver as noções de gênero se deixarmos de agir de acordo com elas: as drag queens, e toda forma de cross-dressing, são então elementos na luta feminista. Mas parece que não é tudo - para começo de conversa, como diria Garrincha, quem combinou com o adversário? Os homens, satisfeitos com seus privilégios patriarcais, não vão deixar de performar gênero. Uma análise assim parece deixar de lado as estruturas políticas comuns nas diversas faces da opressão patriarcal.
Gostaríamos de recomendar uma noção do que seja
feminino que evite tanto o essencialismo quanto o ceticismo de gênero.
As características das mulheres - inclusive as regularidades
que se encontram entre muitas culturas - devem ser vistas sob os olhos de uma teoria da opressão.
Isto, no entanto, nos remete a características das mulheres
que se associam à resistência às formas heteropatriarcais de vida, a valores esmagados pela atual fragmentação do pensamento e a oposição a maneiras unidimensionais de pensar e agir. Por exemplo, podemos passar em uma concepção passiva do feminino na lógica da produção, da economia, do patriarcado, a uma concepção positiva do feminino na lógica da dádiva.
Para isso é preciso romper com a idéia da necessidade de
uma organização social fundada no valor de troca, que só pode se mover através do ato de reduzir os bens a um equivalente geral - que só assim podem ser trocados – para refletir através da idéia de uma organização social cujo grande valor é o da permuta em si, e não os bens trocados.
Gen Vaugham (1997) mostra que a economia da dádiva
coexiste com a economia da troca em nossas sociedades mas ela é invisível: nossos serviços de cuidado e de afeto, nossas preocupações de proteção e nossa necessidade de comunicação, por exemplo, apontam para a prática de um sistema que não é fundado na reciprocidade compulsória em que tudo tem um valor universal. Vaugham sugere que a economia da dádiva tem sido menosprezada e relegada em grande medida às menosprezadas, as mulheres.
E a dádiva não apenas é necessária para a sustentação das
comunidades como garante uma forma de vida mais aberta, mais humana e menos mercantil. O germe de uma sociedade pós-patriarcal está na economia da dádiva - assim como, se quisermos pensar na maneira como estamos concebendo gênero, o germe de uma sociedade pós-capitalista se encontra nas atitudes e no conhecimento próprios do proletariado.
O princípio da dádiva, longe de girar em torno de
elementos sem valor para o mercado, mantém vivos os elementos que garantem a sobrevivência de valores comunitários e humanos. Pensem no quanto custa o cuidado para criar filhos, tomar conta dos idosos, dos doentes etc. e quanto custa substituir o que os serviços que a natureza faz por nós - há um estudo na Nature (1997) sobre isto que conclui: 33 trilhões de dólares[4].
Não recomendamos uma forma de essencialismo que
associe, por exemplo, o feminino à economia da dádiva. Recomendamos uma concepção positiva do que seja feminino dentro dos marcos da estrutura patriarcal de construção dos gêneros e que esteja atenta às muitas nuances que isto traz. Gênero é uma categoria de identidade porque é uma categoria de opressão. Mas rejeitar tout court a noção de gênero nos levaria a algumas cegueiras quanto à sociedade em que vivemos e às possibilidades de torná-la melhor.
NOTAS:
[1] A psicanálise, por exemplo, de acordo com seu modo de
pensar, constrói o feminino enquanto concepção negativa - “a libido é masculina para os dois sexos” diz Freud - e postula que esta construção depende de um desenvolvimento que começa, de alguma forma, com a anatomia.
[2]Outras, como Mary Daly e francesas como Cixous não
tem problemas em falar do que é, por natureza, feminino. Há também um discurso segundo o qual as mulheres são, em essência, superiores - o locus clássico disto é o "Scum Manifesto" de Valerie Solanas.
[3]Veja Faludi (1991), traduzido em 2001 para o
português.
[4]O estudo foi realizado em 16 ambientes diferentes e,
para cada um foram considerados serviços como a regulação da composição química da atmosfera; regulação do clima; controle de erosão do solo etc. Para dar uma idéia da grandeza do valor desses serviços, basta lembrar que o Produto Global Bruto está em torno de 18 trilhões de dólares por ano. As florestas e as áreas úmidas, como o Pantanal Matogrossense, responderam por 9,3 trilhões de dólares (28,1% dos 33 trilhões de dólares) e os sistemas costeiros por 10,6 trilhões de dólares (32,1% do total). O serviço mais caro é a ciclagem de nutrientes* que equivale a 17 trilhões de dólares por ano. Outros serviços, como a regulação da composição da atmosférica, a recuperação de distúrbios naturais, a regulação do fluxo de água, o suprimento de água, a reciclagem de materiais já utilizados, a produção de alimentos, custariam mais de 1 trilhão de dólares cada, por ano, se precisassem ser substituídos.
Contanza, Robert et al. (1997) The value of the world’s ecosystemm services and natural capital, in: Nature 387, 253-260. Faludi, Susan. (1991) Backlash: the Undeclared War Against American Women. Gilligan, Carol (1984) In a Different Voice. Hegel, Georg. (1807) Phänomenologie des Geistes. Okin, Susan. (1991) Justice, Gender and the Family. Steinem, Gloria. (1983) Outrageous Acts and Everyday Rebellions. Steinem, Gloria.(1994) Moving Beyond Words. Vaugham, Gen. (1997) For-Giving.